A luta contínua: sobre a tensão entre autenticidade e

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A luta contínua:
sobre a tensão entre autenticidade
e reconhecimento
na filosofia de Charles Taylor
Larissa Cristine Daniel
Gondim
Doutoranda em Filosofia pela
UFSCar. Mestre em Ciências
Jurídicas e em Filosofia pela
UFPB. Bacharel em Direito e em
Filosofia pela UFPB. Professora
da licenciatura em Filosofia da
Faculdade São Luis.
[email protected]
Palavras-chave
Autenticidade, Reconhecimento, Charles Taylor.
Resumo
A filosofia de Charles Taylor é marcada pela análise das tensões
constitutivas do self. Uma dessas tensões é descrita pelo autor a
partir da tese de que a autenticidade, como princípio que determina ‘ser fiel a si mesmo’ e que substancializa o ‘sentimento de
existência’, deve ser defendida como um ideal moral, ao contrário
da tradicional visão solipsista e atomista de autorrealização e autodeterminação do indivíduo. Dessa forma, no tocante ao desenvolvimento do self e da identidade, ser autêntico deve levar em conta
não só a estrutura dialógica da linguagem humana, mas também
a importância das relações de significado com o Outro. Isso indica
que o fundamento do ideal moral de autenticidade são relações de
reconhecimento que, simultaneamente, complementam-se e conflitam-se em uma tensão irresolúvel que justifica, em última instância, a constituição do eu. O objetivo do presente trabalho será,
através da leitura dos textos “A Ética da Autenticidade” e “A Política do Reconhecimento”, ambos do filósofo Charles Taylor, analisar de que modo o autor descreve o conflito entre autenticidade e
reconhecimento, para evidenciar que essa tensão é irresolúvel, não
contraditória, constitutiva e indispensável na formação da subjetividade. Ao fim, buscar-se-á demonstrar que, a partir da obra de
Taylor, há indícios suficientes para se afirmar que, ao lado da ética
da autenticidade, existe uma ética do reconhecimento, baseada em
princípios morais de reciprocidade e respeito. Dessa forma o argumento da autenticidade como ideal moral também pode ser aplicado no tocante ao reconhecimento, de modo que este passa a ser
caracterizado não apenas como um conceito político.
Ao escrever “A Ética da Autenticidade”, Charles Taylor parte de
uma observação acerca do modo de vida contemporâneo. Segundo
o autor, a cultura e a sociedade desse tempo experimentam uma
dupla sensação contraditória: por um lado, é inegável o desenvolvimento civilizacional produzido pela tecnologia, entretanto, por
outro lado, esse mesmo desenvolvimento não compreende um nível
“moral”, já que, sob esse aspecto, o que se experiencia é um sentimento de declínio ou de perda. A partir dessa consideração, Charles
Taylor passará a analisar o que ele denomina por “três mal-estares
da modernidade” e, quais sejam, a perda do significado, a perda
dos fins e a perda da liberdade.
A partir desses três males, Taylor tentará evidenciar a sua tese de
que autenticidade deve consubstanciar-se em um ideal moral, um
sentimento de existência e fidelidade à si mesmo, sem que isso
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signifique a adoção de uma postura atomista, narcisista ou hedonista da subjetividade. Na verdade, a história das ideias políticas
e morais aponta que a adoção dessas formas “imperfeitas” do ser
autêntico ocasionou problemas profundos que separaram o homem
das suas relações de significado com os outros e com o mundo.
A partir dessa perspectiva, caracterizar a autenticidade como um
ideal moral representa, para Taylor, situar o sujeito em sua identidade linguística dialógica: o homem é um ser inserido em sua
comunidade de fala, e compartilha uma articulação de valores que
estão disseminados no seio de sua tradição. Isso significa que a formação dialógica da identidade é uma das características principais
do self situado e, por esse motivo, as relações de reconhecimento
não só são constitutivas, mas também indispensáveis para a formação da subjetividade.
Apesar do tema do reconhecimento ter sido tratado na Ética da
Autenticidade, foi só no texto “A Política do Reconhecimento”,
que Taylor discorre com mais precisão sobre seu significado. Entretanto, o autor faz isso a partir de uma perspectiva política, que
tenta observar a necessidade do reconhecimento para construção
de regimes políticos inclusivos. Entretanto, Taylor claramente não
opta por uma perspectiva de reconhecimento procedimentalista/
deliberativa, que acredita que o reconhecimento político se traduz
em uma simples ampliação dos mecanismos de escuta popular das
minorias, o famoso direito de participação1. Na verdade, Taylor
pretende construir uma noção política de reconhecimento com
fundamentos éticos, a partir dos conceitos como o de apropriação
e fusão de horizontes. Entretanto, o autor não chega a formular se
seria possível constituir uma ética do reconhecimento, que se consubstanciaria como elemento dialético que, junto com a ética da
autenticidade, daria início ao processo de tensão constante e necessária para a constituição de um subjetividade moralmente situada.
O objetivo do presente artigo, portanto, é, a partir da leitura de ambos os textos do Charles Taylor, bem como de alguns de seus comentadores, propor a possibilidade de formulação de uma tal “Ética
do Reconhecimento”. Se, por um lado, a ética da autenticidade se
traduz no princípio moral de ser fiel a si mesmo, a ética do reconhecimento repousaria no dever moral de reconhecer o outro, dever
este que, além de estar baseado no princípio de reciprocidade, seria
anterior e mais fundamental que o dever de autofidelidade, tendo
em vista que a consciência do ser um “si mesmo” só pode originar-se quando e a partir do momento em que se reconhece e se é reconhecido, de modo que ser-em-si também é um ser-no-outro.
A partir de um método dedutivo de análise das obras acima referidas, o presente artigo se dividirá em três momentos. O primeiro deles terá como objeto a analise do texto “A Ética da Autenticidade”.
O segundo momento terá como objeto a análise do texto “A Política do Reconheicmento”. Por fim, a última parte tratará de analisar
a ligação entre as duas obras, bem como tentará evidenciar os fundamentos do que aqui se chama de ética do reconhecimento.
1 Sobre essa perspectiva procedimentalista de reconhecimento, vide Anna Elisabetta Galeotti (2005), Nancy Fraser (2003) e Will Kymlicka (1996).
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1. A ética da autenticidade: pela autenticidade como ideal moral
Conforme já foi dito anteriormente, o objetivo do Taylor, nesse texto, é analisar o que ele denomina por males da modernidade. Esses
males são três: (1) a perda do significado; (2) a perda dos fins; e (3)
a perda da liberdade.
A partir do modo como o autor discorre sobre esses três problemas,
fica claro que o segundo e o terceiro mal são consequências do
primeiro mal. Isso acontece por alguns motivos. Primeiramente,
trata-se de uma questão quantitativa, pois Taylor se debruça em
muito mais páginas sobre a temática do primeiro mal do que sobre
os demais. Entretanto isso não é o mais relevante. Na verdade, cada
um dos males, apesar de relacionados, aplica-se a uma dimensão
distinta da vida. O primeiro mal, descrito como “desencantamento
do mundo”, ou “perda da dimensão heroica da vida”, diz respeito
à subjetividade e o modo pelo qual ela é formada e compreendida.
O segundo mal, descrito como “primazia da razão instrumental”,
diz respeito ao mundo, ou melhor, ao modo pelo qual essa subjetividade desarticulada (descrita pelo primeiro mal) se relaciona com
o mundo e com a tecnologia ao seu redor. Por fim, o terceiro mal,
descrito como “apatia política” e “sentimento de impotência” diz
respeito à política e à vida em sociedade, isto é, o modo pelo qual
aquela subjetividade atomista se relaciona com o político.
Percebe-se, portanto, que cada um dos males da modernidade encontra seu ponto em comum na ideia de subjetividade atomista,
narcisista e hedonista. Por esse motivo, Taylor se debruça com
maior largueza a esse primeiro problema, tendo em vista que a
sua resolução traria consequências animadoras para a mudança de
perspectiva acerca dos demais problemas.
É importante destacar também que Taylor não enxerga esses problemas sob uma ótica pessimista, como se eles fossem o motivo do
ocaso da sociedade contemporânea. Na verdade, o autor aponta que
esses problemas representam uma má fase da autenticidade, ou seja,
um modo não correto de se interpretar esse ideal e que, consequentemente, pode ser aprimorado, ou modificado. Segundo Hugo Chelo
as dores experimentadas e as tensões vividas nas nossas sociedades não indicam necessariamente uma entidade moribunda,
mas uma crise de crescimento que nos pode conduzir a abismos insondáveis ou pode levar-nos a uma forma de vida mais
livre, consciente e responsável (CHELO, 2009, p.183)
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É exatamente por esse otimismo que Taylor, ao escrever o capítulo
“A luta continua”, parafraseando as Brigadas Vermelhas italianas,
afirma que a sociedade é um lugar de batalha em que maiores e
menores liberdades se alternam. Para Taylor, “a natureza de uma
sociedade livre é de que sempre será o lócus de uma batalha entre
formas mais elevadas e mais baixas de liberdade” (TAYLOR, 2011,
p.82). O mesmo acontece com o ideal de autenticidade e a estratégia de responsabilização que o acompanha. “Há perdas e ganhos,
mas acima de tudo, la lotta continua” (TAYLOR, 2011, P.83).
Feitas essas considerações iniciais, passa-se a analisar o que constituem precisamente cada um desses três males. Como foi dito, o
primeiro mal é a perda do significado. Esse mal encontra sua origem do individualismo da autorrealização e na ideia de relativismo
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leve. Para Taylor, o relativismo é baseado em um modo de individualismo que tem como fundamento um self desarticulado da vida
tradicional, da história, da religião, ou de qualquer horizonte moral
que ultrapasse a própria subjetividade do agente. Trata-se da ideia
de autodeterminação, isto é, de que cada um tem o direito de se
desenvolver da maneira que achar mais valorosa, sem que isso seja
externamente determinado. Esse desenvolvimento é fundamentado
pela liberdade de escolha racional de um agente cuja moralidade é
exclusivamente subjetiva, já que a razão não serve para julgar disputas sobre valores.
O grande problema dessa perspectiva é que ela gera o que Taylor
chama de “desencantamento do mundo”, ou seja, o descrédito pelas
ordens morais que anteriormente davam ao mundo e à vida social
seus significados. A liberdade moderna representava exatamente
a fuga desses ideais morais, o que ocasionou uma autoabsorção
anormal do indivíduo nele mesmo, um estreitamento, um nivelamento de significado.
Superar esse problema implica em encontrar, no individualismo,
um ideal moral. Taylor entende por ideal moral uma espécie de
“padrão do que devemos desejar” (TAYLOR, 2011, p.25), o que é importante de se ressaltar porque equipara a estrutura do valor moral
com a estrutura do desejo. Esse padrão moral do individualismo é
justamente a autenticidade, mas não no sentido de autorrealização,
mas sim no sentido de autofidelidade. Por esse motivo, para Taylor
“há um ideal moral poderoso em trabalho aqui, não importa quão
degradada e travestida é possa ser sua expressão. O ideal moral por
trás da autorrealização é o de ser fiel a si mesmo” (2011, p.25).
Entretanto, como é possível ser fiel a si mesmo sem cair em um
atomismo solipsista? Taylor levanta alguns argumentos sobre isso.
Primeiramente, o relativismo é, por si mesmo, um ideal moral baseado em um princípio de neutralidade acerca das concepções de vida
boa. Nesse sentido, quando o relativismo afasta do debate público
questões sobre valores, enquadrando-as como fora dos domínios da
racionalidade, ele apenas se afirma como um ideal moral que tem
como objetivo tratar os valores de forma negativa. Nesse sentido,
para Taylor “há algo contraditório e autodestrutivo nessa posição,
já que o próprio relativismo é alimentado (pelo menos em parte) por
um ideal moral. [...] O ideal se reduz ao nível de um axioma, algo
que não se desfia e também nunca se expõe” (2011, p.27).
Secundariamente, não só a autenticidade é um ideal moral, mas
sobre ele pode-se discutir acerca desses ideais. Isso acontece porque raciocinar sobre questões morais não é uma tarefa solitária: é
preciso um interlocutor, que também possua ideias acerca da moralidade, e é preciso um ponto moral de partida (TAYLOR, 2011, p.41).
Isso acontece por causa de uma condição essencial e irrefutável
da vida humana, que é a dialogicidade. O modo de definição da
identidade humana só pode ser feita a partir da aquisição de uma
linguagem introduzida pela troca com os outros significativos. Isso
não aduz que a autonomia é impossível: apenas indica que, sobre
questões mundizantes, a autonomia não é suficiente para gerar
significantes. Por esse motivo, segundo Taylor
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Espera-se que nós desenvolvamos nossas próprias opiniões,
perspectivas, posições, em relação às coisas, até um grau
considerável através da reflexão solitária.. No entanto, não é
assim que as coisas funcionam com as questões importantes,
tal como a definição de nossa identidade. Nós a definimos
sempre em diálogo, por vezes em conflito, com as identidades
que nossos outros significativos querem reconhecer em nós
(TAYLOR, 2011, p.43)
A condição de dialogicidade é uma circunstância de inteligibilidade. Por isso, mesmo que seja possível escolher autonomamente
sobre qual valor é melhor ou pior para si mesmo, nunca se escolhe
sobre o nada neutro: é necessário um conjunto de questões morais
relevantes, e essas questões não são monológicas, mas sim colocadas a partir de um contexto tradicional, um horizonte de sentido
preexistente à escolha. Esse horizonte é um dado e, para que a
autorrealização e a autoescolha tenha um significado, é preciso
que elas anteriormente se coloquem ao sujeito como uma questão
importante, de modo que, para Taylor, “posso definir minha identidade apenas em contraste com o conhecimento das coisas que
importam” (2011, p.49).
Por fim, a condição dialógica da vida leva à necessidade de reconhecimento. Desse modo, este representa uma das garantias a
partir das quais é possível ser autêntico e fiel a si mesmo sem cair
no atomismo, no narcisismo ou no hedonismo. O reconhecimento
é o modo de relacionamento recíproco que possibilita a vida social.
Ele implica no princípio da equidade, isto é, na ideia de que todos
devem ter as mesmas chances de desenvolver a própria identidade
socialmente. Obviamente isso é um problema para o liberalismo
da neutralidade, entretanto, a partir do momento em que se adota
a perspectiva dialógica, percebe-se que esse problema perde sua
razão de ser em face de um horizonte de sentido compartilhado, o
que representa a superação da noção meramente procedimentalista
de reconhecimento. Para Taylor
Unir-se em um reconhecimento mútuo de diferenças exige que
compartilhemos mais do que a crença nesse princípio [de igualdade]; temos que compartilhar também alguns padrões de valor
que as identidades referidas conferem como iguais. Deve haver
um acordo substancial sobre valor, ou então o princípio formal
de igualdade será vazio e uma fraude (TAYLOR, 2011, p.59)
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Percebe-se, enfim, que, a partir dessa discussão sobre o primeiro
mal estar da modernidade, qual seja, a perda de sentido, configura-se a autenticidade como um ideal moral articulado com horizontes
de sentido tradicionais. Isso siginifica que a autenticidade é, sim,
um ser fiel a si mesmo, mas essa originalidade é reflexiva, tendo
em vista a necessidade do reconhecimento. É, portanto, uma originalidade que se aliena no outro e retorna para si com consciência
do seu lugar no mundo e na sociedade.
O segundo mal estar da modernidade foi descrito anteriormente
como a perda dos fins ou primazia da razão instrumental. Taylor
define razão instrumental como “o tipo de racionalidade em que
nos baseamos ao calcular a aplicação mais econômica dos meios
para determinados fins. Eficiência máxima, maior custo-benefício,
é a sua medida de sucesso” (TAYLOR, 2011, p.15). A primazia da
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razão instrumental se deu por diversos motivos. Primeiramente, a
noção atomista de subjetividade deu origem a um afastamento da
vida significativa em sociedade. A sociedade industrial, tecnológica
e burocrática, a necessidade de mobilidade, e a impessoalidade nas
relações são motivos que serviram ao afrouxamento dos laços sociais, fazendo o ser humano buscar soluções científicas e tecnológicas para problemas cuja solução necessita, na verdade, de compromisso, compreensão e aceitação, valores morais que se perderam
em meio à demanda por máxima produção. Esse mal é responsável
pelo descaso em relação a matérias que possuem relevância conjunta, como o meio ambiente, a saúde, e a participação política.
O afrouxamento dos laços sociais, é portanto, o princípio do terceiro
e último mal estar da modernidade: a apatia política. Em face do
Mercado e do Estado e, na ausência de horizontes de sentido fortemente compartilhados, os cidadãos encontram-se cada vez mais com
uma sensação de desapoderamento em face das questões públicas
e de governo. Taylor parafraseia Weber ao retratar a situação como
uma “jaula de ferro”, uma perda completa da liberdade e a rendição
a um Estado paternalista e burocrático. Cada vez mais os cidadãos
se sentem menos responsáveis pelo destino das decisões políticas,
fechando-se para as satisfações cotidianas da vida privada.
Segundo Taylor, cada um desses males possui uma proposta de
solução específicas. Em relação à perda das finalidades, Taylor propõe o uso tecnológico não apenas em um sentido científico, mas
também em um sentido moral, isto é, com a função de “aliviar a
condição da humanidade” (TAYLOR, 2011, p. 104). A benevolência
do uso da razão instrumental, representa, portanto, a humanização
da tecnologia, ou seja, “a ideia de que a ciência deverá contribuir
para a melhoria da qualidade de vida do ser humano” (FIGUEIREDO, 2009, p. 149).
Por outro lado, o terceiro mal estar, qual seja, a perda da liberdade,
pode ser solucionado a partir da intervenção ativa dos cidadãos na
política. Isso só pode ser realizado quando se supera a fragmentação social, ou seja, quando os cidadãos identificam-se com sua
sociedade política como uma comunidade. É preciso gerar uma
política de resistência como meio de formação da vontade democrática e superação da impotência política.
A partir dessa análise dos três problemas da modernidade, é possível, enfim, afirmar que a autenticidade como ideal moral representa um caminho de superação. Mas não se trata de caminho simples
e tranquilo, porque a autenticidade, em si mesma, representa a tensão dialética do esforço do humano em transformar-se em um ser
original reflexivamente.
2. A política do reconhecimento:
a articulação de identidades sociais na esfera pública
Em seu texto “A Política do Reconhecimento”, Taylor discute a
questão do reconhecimento a partir do problema do multiculturalismo. Segundo o autor, o reconhecimento se dá em duas esferas:
uma íntima, a partir do diálogo e luta contínua do self com os outros significantes; e uma pública que diz respeito às demandas por
reconhecimento (TAYLOR, 1994, p. 37).
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Segundo Luís Lóia, existem três acepções cotidianas do termo
reconhecimento: (1) reconhecer como identificar características
relevantes; (2) reconhecer como recordar; e (3) reconhecer como
gratidão, agradecimento (LÓIA, 2009, p.198). Esses sentidos cotidianos, segundo Lóia, podem ser relacionados com os diversos
significados que o termo reconhecimento assumiu na obra de
Taylor. Por exemplo, o significado (1) pode indicar que no reconhecimento descobrem-se sentidos morais que constituem a identidade
humana. O significado (2) pode representar a ideia de que através
do reconhecimento é possível recordar os valores morais dos horizontes de sentido da época. O significado (3) pode indicar que no
reconhecimento considera-se que há ações que possuem conteúdo
moral digno que promovem a unidade de sentimento do corpo social (LÓIA, 2009, p.200).
Entretanto, no texto “A Política do Reconhecimento” Taylor propõe
focar-se na questão do reconhecimento na esfera pública, evidenciando seus motivos e significados. Segundo o autor, nas sociedades tradicionais, o reconhecimento não era em si um problema, já
que havia lugares e funções sociais predeterminadas para todos. A
dignidade, portanto, era definia a partir da noção de honra e pertença. Com o colapso das hierarquias sociais, a democracia inaugura um modo de organização social baseada no princípio formal da
igualdade. Entretanto, quando esse princípio encontra-se aliado ao
individualismo da autorrealização e ao liberalismo da neutralidade,
surge um sistema de exclusão que Taylor denomina de “cegueira
pública das diferenças”, em que a sociedade política, ao ignorar
as discussões sobre concepções de bem e de vida boa, termina por
gerar uma tendência à homogeneização da diferença que ceifa
qualquer possibilidade de exercício de uma identidade diferenciada
na vida pública.
Existem, portanto, duas políticas em relação à questão da dignidade. A política da igualdade, que tem como pressuposto um sentido
de igualdade formal perante a lei, neutra e universal, que se baseia
no princípio da separação entre o público e o privado, no neutralismo e na racionalidade pública. Por outro lado, a política da diferença trata a igualdade em seu sentido material, para proporcionar,
o reconhecimento da diferença e das variadas formas de vida,
incluindo, no debate público, considerações sobre valores e status
sociais que migram do privado para o público, garantindo uma
inclusão a partir das particularidades. De modo geral, ambas políticas procuram proporcionar um sistema político mais inclusivo,
entretanto, a partir de perspectivas opostas. Segundo Taylor,
Onde a política da dignidade universal lutou por formas de
não-discriminação que eram deveras cegas aos modos pelos
quais os cidadãos diferem, a política da diferença muitas vezes
redefine não-discriminação como requisição de que nós façamos essas distinções a base do tratamento diferencial (TAYLOR,
1994, p.39)2
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2 A tradução do texto original em inglês é livre. No original: “where the politics of
universal dignity fought for forms of nondiscrimination that where quite ‘blind’ to the
ways in which citizens differ, the politics of difference often redefines nondiscrimination
as requiring that we make these distinctions the basis of differential treatment”.
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Para Taylor, a principal deficiência da política da igual dignidade
é a questão da homogeneização, esta que, por sua vez, tem sua
origem no modo pelo qual essa perspectiva interpreta a questão da
igualdade perante a lei, bem como ela desconsidera a existência
de fins coletivos compartilhados. O modo formal de se interpretar
a igualdade termina gerando um resultado oposto: ao invés da inclusão e do pluralismo, o que termina ocorrendo é a submissão dos
traços identitários da maioria sobre a minoria. O pior é que essa
discriminação estaria legitimada institucionalmente por uma ideia
de neutralismo que, segundo Taylor, assim como o relativismo,
também é um padrão moral que trata os valores de forma negativa.
Todavia, a neutralidade ainda é mais devastadora quando representa a negação da política liberal de se reconhecer como uma tradição moral e política que possui uma específica concepção de bem.
Segundo Taylor, “o liberalismo não pode nem deve clamar pela
completa neutralidade cultural. Liberalismo também é uma crença
combatente” (TAYLOR, 1994, p.62)3.
A partir da perspectiva da imposição da vontade da maioria sobre
as minorias culturais, legitimadas silenciosamente pelo neutralismo, Taylor passa a se perguntar até que ponto a imposição cultural
é incontornável, ou se se pode considerar que a sobrevivência de
grupos culturais minoritários pode ser transformada em um fim
coletivo. A resposta de Taylor é afirmativa, no sentido de que não
reconhecer a diversidade cultural como um fim coletivo é retornar
à mentalidade imperialista que imprimia a imagem do colonizador
no colonizado, o que, por si só, é uma forma de opressão à autoimagem de si mesmo. Ademais, segundo Taylor é preciso manter a
diversidade cultural porque cada cultura que se realizou na História
tem algo a ensinar a humanidade.
Obviamente essa espécie de reconhecimento multicultural não é uma
tarefa simples. Tampouco pode ser realizada a partir de alternativas
puramente procedimentalistas, que tentam enquadrar as minorias em
um direito de participação dentro do quadro geral da política neutra
da maioria. Entretanto, a participação minoritária não terá a mesma
força representativa da maioria, nem será articulada ao mesmo nível,
de modo que ela terá uma voz que não será ouvida.
O procedimentalismo multicultural, portanto, falha ao manter o formalismo e o neutralismo. E para superar esse impasse, Taylor propõe o método da fusão de horizontes, originalmente idealizado por
Gadamer, como um meio de ampliação dos horizontes de sentido a
partir da vivência na perspectiva do outro. Reconhecer é colocar-se
no horizonte de sentido do outro, a partir da sua própria linguagem,
ao mesmo tempo em que se amplia o horizonte de sentido próprio.
A fusão de horizontes, portanto, “opera através do nosso desenvolvimento de novos vocabulários de comparação, por meio do qual
nos podemos articular esses contrastes” (TAYLOR, 1994, p. 67) 4.
Desse modo, Taylor propõe que, no aspecto político, o reconhecimento envolve também uma postura ética de abertura aos signifi3 No original: “liberalism can’t and shouldn’t claim complete cultural neutrality. Liberalism is also a fighting creed”.
4 No original: “the fusion of horizons operates through our developing new vocabularies
of comparison, by means of which we can articulate these contrasts”.
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cantes do outro, como um processo em que ambas as partes serão
modificadas. Não é uma perspectiva fácil ou aproblemática, entretanto, a eliminação radical do conflito não é um objetivo pretendido por Taylor, já que, para o autor, esse conflito é o que constitui a
própria identidade e as relações que dela decorrem.
3. Ética do reconhecimento e ética da autenticidade:
a tensão constitutiva da subjetividade
A partir da leitura da obra de Taylor, e considerando os argumentos
acima expostos, percebe-se que, tanto a autenticidade quanto o reconhecimento são conceitos fundamentais para a filosofia do autor.
Entretanto, acredita-se que entre esses conceitos, existe uma relação
essencial. Na “Ética da Autenticidade”, Taylor afirma o seguinte:
Podemos dizer que a autenticidade (A) envolve: (i) criação e
construção assim como descoberta, (ii) originalidade e, frequentemente (iii) oposição às regras da sociedade e mesmo potencialmente ao que reconhecemos como moralidade. Contudo
também é verdade, como vimos, que (B) requer: (i) a abertura
aos horizontes de significado (visto que de outro modo a criação perde o pano de fundo que pode salvá-la da insignificância) e (ii) uma autodefinição do diálogo (TAYLOR, 2011, p.73)
Isso significa que o ideal de autenticidade internaliza uma contradição constitutiva: por um lado, ela é impulso criativo e original de
opor-se a regras morais preestabelecidas, ao mesmo tempo em que
requer a abertura dos horizontes de significado a partir do diálogo.
Isso significa que a estrutura dialógica da linguagem humana e os
valores tradicionalmente transmitidos não aprisionam e engessam
a identidade do sujeito no seio de uma determinada comunidade,
como afirmam a maioria dos críticos ao comunitarismo, mas ao
contrário: é justamente ela que possibilita o conjunto inicial de
questões significantes a partir das quais a subjetividade pode navegar e dialogar, alterando-se originariamente a si mesma a partir
das relações com os outros.
Nesse sentido, ao considerar-se que essa necessidade de abertura
dialógica dos horizontes morais consubstancia-se do ato de reconhecimento do outro, propriamente dito, então percebe-se que
a construção da identidade representa uma tensão dialética entre
originalidade (autenticidade) e reconhecimento. Entretanto, Taylor
escreve a ética da autenticidade, mas não desenvolve uma respectiva ética do reconhecimento. O que ele faz é inauguram um pensamento político à respeito, considerando que o reconhecimento é a
origem mesma da interação social.
Ocorre que no texto “A política do reconhecimento”, Taylor afirma
o seguinte: “O dever de reconhecimento não é apenas uma cortesia
que nós devemos às pessoas. Ele é uma necessidade humana vital”
(TAYLOR, 1994, p.26) 5. Isso significa a possibilidade de se formular
uma ética do reconhecimento a partir da ideia do dever moral de
reconhecer como necessidade recíproca da humanidade no processo de formação histórico dela mesma.
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5 No original: “due recognition is not Just a courtesy we owe people. It is a vital human
need”.
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A ética do reconhecimento, portanto, é uma ética dialógica, multilateral, que tem como fundamente o princípio de reciprocidade
das relações humanas. Ela é necessária em duas medidas: primeiramente como uma etapa dialética do desenvolvimento do self
articulado no mundo e, secundariamente, como primeiro requisito
de sociabilidade a partir de um relacionamento moral incipiente.
Ademais, pode-se afirmar, ainda que a ética do reconhecimento é
anterior à ética da autenticidade, tendo em vista que essa necessita
previamente de uma ideia de si que só pode ser adquirida a partir
dos horizontes de sentido dialógicos disponibilizados pela estrutura
do reconhecimento.
Percebe-se, enfim, que a ética da autenticidade, como dever moral
de ser fiel a si mesmo, e a ética do reconhecimento, como dever
moral de reconhecer o outro, são modos inseparáveis do exercício e
constituição da subjetividade, seja em um sentido interno, na vida
privada, seja em um sentido externo, na vida pública.
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Bibliografia
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