Entrevista com Patrícia Mattos

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As duas faces do antiutilitarismo
QUESTÕES:
Jornal do Mauss: Como você define o antiutilitarismo em Taylor e em Honneth"? Que
diferenças e aproximações existem em ambas as abordagens?
Patrícia Mattos: A crítica ao utilitarismo em Taylor tem a ver com o diagnóstico que ele faz da
modernidade ocidental como sendo caracterizada pelo apagamento ou esquecimento das
fontes morais que constituem o self moderno. Para Taylor, a noção de agência humana
desenvolvida pelo que ele denominou de naturalismo iluminista, seja em sua manifestação
instrumental ou expressivista, tem como resultado a desvinculação do indivíduo das fontes
morais que o constituem. O objetivo de Taylor, em seu célebre As Fontes do Self: A
construção da identidade moderna, foi mapear a genealogia do self moderno, mostrando como
essa concepção construída historicamente de agência humana é arbitrária e contingente, isto
é, está ligada a um entendimento intersubjetivo do que é digno de respeito e valor, ou melhor,
de uma noção específica ocidental, datada e culturalmente construída de boa vida. E é aqui
que Taylor articula a relação entre moralidade e identidade. Nossa identidade só pode ser
construída intersubjetivamente, estando fundada numa hierarquia moral, ainda que esta seja
pré-reflexiva, inarticulada e opaca. Só podemos nos pensar como seres autônomos a partir de
um pano de fundo que nos compõe e dá inteligibilidade a nossas escolhas, ações,
pensamentos e sentimentos. A idéia central é que somos fruto de interpretações passadas
clamando por interpretações futuras.
O utilitarismo é uma das manifestações desse naturalismo que desvincula os indivíduos de
suas fontes morais, que vê o indivíduo, em última instância, como fonte de seus próprios
valores, como se estes se constituíssem de maneira monológica e não dialógica. Ao se negar
a discutir a felicidade em termos qualitativos e mensurá-la unicamente em termos quantitativos,
igualando o que é bom ao que é útil, o utilitarismo acaba medindo a felicidade de modo
unilateralmente econômico, exaltando o mérito pessoal e o espírito da competição. O lema do
utilitarismo “A maior felicidade para o maior número” sem a tematização substantiva da
felicidade e da boa vida conduz a um subjetivismo da busca por realização pessoal que
desconecta os indivíduos de seus vínculos comunitários. O que o utilitarismo desconsidera é a
possibilidade de articulação de valores que estão relacionados com o nosso entendimento préreflexivo e inarticulado da hierarquia moral que está por trás de nossos desejos, anseios,
ações, pensamentos e sentimentos. Essa doutrina não permite uma análise sobre os desejos
que impulsionam os indivíduos à ação. Pensar sobre os desejos que motivam nossas ações
significa analisá-los não somente de maneira pragmática, em termos de resultado, mas, ao
contrário, passa a ser fundamental contrastar as alternativas entre si de modo que fique claro o
que há de mais desejável na alternativa preferida. O utilitarismo tenta reduzir nossos contrastes
qualitativos para um medium homogêneo e ao fazer isso nem percebe que ele mesmo adere a
um modo de vida no qual o cálculo e o controle das pulsões são qualidades consideradas
superiores. É essa filosofia moral do utilitarismo que irá influenciar a filosofia política do
liberalismo que se funda na idéia de que a sociedade liberal não deve aderir a nenhuma noção
particular de boa de vida. O resultado desse tipo de perspectiva é o que Taylor diagnostica
como uma das grandes patologias das sociedades liberais contemporâneas – a fragmentação
política, a impossibilidade dos indivíduos membros do Estado de se preocuparem e se
identificarem com questões relativas à sociedade como um todo.
Enquanto em Taylor temos uma articulação explícita de sua crítica ao utilitarismo, em Honneth,
ela está, em grande parte, implícita. Ao retomar a teoria do reconhecimento de Hegel, que
propõe uma releitura dos fundamentos do contrato social, podemos vislumbrar a crítica ao
utilitarismo em Honneth. O entendimento do indivíduo como sendo um ser independente da
sociedade tem sido o fundamento das teorias políticas do contrato social, bem como das
teorias liberais. A releitura das bases fundadoras do contrato social proposta por Hegel na
leitura de Honneth tem como objetivo contestar a idéia dos contratualistas, especialmente de
Hobbes, de que a motivação para a constituição do contrato social teria sido a busca pela
autoconservação individual. Segundo essa abordagem, a característica essencial dos homens
é sua capacidade de interpretar sua fragilidade em virtude da insegurança gerada pela luta
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incessante numa projeção de providência dos bens futuros. O que existia no estado de
natureza era uma intensificação da prevenção de poder em face dos outros, que conduzia a
guerra de todos contra todos. Portanto, o contrato social teria a finalidade de minimizar esse
conflito existente. É contra essa noção atomista de política que percebe a sociedade como
sendo composta por indivíduos isolados que objetivam a maximização de seus desejos é que
Hegel constrói sua teoria do reconhecimento, substituindo as categorias atomísticas que
explicam a constituição da sociedade por categorias baseadas em um vínculo social.
Diferentemente de Hobbes, Hegel defende que o contrato social só foi possível porque já
existiam nas práticas sociais, antes da assinatura do contrato, relações práticas que estavam
ancoradas num acordo intersubjetivo, num padrão moral.
Ao retomar a teoria do
reconhecimento de Hegel, Honneth se posiciona contrário a essa visão monológica de
indivíduo fundada pela teoria contratualista, que constitui um dos pilares do utilitarismo, e que
entende a liberdade essencialmente como autodeterminação individual, esquecendo que a
realização pessoal só pode se dar dialogicamente. É isso que significa substituir o modelo de
autoconservação pelo do reconhecimento. Taylor e Honneth aderem à mesma antropologia
filosófica baseada na existência de uma objetividade moral responsável pelo processo de
individuação. No entanto, os desdobramentos na esfera política da teoria do reconhecimento
entre os autores são distintos. Para Taylor, ela é central para sua defesa do multiculturalismo e
seu próprio entendimento da democracia como sendo a garantia de sobrevivência e
desenvolvimento de minorias. Honneth, por sua vez, não tematiza uma noção substantiva de
boa vida, mas procura perceber o potencial emancipatório das lutas por reconhecimento na
contemporaneidade a partir da análise das formas de não-reconhecimento.
JM: Como os estudos sobre os fundamentos da moral nesses autores pode contribuir para se
avançar na crítica ao paradigma reducionista e economicista dominante que alguns preferem
denominar de neoliberalismo?
PM: O que está por trás do neoliberalismo é a interpretação de que a sociedade é composta
por um conjunto de homo economicus, isto é, de indivíduos que possuem as mesmas
disposições de comportamento e as mesmas capacidades de disciplina, autocontrole e autoresponsabilidade, que seriam encontradas em todas as classes sociais. Nessa perspectiva, a
distinção entre as classes seria essencialmente econômica, o que significa dizer que uma
melhora na economia teria um reflexo direto na minimização ou, até mesmo, resolução das
desigualdades sociais. É contra esse tipo de interpretação que nós, pesquisadores do Centro
de Pesquisa sobre Desigualdade Social – CEPEDES/UFJF – coordenado por Jessé Souza,
estamos desenvolvendo pesquisas que objetivam mudar o foco das análises sobre as causas
das desigualdades sociais no Brasil e em sociedades periféricas, da dimensão econômica para
a dimensão sócio-cultural das desigualdades. Jessé Souza propôs em seu livro “A Construção
Social da Subcidadania”, a união entre a teoria do reconhecimento e a teoria da dominação de
Pierre Bourdieu para compreensão das desigualdades sociais no atual estágio do capitalismo
nas sociedades periféricas.
Com os estudos sobre os fundamentos da moral é possível
perceber quais são os consensos intersubjetivos e pré-reflexivos que servem como critérios
classificatórios do que é digno de respeito ou não nos indivíduos. Além disso, os trabalhos
desenvolvidos por Honneth sobre o conteúdo moral dos laços afetivos na família permitem a
construção de uma teoria da subjetividade que lança novas luzes ao debate sobre as
desigualdades sociais, ao postular que o conhecimento, em sua dimensão cognitiva, depende
de certas condições psicossociais baseadas no reconhecimento mútuo. Com os teóricos do
reconhecimento é possível mostrar que o neoliberalismo não é neutro como se autodefine,
mas, ao contrário, está ancorado num entendimento intersubjetivo baseado numa hierarquia
valorativa que orienta a vida social. Se unirmos a teoria do reconhecimento com teorias da
dominação, podemos perceber como esta hierarquia valorativa funciona como mecanismo
produtor e legitimador de distinções sociais.
JM: Que balanço provisório você faz da penetração das teses de Taylor e Honneth nas
ciências sociais, hoje?
PM: Tanto Taylor quanto Honneth são reconhecidos internacionalmente como teóricos críticos
e como os principais formuladores da teoria do reconhecimento. Ainda que Taylor não tenha
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uma teoria da ação propriamente dita, sua teoria permite mostrar como valores se
institucionalizam e viram práticas sociais. Sua idéia de que os valores que nos guiam são
inarticulados e de difícil acesso equivale a dizer que o mundo social não é transparente e
imediatamente acessível. Ao contrário, ele é perpassado por relações de dominação e
ideologias. Toda a análise de Taylor pressupõe a dificuldade num contexto dominado pelo
naturalismo de acesso aos valores fortes que nos constituem. Sua preocupação principal é
tentar identificar os obstáculos para a articulação desses valores, tanto no sentido existencial
quanto no sentido político. Desse modo, as duas críticas centrais de todo o projeto tayloriano, a
crítica ao naturalismo e ao liberalismo político, baseiam-se, precisamente, na dificuldade da
tematização das fontes morais, o que impede uma adequada construção tanto da identidade
individual quanto da identidade coletiva.
Honneth é, hoje em dia, talvez, o pensador alemão de maior repercussão internacional depois
de Habermas. Acho também que, ao contrário de Taylor, sua obra esteja ainda em
desenvolvimento. Sua principal influência para mim tem a ver com a possibilidade de permitir o
acesso a uma percepção dos conflitos sociais que não se reduz a uma perspectiva do poder.
Outra vantagem, nesse caso comparativamente a Taylor, é que ele é tão sociólogo quanto
filósofo, o que permite uma visão mais apurada do fenômeno da institucionalização de
realidades morais e da abertura destas à análise empírica.
JM: Qual a relevância para a critica antiutilitarista para se repensar a democracia e a cidadania
na América Latina?
PM: O utilitarismo vai ser a base de um individualismo possessivo e de um tipo de liberalismo
pensado apenas como defesa do espaço de ação individual. Repensar a articulação entre o
processo social constituído a partir de distinções culturais invisíveis ao senso comum e
naturalizadas é a melhor maneira de combater os fundamentos do neoliberalismo e sua
enorme eficácia no debate público. Com isso, pode-se mostrar o processo social e político
invisível que produz vencedores e perdedores em uma sociedade. O liberalismo vive do
esquecimento do processo de classificação/desclassificação invisível aos indivíduos, culpandose, portanto, a vítima pelo seu próprio fracasso. Em sociedades como as latino-americanas que
convivem com grandes desigualdades sociais, uma crítica ao antiutilitarismo e ao
neoliberalismo pode permitir a articulação dos consensos intersubjetivos que naturalizam e
mantém o fosso entre incluídos e excluídos. E isso teria, certamente, um reflexo na dimensão
política, na própria concepção de democracia e cidadania.
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