XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 2 ÉTICA/MORAL NA VISÃO DE FUTUROS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA Renato J. Oliveira Resumo A discussão ética hoje se acha na ordem do dia, seja pelas constantes denúncias de corrupção na esfera política, pelo recrudescimento da violência nas grandes cidades, inclusive no ambiente escolar e também pelo testemunho de que práticas discriminatórias, como por exemplo a xenofobia e a homofobia, estão presentes no cotidiano, de forma dissimulada ou não. Tal problemática tem levado os educadores, em vários países do mundo, a discutir o papel do professor e da escola na formação do caráter das crianças e dos jovens. A importância de se valorizar a dimensão ética no contexto educativo, situando-a como capacidade de compreender o outro em suas especificidades e o mundo em um cenário de profundas mudanças tecnológicas, políticas, econômicas e sociais tem sido bastante enfatizada. Frente a esse quadro, é importante investigar como os futuros professores da educação básica estão sendo formados para desenvolver o trabalho com a ética/moral na escola. O presente artigo se propõe, então, a discutir os resultados obtidos a partir da aplicação de um questionário a 191 alunos dos cursos de licenciatura da UFRJ, analisando como esses futuros professores compreendem ética e moral e se fazem ou não distinção entre elas. A pesquisa foi balizada pela Teoria da Argumentação de Perelman & Olbrechts-Tyteca, que situa as definições como um tipo de argumento (argumento quase-lógico) e as classifica em descritivas, normativas, de condensação e complexas. A análise das respostas dos licenciandos permitiu identificar a ocorrência desses tipos assim como constatar que as definições apresentadas são pouco aprofundadas, sugerindo que a ética/moral são temas pouco trabalhados em sua formação pedagógica. Palavras-Chave: ética/moral – formação de professores – argumentação – educação escolar Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002539 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 3 ÉTICA/MORAL NA VISÃO DE FUTUROS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA I. Introdução Nos dias de hoje, a discussão ética tem tomado conta da sociedade, seja pelas constantes denúncias de corrupção na esfera política, seja pelo recrudescimento da violência nos grandes centros urbanos, seja pelo testemunho de que práticas discriminatórias em relação a estrangeiros, negros, homossexuais e outros grupos humanos estão presentes no cotidiano, de forma dissimulada ou não. Frente a essa problemática, em vários países do mundo os educadores têm discutido o papel do professor e da escola na formação do caráter das crianças e dos jovens. Estariam, porém, os futuros professores da educação básica recebendo uma formação capaz de prepará-los para desenvolver esse trabalho? Que visão de ética possuem? E sobre a moral, o que pensam? Essas foram algumas das questões que nos motivaram a desenvolver o projeto “A ética na formação de professores na universidade pública: o olhar do licenciando” no âmbito do PPGE/UFRJ, contemplado com apoio financeiro da FAPERJ (modalidade APQ I). II. Considerações Teórico-Metodológicas O conflito entre o agir voltado para a satisfação dos interesses pessoais e o agir pautado por um dever maior, concernente à comunidade humana, remete o problema ético para a discussão empreendida por Kant: em contraposição aos particularismos, seria preciso fixar uma legislação universal capaz de contemplar todos os entes dotados de razão. Em termos kantianos, o estatuto das regras que regulam a vontade particular deve ser sempre aferido a partir da seguinte questão: aquilo que tomo para mim e segundo o qual defino minha conduta individual poderia ser convertido em lei válida para todos os homens? Para Kant, a condição de sujeito ético é alcançada somente quando a vontade do praticante corresponde a aspirações mais amplas: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (Kant, 1997a, p. 69). Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002540 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 4 A vontade se torna livre quando não é condicionada pelas contingências presentes na realidade empírica, de sorte que sua aspiração maior deve coincidir com a forma pura da lei moral (imperativo categórico), expressa de forma mais concisa por: “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (Kant, 1997b, p. 42). A partir daí uma questão naturalmente se coloca: é factível que nossas vontades sempre coincidam com o que prescreve a legislação universal? No esforço para respondê-la, a crítica filosófica do século XX sublinhou a importância da linguagem e dos processos comunicativos e argumentativos na formação do sujeito ético. Dentre os autores que se dedicaram e têm se dedicado a esse tipo de investigação, a abordagem de Chaïm Perelman (1912-1984), alicerçada sobre uma teoria da argumentação, tem se mostrado particularmente fecunda por trabalhar simultaneamente nos planos ôntico e deôntico, sem privilegiar nenhum deles. Para Perelman, a fundamentação do que é ético e do que não é requer um exame aprofundado, que considere tanto a contribuição dos princípios formais quanto a dos juízos morais empiricamente constituídos e socialmente sancionados. Em uma série de artigos escritos entre 1958 e 1984, posteriormente reunidos na coletânea Ética e Direito, o autor põe em xeque as posições unilaterais defendidas por racionalistas e por empiristas, abrindo assim um leque de discussão bastante amplo. Na crítica feita aos racionalistas, Perelman (2005) assinala que vários princípios gerais são candidatos à condição de regra suprema, contudo nenhum deles tem como provar inequivocamente seu maior grau de abrangência. Além disso, deixam sem resposta o problema da origem, ou seja, não respondem satisfatoriamente à questão: de onde provém o caráter coercivo-regulador que possuem? Tais questões abrem o flanco do racionalista tanto para a crítica movida pelos cépticos quanto pelos empiristas. No primeiro caso, é sempre possível perguntar: que princípio demonstra a maior abrangência daquele apontado como regra suprema? Se um outro princípio for indicado, então o escolhido anteriormente já não é mais a regra suprema, de tal sorte que o processo de questionamento pode se prolongar num recuo sem fim (regressão ao infinito). Esta perspectiva tem aspecto demolidor na medida em que ao provar que a regra suprema não tem como ser fundamentada, o céptico estende sua crítica para toda e qualquer fundamentação posterior, instaurando o relativismo: “o que nenhuma razão fundamenta, nenhuma razão pode abalar” (ibid, p. 295). Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002541 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 5 No segundo caso, apela-se para a maior consistência dos juízos morais oriundos da vida prática em relação aos princípios que os deveriam fundamentar: “a moral não necessita ser mais fundamentada do que a natureza (...) as morais teóricas divergem, ao passo que as morais práticas coincidem” (ibid, p. 289). A posição empirista não se dá conta, entretanto, de que os juízos morais não gozam de estabilidade absoluta nem são inteiramente comunicáveis a pessoas diferentes daquelas que os sancionaram. Em vista disso, a multiplicidade dos juízos pode acabar por pulverizar toda e qualquer tentativa de estabelecer uma legislação que atenda a interesses mais amplos que os de certos grupos particulares, entre os quais geralmente prevalecem concepções monistas. Segundo Perelman (1979), as concepções monistas acabam por querer impor suas convicções em nome de Deus, da verdade, dos interesses do Estado ou de um partido político, praticando reducionismos difíceis de serem admitidos. Em contrapartida, a defesa dos direitos humanos e da liberdade de pensamento necessita que elas sejam combatidas por meio de políticas de inspiração pluralista: “Tendo sofrido totalitarismos de direita e de esquerda, tendo visto os abusos resultantes da conjugação de ideologias monistas e do uso da força para as impor, os teóricos dos regimes democráticos desenvolveram ideologias pluralistas variadas, que fazem do indivíduo concreto o ponto de partida de suas investigações” (idem, p.7). O pluralismo defendido por Perelman se constrói no espaço da argumentação entre os diferentes interlocutores, permitindo que no campo da ética os princípios abstratos e gerais (deônticos) entrem em diálogo com os juízos morais (ônticos), de tal modo que quando o princípio parecer distante demais da realidade vivida, o juízo atuará no sentido de lhe conferir materialidade. Reciprocamente, sempre que o juízo for estreito demais, o princípio atuará no sentido de ampliá-lo. Contrastando com o enfoque de Habermas (1990) - que considera necessário deixar os valores “de fora”, pois não seriam objetos próprios do debate racional que visa ao consenso -, para Perelman, embora o acordo sobre valores não tenha como se impor a todos os sujeitos envolvidos na discussão ética, nem por isso é negligenciável: “Para os antigos, os enunciados concernentes ao que chamamos de valores, na medida em que não eram tratados como verdades indiscutíveis, estavam englobados, com toda espécie de afirmações verossímeis, no grupo indiferenciado das opiniões” (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2005, p.84). Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002542 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 6 Com o advento da modernidade e a busca das evidências, quer de natureza racional, quer de natureza empírica, as opiniões foram sendo colocadas no rol dos saberes secundários, os quais deveriam ser substituídos sempre que conhecimentos de maior envergadura, deduzidos pela razão ou oriundos da indução cuidadosamente conduzida, fossem alcançados. Todavia, com relação aos valores, essa pretensão esbarra em uma dupla impossibilidade: por um lado, não é razoável supor que um dado valor, o Bem, por exemplo, tenha o mesmo estatuto de um axioma matemático, do qual se podem deduzir as premissas que levam ao “bem agir”. Por outro, não é factível supor que as ações sancionadas como “boas” em n casos particulares sê-lo-ão, também, no caso n + 1, já que em todo processo indutivo o contra-exemplo se acha sempre à espreita. Face às limitações dos procedimentos dedutivos e indutivos, os valores são mais bem considerados a partir de raciocínios de outra natureza, que levam em conta o verossímil, ou seja, aquilo que é capaz de promover o acordo transitório sobre algo no mundo sem ter, no entanto, a pretensão de universalidade. Tais raciocínios são chamados de retóricos e foram estudados por Perelman e Olbrechts-Tyteca a partir de uma teoria da argumentação, também denominada nova retórica. Para os autores, orador é todo aquele que elabora um discurso, falado ou escrito, voltado para a persuasão de outrem. Já o conjunto de pessoas que o orador quer persuadir com seu discurso é denominado auditório. Visando a este propósito, o orador se vale de argumentos que podem estabelecer vínculos entre elementos ou noções (argumentos de ligação), tornando-os solidários, mas também por meio das técnicas de ruptura, que buscam separar ou dissociar o que se mostrava unido. Perelman & Olbrechts-Tyteca (Op. Cit.) situam as definições como argumentos de ligação de tipo quase-lógico, ou seja, aqueles cuja força de persuasão reside na semelhança com as relações existentes na lógica formal e na matemática. A partir daí, propõem quatro tipos de definições (Op. Cit., p. 239): a) normativas: indicam a forma que se quer que um termo ou noção seja empregado, a qual deriva de uma regra explícita que se crê válida para o próprio indivíduo ou para todos; b) descritivas: indicam o sentido conferido a um termo ou noção em um dado meio ou em dado momento. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002543 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 7 c) de condensação: destacam os elementos essenciais de uma definição descritiva, sendo bastante sucintas; d) complexas: combinam de modo variável aspectos das outras três definições. A Teoria da Argumentação de Perelman & Olbrechts-Tyteca permite fazer a interpretação de discursos (orais ou escritos) na perspectiva de estabelecer linhas de diálogo com eles. Sua contribuição mais saliente reside em tratar o discurso de outrem como problema, ou seja, como ponto de partida para novas questões. III – Análise das respostas O questionário foi aplicado a 191 licenciandos de diferentes cursos, conforme mostra a tabela do Anexo 1. A questão analisada nesse trabalho teve o seguinte enunciado: “O que você entende por ética/moral?” Na transcrição das respostas, a redação original dos oradores foi preservada. Constatamos que o percentual dos que distinguem ética de moral (cerca de 11%) ficou bem abaixo do percentual dos que não distinguem (cerca de 86 %). Tal diferença pode ser atribuída à redação empregada no enunciado da questão, o qual separou os termos ética e moral por meio de uma barra. Isso pode ter induzido os oradores a não estabelecerem diferenciações entre eles, assim como estimulado mais o emprego de respostas concisas (menos de 30 palavras). Houve cerca de 25% de respostas não concisas e cerca de 3% não responderam a essa questão. No grupo das respostas concisas predominaram as caracterizadas pela falta de precisão conceitual, como por exemplo: ORADOR 5 - “ter, se dar, e dar aos outros, ter conduta, seriedade e respeito”; ORADOR 23 – “um conceito básico de um conjunto de valores necessários para uma boa convivência”; ORADOR 42 – “aquilo que determina as ações de cada indivíduo”; ORADOR 89 – “é o comportamento do indivíduo perante a sociedade, que se adquire no ambiente familiar, escolar, etc.”; ORADOR 115 – “ramo da filosofia que se dedus as questões comportamentais”, e ORADOR 178 – “conjunto de valores que orientam sua conduta quando se relaciona com seus semelhantes”. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002544 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 8 À exceção da definição apresentada pelo ORADOR 5, cujo conteúdo prescritivo é mais acentuado (definição normativa), as demais podem ser caracterizadas como “de condensação”, o que corresponde à maioria das definições concisas fornecidas pelos oradores. Com relação às definições mais elaboradas, podemos citar as dos oradores 26 e 176, que fizeram distinção entre ética e moral: ORADOR 26 – Ética e moral são completamente distintas, moral é algo estabelecido pela cultura e varia diretamente conforme a sociedade em questão. Ética por sua vez é a construção individual que é construída mediante experiencias e valores com os quais convivemos, ao longo da vida. Não é preciso lei para ser ético; isso talvez explique porque o Brasil não é um país ético, pois convivemos desde a infância com atitudes nada éticas desde a família. ORADOR 176 – Acho essa questão um tanto quanto abrangente, sobretudo para quem pôde refletir ainda que minimamente sobre esse campo de estudo. Acredito que “moral” seja uma série de práticas legitimadas pela sociedade e por suas instituições como “corretas”; ou seja, práticas a serem adotadas. A moral cristã, por exemplo, acredito que prime pela verdade, pelos valores de bondade, honestidade e solidariedade que a sociedade adote como aquilo a ser seguido sem críticas sobre tais valores. Acredito que ética profissional, por exemplo, seja uma série de valores e regras que cada categoria profissional escolha para si como valores e condutas a serem priorizadas e seguidas. No primeiro caso, o orador adotou uma definição descritiva para moral que coincide com a dos PCN do ensino Fundamental (BRASIL, 1998), entretanto a definição descritiva fornecida para a ética não faz menção ao trabalho reflexivo da razão (ética como reflexão sobre a moral), mas às experiências individuais vividas. A distinção é corroborada pelo comentário final, que se vale de um argumento de sucessão pelo vínculo causal (a falta de ética na família leva à falta de ética no país), o qual é bastante questionável, não só em função do vínculo de causalidade invocado, mas, sobretudo, porque a afirmação “convivemos desde a infância com atitudes nada éticas desde a família” é uma petição de princípio, ou seja, o orador parte da perspectiva de que há acordo sobre essa falta de ética, quando seria necessário mostrá-la com exemplos que a pudessem fundamentar. Já o segundo orador preferiu, por meio de uma definição de condensação, reduzir a ética à ética profissional, empregando, por sua vez, uma definição descritiva para referir-se à moral, aproximando-se também dos PCN. Buscou, ainda, por meio da argumentação pelo exemplo, justificar esta última definição. Tal justificativa, porém, Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002545 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 9 pode ser problematizada a partir do momento em que os valores “honestidade”, “bondade” e “solidariedade” sejam precisados, isto é, recebam conteúdos específicos. O que a moral cristã entende por bondade é o mesmo que é entendido por outras morais religiosas? Na medida em que o pluralismo religioso seja respeitado, diferentes concepções acerca dos valores invocados surgirão, gerando, consequentemente, críticas. Dentre os que não distinguiram ética de moral, podemos citar os oradores 121, 138 e 148: ORADOR 121 – A própria categoria é complicada. Já que cada referencial pode entender tal como lhe desejar. Acho que ética e moralidade é algo que já está incrustado no cidadão desde o momento que nasceu e cresceu em uma determinada comunidade; praticas essas que lhe fazem existir nesta; respeitar e serem respeitados no que tange o código desta sociedade. Respeito, dignidade e solidariedade fazem parte de tal. ORADOR 138 – É aquilo que rege as regras da sociedade de modo geral. Ser ético é estar correto, segundo as regras da sociedade. Apesar de cada indivíduo seguir sua própria ética, esta deve estar de acordo com as regras gerais, ou estará sendo anti-ético. ORADOR 148 - Ética moral é assumir as responsabilidades perante as nossas atitudes e ações, é também respeitar as opiniões do próximo e não prejudicar aqueles que estão a nossa volta mesmo que não estejamos de acordo, ou por interesses pessoais ou egoistas. A primeira definição apresentada para ética/moral, de cunho descritivo, salienta a força da comunidade mediante o emprego da metáfora “já está incrustado”, a qual parece querer persuadir o auditório de que os códigos sociais e os valores mencionados não podem ser questionados pelo indivíduo. Prolongando a figura, podemos dizer que há “incrustações” muito difíceis de serem removidas, mas é igualmente improvável encontrar aquelas que resistem a quaisquer tentativas de “remoção”. Sendo assim, por maior que seja a influência do meio social em que nasceu e cresceu, o indivíduo sempre pode romper com esta, vindo a adotar outros códigos e valores. A esse respeito, cabe salientar, ainda, que a afirmação “Respeito, dignidade e solidariedade fazem parte de tal” é uma petição de princípio, pois o orador não arrolou argumentos que pudessem dar suporte à afirmativa, pressupondo, portanto, a existência de um acordo prévio sobre a presença desses valores em quaisquer grupos sociais. Na visão do segundo orador, a ética, conceituada por meio de uma definição de condensação, diz respeito ao cumprimento das regras socialmente acordadas. Chama a atenção, no complemento da resposta, a presença de uma incompatibilidade, pois o orador afirma que cada indivíduo tem uma ética particular, mas ao mesmo tempo não pode se colocar em desacordo com as regras sociais estabelecidas. Se é assim, em que Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002546 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 10 consistiria essa ética própria de cada um? Como o orador não forneceu exemplos que pudessem desfazê-la, a incompatibilidade permanece. A terceira resposta fornece para ética/moral uma definição complexa que tanto descreve como os termos são compreendidos quanto estabelece a norma de não causar prejuízos a outrem por “interesses pessoais ou egoístas”. O orador faz uso da regra de justiça, buscando mostrar que todos devem ser tratados de maneira semelhante, a qual consiste em evitar o dano. Trata-se de uma formulação pela negativa, mas que de todo modo enfatiza a preocupação em compreender a ética/moral a partir de uma concepção relativa ao que se toma por justo. Cerca de 13% dos licenciandos fizeram algum tipo de associação entre a ética e/ou a moral e as práticas profissionais, sendo que predominantemente as primeiras foram situadas como meios para atingir determinados fins. Como exemplo, podemos citar o que foi dito pelos oradores 46 e 128 : ORADOR 46 – O papel do professor em sala de aula ou fora dela do ponto de vista profissional. Seria um conjunto de "regras" a serem seguidas não só pelo professor, mas em uma situação profissional onde o aluno também faz parte. ORADOR 128 – Seria respeitar o ambiente de trabalho e os colegas tendo em vista comportamentos e reações que não desestabilizem o meio e não firam o senso comum. As duas definições podem ser classificadas como de condensação na medida em que reduzem a ética/moral à ética profissional, não levando em conta outros aspectos. No primeiro caso, o orador considera importante incluir o aluno no conjunto de regras a serem seguidas (argumento de inclusão da parte no todo) e, no segundo, há preocupação em manter a estabilidade das relações humanas no ambiente profissional e em adotar condutas que não firam o senso comum. É preciso dizer, porém, que a ética, seja ela vista como ética profissional ou a partir de concepções mais abrangentes, por vezes precisa ir contra os preceitos do senso comum. Um exemplo disso diz respeito à retaliação, geralmente aceita como justa pelo senso comum, mas que fere a regra de reciprocidade moral, pois o prejuízo causado ao outro, além de não desfazer o dano que ele nos causou, pode dar início a uma sequência de ações vingativas de proporções inimagináveis. Partindo da perspectiva dialógica e argumentativa defendida por Perelman (2005), cabe dizer que a formação ética/moral dos alunos pode assumir outra feição na medida em que os docentes vislumbrem como oportuna a iniciativa de conversar com Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002547 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 11 eles ao invés de prescrever o que admitem como certo ou errado. O ato conversacional permite problematizar formas de comportamento, levando o interlocutor a perguntar a si mesmo: “e se fosse comigo? Se fosse eu o prejudicado e não o responsável pelo prejuízo causado ao outro? Eu gostaria disso?” São perguntas sobre as quais mesmo as crianças pequenas têm condição de pensar. Em segundo momento, é possível desenvolver projetos que possibilitem aos estudantes vivenciar situações que envolvam o respeito mútuo e a prática de ações solidárias em diferentes níveis. Isso pode contribuir para a realização dos fins educacionais que Goergen (2011, p. 121-122) destaca com muita propriedade: O que se espera da educação ético-moral é que contribua para ampliar a capacidade reflexiva dos indivíduos para que a autonomia e liberdade subjetivas ampliadas possam ser resgatadas do individualismo hedonista e ser capitalizadas em favor de um novo projeto de transformação social. IV – Considerações Finais As análises feitas mostraram que os licenciandos da UFRJ, em sua maioria, têm dificuldades para conceituar o que compreendem por ética/moral. O pouco aprofundamento exibido na maioria das respostas sugere que a discussão conceitual – seja ela conduzida em termos da diferenciação ou da não diferenciação entre ética e moral – não parece ser significativamente importante no contexto curricular dessas disciplinas. Embora os PCN optem por distinguir os dois conceitos, enfatizando que a ética se caracteriza por promover uma reflexão crítica sobre a moral (definição normativa), foi possível constatar que a maioria dos licenciandos desconhece ou não corrobora essa visão. Outro ponto a destacar é que o contingente que associa diretamente a ética a questões profissionais (13%) pode ser considerado reduzido quando comparado àquele que não faz tal tipo de associação. Isso mostra que a maior parte dos oradores possui uma visão de cunho mais generalista, apesar da falta de precisão conceitual na definição dos termos. Com base no que foi constatado na presente pesquisa, concluímos que a formação do licenciando para a abordagem da ética/moral no ensino fundamental e no ensino médio precisa ser tratada com maior atenção pelo conjunto das disciplinas Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002548 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 12 pedagógicas. Uma ação nesse sentido seria a rediscussão das ementas e dos programas com vista a um preparo mais condizente no que diz respeito às demandas colocadas para o professor como agente que, a exemplo da família e de outros agentes sociais, também participa na formação do caráter e na problematização de valores e formas de conduta das crianças e adolescentes nos dias de hoje. V – Referências Bibliográficas BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos. Secretaria de Educação Fundamental. Apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998. GOERGEN, Pedro. Educação para a responsabilidade social: pontos de partida para uma nova ética. In: SEVERINO, Francisca Eleodora Santos. Ética e formação de professores. São Paulo: Cortez, 2011, p. 93-129. HABERMAS, Jürgen. Moral consciousness and communicative action. Cambridge: Polity Press, 1990. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Lisboa: edições setenta, 1997b ______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: edições setenta, 1997a PERELMAN, Chaïm. _____. La philosophie du pluralisme et la nouvelle rhétorique. Revue Internationale de Philosophie, m. 127-128, 1979, p. 5-17. _____. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005. PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002549 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 13 ANEXO 1: Tabela com a distribuição percentual dos licenciandos por cursos Curso: Licenciatura em % Ciências Biológicas 5 Ciências Sociais 1 Educação Artística 5 Educação Física 24 Enfermagem 1 Filosofia 5 Física 5 Geografia 1 História 9 Letras 22 Matemática 3 Música 7 Psicologia 2 Química 5 Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002550 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 14 AVALIAÇÃO E ÉTICA: O DISCURSO E O ATO Resumo O presente trabalho reflete a dinâmica que envolve teoria/prática, discurso/ação, pensamento/ato sobre a avaliação das aprendizagens dos alunos que convoca a ética como possibilidade de respostas e de investigações sobre o conhecimento fruto das relações pedagógicas. A ação do homem frente à realidade resulta dos questionamentos provenientes à necessidade de superação de dada condição, uma vez que a ação traduz a reflexão em torno de um problema que reclama respostas às possíveis soluções práticas. Este posicionamento inscreve-se na necessidade do agir humano ir além da aparência e, ao mesmo tempo, instituir razões que justifiquem o agir/ser social. Agir na esfera da sociedade é o mesmo que decidir sobre seus rumos; é posicionar-se perante esta e todos os outros; é assumir riscos, instituir conceitos, agradar ou desagradar alguém ou grupos, envolver o outro nas suas emoções e razões de ser, sentir, pensar e agir. A ética ressaltada nas práticas de avaliação revela concepções de conhecimento, de ensino, de aprendizagem, de relação que afetam a coletividade. As teorias de Bakhtin (1992; 2003) e de Perelman (1999; 2005) são convocadas para auxiliar na investigação da questão: que reflexos a universalização da avaliação produz numa arena educacional heterogênea e desigual? Em primeiro lugar, as respostas relacionam-se com o princípio regulador das políticas de avaliação educacional voltado para o fortalecimento da lógica de mercado; em segundo, apontam os conceitos de justiça e de avaliação concernentes a valores contestáveis. Por isso, este trabalho aponta os aspectos contraditórios concernentes a discursos e práticas de avaliação e, a partir deles, conduz pensamentos e ações para o engajamento na luta contra o neoliberalismo na educação que visa aniquilar a inserção política dos homens no curso da história. Palavras-chave: Avaliação; Ética; Análise do discurso; Teoria da Argumentação; Políticas Públicas de Educação. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002551