MERLEAU-PONTY: INTRODUÇÃO À ESTRUTURA DO COMPORTAMENTO Kassius Otoni Vieira* Harley Juliano Mantovani** Resumo Mostramos o contexto histórico e ambiência que configurou o pano de fundo do pensamento vigente, que era “aceito” para esta abordagem específica no momento da construção do pensamento do filósofo Maurice Merleau-Ponty. Enfatizamos a introdução da reflexão da teoria merleau-pontyana da estrutura do comportamento humano, com o recorte nos primeiros passos da fundamentação exposta no primeiro capítulo de sua obra; “A Estrutura do Comportamento”; que preliminarmente aborda o problema da tradição filosófica: a discordância entre a visão que o homem pode ter de si mesmo pela reflexão ou consciência, e aquela que se obtém relacionando suas condutas às condições externas das quais elas dependem. Palavras-chave: Comportamento. Reflexão. Consciência. “Foi isso que se aprendeu neste meio século: a falsa modéstia do entendimento não evita o problema do todo e as certezas da razão, o da circunstância.” (FUJIWARA apud MERLEAU-PONTY, 2006)1 Nossa pretensão inicial é verificar e mostrar em qual contexto histórico da filosofia e das ciências se encontrava Maurice Merleau-Ponty, e quais as influências ele sofreu em seu pensamento, seja positivamente, corroborando com suas inferências, ou, de forma negativa, tornando-as alvos de sua crítica, provocando novas teses no campo da “filosofia da psicologia”. Logo após uma breve contextualização histórica, através da qual apenas apresentaremos a antecâmara da filosofia merleau-pontyana, abordaremos diretamente os pontos chaves do primeiro capítulo da sua obra, a estrutura do comportamento. Ao considerar a introdução de seu estudo, faz-se necessário destacar os seguintes pontos: o estímulo, o lugar da excitação, o circuito reflexo, e a reação. Algo muito importante a ser considerado sobre a influência histórica do pensamento contemporâneo a Merleau-Ponty, é que ele viveu no turbilhão das idéias e desencantos da * Graduando em Filosofia. Aluno do 4º período de Bacharel em filosofia da Faculdade Católica de Uberlândia. E-mail: [email protected]. ** Orientador. Mestre em Filosofia pela UFSCar. Professor de Filosofia da Faculdade Católica de Uberlândia. E.mail: [email protected]. 1 FUJIWARA não informou a página em sua citação. Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 93-100, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 93 segunda guerra mundial, que se desenrolou entre os anos de 1939 e 1945. Neste período de guerra, entre seus trinta e trinta e cinco anos, serviu sua pátria, na condição de oficial do exército francês. Ele viveu os horrores da guerra, que contribuíram também para colocar em cheque, alguns pontos da reflexão filosófica e Cientifica que o precedeu. A sua obra “La Structure du comportement”, foi concebida exatamente no período da guerra, e datada de 1942, período no qual toda Europa estava “espantada” com as barbáries que o ser humano produziu, mesmo se valendo do tão aclamado pensamento modernocontemporâneo, que segundo a visão filosófica iluminista, traria à raça humana o apogeu civilizatório através da razão. Outra importante referência teórica foi a de Sigmund Freud, que na década de trinta, tratou desse “mal-estar na civilização”, pré-supondo a satisfação de “pulsões” poderosas, até então não satisfeitas. Aquilo que, de alguma forma, impedia a satisfação dessas pulsões, foi aniquilado através da força do sistema capitalista e do pensamento modernista. Foi permitido à raça humana e sobre tudo ao povo europeu, dar vazão a estas “pulsões” poderosas, inaugurando assim a idade contemporânea e por sua vez a devastação de milhões de seres humanos através da guerra. O resultado contrário ao que foi prenunciado pelo iluminismo filosófico gerou este mal-estar, que influenciou todo o mundo. Digno de nota também é a influencia que Husserl (Edmund Gustav Albrecht Husserl), de forma bem mais direta, exerceu sobre o pensamento filosófico de Merleau-Ponty. Ele rejeitou a teoria husserliana do conhecimento intencional fundamentando sua própria teoria no comportamento corporal e na percepção. Merleau-Ponty sustentava que é necessário considerar o organismo como um todo para se descobrir o que se seguirá a um dado conjunto de estímulos. Ao contrário de Husserl que cria que “a consciência funda sentido como compreensão de algo que é, através da intencionalidade, ou seja, através de sua orientação intencional para encher o vazio.” (ZILLES, 2007, p.218). Considerando toda influência assimilada por Merleau-Ponty e, sobretudo, seu próprio desenvolvimento fenomenológico, observamos sua posição inicial, que basicamente é o ponto de partida de sua reflexão neste tipo de “filosofia da psicologia”, que é fundamentada na idéia que se segue: o corpo humano é o ponto de vista sobre o mundo, ele é fonte de sentido das coisas no mundo, cria significações e é o lugar em que a existência assume certa situação, tendo em vista as tarefas que visa realizar, que fornecem o sentido para a atividade corporal. , Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 93-100, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 94 O corpo tem um papel preponderante dentro da filosofia merleaupontyana, o corpo irrompe como sentido, ele se apresenta como aquele que estrutura os estímulos, fazendo os estímulos ter relevância para o ser afetado por eles, sem este, o meio externo, as fontes estimulantes, não poderiam agir sobre ele. O corpo não pode ser confundido meramente como parte de uma materialidade inerte, mas participante ativo na produção da experiência. O corpo então é também fenomenal, ou seja, está para os estímulos objetivos, e promove a determinação própria de sentido prático a estes estímulos, gerando significação aos mesmos. Esse fluxo de atividades, pela qual o corpo se depara constantemente em relação ao mundo, concretiza certo estilo de experiência. A pura reação frente ao estimulo não pode explicar por si somente a complexidade do comportamento. O mundo sem dúvida alguma é protagonista na condição de pólo mundano gerador dos estímulos, contudo, outro protagonista de mesma importância e, portanto indispensável para essa geração de diferença de potencial está no corpo. Este não só é afetado, mas é capaz de afetar-se e decide ser exposto ao estímulo. Temos então a principio uma dualidade, onde o estimulo e o corpo, não respectivamente, possuem certa dignidade de uma causa, contudo não pode-se sustentar a causalidade neste aspecto. “No estudo científico do comportamento, deve-se rejeitar como subjetivas todas as noções de intenção ou de utilidade ou de valor, porque elas não têm fundamentos nas coisas e não são determinações intrínsecas delas.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p.35). Na concepção de Merleu-Ponty, entre a situação e a resposta vemos se estabelecer uma ligação dialética de sentido entre o organismo e o meio, relação de reciprocidade e interatividade. Existe uma interdependência momentânea que faz a gestão dessa relação entre o organismo e o meio, que no momento da relação não é possível valorar as partes ou admitir graus de importância. O que pode ser rigorosamente concebido é um conjunto de agentes e condições que possibilitam o fenômeno do comportamento. O estímulo apresenta-se como um dos agentes do comportamento, ele age mais por suas propriedades elementares do que por sua distribuição espacial. O que é normalmente comprovado é a imprevisibilidade do efeito de um estímulo complexo considerando puramente a composição de seus elementos. Com efeito, somente em uma consideração aparente e superficial, poder se ia admitir a dependência do reflexo face às prioridades formais ou globais do excitante. , Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 93-100, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 95 Para o Merleau-Ponty existia verdadeiramente uma inversão do que se admitia até então, no que diz respeito ao comportamento, que preconizava uma aceitação no meio acadêmico e no senso comum admitindo-se, portanto, o estimulo provocando o comportamento. Para o autor “o comportamento é a causa primeira de todas as estimulações. Assim a forma do excitante é criada pelo próprio organismo, por sua maneira própria de oferecer-se às ações de fora.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p.39). Haja vista alguns tipos de estímulos que encontram em seus excitados em potencial, uma ausência de percepção, ou uma maneira totalmente diferente do que se pode pressupor do estimulo-reação, ou seja, não se pode determinar o comportamento ao estímulo, mas como que o estimulado se dá ou não a este estimulo. Para o autor o correto seria o comportamento-estímulo. Essa compreensão revolucionária da sensação ampliou a noção de percepção proposta pelo pensamento objetivo, o entendimento da percepção passa a estar relacionado à atitude corpórea, e não somente à causalidade linear estímulo-resposta. Na acepção fenomenológica da percepção sentida e capturada pelo corpo, ele apresenta-se na condição de criador, relacionado com as várias possibilidades de abstração de estímulos advindos do pólo mundano. Conforme a reflexão de Merleau-Ponty, O estímulo adequado não pode se definir em si e independente do organismo; não é uma realidade física, é uma realidade fisiológica ou biológica. O que desencadeia necessariamente certa resposta reflexa, não é um agente físico-químico, é certa forma de excitação da qual o agente físicoquímico é a ocasião antes que a causa. (MERLEAU-PONTY, 1975, p.57) O entendimento sobre o lugar de excitação colabora de forma decisiva para a fundamentação dessa formulação a respeito do comportamento, porque, essa teoria sugere um tipo de “inversão” em relação à teoria clássica. Na acepção merleaupontiana o comportamento de certa forma gera a excitação, no sentido de torná-la real, portanto o lugar da excitação apresenta-se neste circuito, como a interface que possibilita o fenômeno, ou seja, determinar e conceituar o lugar da excitação é indispensável para o entendimento de todo o processo da estrutura do comportamento. Compreende-se que Merleau-Ponty desqualifica a possibilidade de existência de excitantes e receptores exclusivos, como que circuitos fechados e independentes para atuar conforme a necessidade exterior do agente do pólo mundano. Conforme o autor afirma. “Parece estabelecido que não se pode falar para cada excitante de um campo receptor anatomicamente circunscrito.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p.41) , Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 93-100, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 96 A idéia de circuitos particulares ou privados, não suporta a confrontação com certa constatação da seletividade de pontos específicos do aparelho nervoso, quando o mesmo “decide” agir, frente à excitação, diferentemente da concepção de uma reação específica frente a uma ação exterior provocante. “Os diferentes reflexos, em lugar de corresponder a tantos circuitos “privados”, representariam os modos variados do funcionamento de um mesmo aparelho nervoso.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p.42). Não se pode conceber o organismo como um ente passivo, restrito a executar aquilo que lhe é determinado pelo lugar da excitação e pelos circuitos nervosos que aí tem sua origem. A idéia do circuito reflexo ou arco reflexo é proveniente da investigação do caminho físico que a excitação percorre desde que deixa a sua condição exterior e passa a existir interiormente no indivíduo, não podendo ainda ser admitido como excitante se estiver limitado ao pólo mundano. É o individuo que de forma comportamental “permite” no corpo a existência efetiva da excitação, anteriormente não existia por si mesma, mas depende do “corpo” e conseqüentemente do circuito reflexo que lhe atribuiu existência. O circuito reflexo por sua vez é tomado como pré-suposto em toda a teoria da estrutura do comportamento, contudo Merleau-Ponty questiona a possibilidade de que no circuito reflexo existam trajetos definidos, e processos de condução isolada, que produzam as trajetórias específicas que possibilitem a reação a partir de dada excitação. Para manter a idéia da teoria clássica do reflexo, faz-se necessário sustentar uma individualidade de circuito privativo dentro do “sistema de reflexão”, como a hipótese de controle e da inibição, o que ele critica com a seguinte afirmação: “As hipóteses auxiliares do controle e da inibição estão destinadas antes a manter a teoria clássica do reflexo que a fazer compreender positivamente a natureza da atividade nervosa.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p.46) A excitação não é de forma alguma a resposta passiva, e estática quanto à intensidade e teor, de uma ação exterior, mas uma complexa decisão que o organismo produz, mesmo em face de uma mudança da excitação, que está totalmente submissa às normas descritivas do organismo. Como poderia ser aceito então a reação? Para Merleau-Ponty existe a necessidade de admitir que a idéia de atividade específica, proveniente de determinada “provocação externa”, nada mais é que uma impressão que um espectador possui do fenômeno, o que desqualifica totalmente a aceitabilidade dessa proposição. “Mesmo se existissem estímulos, receptores, trajetos nervosos específicos, eles não poderiam explicar por si mesmos a adaptação do reflexo ao estímulo.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p.55) , Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 93-100, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 97 O fator que deve ser considerado com maior rigor é a reação, porque no comportamento a reação é o ato explicitador do fenômeno, se do fenômeno fosse retirada a reação, não seria possível considerar o acontecimento. Contudo já foi dado por certo que a reação não depende de uma ação exterior, a reação então é fruto de uma ação de decisão interior do próprio organismo agente, de forma tão complexa a impedir a qualificação específica de determinação externa para reações exteriorizadas, a reação tem muito mais relações com a necessidade prática do que com a resposta ao estímulo. A atividade instintiva, e mesmo a maior parte da atividade reflexa aparece como altamente adaptada, o animal executa as ações que são úteis para ele em seu meio, mas, do ponto de vista desta teoria, a adaptação não é uma propriedade desses próprios atos, não e senão uma impressão que eles dão ao espectador. (MERLEAU-PONTY, 1975, p.61) A reação no reino animal, seja racional ou irracional, não pode ser se não equivocadamente, comparada com a ação de uma máquina. Um equipamento ao ser acionado através de uma determinada chave, botão ou alavanca, desencadeia uma ação, devido à ligação do determinado aparato de disparo, “botão”, com o aparato de ação que é distinguido pelo circuito particular correspondente. A complexidade da vida animal, leva em consideração a subjetividade do desejo, e a perspicácia que é própria da necessidade vinculada ao instinto de sobrevivência. Muitas vezes a reação observada é exatamente a falta de reação, esta “pseudo” inércia garante o alimento ou preserva a auto-existência. Observa-se então que neste caso, diferente de um equipamento eletro mecânico, o ser biológico comporta-se seletivamente a partir das possibilidades que lhe é conveniente para reagir, e nesta perspectiva, é mais correto considerar um estímulo complexo, como apenas mais um dos componentes da reação, e na maioria das vezes o menos preponderante, e de menor capacidade de determinar uma ação final, independentemente do circuito reflexo acionado. A reação deve ser sempre concebida levando em consideração uma certa ambigüidade necessária, de certa forma apresenta-se com grande justeza de determinação, para que movimentos vitais e de controle sejam possíveis e preservados, doutra forma e para os mesmos fins, é necessário uma notável e grande flexibilidade, porque a reação necessita de , Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 93-100, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 98 ser corrigida pela experiência, afim de que ela contribua sempre para os objetivos do organismo. Não é conveniente ao bem da justa ponderação introduzir normas humanas nos fenômenos, e conceber, portanto, processos orientados ou ordenados, determinadores de respostas adaptadas ao estímulo, introduzindo a idéia de uma seqüência de movimentos coerentes. A relação de ordem que pode existir entre estimulo e reação é próprio da capacidade humana de abstrair fatos, e no campo do senso comum, gerar uma organização para fins “pedagógicos”. É bastante evidente que falamos de uma resposta “adaptada” ao estímulo ou de uma seqüência de movimentos “coerentes”, exprimimos relações concebidas por nosso espírito, uma comparação que ele faz entre o “sentido” do estímulo e o “sentido” da reação, entre o “sentido total” da resposta e os movimentos parciais que o compõem. Essas relações de sentido pelas quais definimos a ordem resultam justamente de nossa própria organização. (MERLEAU-PONTY, 1975, p.76) Merleau-Ponty considera o comportamento como fruto da decisão do indivíduo, algo que é externado a partir da complexidade da escolha frente a todas as questões internas e externas que se lhe apresenta. Essa capacidade de interpretação seletiva dos estímulos de acordo com o tempo, experiência e necessidade, torna o determinismo da concepção clássica de estimulo-reação, como uma acepção demasiadamente recortada para exprimir toda a verdade acerca do comportamento. Os comportamentos “privilegiados” definem o organismo tão objetivamente quanto a análise cronáxica pode fazê-lo, se, como é preciso renunciar-se ao realismo mecanicista ao mesmo tempo que ao realismo finalista, isto é, a todas as formas do pensamento causal.” (MERLEAU-PONTY, 1975, p.78) Portanto o primeiro capítulo da obra “A Estrutura do Comportamento”, faz uma introdução da concepção merleau-pontyana sobre este tema, que trata primeiramente de considerar toda a tradição e produção intelectiva anterior a este estudo. Fica clara a influência do pensamento que lhe foi contemporâneo, ao que ele consegue qualificar as posições que na sua visão são equivocadas, e de forma contundente reafirmar o pensamento que é próprio da fenomenologia, que ele usou na fundamentação de suas primeiras considerações. , Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 93-100, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 99 Portanto pode-se considerar que seu grande ponto de partida foi a filosofia fenomenológica de Edmund Gustav Albrecht Husserl, e o seu contraponto de fundamentação pode ser identificado no Behaviorismo de Ivan Petrovich Pavlov. Referências MERLEAU-PONTY, M. A estrutura do comportamento. Belo Horizonte: Interlivros, 1975. ZILLES, Urbano. Fenomenologia e teoria do conhecimento em Husserl, Revista da Abordagem Gestáltica – XIII(2): 216-221, jul-dez, 2007. FUJIWARA, Gustavo Meguru. Em torno de Sarte e Merleau-Ponty, São Paulo, http: ontologiaperdida.blogspot.com, 2010, Consultado em 23/07/10. MERLEAU-PONTY, M. As aventuras da dialética. São Paulo: Martins Fontes, 2006. FURLAN, Reinaldo – VERISSIMO, Danilo Saretta. Entre a Filosofia e a Ciência: MerleauPonty e a Psicologia. Paidéia: cadernos de Psicologia e Educação. Editora USP, Consultado no SCIELO em 21/07/10. , Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 93-100, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 100