o significado e os reflexos do brexit

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O significado e os reflexos do BREXIT:
crises no centro do sistema, nacionalismos e reações aos processos de
integração regional
Klei Medeiros1 e Pedro Henrique Prates Cattelan2
• As últimas três grandes crises econômicas mundiais (1930, 1973 e 2008) resultaram em
reações por parte das potências centrais de modo a evitar a difusão de poder em direção à semiperiferia e à periferia.
• Após a crise do subprime de 2008, se aprofundaram tendências nacionalistas e prote-
cionistas no centro, concomitantemente à disputa por mercados com países semiperiféricos.
• O Brexit representa um sintoma dos limites da expansão da globalização centrada na
integração e liberalização econômica, podendo suscitar uma volta dos nacionalismos e das disputas no continente europeu.
Apresentação
As tendências que se seguem às crises
mundiais do capitalismo determinam a forma
como as transições sistêmicas e as mudanças
na estrutura de poder global vão operar. Assim,
analisamos aqui a saída do Reino Unido da União
Europeia – também conhecida pelo termo Brexit
– como um sintoma de uma crise global do capitalismo ocorrida em 2008 e buscamos relacionar
os eventos atuais com os padrões de transformação do sistema mundial, os quais dependem do
entendimento sobre as estratégias das potências
centrais para evitar o declínio e, por outro lado, as
tentativas das potências em ascensão em contribuir para a mudança no sistema, através de mecanismos que evoluíram desde um conflito direto
entre potências (primeira metade do século XX) até
formas mais sutis de disputa, como a guerra econômica e a guerra assimétrica (tal como ocorreu
no fim da Guerra Fria).
O grande dilema da União Europeia a partir dos
anos 2000 consistiu em, por um lado, avançar no
processo de integração à leste tentando se consolidar como polo de poder independente e relevante
no sistema mundial e, por outro, evitar fissuras em
meio ao cabo-de-guerra entre as esferas de influência norte-americana e russa. Paralelamente, enquanto a Alemanha lutou para manter a Europa unida, a Grã-Bretanha oscilou entre o bandwagoning
com os EUA (Ellis 2009; Gardham 2010) – como
1
Professor de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e Mestre em Ciência Política pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contato: [email protected]
2
Graduando em Relações Internacionais pela UFRGS. Contato: [email protected]
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aliado na guerra ao terrorismo e nas intervenções
na Líbia e Síria – e a participação no processo de
integração europeu em matéria de política externa
e de defesa, sobretudo com a pretensão de criação da Entente Frugale em aliança com a França
(Thomson 2007; United Kingdom 2010).
mados “vinte anos de crise”). Tudo indica, porém,
que as potências centrais irão se utilizar de mecanismos econômicos para se reerguer, através da
preservação da presença na periferia do sistema
mundial, em confronto com as novas potências
semiperiféricas em ascensão. Reações à integração regional, nacionalismos e atritos entre capital
e trabalho (por meio da proliferação de propostas
de reformas trabalhistas na França e no Brasil, por
exemplo) tornam o cenário ainda mais preocupante e sinal de um período de mudanças estruturais
no sistema mundial.
A grande repercussão na mídia internacional do
plebiscito realizado no Reino Unido para decidir se
o país deve deixar a União Europeia foi alimentada
pelo interesse nas repercussões que tal decisão
poderia gerar, em termos de comércio internacional e como reflexo de uma retração do processo
de integração regional europeu e o avanço da tendência ao individualismo em política externa. A
polarização do debate interno se deu em meio a
um cenário de avanço do nacionalismo de direita,
evidenciando um dos principais sintomas de uma
crise sistêmica global: a tendência em culpar o estrangeiro pelos problemas econômicos internos e
resgatar o sentimento nacional a partir do isolacionismo e da recuperação de um passado glorioso.
A crise econômico-financeira e seus efeitos
Segundo o historiador econômico Michel
Beaud (2004, p. 201) sintetiza, toda crise capitalista resulta do jogo de quatro contradições fundamentais: a) entre capitalistas (seja no mesmo
setor, seja de setores a setores); b) entre capitalismos nacionais; c) entre capital e trabalho, ou seja,
diretamente entre empresas capitalistas e classes
operárias e; d) entre capitalismos dominantes e
povos, países ou regiões dominadas.
Dentro desse contexto, analisamos o Brexit como
sintoma da crescente dificuldade em manter a Europa unida em um cenário de polarização crescente entre Estados Unidos e potências euroasiáticas
como a Rússia e a China. O evento também evidencia os limites dos processos de integração regional em um contexto econômico de protecionismo
e tentativa de recuperação do crescimento e reindustrialização nos países centrais, como modo de
competir com a asiatização da economia-mundo.
As tendências nacionalistas (seja de direita, seja
de esquerda) que se observam em um cenário pós-crise mundial de 2008 também acendem um alerta para a probabilidade de uma maior beligerância e conflitos diretos entre distintos capitalismos
nacionais – por meio de uma nova reconfiguração
e sistema de alianças, tal como na transição da
Pax Britanica para a Pax Americana (os assim cha-
Os eventos recentes de 2016 sinalizam o que alguns teóricos e analistas de relações internacionais têm chamado de movimentos de desintegração e “desglobalização”. Embora algumas análises
se deixem levar pela força dos eventos recentes
para sugerir mudanças bruscas no sistema mundial, a verdade é que tais tendências se verificam
desde 2008, após a crise do subprime, que atingiu
os EUA e posteriormente diversos países europeus.
Como todo o período que se sucede a crises de
dimensões globais, a disputa intercapitalista entre
potências que compõem o centro do sistema mundial se amplia, bem como destas com as potências semiperiféricas em ascensão. A análise dos
períodos que se sucederam às duas últimas crises
mundiais (1930 e 1973) revela que a potência em
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declínio (Grã-Bretanha, no primeiro caso e EUA, no
segundo caso) tenta a todo custo manter a supremacia e o respeito aos mecanismos de governança
que o mantém no centro do poder. Paralelamente,
a potência hegemônica, nestes contextos, desenvolve alianças estratégicas com potências em ascensão para preservar a segurança e, ao menos,
realizar uma transição sistêmica pacífica.
Transatlântica de Comércio e Investimento (APT ou
TTIP, em inglês) e a Parceria Transpacífica (TPP, em
inglês), mega-acordos que preveem liberalização
comercial com países estratégicos para a hegemonia norte-americana. Enquanto o TTIP se direciona
à Europa, deixando de fora a Rússia, o TPP deixa
de fora a China e a Índia na Ásia. Esses mega-acordos também resultaram numa série de críticas
por parte de movimentos sociais e grupos organizados, pelo fato de serem acordados em segredo
(violando a democracia) e pelos possíveis efeitos
em termos de redução de garantias trabalhistas e
bem-estar social. Tais iniciativas revelam que além
da disputa intercapitalista entre as potências econômicas centrais (EUA, Europa e Japão) e as novas
potências em ascensão (China e Índia, sobretudo),
a crise é demonstrada também por meio dos crescentes atritos entre capital e trabalho no interior
dos países centrais. Eventos que sugerem tal tendência são as tentativas de reforma trabalhista na
França e os protestos que a sucederam, e as reações às migrações do Norte da África e Oriente
Médio em direção à Europa, alimentando a xenofobia e a aversão a estrangeiros por parte da classe
trabalhadora europeia.
Tais foram os casos da Grã-Bretanha nos anos
1930 e dos EUA nos anos que se sucederam à
1973. Nos anos 1930, a Grã-Bretanha garantiu a
sobrevivência dentro do sistema a partir de uma
aliança com potências em ascensão (EUA e União
Soviética), tendo que, de certa forma, repassar
poder a estas. Os Estados Unidos, no contexto da
crise de 1973, se aliaram à China como forma de
contrabalancear a União Soviética, concedendo poder à esta e lhe permitindo ingresso no clube das
grandes potências. Ao mesmo tempo, os EUA se
utilizaram de mecanismos econômicos para garantir a recuperação do crescimento e da manutenção
de gastos militares, sobretudo com a pressão pela
liberalização comercial no Terceiro Mundo (domínio ideológico neoliberal) e com o choque dos juros
em 1979, fazendo praticamente o resto do mundo
financiar sua dívida pública e consequentemente
permitindo uma nova onda de inovação na tecnologia de guerra e na transição tecnológica. No segundo caso, a potência que aparentemente estaria
em declínio nos anos 1970, recupera seu poder
nos anos 1980 e 1990, através de uma espécie de
reação conservadora (Vizentini 1996).
Do mesmo modo que nos anos 1930, o comércio
internacional se arrefece e as exportações mundiais enfrentam um relativo declínio. O protecionismo e o isolacionismo parecem ser uma tendência,
bem como a ascensão política de grupos de extrema-direita (sobretudo na França, na Alemanha e
no Reino Unido) e de grupos de extrema-esquerda na periferia da Europa (como na Espanha e na
A partir da análise destes eventos históricos, é de Grécia, por exemplo). Curiosamente, tal como nos
se esperar que os eventos que ocorrem no pós- anos 1930 e nos anos 1970, o sentimento anti2008 também resultem em um cenário semelhan- -russo na Europa também se amplia.
te àqueles dos anos pós-1930 e pós-1973. Os sinais de uma nova onda de reação conservadora Por fim, e não menos importante, outro sintoma da
são inúmeros: as tentativas dos EUA de retomar crise do sistema mundial alicerçado na unipolario crescimento por meio do Acordo de Parceria dade norte-americana é o que Michel Beaud cha11
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ma de contradição “entre capitalismos dominantes
e povos, países ou regiões dominadas” (2004, p.
201). Esse sintoma é evidenciado pelas incursões
da OTAN na Líbia e, mais recentemente, na Síria,
e as tentativas de evitar movimentos antissistêmicos na periferia, através da pressão pela mudança
de regime em países estratégicos para a segurança europeia e norte-americana.
Nos últimos anos, principalmente após a crise de
2008, houve um fortalecimento da campanha pela
saída do Reino Unido da União Europeia (ou pelo
menos pela revisão das relações). Uma mostra disso é o fortalecimento do Partido de Independência do Reino Unido (UKIP, na sigla em inglês), com
caráter fortemente eurocético. O UKIP foi o maior
vencedor das eleições de 2014 para o Parlamento
Europeu, onde conseguiu 24 dos 73 assentos britânicos. Foi a primeira vez em mais de um século
que um partido que não o Conservador ou o Trabalhista venceu uma eleição de nível nacional. Já
nas eleições legislativas de 2015, o UKIP totalizou
cerca de 12% dos votos e conseguiu um assento
no parlamento.
Em suma, a crise nos países centrais se mostra
explosiva e alimenta a hipótese do declínio da hegemonia dos EUA, visto que os princípios, valores
e ideias defendidos na fase de auge da Pax Americana (democracia, liberalização comercial e respeito aos direitos humanos) se erodem e dão lugar
a uma busca individualista pela sobrevivência e
manutenção da supremacia (refletindo-se em uma
substituição cada vez maior do multilateralismo
pelo bilateralismo e unilateralismo nas relações
internacionais). O Brexit, nesse sentido, conforme
defende Wallerstein (2016), representaria muito mais um sintoma do que a causa de tumulto
(Brexit: symptom, not cause, of turmoil).
Para as eleições de 2015, a fim de retomar os votos dos eurocéticos e dos conservadores que foram para o UKIP, o primeiro-ministro David Cameron adotou um discurso crítico à UE e prometeu a
realização de um referendo sobre a permanência
do país no bloco caso vencesse a eleição. O partido conservador conseguiu a maioria absoluta dos
assentos, e o referendo foi marcado.
O Brexit como a ponta do iceberg
Em seguida, o governo britânico, liderado por Cameron, buscou obter concessões dentro da União
Europeia e aumentar sua excepcionalidade, tendo
como base o crescimento de críticas de sua população ao bloco. A UE, temendo uma efetivação do
Brexit, cedeu. Em fevereiro de 2016, fechou-se um
acordo entre o Reino Unido e o bloco europeu, o
que confirmava a excepcionalidade britânica dentro da organização. O pacto tinha a governança
econômica, a competitividade, a soberania e a migração como assuntos principais. As “reformas” foram em sua maioria simbólicas – fazendo concessões que já aconteciam na prática. Um ponto que
se destaca é o “direito” de Londres de não integrar
o princípio da UE de “união cada vez mais estreita”, ou seja, afastando ainda mais o país do pro-
O movimento pela saída do Reino Unido da
União Europeia não é novo. O país já entrou tardiamente no bloco (então denominada Comunidade Econômica Europeia), em 1973. No referendo
que tratou da entrada de Londres no processo de
integração europeia, cerca de 32% dos eleitores
votou contra o ingresso. Desde então, o Reino Unido sempre teve uma posição privilegiada dentro
do processo de integração europeu. Por exemplo,
o país não aceitou o euro como moeda e estipulou regras próprias em relação à imigração – ao
contrário dos membros do Espaço Schengen. A
“excepcionalidade britânica” garante exceções ao
país que não são dadas a nenhum outro país europeu.
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cesso de integração. Dessa forma, e pelo tamanho
da propaganda feita sobre o acordo, percebe-se
que este foi firmado para satisfazer a opinião pública britânica (Kelemen and Matthijs 2016). Com as
concessões da UE nesse acordo, Cameron prometeu fazer campanha pelo “Remain”, ou seja, pela
continuidade do Reino Unido no bloco europeu.
ção mostrou uma grande divisão do país. Os votos
pela permanência originaram-se principalmente
das grandes cidades (notadamente Londres) e da
população jovem e com alto nível de educação. Na
Escócia, na Irlanda e no território de Gibraltar também votou-se em peso pela continuidade do Reino
Unido na UE. Já pela saída, votaram a favor pessoas mais idosas e de regiões rurais. Também destacam-se as divisões no interior do Partido Trabalhista – devido às políticas neoliberais de austeridade
da UE, à possível perda de empregos para imigrantes e estrangeiros. Em suma, consideram-se como
principais razões para o resultado do referendo: a
xenofobia; o descontentamento com as elites e governos; o nacionalismo; a aversão ao neoliberalismo; a má situação financeira; e a baixa qualidade
do discurso político. Também destaca-se a falta de
lideranças políticas e alternativas efetivas para o
atual sistema (McKelvey 2016).
Após esses fatos, houve um acirramento da campanha para o referendo. Os principais argumentos
para os defensores da saída foram: peso fiscal
(recursos destinados à União Europeia poderiam
ser utilizados para outros serviços públicos); excesso de regulação em diversos setores; falta de
autonomia para políticas nacionais; inchaço da
burocracia; imigração. Esse último fator foi considerado o de maior peso na campanha, consoante
um aumento no nacionalismo e xenofobia no país.
Apesar de ter aumentado após a crise 2008, a imigração para o Reino Unido não foi tão grande e impactante quanto o propagado na campanha. Além
disso, diferentemente do resto da UE, o governo
britânico recebeu poucos refugiados, visto sua
autonomia em política migratória. As justificativas
pela continuidade no bloco tinham como base o
prestígio internacional, os ganhos econômicos, as
vantagens de se admitir imigrantes e questões de
segurança internacional (combate ao terrorismo,
por exemplo). Poucos dias antes do plebiscito, a
parlamentar Jo Cox, do Partido Trabalhista e pró-UE, foi morta por um militante da extrema direita,
com histórico de forte nacionalismo, racismo e xenofobia. A campanha pelo referendo então foi suspensa, sendo retomada após alguns dias.
A vitória do Brexit teve impactos imediatos. A libra
esterlina atingiu seu valor mais baixo em três décadas. O preço das ações e títulos do país caíram. O
Reino Unido teve sua nota de crédito rebaixada por
agências de classificação de risco. Também notou-se um aumento nos registros de casos de racismo e xenofobia nos dias seguintes ao referendo. O
primeiro-ministro David Cameron renunciou após
a derrota no plebiscito. Em seu lugar, assumiu a
conservadora Theresa May, que, apesar de ter sido
contra a saída da UE, afirmou que vai respeitar o
resultado do referendo. May nomeou líderes do
movimento pró-Brexit para ministérios importantes
Para a saída ser efetivada, o governo britânico
No referendo do dia 23 de junho de 2016, a maio- deve invocar o artigo 50 do Tratado de Lisboa, que
ria dos eleitores do Reino Unido votou pela saída estabelece os parâmetros e as maneiras de como
da União Europeia. A diferença foi pequena, cer- deve-se dar o egresso. O artigo, nunca utilizado, esca de 52% contra 48% (com 72% de presença dos tipula um prazo de dois anos (que pode ser ampliaeleitores). O resultado do referendo não é vinculan- do caso haja consenso) para o Reino Unido e a UE
te, mas deve influenciar a decisão política. A vota- negociarem como se darão suas relações após o
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Brexit. Assim, a concretização desse processo ain- economia britânica sofreria grandemente. A perda
da é indefinida.
de comércio no longo prazo seria significativa. Os
fluxos financeiros, que são liderados por Londres
Diversos problemas sobre as negociações se mos- no cenário atual, também seriam prejudicados. Estram de difícil solução. O governo britânico ainda tudos mostram que a perda econômica britânica
discute sobre o que deseja de suas relações futu- após o Brexit pode corresponder de 1,3% a 2,6%
ras com a UE. Dois projetos se destacam: adentrar do PIB no curto prazo, enquanto no longo prazo
como membro do Espaço Econômico Europeu ou podem chegar de 6,3% a 9,5% da renda nacional
somente um tratado de livre comércio com o blo- (Ottaviano et al. 2014).
co. O primeiro é rechaçado pelos defensores do
Brexit, visto que Londres ainda ficaria submetida Diante disso, a primeira-ministra afirmou que não
às regras da UE (inclusive sobre migração), porém invocará o artigo 50 antes do fim de 2016 e sem o
sem influência nas decisões da organização. Já o Reino Unido ter definido uma estratégia clara para
segundo levaria anos para ser negociado e dimi- o processo. No cenário atual, há enormes divisões
nuiria o comércio entre as duas partes em relação entre os defensores do Brexit, principalmente nas
aos níveis atuais. As lideranças europeias já afir- questões econômicas e migratórias. Portanto, a samaram que a saída tem de ser o mais rápido possí- ída total do bloco, se é que um dia ocorrerá, pode
vel e que “fora significa fora”, ou seja, sem grandes levar muitos anos (alguns analistas estimam que
benefícios para Londres nas negociações. Essa po- o processo levará de cinco a 10 anos para que se
lítica serve para desestimular outros membros a se complete).
retirarem do bloco.
As reações à integração regional
Além disso, a negociação de tratados de comércio
(necessários caso se ative o artigo 50) é prejudicada pela falta de experiência e reduzido tamanho
da burocracia britânica para este fim: desde 1973,
tal negociação foi assumida pelos funcionários do
bloco europeu. Ademais Londres teria de renegociar suas relações e acordos com outros países e
outras organizações, como por exemplo sua posição na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Outros desafios incluem a situação das leis e direitos de britânicos morando na Europa (e de europeus vivendo no Reino Unido), das empresas com
atuação nas duas partes, da previdência de funcionários, dos prédios da UE em território britânico,
entre outros.
O processo do Brexit se insere em um contexto mais amplo de euroceticismo e reações à
integração no nível global. O movimento pela saída do Reino Unido da União Europeia tanto foi
impactado quanto impactou grupos nacionalistas
dentro e fora da Europa. Assim como no Reino Unido, sempre houve focos de eurocéticos em diversos países europeus. Porém, recentemente, com
a crise financeira de 2008, a crise do euro a crise
de refugiados de 2015 houve um fortalecimento
de discursos nacionalistas. As duas questões de
maior peso no desagrado da população contra a
UE são as políticas econômicas (austeridade) e migratórias. Os discursos eurocéticos são semelhantes por toda a Europa: culpar o estrangeiro (tanto
Os impactos de longo prazo previstos de uma saída burocratas da UE quanto imigrantes) pelos probleefetiva do Reino Unido da UE estão em várias es- mas atuais, como o desemprego e a desigualdade
feras. Além de perda de prestígio internacional, a social. Nesse sentido, as críticas se dirigem contra
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princípios básicos da globalização, como a livre circulação do fator trabalho.
Reino Unido prejudicaria a cooperação em diversos campos, por exemplo, o combate ao terrorismo, solução da crise migratória, dentre outros.
O Brexit pode representar a própria dissolução do
Reino Unido. Em 2014, um referendo sobre a independência da Escócia foi realizado, com a permanência escocesa vencendo por 55% a 45%. Já
nas eleições legislativas de 2015, o Partido Nacional Escocês (SNP, na sigla em inglês) conseguiu
uma grande vitória, obtendo 56 dos 59 assentos
parlamentares disputados. A Escócia votou em
peso pela permanência do Reino Unido na União
Europeia. A liderança do SNP já prometeu realizar
um novo referendo sobre a independência caso o
Brexit se efetive e o país perca os benefícios de
participar da UE. Como o último referendo obteve
uma pequena margem de diferença, o novo fator
(permanência na UE) pode mudar significativamente o resultado.
Talvez o maior impacto do Brexit na integração europeia seja a influência sobre outros membros. Até
hoje, nenhum membro se retirou da organização.
Isso pode abrir precedência para outros países iniciarem o processo, ou barganharem com a situação para conseguir mais vantagens. Diversos grupos pela Europa comemoraram a vitória do Brexit
e começaram a articular movimentos para a realização de referendos semelhantes em seus países.
Destacam-se os movimentos eurocéticos da França, República Checa, Polônia, Países Baixos, Itália,
Dinamarca e Grécia. Outros líderes contrários a
projetos de integração também comemoraram o
resultado do referendo britânico, como candidato
republicano à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump.
Reações semelhantes ocorreram na Irlanda do
Norte e em Gibraltar. No caso do primeiro, políticos
já anunciaram a intenção de realizar um referendo
pela separação do Reino Unido, dada a importância da União Europeia. A saída do bloco também
representaria um problema nas relações com a República da Irlanda, visto que as relações ficariam
mais rígidas sem os parâmetros estabelecidos
pela UE. Já em Gibraltar, a permanência contabilizou 96% dos votos, e a Espanha nota isso como
oportunidade de retomar o território.
Apesar disso, segundo alguns analistas, a saída do
Reino Unido pode representar algo bom para a UE
no longo prazo, visto que esse país muitas vezes
impedia o aprofundamento da integração do bloco
(Pecastaing 2016). Os líderes da Alemanha, Itália
e França já afirmaram que a resposta ao Brexit tem
de ser ainda mais integração. Além disso, fortaleceria a zona do euro e do Espaço Schengen dentro
da União Europeia, visto a saída do principal membro que não integra esses grupos.
Os impactos do Brexit na integração europeia e
para a União Europeia podem ser enormes. Além
da saída de uma das maiores economias e do
membro com maior poder militar, mostra o desgaste de um processo de integração que é considerado um dos mais efetivos do mundo. Novas tarifas e
diferenças em padrões e leis também podem diminuir o comércio, fluxo de investimentos e aumentar
a concorrência. A escolha do unilateralismo pelo
A vitória do referendo eurocético no Reino Unido
juntou forças com o movimento eurocético no continente europeu. É importante lembrar que, nas
eleições para o Parlamento Europeu de 2014, diversos partidos eurocéticos obtiveram o maior número de assentos em seus países. Além do supracitado UKIP, a Frente Nacional na França (24 de
74), e o Partido Popular Dinamarquês (4 de 13) obtiveram a maioria dos assentos europeus de seus
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países. Os eurocéticos também alcançaram resultados expressivos na Irlanda e na Itália. Na França,
a líder da Frente Nacional, Marine Le Pen, disse
que o resultado demonstrou que o povo não deseja mais ser controlado de fora de suas fronteiras e
que quer ser protegido da globalização.
Esse dilema está profundamente enraizado em
um componente sistêmico da economia internacional: a capacidade de produzir polarização e ao
mesmo tempo difusão3 (GILPIN, 1987). De acordo
com essa abordagem, a situação global a partir da
década de 1980, mas sobretudo nos anos 20002010, se assemelharia ao período em que houve
transição sistêmica da Pax Britannica para a Pax
Americana, em que empréstimos internacionais e
investimentos externos acentuariam a industrialização em direção às zonas periféricas, estagnando
as economias centrais e proporcionando maior difusão do que polarização. Nesses períodos, a pressão competitiva tende a produzir protecionismo
nos países centrais de modo a deter e desacelerar
a ascensão dos novos polos de riqueza.
O Brexit parece ter tido pouco impacto em outros
projetos de integração pelo mundo, mesmo afetando diretamente um dos mais importantes, o europeu. Temia-se que, por representar uma ruptura, a
saída do Reino Unido da UE poderia desestimular
outros projetos. Não parece o caso, mesmo com
alguns deles passando por dificuldades. A União
Africana continua seu processo de integração, inclusive anunciando medidas e discussões para
aprofundar a integração na mesma semana do referendo britânico. A Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) enfrenta muitos problemas,
porém o processo de integração segue forte, com
nenhum país próximo de se retirar da organização.
Já o Mercosul passa por uma crise, visto os problemas econômicos e as fortes divisões políticas
internas, com membros defendendo a reforma e o
enfraquecimento do bloco sul-americano.
Com a tendência de redução das taxas de lucro e
do crescimento do produto nacional nos países do
centro, no processo de difusão, alguns países da
periferia experimentariam as “vantagens do atraso” (Gerschenkron 1962), ou seja, iniciariam sua
industrialização utilizando as técnicas e as lições
mais eficientes provenientes das economias centrais, em função da competição das estruturas
estatais periféricas pelo capital circulante (Gerschenkron 1962; Gilpin 1987). Por fim, quando
essa difusão começa a proporcionar uma maior
distribuição de poder e riqueza em direção à periferia e à semiperiferia, os países centrais reagem,
através do protecionismo (como nos anos 1930)
ou, segundo a abordagem de Chang (2003), através do protecionismo no centro e da negação do
protecionismo aos países em desenvolvimento,
pressionando pela liberalização de setores aos
quais possuem maior vantagem comparativa (tal
qual nos anos 1980 e 1990).
Considerações finais
O Brexit não representa o fim da integração
europeia, sendo mais um sintoma da crise que assola os países centrais em um contexto de transição sistêmica e crise de hegemonia. A asiatização
do globo e a emergência de economias dinâmicas
na semiperiferia têm representado um desafio às
potências tradicionais, que buscam a todo custo
evitar o processo de deslocamento do poder e das
capacidades materiais em direção às zonas periféricas.
3
Para Gilpin (1987, p. 94) o desenvolvimento desigual possui como características tanto o efeito de polarização do capital, da indústria e
das atividades econômicas no centro quanto o efeito de difusão da riqueza e das atividades do centro para a periferia, criando o que ele chama de
novos “pontos nodais” no sistema.
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Os dilemas enfrentados pelos países europeus na
atualidade estão profundamente ligados à perda
de mercados de grandes empresas europeias em
relação às dinâmicas economias semiperiféricas,
ao esgotamento do processo de expansão do projeto europeu e da OTAN em direção ao Leste e às
reações da Rússia em face a esse cenário. A tentativa de recuperar o crescimento e competir com
as economias asiáticas têm levado ao crescimento
de propostas de reformas trabalhistas e ao florescimento de movimentos anti-globalização, tanto à
direito quanto à esquerda, com o Brexit sendo um
exemplo destes. Tal cenário é muito similar ao dos
anos 1930, que acabaram levando a uma guerra
mundial. Tudo indica, porém, que as disputas diretas irão cada vez mais ceder lugar às guerras assimétricas e guerras econômicas como forma de
disputar mercados e espaços com potências emergentes em regiões estratégicas do globo.
Portanto, o Brexit pode ser visto como uma reação
tradicional de países centrais em momentos de
crise econômica – e de hegemonia –, adotando o
protecionismo, o nacionalismo e o individualismo
na política externa como forma de evitar o processo de difusão de poder em direção à semiperiferia e retomar o crescimento. Essa reação do Reino Unido tem entre suas causas principais a crise
financeira de 2008. Esta acentuou os problemas
econômicos internos derivados da globalização, ou
seja, perda de benefícios econômicos e empregos.
A responsabilidade desses problemas foi colocada
sobre os estrangeiros, inclusive sobre outros europeus, sendo a resposta dada o início da saída
do país do processo de integração europeu. Mas,
como a história repetidas vezes mostrou, o Reino
Unido não pode ignorar os problemas do continente e esperar que não sofra suas consequências.
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Referências
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Bol. Conj. Nerint | Porto Alegre | v.1 n. 2 | p. 1-83 | set/2016 | ISSN: 2525-5266
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