A luta contínua: sobre a tensão entre autenticidade e reconhecimento na filosofia de Charles Taylor Larissa Cristine Daniel Gondim Doutoranda em Filosofia pela UFSCar. Mestre em Ciências Jurídicas e em Filosofia pela UFPB. Bacharel em Direito e em Filosofia pela UFPB. Professora da licenciatura em Filosofia da Faculdade São Luis. [email protected] Palavras-chave Autenticidade, Reconhecimento, Charles Taylor. Resumo A filosofia de Charles Taylor é marcada pela análise das tensões constitutivas do self. Uma dessas tensões é descrita pelo autor a partir da tese de que a autenticidade, como princípio que determina ‘ser fiel a si mesmo’ e que substancializa o ‘sentimento de existência’, deve ser defendida como um ideal moral, ao contrário da tradicional visão solipsista e atomista de autorrealização e autodeterminação do indivíduo. Dessa forma, no tocante ao desenvolvimento do self e da identidade, ser autêntico deve levar em conta não só a estrutura dialógica da linguagem humana, mas também a importância das relações de significado com o Outro. Isso indica que o fundamento do ideal moral de autenticidade são relações de reconhecimento que, simultaneamente, complementam-se e conflitam-se em uma tensão irresolúvel que justifica, em última instância, a constituição do eu. O objetivo do presente trabalho será, através da leitura dos textos “A Ética da Autenticidade” e “A Política do Reconhecimento”, ambos do filósofo Charles Taylor, analisar de que modo o autor descreve o conflito entre autenticidade e reconhecimento, para evidenciar que essa tensão é irresolúvel, não contraditória, constitutiva e indispensável na formação da subjetividade. Ao fim, buscar-se-á demonstrar que, a partir da obra de Taylor, há indícios suficientes para se afirmar que, ao lado da ética da autenticidade, existe uma ética do reconhecimento, baseada em princípios morais de reciprocidade e respeito. Dessa forma o argumento da autenticidade como ideal moral também pode ser aplicado no tocante ao reconhecimento, de modo que este passa a ser caracterizado não apenas como um conceito político. Ao escrever “A Ética da Autenticidade”, Charles Taylor parte de uma observação acerca do modo de vida contemporâneo. Segundo o autor, a cultura e a sociedade desse tempo experimentam uma dupla sensação contraditória: por um lado, é inegável o desenvolvimento civilizacional produzido pela tecnologia, entretanto, por outro lado, esse mesmo desenvolvimento não compreende um nível “moral”, já que, sob esse aspecto, o que se experiencia é um sentimento de declínio ou de perda. A partir dessa consideração, Charles Taylor passará a analisar o que ele denomina por “três mal-estares da modernidade” e, quais sejam, a perda do significado, a perda dos fins e a perda da liberdade. A partir desses três males, Taylor tentará evidenciar a sua tese de que autenticidade deve consubstanciar-se em um ideal moral, um sentimento de existência e fidelidade à si mesmo, sem que isso 255 Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 256 signifique a adoção de uma postura atomista, narcisista ou hedonista da subjetividade. Na verdade, a história das ideias políticas e morais aponta que a adoção dessas formas “imperfeitas” do ser autêntico ocasionou problemas profundos que separaram o homem das suas relações de significado com os outros e com o mundo. A partir dessa perspectiva, caracterizar a autenticidade como um ideal moral representa, para Taylor, situar o sujeito em sua identidade linguística dialógica: o homem é um ser inserido em sua comunidade de fala, e compartilha uma articulação de valores que estão disseminados no seio de sua tradição. Isso significa que a formação dialógica da identidade é uma das características principais do self situado e, por esse motivo, as relações de reconhecimento não só são constitutivas, mas também indispensáveis para a formação da subjetividade. Apesar do tema do reconhecimento ter sido tratado na Ética da Autenticidade, foi só no texto “A Política do Reconhecimento”, que Taylor discorre com mais precisão sobre seu significado. Entretanto, o autor faz isso a partir de uma perspectiva política, que tenta observar a necessidade do reconhecimento para construção de regimes políticos inclusivos. Entretanto, Taylor claramente não opta por uma perspectiva de reconhecimento procedimentalista/ deliberativa, que acredita que o reconhecimento político se traduz em uma simples ampliação dos mecanismos de escuta popular das minorias, o famoso direito de participação1. Na verdade, Taylor pretende construir uma noção política de reconhecimento com fundamentos éticos, a partir dos conceitos como o de apropriação e fusão de horizontes. Entretanto, o autor não chega a formular se seria possível constituir uma ética do reconhecimento, que se consubstanciaria como elemento dialético que, junto com a ética da autenticidade, daria início ao processo de tensão constante e necessária para a constituição de um subjetividade moralmente situada. O objetivo do presente artigo, portanto, é, a partir da leitura de ambos os textos do Charles Taylor, bem como de alguns de seus comentadores, propor a possibilidade de formulação de uma tal “Ética do Reconhecimento”. Se, por um lado, a ética da autenticidade se traduz no princípio moral de ser fiel a si mesmo, a ética do reconhecimento repousaria no dever moral de reconhecer o outro, dever este que, além de estar baseado no princípio de reciprocidade, seria anterior e mais fundamental que o dever de autofidelidade, tendo em vista que a consciência do ser um “si mesmo” só pode originar-se quando e a partir do momento em que se reconhece e se é reconhecido, de modo que ser-em-si também é um ser-no-outro. A partir de um método dedutivo de análise das obras acima referidas, o presente artigo se dividirá em três momentos. O primeiro deles terá como objeto a analise do texto “A Ética da Autenticidade”. O segundo momento terá como objeto a análise do texto “A Política do Reconheicmento”. Por fim, a última parte tratará de analisar a ligação entre as duas obras, bem como tentará evidenciar os fundamentos do que aqui se chama de ética do reconhecimento. 1 Sobre essa perspectiva procedimentalista de reconhecimento, vide Anna Elisabetta Galeotti (2005), Nancy Fraser (2003) e Will Kymlicka (1996). Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 1. A ética da autenticidade: pela autenticidade como ideal moral Conforme já foi dito anteriormente, o objetivo do Taylor, nesse texto, é analisar o que ele denomina por males da modernidade. Esses males são três: (1) a perda do significado; (2) a perda dos fins; e (3) a perda da liberdade. A partir do modo como o autor discorre sobre esses três problemas, fica claro que o segundo e o terceiro mal são consequências do primeiro mal. Isso acontece por alguns motivos. Primeiramente, trata-se de uma questão quantitativa, pois Taylor se debruça em muito mais páginas sobre a temática do primeiro mal do que sobre os demais. Entretanto isso não é o mais relevante. Na verdade, cada um dos males, apesar de relacionados, aplica-se a uma dimensão distinta da vida. O primeiro mal, descrito como “desencantamento do mundo”, ou “perda da dimensão heroica da vida”, diz respeito à subjetividade e o modo pelo qual ela é formada e compreendida. O segundo mal, descrito como “primazia da razão instrumental”, diz respeito ao mundo, ou melhor, ao modo pelo qual essa subjetividade desarticulada (descrita pelo primeiro mal) se relaciona com o mundo e com a tecnologia ao seu redor. Por fim, o terceiro mal, descrito como “apatia política” e “sentimento de impotência” diz respeito à política e à vida em sociedade, isto é, o modo pelo qual aquela subjetividade atomista se relaciona com o político. Percebe-se, portanto, que cada um dos males da modernidade encontra seu ponto em comum na ideia de subjetividade atomista, narcisista e hedonista. Por esse motivo, Taylor se debruça com maior largueza a esse primeiro problema, tendo em vista que a sua resolução traria consequências animadoras para a mudança de perspectiva acerca dos demais problemas. É importante destacar também que Taylor não enxerga esses problemas sob uma ótica pessimista, como se eles fossem o motivo do ocaso da sociedade contemporânea. Na verdade, o autor aponta que esses problemas representam uma má fase da autenticidade, ou seja, um modo não correto de se interpretar esse ideal e que, consequentemente, pode ser aprimorado, ou modificado. Segundo Hugo Chelo as dores experimentadas e as tensões vividas nas nossas sociedades não indicam necessariamente uma entidade moribunda, mas uma crise de crescimento que nos pode conduzir a abismos insondáveis ou pode levar-nos a uma forma de vida mais livre, consciente e responsável (CHELO, 2009, p.183) 257 É exatamente por esse otimismo que Taylor, ao escrever o capítulo “A luta continua”, parafraseando as Brigadas Vermelhas italianas, afirma que a sociedade é um lugar de batalha em que maiores e menores liberdades se alternam. Para Taylor, “a natureza de uma sociedade livre é de que sempre será o lócus de uma batalha entre formas mais elevadas e mais baixas de liberdade” (TAYLOR, 2011, p.82). O mesmo acontece com o ideal de autenticidade e a estratégia de responsabilização que o acompanha. “Há perdas e ganhos, mas acima de tudo, la lotta continua” (TAYLOR, 2011, P.83). Feitas essas considerações iniciais, passa-se a analisar o que constituem precisamente cada um desses três males. Como foi dito, o primeiro mal é a perda do significado. Esse mal encontra sua origem do individualismo da autorrealização e na ideia de relativismo Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 258 leve. Para Taylor, o relativismo é baseado em um modo de individualismo que tem como fundamento um self desarticulado da vida tradicional, da história, da religião, ou de qualquer horizonte moral que ultrapasse a própria subjetividade do agente. Trata-se da ideia de autodeterminação, isto é, de que cada um tem o direito de se desenvolver da maneira que achar mais valorosa, sem que isso seja externamente determinado. Esse desenvolvimento é fundamentado pela liberdade de escolha racional de um agente cuja moralidade é exclusivamente subjetiva, já que a razão não serve para julgar disputas sobre valores. O grande problema dessa perspectiva é que ela gera o que Taylor chama de “desencantamento do mundo”, ou seja, o descrédito pelas ordens morais que anteriormente davam ao mundo e à vida social seus significados. A liberdade moderna representava exatamente a fuga desses ideais morais, o que ocasionou uma autoabsorção anormal do indivíduo nele mesmo, um estreitamento, um nivelamento de significado. Superar esse problema implica em encontrar, no individualismo, um ideal moral. Taylor entende por ideal moral uma espécie de “padrão do que devemos desejar” (TAYLOR, 2011, p.25), o que é importante de se ressaltar porque equipara a estrutura do valor moral com a estrutura do desejo. Esse padrão moral do individualismo é justamente a autenticidade, mas não no sentido de autorrealização, mas sim no sentido de autofidelidade. Por esse motivo, para Taylor “há um ideal moral poderoso em trabalho aqui, não importa quão degradada e travestida é possa ser sua expressão. O ideal moral por trás da autorrealização é o de ser fiel a si mesmo” (2011, p.25). Entretanto, como é possível ser fiel a si mesmo sem cair em um atomismo solipsista? Taylor levanta alguns argumentos sobre isso. Primeiramente, o relativismo é, por si mesmo, um ideal moral baseado em um princípio de neutralidade acerca das concepções de vida boa. Nesse sentido, quando o relativismo afasta do debate público questões sobre valores, enquadrando-as como fora dos domínios da racionalidade, ele apenas se afirma como um ideal moral que tem como objetivo tratar os valores de forma negativa. Nesse sentido, para Taylor “há algo contraditório e autodestrutivo nessa posição, já que o próprio relativismo é alimentado (pelo menos em parte) por um ideal moral. [...] O ideal se reduz ao nível de um axioma, algo que não se desfia e também nunca se expõe” (2011, p.27). Secundariamente, não só a autenticidade é um ideal moral, mas sobre ele pode-se discutir acerca desses ideais. Isso acontece porque raciocinar sobre questões morais não é uma tarefa solitária: é preciso um interlocutor, que também possua ideias acerca da moralidade, e é preciso um ponto moral de partida (TAYLOR, 2011, p.41). Isso acontece por causa de uma condição essencial e irrefutável da vida humana, que é a dialogicidade. O modo de definição da identidade humana só pode ser feita a partir da aquisição de uma linguagem introduzida pela troca com os outros significativos. Isso não aduz que a autonomia é impossível: apenas indica que, sobre questões mundizantes, a autonomia não é suficiente para gerar significantes. Por esse motivo, segundo Taylor Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 Espera-se que nós desenvolvamos nossas próprias opiniões, perspectivas, posições, em relação às coisas, até um grau considerável através da reflexão solitária.. No entanto, não é assim que as coisas funcionam com as questões importantes, tal como a definição de nossa identidade. Nós a definimos sempre em diálogo, por vezes em conflito, com as identidades que nossos outros significativos querem reconhecer em nós (TAYLOR, 2011, p.43) A condição de dialogicidade é uma circunstância de inteligibilidade. Por isso, mesmo que seja possível escolher autonomamente sobre qual valor é melhor ou pior para si mesmo, nunca se escolhe sobre o nada neutro: é necessário um conjunto de questões morais relevantes, e essas questões não são monológicas, mas sim colocadas a partir de um contexto tradicional, um horizonte de sentido preexistente à escolha. Esse horizonte é um dado e, para que a autorrealização e a autoescolha tenha um significado, é preciso que elas anteriormente se coloquem ao sujeito como uma questão importante, de modo que, para Taylor, “posso definir minha identidade apenas em contraste com o conhecimento das coisas que importam” (2011, p.49). Por fim, a condição dialógica da vida leva à necessidade de reconhecimento. Desse modo, este representa uma das garantias a partir das quais é possível ser autêntico e fiel a si mesmo sem cair no atomismo, no narcisismo ou no hedonismo. O reconhecimento é o modo de relacionamento recíproco que possibilita a vida social. Ele implica no princípio da equidade, isto é, na ideia de que todos devem ter as mesmas chances de desenvolver a própria identidade socialmente. Obviamente isso é um problema para o liberalismo da neutralidade, entretanto, a partir do momento em que se adota a perspectiva dialógica, percebe-se que esse problema perde sua razão de ser em face de um horizonte de sentido compartilhado, o que representa a superação da noção meramente procedimentalista de reconhecimento. Para Taylor Unir-se em um reconhecimento mútuo de diferenças exige que compartilhemos mais do que a crença nesse princípio [de igualdade]; temos que compartilhar também alguns padrões de valor que as identidades referidas conferem como iguais. Deve haver um acordo substancial sobre valor, ou então o princípio formal de igualdade será vazio e uma fraude (TAYLOR, 2011, p.59) 259 Percebe-se, enfim, que, a partir dessa discussão sobre o primeiro mal estar da modernidade, qual seja, a perda de sentido, configura-se a autenticidade como um ideal moral articulado com horizontes de sentido tradicionais. Isso siginifica que a autenticidade é, sim, um ser fiel a si mesmo, mas essa originalidade é reflexiva, tendo em vista a necessidade do reconhecimento. É, portanto, uma originalidade que se aliena no outro e retorna para si com consciência do seu lugar no mundo e na sociedade. O segundo mal estar da modernidade foi descrito anteriormente como a perda dos fins ou primazia da razão instrumental. Taylor define razão instrumental como “o tipo de racionalidade em que nos baseamos ao calcular a aplicação mais econômica dos meios para determinados fins. Eficiência máxima, maior custo-benefício, é a sua medida de sucesso” (TAYLOR, 2011, p.15). A primazia da Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 razão instrumental se deu por diversos motivos. Primeiramente, a noção atomista de subjetividade deu origem a um afastamento da vida significativa em sociedade. A sociedade industrial, tecnológica e burocrática, a necessidade de mobilidade, e a impessoalidade nas relações são motivos que serviram ao afrouxamento dos laços sociais, fazendo o ser humano buscar soluções científicas e tecnológicas para problemas cuja solução necessita, na verdade, de compromisso, compreensão e aceitação, valores morais que se perderam em meio à demanda por máxima produção. Esse mal é responsável pelo descaso em relação a matérias que possuem relevância conjunta, como o meio ambiente, a saúde, e a participação política. O afrouxamento dos laços sociais, é portanto, o princípio do terceiro e último mal estar da modernidade: a apatia política. Em face do Mercado e do Estado e, na ausência de horizontes de sentido fortemente compartilhados, os cidadãos encontram-se cada vez mais com uma sensação de desapoderamento em face das questões públicas e de governo. Taylor parafraseia Weber ao retratar a situação como uma “jaula de ferro”, uma perda completa da liberdade e a rendição a um Estado paternalista e burocrático. Cada vez mais os cidadãos se sentem menos responsáveis pelo destino das decisões políticas, fechando-se para as satisfações cotidianas da vida privada. Segundo Taylor, cada um desses males possui uma proposta de solução específicas. Em relação à perda das finalidades, Taylor propõe o uso tecnológico não apenas em um sentido científico, mas também em um sentido moral, isto é, com a função de “aliviar a condição da humanidade” (TAYLOR, 2011, p. 104). A benevolência do uso da razão instrumental, representa, portanto, a humanização da tecnologia, ou seja, “a ideia de que a ciência deverá contribuir para a melhoria da qualidade de vida do ser humano” (FIGUEIREDO, 2009, p. 149). Por outro lado, o terceiro mal estar, qual seja, a perda da liberdade, pode ser solucionado a partir da intervenção ativa dos cidadãos na política. Isso só pode ser realizado quando se supera a fragmentação social, ou seja, quando os cidadãos identificam-se com sua sociedade política como uma comunidade. É preciso gerar uma política de resistência como meio de formação da vontade democrática e superação da impotência política. A partir dessa análise dos três problemas da modernidade, é possível, enfim, afirmar que a autenticidade como ideal moral representa um caminho de superação. Mas não se trata de caminho simples e tranquilo, porque a autenticidade, em si mesma, representa a tensão dialética do esforço do humano em transformar-se em um ser original reflexivamente. 2. A política do reconhecimento: a articulação de identidades sociais na esfera pública Em seu texto “A Política do Reconhecimento”, Taylor discute a questão do reconhecimento a partir do problema do multiculturalismo. Segundo o autor, o reconhecimento se dá em duas esferas: uma íntima, a partir do diálogo e luta contínua do self com os outros significantes; e uma pública que diz respeito às demandas por reconhecimento (TAYLOR, 1994, p. 37). 260 Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 Segundo Luís Lóia, existem três acepções cotidianas do termo reconhecimento: (1) reconhecer como identificar características relevantes; (2) reconhecer como recordar; e (3) reconhecer como gratidão, agradecimento (LÓIA, 2009, p.198). Esses sentidos cotidianos, segundo Lóia, podem ser relacionados com os diversos significados que o termo reconhecimento assumiu na obra de Taylor. Por exemplo, o significado (1) pode indicar que no reconhecimento descobrem-se sentidos morais que constituem a identidade humana. O significado (2) pode representar a ideia de que através do reconhecimento é possível recordar os valores morais dos horizontes de sentido da época. O significado (3) pode indicar que no reconhecimento considera-se que há ações que possuem conteúdo moral digno que promovem a unidade de sentimento do corpo social (LÓIA, 2009, p.200). Entretanto, no texto “A Política do Reconhecimento” Taylor propõe focar-se na questão do reconhecimento na esfera pública, evidenciando seus motivos e significados. Segundo o autor, nas sociedades tradicionais, o reconhecimento não era em si um problema, já que havia lugares e funções sociais predeterminadas para todos. A dignidade, portanto, era definia a partir da noção de honra e pertença. Com o colapso das hierarquias sociais, a democracia inaugura um modo de organização social baseada no princípio formal da igualdade. Entretanto, quando esse princípio encontra-se aliado ao individualismo da autorrealização e ao liberalismo da neutralidade, surge um sistema de exclusão que Taylor denomina de “cegueira pública das diferenças”, em que a sociedade política, ao ignorar as discussões sobre concepções de bem e de vida boa, termina por gerar uma tendência à homogeneização da diferença que ceifa qualquer possibilidade de exercício de uma identidade diferenciada na vida pública. Existem, portanto, duas políticas em relação à questão da dignidade. A política da igualdade, que tem como pressuposto um sentido de igualdade formal perante a lei, neutra e universal, que se baseia no princípio da separação entre o público e o privado, no neutralismo e na racionalidade pública. Por outro lado, a política da diferença trata a igualdade em seu sentido material, para proporcionar, o reconhecimento da diferença e das variadas formas de vida, incluindo, no debate público, considerações sobre valores e status sociais que migram do privado para o público, garantindo uma inclusão a partir das particularidades. De modo geral, ambas políticas procuram proporcionar um sistema político mais inclusivo, entretanto, a partir de perspectivas opostas. Segundo Taylor, Onde a política da dignidade universal lutou por formas de não-discriminação que eram deveras cegas aos modos pelos quais os cidadãos diferem, a política da diferença muitas vezes redefine não-discriminação como requisição de que nós façamos essas distinções a base do tratamento diferencial (TAYLOR, 1994, p.39)2 261 2 A tradução do texto original em inglês é livre. No original: “where the politics of universal dignity fought for forms of nondiscrimination that where quite ‘blind’ to the ways in which citizens differ, the politics of difference often redefines nondiscrimination as requiring that we make these distinctions the basis of differential treatment”. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 262 Para Taylor, a principal deficiência da política da igual dignidade é a questão da homogeneização, esta que, por sua vez, tem sua origem no modo pelo qual essa perspectiva interpreta a questão da igualdade perante a lei, bem como ela desconsidera a existência de fins coletivos compartilhados. O modo formal de se interpretar a igualdade termina gerando um resultado oposto: ao invés da inclusão e do pluralismo, o que termina ocorrendo é a submissão dos traços identitários da maioria sobre a minoria. O pior é que essa discriminação estaria legitimada institucionalmente por uma ideia de neutralismo que, segundo Taylor, assim como o relativismo, também é um padrão moral que trata os valores de forma negativa. Todavia, a neutralidade ainda é mais devastadora quando representa a negação da política liberal de se reconhecer como uma tradição moral e política que possui uma específica concepção de bem. Segundo Taylor, “o liberalismo não pode nem deve clamar pela completa neutralidade cultural. Liberalismo também é uma crença combatente” (TAYLOR, 1994, p.62)3. A partir da perspectiva da imposição da vontade da maioria sobre as minorias culturais, legitimadas silenciosamente pelo neutralismo, Taylor passa a se perguntar até que ponto a imposição cultural é incontornável, ou se se pode considerar que a sobrevivência de grupos culturais minoritários pode ser transformada em um fim coletivo. A resposta de Taylor é afirmativa, no sentido de que não reconhecer a diversidade cultural como um fim coletivo é retornar à mentalidade imperialista que imprimia a imagem do colonizador no colonizado, o que, por si só, é uma forma de opressão à autoimagem de si mesmo. Ademais, segundo Taylor é preciso manter a diversidade cultural porque cada cultura que se realizou na História tem algo a ensinar a humanidade. Obviamente essa espécie de reconhecimento multicultural não é uma tarefa simples. Tampouco pode ser realizada a partir de alternativas puramente procedimentalistas, que tentam enquadrar as minorias em um direito de participação dentro do quadro geral da política neutra da maioria. Entretanto, a participação minoritária não terá a mesma força representativa da maioria, nem será articulada ao mesmo nível, de modo que ela terá uma voz que não será ouvida. O procedimentalismo multicultural, portanto, falha ao manter o formalismo e o neutralismo. E para superar esse impasse, Taylor propõe o método da fusão de horizontes, originalmente idealizado por Gadamer, como um meio de ampliação dos horizontes de sentido a partir da vivência na perspectiva do outro. Reconhecer é colocar-se no horizonte de sentido do outro, a partir da sua própria linguagem, ao mesmo tempo em que se amplia o horizonte de sentido próprio. A fusão de horizontes, portanto, “opera através do nosso desenvolvimento de novos vocabulários de comparação, por meio do qual nos podemos articular esses contrastes” (TAYLOR, 1994, p. 67) 4. Desse modo, Taylor propõe que, no aspecto político, o reconhecimento envolve também uma postura ética de abertura aos signifi3 No original: “liberalism can’t and shouldn’t claim complete cultural neutrality. Liberalism is also a fighting creed”. 4 No original: “the fusion of horizons operates through our developing new vocabularies of comparison, by means of which we can articulate these contrasts”. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 cantes do outro, como um processo em que ambas as partes serão modificadas. Não é uma perspectiva fácil ou aproblemática, entretanto, a eliminação radical do conflito não é um objetivo pretendido por Taylor, já que, para o autor, esse conflito é o que constitui a própria identidade e as relações que dela decorrem. 3. Ética do reconhecimento e ética da autenticidade: a tensão constitutiva da subjetividade A partir da leitura da obra de Taylor, e considerando os argumentos acima expostos, percebe-se que, tanto a autenticidade quanto o reconhecimento são conceitos fundamentais para a filosofia do autor. Entretanto, acredita-se que entre esses conceitos, existe uma relação essencial. Na “Ética da Autenticidade”, Taylor afirma o seguinte: Podemos dizer que a autenticidade (A) envolve: (i) criação e construção assim como descoberta, (ii) originalidade e, frequentemente (iii) oposição às regras da sociedade e mesmo potencialmente ao que reconhecemos como moralidade. Contudo também é verdade, como vimos, que (B) requer: (i) a abertura aos horizontes de significado (visto que de outro modo a criação perde o pano de fundo que pode salvá-la da insignificância) e (ii) uma autodefinição do diálogo (TAYLOR, 2011, p.73) Isso significa que o ideal de autenticidade internaliza uma contradição constitutiva: por um lado, ela é impulso criativo e original de opor-se a regras morais preestabelecidas, ao mesmo tempo em que requer a abertura dos horizontes de significado a partir do diálogo. Isso significa que a estrutura dialógica da linguagem humana e os valores tradicionalmente transmitidos não aprisionam e engessam a identidade do sujeito no seio de uma determinada comunidade, como afirmam a maioria dos críticos ao comunitarismo, mas ao contrário: é justamente ela que possibilita o conjunto inicial de questões significantes a partir das quais a subjetividade pode navegar e dialogar, alterando-se originariamente a si mesma a partir das relações com os outros. Nesse sentido, ao considerar-se que essa necessidade de abertura dialógica dos horizontes morais consubstancia-se do ato de reconhecimento do outro, propriamente dito, então percebe-se que a construção da identidade representa uma tensão dialética entre originalidade (autenticidade) e reconhecimento. Entretanto, Taylor escreve a ética da autenticidade, mas não desenvolve uma respectiva ética do reconhecimento. O que ele faz é inauguram um pensamento político à respeito, considerando que o reconhecimento é a origem mesma da interação social. Ocorre que no texto “A política do reconhecimento”, Taylor afirma o seguinte: “O dever de reconhecimento não é apenas uma cortesia que nós devemos às pessoas. Ele é uma necessidade humana vital” (TAYLOR, 1994, p.26) 5. Isso significa a possibilidade de se formular uma ética do reconhecimento a partir da ideia do dever moral de reconhecer como necessidade recíproca da humanidade no processo de formação histórico dela mesma. 263 5 No original: “due recognition is not Just a courtesy we owe people. It is a vital human need”. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 264 A ética do reconhecimento, portanto, é uma ética dialógica, multilateral, que tem como fundamente o princípio de reciprocidade das relações humanas. Ela é necessária em duas medidas: primeiramente como uma etapa dialética do desenvolvimento do self articulado no mundo e, secundariamente, como primeiro requisito de sociabilidade a partir de um relacionamento moral incipiente. Ademais, pode-se afirmar, ainda que a ética do reconhecimento é anterior à ética da autenticidade, tendo em vista que essa necessita previamente de uma ideia de si que só pode ser adquirida a partir dos horizontes de sentido dialógicos disponibilizados pela estrutura do reconhecimento. Percebe-se, enfim, que a ética da autenticidade, como dever moral de ser fiel a si mesmo, e a ética do reconhecimento, como dever moral de reconhecer o outro, são modos inseparáveis do exercício e constituição da subjetividade, seja em um sentido interno, na vida privada, seja em um sentido externo, na vida pública. Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 265 Bibliografia CHELO, Hugo. As três maleitas da modernidade. In: TAYLOR, Charles. A Ética da Autenticidade. Trad. Luis Lóia. Lisboa: Edições 70, 2009. p. 153-183. FIGUEIREDO, Lídia. A ética da autenticidade: uma narrativa sutil. In: TAYLOR, Charles. A Ética da Autenticidade. Trad. Luis Lóia. Lisboa: Edições 70, 2009. p.137-151. FRASER, Nancy. Recognition without ethics? In: MCKINNON, Catriona; CASTIGLIONE, Dario. The culture of toleration in diverse societies. Manchester: Manchester University Press, 2003. p.86-108. GALEOTTI, Anna Elisabetta. Toleration as Recognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. KYMLICKA, Will. Multicultural Citizenship. Oxford: Claredon Press, 1996. LÓIA, Luís. A exigência do reconhecimento. In: TAYLOR, Charles. A Ética da Autenticidade. Trad. Luis Lóia. Lisboa: Edições 70, 2009. p.185-209. TAYLOR, Charles. 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