1 A QUESTÃO DA INCONVERSIBILIDADE DA MOEDA: EXPERIENCIA RECENTE DO ESTADO BRASILEIRO Marcelo Pereira Fernandes (UFRRJ) Alexandre Jerônimo de Freitas (UFRRJ) RESUMO O Brasil, como as economias periféricas em geral, possui uma fragilidade financeira estrutural materializada na sua incapacidade de emitir dívida em sua própria moeda no mercado internacional. Porém, nos últimos anos o Brasil tem ampliado sua capacidade de financiamento, atenuando aquilo que ficou conhecido na literatura como pecado original. O objetivo deste artigo é analisar quais são as raízes desta melhora quanto à capacidade de financiamento do país, que gerou uma maior resistência financeira à crise internacional para o caso brasileiro e tentar responder se este processo representa uma transformação estrutural ou seria apenas o fenômeno conjuntural. Palavras-Chave: inconversibilidade, dívida, crise financeira, Brasil ABSTRACT Brazil, as the peripheral economies in general, has a fragile financial structure embodied in its inability to issue debt in its own currency in the international market. But in recent years Brazil has increased its financing capacity, reducing what is known in the literature as original sin. The aim of this paper is to analyze what are the roots of this improvement in their ability to finance the country, which created greater financial resilience to the international crisis in the Brazilian case and try to answer whether this process represents a structural change or cyclical phenomenon. Key-Words: inconvertibility, debt, financial crisis, Brazil 2 A QUESTÃO DA INCONVERSIBILIDADE DA MOEDA: EXPERIENCIA RECENTE DO ESTADO BRASILEIRO Marcelo Pereira Fernandes (UFRRJ) Alexandre Jerônimo de Freitas (UFRRJ)1 1 – INTRODUÇÃO A fragilidade financeira das economias periféricas é uma questão amplamente discutida na literatura, principalmente, latino-americana. Suas raízes podem ser encontradas não apenas na estrutura econômica nacional como também nas assimetrias do sistema monetário e financeiro internacional. As economias periféricas podem financiar sua divida pública através do mercado doméstico ou nos mercados internacionais, assim como suas dívidas podem ser emitidas na moeda local ou em divisas estrangeiras. Historicamente tais economias sempre encontraram dificuldades em se financiarem nos mercados locais e quase sempre em moeda estrangeira. Esta dificuldade tornou-as dependentes financeiramente de ciclos de liquidez dos mercados internacionais e extremamente suscetíveis as crises financeiras internacionais. A eclosão da crise financeira de 2008 nos Estados Unidos logo se alastrou para a Europa, levando a economia mundial a sua maior crise desde a grande depressão da década de 1930. No entanto, parte das economias periféricas não só não foram as tradicionais primeiras vítimas da crise como conseguiram manter um ritmo de elevado crescimento econômico. Mais ainda, neste período alguns países sul-americanos, dentre eles o Brasil, foram capazes de emitir dívidas nos mercados internacionais em sua própria moeda além de reduzir sua exposição à crise financeira amortizando grande parte de sua dívida pública em moeda estrangeira. O objetivo deste artigo é analisar quais são as raízes desta melhora quanto à capacidade de financiamento do país, que gerou uma maior resistência financeira à crise internacional para o caso brasileiro e tentar responder se este processo representa uma transformação estrutural ou seria apenas o fenômeno conjuntural. Além desta introdução o artigo está divido em mais três seções. Na segunda seção analisaremos os conceitos de pecado original e “intolerância à dívida”, utilizados pelo mainstream econômico para destacar as dificuldades financeiras daqueles países que não conseguem emitir dívida em sua própria moeda. Na terceira seção será dedicada a uma visão heterodoxa do mesmo fenômeno. Na quarta seção será apresentado o caso brasileiro nas 1 Professores do Departamento de Economia da UFRRJ. 3 últimas décadas e, por fim, na última seção constarão algumas breves considerações finais. 2 – PECADO ORIGINAL E DEBT INTOLERANCE Há um consenso entre os economistas a respeito do caráter assimétrico do sistema monetário internacional. Porém, o consenso acaba neste reconhecimento. Muito mais polêmicas são as discussões sobre suas origens, suas causas, e as consequencias deste fato sobre as economias nacionais. O reconhecimento das assimetrias entre as moedas das economias periféricas e centrais levou alguns autores a formular, por sua vez, a hipótese da existência de um “pecado original” (original sin) na raiz desse problema (Eichengreen e Hausmann e Panizza, 2003; Eichengreen, Hausmann e Panizza, 2002). Essa linha de abordagem privilegia a (in) capacidade de um país, por um lado, de emitir dívida na sua própria moeda no mercado internacional2 e, por outro, gerar fontes de financiamento de longo prazo nos mercados domésticos. Esse problema introduz um alto grau de volatilidade do produto e dos fluxos de capitais, além de diminuir o grau de autonomia da política monetária (Eichengreen Hausmann e Panizza, 2003). De acordo com esses autores, observa-se que nas economias periféricas existe uma expressiva correlação positiva entre o pecado original e a volatilidade macroeconômica, que pode ser explicado por três fatores: i) a limitada capacidade das autoridades operarem com políticas anticíclicas; ii) a baixa capacidade do banco central em atuar com emprestador de última instância numa economia com elevados passivos em dólar e; iii) os custos da desvalorização do câmbio por conta do estoque de dívidas denominadas em dólar (Eichengreen, Hausmann e Panizza, 2003, p.19) Assim, a volatilidade macroeconômica dificulta extremamente o desempenho das economias que sofrem do pecado original. Uma desvalorização cambial, por exemplo, não apenas esbarra no problema do descasamento de moedas na estrutura patrimonial da economia (currency mismatch), mas também no risco de repasse da desvalorização do câmbio para os preços (efeito pass-through) que tende a ser mais elevado nas economias periféricas. Nessas condições, a escolha da política cambial, um importante instrumento de reativação de uma economia em recessão, se torna uma opção muito custosa e incerta. Por isso, uma das consequencias do pecado original é a tendência das economias periféricas em acumular reservas internacionais como forma de se proteger dos potenciais efeitos desestabilizadores das finanças internacionais (Eichengreen e Hausmann e Panizza, 2007, p.131). Eichengreen e Hausmann e Panizza (2003) buscam explicar a causa do pecado original a partir, principalmente, do tamanho das economias, expresso em termos de produto, comércio e crédito doméstico. A hierarquia entre as moedas reflete a existência de economias com maior peso no cenário internacional, que possuem por decorrência as 2 Eichengreen e Hausmann (1999) consideravam também a impossibilidade do país emitir dívida de longo prazo internamente na sua própria moeda, o que seria a face doméstica do pecado original. Mas a estabilidade de preços alcançada nos anos 1990 por várias economias periféricas tornou possível o endividamento a longo prazo internamente na sua própria moeda, como reconhecem Eichengreen e Hausmann e Panizza (2003). Neste trabalho estamos considerando a emissão de dívida de longo prazo, uma vez que, no caso brasileiro ainda é uma dificuldade considerável para o governo. 4 moedas mais demandadas. Além disso, os mercados financeiros mais profundos, localizados nas economias mais desenvolvidas, permitem aos agentes ampliarem seus investimentos em uma vasta gama de produtos financeiros com maior liquidez e com isso diminuírem os riscos de perdas, situação frontalmente distinta das que se verificam nas demais economias. É possível analisar também o conceito do pecado original a partir das dificuldades domésticas dos Estados das economias periféricas em emitir títulos de dívida de longo prazo em seus mercados domésticos. Estas estariam relacionadas ao histórico de políticas econômicas equivocadas que provocariam maior volatilidade macroeconômica e instabilidade monetária (Jeanneu e Tovar, 2006). Este ambiente econômico seria muito hostil a emissão de ativos financeiros com longo prazo de maturação resultando num mercado de títulos doméstico eminentemente de curto prazo. Esta estrutura de endividamento do governo e da iniciativa privada contribuiu para as crises sofridas na década de 1990 quando a fuga de capitais pressionou a moeda e exigiu elevação nos juros. Devido ao caráter de curto prazo da dívida os agentes sofreram uma pressão muito grande quando os custos para a rolagem da dívida se elevaram. Os países que dependiam de dívidas denominadas em moedas estrangeiras sofreram mais (Jeanneu e Tovar, 2006, p.56) No entanto, o problema decisivo não estaria no histórico de políticas econômicas equivocadas, alta inflação ou fracas instituições. Segundo os autores, e isso merece destaque, mesmo economias periféricas com instituições sólidas, inflação baixa e orçamento equilibrado também sofrem restrições financeiras externas e internas3. A análise desenvolvida por Eichengreen, Hausmann e Panizza (2002; 2003) tem o mérito de também reconhecer a existência de uma estrutura assimétrica do sistema financeiro internacional como uma questão crucial para as economias periféricas. Outra forma de analisar o mesmo fenômeno encontra-se no conceito de “intolerância ao endividamento” (debt intolerance), que parte de um ponto de vista contrário ao pecado original. Para autores como Reinhart, Rogoff e Savastano (2003) o problema das economias que não conseguem emitir moeda conversível é de origem essencialmente doméstica. Segundo eles, tais economias apresentam um histórico de políticas econômicas equivocadas que se traduzem no recorrente não pagamento de compromissos externos (serial defaulters) e nos processos inflacionários crônicos. E, as ações irresponsáveis quanto ao cumprimento das obrigações externas realizadas no passado são levadas em consideração pelos investidores no presente (history matters). Isto levaria a uma estrutura fiscal frouxa, e a um sistema financeiro doméstico pouco dinâmico e instável. Segundo os autores, problemas desse tipo estão presentes há dois séculos nessas economias. A intolerância ao endividamento se manifesta na forte pressão sobre as economias periféricas em relação aos níveis de endividamento considerados admissíveis pelos padrões das economias centrais. A incapacidade de endividamento na sua própria moeda e a dificuldade de obter financiamento externo de longo prazo são conseqüências da intolerância. As economias que sofrem do problema estão sujeitas a uma elevada 3 Eichengreen, Hausmann e Panizza (2007) citam o exemplo do Chile como um país com sólidas instituições e políticas econômicas estáveis que não consegue emitir dívida externa em sua própria moeda. 5 volatilidade macroeconômica, mesmo nos períodos em que a economia mantém acesso ao financiamento externo. Seguindo o raciocínio da intolerância ao endividamento, na tese do “medo de flutuar” (fear of floating), Calvo e Reinhard (2000) questionam a afirmação de que um número crescente de economias nacionais passou a seguir o regime de câmbio flutuante. Os autores ressaltam que, na verdade, a maioria emprega variados mecanismos que impedem a livre flutuação da taxa de câmbio. As autoridades das economias periféricas não permitem a livre flutuação do câmbio por receio de seus impactos sobre a inflação e sobre a dívida externa privada e pública. Esse receio faz com que as taxas de juros sejam voláteis e a política de juros tenha um caráter eminentemente pró-cíclico, no sentido de que uma desvalorização do câmbio, é acompanhada de uma alta dos juros4. De certa forma, a tese do medo de flutuar tenta reforçar a noção da intolerância ao endividamento quanto à responsabilidade das autoridades econômicas pela alta volatilidade que determinadas economias estão sujeitas. Ela secundariza o fato de que a volatilidade das moedas de qualidade inferior decorre da estrutura do sistema monetário e financeiro internacional. Ademais, mesmo nas economias desenvolvidas não prevalece a flutuação pura. Ocorrem intervenções seletivas e por vezes coordenadas dos bancos centrais que procuram atenuar a volatilidade das moedas ou impedir períodos prolongados de subvalorização ou sobrevalorização cambial5 (Batista Junior, 2005; Brunhoff, 2005). Soma-se a isso que, segundo Damill, Frenkel e Rapetti (2005), os casos de problemas de endividamento, o passado remoto (dois séculos, como querem os defensores do debt intolerance) é simplesmente irrelevante. No inicio dos anos 1970 quando os bancos privados internacionais precisavam descarregar sua enorme liquidez após 40 anos de um mercado de capitais internacional praticamente inexistente, as dívidas externas tinham expressão muito limitada e estavam concentradas nos governos e organismos multilaterais. Além disso, em relação à Argentina, lembram os autores, caso o passado remoto tivesse realmente importância o país teria se beneficiado nas suas avaliações de risco-país, já que foi o único latino-americano que não entrou em default na depressão dos anos 1930. 3 – UMA CRÍTICA HETERODOXA Os problemas da assimetria monetária levantados por autores de tradição heterodoxa possuem um tratamento diferente no que tange as suas causas e nas formas como se propagam nas economias nacionais e através do sistema monetário internacional. Segundo Carneiro (2008, p. 545) as teorias sobre a incapacidade dos países periféricos em emitir dívida em sua própria moeda nos mercados financeiros 4 Segundo Calvo e Reinhart (2000, p.7), em face da desvalorização do câmbio, as autoridades vivem um dilema: o aumento dos juros poderá criar dificuldades para o setor real e financeiro da economia. Por outro lado, a manutenção das taxas de juros debilitará ainda mais a credibilidade. No fim, a busca pela credibilidade forçará as autoridades a aumentar os juros e estabilizar o câmbio. 5 Por exemplo, em 2003 as autoridades norte-americanas junto com seus pares europeus e japonês atuaram em conjunto para desvalorizar o dólar. (Cf. Brunhoff, 2005, p.81). 6 internacionais são motivadas pelas razões que impedem as moedas periféricas transformem-se em reserva de valor. Até os anos 1990, a atrofia da função reserva de valor das moedas nacionais, que implicava numa resistência dos agentes econômicos em adotar posições ilíquidas, era vista como motivada pela incerteza gerada pela instabilidade monetária promovida pelos longos anos de alta inflação. Nestas condições, pelo lado doméstico, o financiamento de longo-prazo no mercado doméstico era inviável devido à elevada preferência pela liquidez dos agentes e, no âmbito internacional, as moedas destes países carregavam um risco cambial, que facilmente poderia descambar para um risco de default. Isto por sua vez, impedia que os países emitissem títulos em moeda local nos mercados financeiros internacionais (Carneiro, 2008, p. 543). A partir deste raciocínio a estabilização monetária vigente nos países da região desde a década de 1990 deveria ter propiciado as condições necessárias para que fosse possível a emissão de títulos públicos de longo prazo nos mercados domésticos. Logo, o motivo para a existência do pecado original, deslocou-se do âmbito doméstico para o externo através da hipótese de que seria o valor externo da moeda condicionado pelo seu status na hierarquia de moedas que constitui no sistema monetário internacional o motivo maior. Carneiro (2008, p. 548) sugere uma abordagem alternativa baseada na hipótese de que “a estabilidade de preços obtida no plano doméstico não se traduz necessariamente em estabilidade monetária, ou seja, a estabilização do valor interno da moeda não se transmite à estabilidade do valor externo da moeda”. Para o autor a causalidade é contrária: seria a instabilidade no valor externo da moeda o motivo fundamental para a instabilidade de seu valor doméstico. A principal razão encontrar-se-ia na própria constituição do sistema monetário internacional, fortemente hierarquizado. Esta hierarquia parte de uma moeda reserva – hoje o dólar – que não possui nenhum prêmio de liquidez, cumprindo o papel de ativo sem risco do sistema, para formar uma pirâmide cujas escalas se diferenciam pelo risco das demais moedas em relação ao dólar. No topo encontram-se as moedas conversíveis na moeda reserva e que não sofrem do pecado original, e a base é formada pelas moedas periféricas avaliadas como de risco elevado pelos mercados financeiros e por isso são tidas como incapazes de cumprir a função de reserva de valor pelos investidores internacionais. A questão das assimetrias do sistema monetário internacional já havia sido identificada por Keynes na sua obra Treatesie on Money (Belluzzo e Almeida, 2002; Prates e Cintra, 2008). Na visão de Keynes, a existência de uma hierarquia entre as moedas implica em graus diferentes de autonomia das políticas monetárias praticadas pelas nações no sistema internacional desde os tempos do padrão-ouro. Sem poder emitir dívida externa em sua própria moeda as economias periféricas são obrigadas a recorrer ao mercado financeiro internacional, o que determina importantes assimetrias nos processos de ajustamento no balanço de pagamentos entre devedores e credores (Belluzzo e Almeida, 2002, p.57). Porém, mesmo entre as economias periféricas, a assimetria não é igual para todas. De acordo com Carneiro (2008, p. 551), alguns países do leste asiático encontrarse-iam numa situação intermediária na qual suas moedas possuiriam uma conversibilidade virtual sustentada pelo seu elevado nível de reservas e seus elevados 7 superávits em conta-corrente. Ambos os fatores contribuiriam para uma melhor avaliação dos agentes sobre o risco destas moedas embora não sejam capazes de eliminar por completo o problema do pecado original. A visão de que parte dos efeitos causados pelo pecado original advém da fragilidade da moeda como reserva de valor também é compartilhada por Câmara Neto e Vernengo (2010). Mas os autores enxergam que uma nova arquitetura financeira regional poderia servir para a promoção de um esforço para aumentar as fontes de financiamento regionais, fortalecendo os mercados financeiros locais e, com isso, reduzindo os problemas relacionados com o pecado original no âmbito doméstico (Câmara Neto e Vernengo, 2010, p. 201). Os mercados financeiros pouco desenvolvidos da América Latina tornam as fontes de crédito escassas e dispendiosas. A ausência de um mercado significativo de títulos públicos de longo-prazo resultaria da falta de um ativo financeiro que permitisse um refúgio seguro em tempos de crise, o que terminaria por constranger o desenvolvimento dos mercados financeiros locais (Câmara Neto e Vernengo, 2010, p. 208). As economias mais avançadas do leste-asiático, por exemplo, por possuir mercados financeiros mais desenvolvidos consegue melhores condições de crédito doméstico e externo, o que mitiga os efeitos do pecado original, garantindo as suas moedas uma colocação intermediaria na hierarquia das moedas, situação melhor que a dos países da América do Sul. A experiência asiática desta forma indicaria que a adoção de sistemas financeiros mais fechados, regulados por controles sobre a conta capital, junto à participação ativa dos governos no desenvolvimento de um mercado de títulos públicos, podem reduzir parte do impacto do pecado original. Desta forma, uma nova estrutura financeira regional seria capaz de promover o uso de moedas locais no comércio intra-regional e que permitisse aumentar a parcela da dívida pública denominada em moedas regionais, o que reduziria a necessidade do uso de divisas estrangeiras contribuindo para aliviar os efeitos do pecado original, principalmente no que tange ao financiamento de longo prazo nos mercados domésticos. (Câmara Neto e Vernengo, 2010, pp. 208 e 211). No entanto, como lembra Medeiros (2008, p.122), o mercado financeiro internacional exerce uma pressão para que parcela considerável do endividamento das economias periféricas seja denominada em moeda estrangeira. Nas economias periféricas que abriram sua conta capital essa situação implica também numa restrição fiscal e monetária que seus governos precisam enfrentar. A perda de autonomia é percebida quando as autoridades econômicas utilizam algum tipo de política que pode ser percebido (com ou sem fundamento) como contrário aos interesses do mercado financeiro. Isto eleva os prêmios de risco dos títulos, quando não raro a fuga de capitais. Mais uma vez, esse “poder de veto” dos mercados financeiros acometem todas as economias, porém de forma bastante diferenciada (Belluzzo, 1995, p.19). Neste caso, não restam dúvidas que os Estados Unidos são o país com maior autonomia, estando muito à frente dos demais. De fato, o poder monetário é o instrumento importante de poder dos Estados. Entretanto, conforme Kirshner (1995, p.263), esse é um poder que pode ser exercido por pouquíssimos Estados porque nas relações monetárias a hierarquia é mais pronunciada do que em outras questões econômicas. Tal situação fica clara quando se observa a 8 gestão da política monetária dos Estados Unidos. Aumentos nas taxas de juros do Fed (banco central) atraem fluxos de capitais para o mercado financeiro norte-americano, podendo provocar desvalorizações repentinas nas taxas de câmbio das economias mais vulneráveis. Isto leva a um reordenamento das taxas de juros dos países, não necessariamente com estabilidade. Por outro lado, particularmente para as economias periféricas cabe ressaltar que, seguir as regras do jogo do mercado financeiro internacional não garante a manutenção dos fluxos de capitais uma vez que estes são orientados pelas expectativas de ganhos financeiros de curto prazo e por fatores exógenos a essas economias (Prates, 1999). 4 – A EXPERIÊNCIA RECENTE DO BRASIL Conforme analisamos na terceira seção, a forma de inserção das economias periféricas no sistema monetário e financeiro internacional sempre implicou em constrangimentos para a condução de suas políticas macroeconômicas e, por conseguinte, para a viabilização de suas estratégias de desenvolvimento. Estes constrangimentos referem-se a maneira pela qual o país central administra o padrão monetário internacional, e a direção imposta pela potência hegemonica na geopolítica mundial (Medeiros e Serrano, 1999, p.120). No final dos anos 1980 um conjunto de circunstâncias favoráveis foi responsável pelo retorno dos fluxos de capitais para as economias latino-americanas. Nesse período, em que as avaliações sobre os benefícios da globalização financeira eram bastante otimistas, as pressões das autoridades norte-americanas e dos organismos internacionais foram importantes para disseminar a vinculação estreita entre crescimento e abertura da conta capital6. Com isso, as economias latino-americanas passaram a manter elevadas taxas de juros a fim de atrair capitais, iniciando um novo ciclo de endividamento externo. As diversas crises financeiras durante a década de 1990 culminaram com uma modificação das políticas da região. Em uma conjuntura pouco favorável em relação ao início dos anos 1990, vários governos latino-americanos foram eleitos com uma visão crítica a cerca da globalização financeira. O Brasil sofreu o contágio de todas as essas crises. A começar pela crise mexicana em dezembro de 1994, passando pela crise asiática em 1997-1998 e russa em 1998. Em janeiro de 1999 um ataque especulativo obrigou o governo a deixar o câmbio flutuar, colocando um fim na experiência de ancoragem cambial iniciada em 1994 com o plano Real (Fernandes, 2011). Mas as fortes turbulências na economia brasileira continuaram até o primeiro semestre de 2003, quando então iniciou um período de relativa estabilidade. As linhas de crédito externo retornaram e o país conseguiu a primeira emissão de títulos soberanos em mais de 12 meses. As taxas de juros do principal título do país negociado no exterior, o C-Bond, caiu fortemente (Cepal, 2003, p.163). A melhora na posição externa do país pode ser considerada como resultado da soma de uma conjuntura favorável da economia internacional com algumas políticas 6 Na avaliação do FMI e Banco Mundial está presente a idéia da “repressão financeira” uma característica de países pouco desenvolvidos que mantém as taxas de juro internas abaixo da taxa de equilíbrio que, com efeito, gera um nível de poupança abaixo do potencial. 9 adotadas pelo governo brasileiro. Pelo lado da economia internacional, as exportações brasileiras foram favorecidas pela melhora duradoura nos termos de troca, fenômeno que ficou conhecido como super ciclo das commodities (ver Serrano, 2008). Os seguidos superávits comerciais (ver gráfico abaixo) alimentaram os saldos positivos experimentados pela conta de transações correntes do país. Gráfico 1- SALDO DA BALANÇA COMERCIAL (US$ MILHÕES) Fonte: Cepal Esta melhora nas contas externas brasileiras se constituiu em um dos principais elementos que alimentaram a valorização da moeda brasileira a partir da segunda metade dos anos 2000. Esta valorização fez com que os preços dos ativos financeiros em real se tornassem mais atraentes aos investidores internacionais, o que estimulou ainda mais o fluxo de capitais, já sustentado principalmente por um diferencial de juros elevado. Parte destes investimentos externos direcionou-se ao mercado doméstico de títulos facilitando o financiamento da dívida pública, mitigando em parte os efeitos do pecado original. No Brasil ao final de 2001 o mercado de títulos movimentava uma montante de 189 bilhões de dólares (38% do PIB) sendo que deste montante apenas 59% eram emitidos no mercado doméstico em moeda local. Em 2008 o país emitiu um total de 324 bilhões de títulos sendo que 79% destes foram emitidos em moeda local (Burger e Warnock, 2006; Burger, Warnock e Warnock, 2010). Além da ampla liquidez internacional e da melhora nas condições externas e macroeconômicas internas que atraiu investidores, é necessário compreender esta expansão do mercado de títulos a partir da busca por outras fontes de financiamento que não deteriorasse a posição financeira externa do país. A ausência de mercados de títulos nos países emergentes exige que muitos deles se endividem fortemente em dólares nos mercados internacionais. Como vimos esta política foi muito estimulada nos 1990 e acabou por fragilizar a posição financeira internacional destes países de forma a exacerbar os efeitos das crises financeiras ocorridas naquele período. 10 O desenvolvimento dos mercados domésticos de títulos permite uma maior diversificação dos investimentos de forma a reduzir o risco e a taxa de juros dos ativos financeiros em geral. O fortalecimento da estrutura financeira doméstica facilita a formação de um mercado de dívidas de longo prazo. Por outro lado, o governo brasileiro utilizou uma soma considerável dos seus recursos para implantar uma política sistemática de acumulação de reservas e para saldar grande parte da dívida pública externa. Gráfico 2 - RESERVAS INTERNACIONAIS/DÍVIDA EXTERNA Fonte: Cepal Gráfico 3 - DÍVIDA EXTERNA (%PIB) Fonte: Cepal 11 Esta opção bastante contestada por alguns analistas devido ao custo de se manter elevadas reservas em dólar foi, como vimos, motivada pelas crises externas dos anos 1990. Mas o fato é que isto resultou numa acentuada melhora de nossa posição externa, verificável pela relação dívida externa/exportação – que permite, em parte, avaliar nossa capacidade de pagamentos em moeda estrangeira. Gráfico 4 - POSIÇÃO EXTERNA Fonte: Cepal Estas políticas serviram para melhorar a confiança dos mercados financeiros confirmada pela elevação da classificação de risco do Brasil para investment grade, primeiramente pela Standard and Poor’s (abril/2008), Fitch Ratings (maio/2008), e pela Moody’s (setembro/2009). Tudo isto acabou permitindo a adoção de uma política de emissão de títulos soberanos globais em moeda nacional nos mercados financeiros internacionais a partir de setembro de 2005. Contrariando em parte a tese do pecado original, o governo brasileiro emitiu o denominado Global BRL 2016, títulos no valor de R$ 3,4 bilhões com vencimentos acima de 10 anos e cupom de juros de 12.5% ao ano (Tesouro Nacional, 2005). Em outubro e dezembro de 2006 emitiu o Global BRL 2022 de R$ 650 milhões com juros de 12,5% em outubro, R$ 750 milhões em dezembro. E novamente em fevereiro de 2007 o Brasil emitiu o seu terceiro título em reais ofertado no mercado externo no valor de R$ 1,5 bilhão. 5- CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir desta análise é possível verificar como os efeitos do pecado original, tanto em pelo seu braço externo como pelo doméstico, foram minimizados pelo Brasil nos últimos anos através de um conjunto de políticas que aproveitou a conjuntura favorável na economia internacional que perdurou até a eclosão da crise financeira de 2007. 12 De forma extremamente surpreendente o país não sucumbiu imediatamente à forte instabilidade financeira internacional. Embora tenha experimentado novamente um retorno dos déficits em transações correntes (ver gráfico 4), o considerável fortalecimento de nossa posição financeira externa permitiu a economia brasileira se recuperar relativamente rápido do impacto inicial da crise sem enfrentar graves problemas no balanço de pagamentos. A despeito desta significativa melhora, ainda é cedo para que se possa avaliar se ela reflete uma mudança estrutural que permitiria a moeda brasileira alterar seu status na hierarquia das moedas posicionando-se num estrato mais intermediário semelhante ao de algumas nações do leste-asiático. Embora o mercado de títulos doméstico tenha se expandido nos últimos anos permitindo um crescimento na parcela da dívida pública emitida em moeda nacional e das condições de rolagem, os prazos da dívida ainda são muito curtos - girando numa média de 3,1 anos nos primeiros meses de 2012 (Tesouro Nacional, 2012) - e o país esta longe de consolidar um mercado de títulos públicos de longo prazo. A emissão de títulos em moeda local nos mercados financeiros internacionais entre 2005 e 2007 revela um sinal que não pode ser subestimado, porém ainda representam uma fonte muito restrita de crédito para que possa ser considerada uma alternativa viável de financiamento para o país. 6 - BIBLIOGRAFIA BATISTA JUNIOR, Paulo Nogueira (2005). O Brasil e a economia internacional: recuperação e defesa da autonomia nacional. Rio de Janeiro: Campus. 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