as imagens, o lúdico e o absurdo no ensino de arte para pré

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AS IMAGENS, O LÚDICO E O ABSURDO NO ENSINO DE ARTE PARA
PRÉ-ESCOLARES SURDOS
Lucia Reily
Introdução
Crianças surdas em contato inicial com a língua de sinais necessitam de referências da
linguagem visual com as quais tenham possibilidade de interagir, para conseguirem construir
significados. Esta afirmação se fundamenta em concepções epistemológicas da corrente
sociocultural soviética (VYGOTSKY, 1984) que compreende o homem como ser social, cujas
relações com o mundo, com o outro e consigo mesmo são mediadas por sistemas sígnicos.
Interagindo por meio de sígnos, socialmente constituídos, o homem constrói e se apropria de
sentidos, significando sua experiência no mundo.
O que acontece quando as pessoas são impedidas de utilizar a linguagem verbal, um dos
principais sistemas semióticos inventados pelo homem? Esta pergunta vem intrigando teóricos e
pesquisadores há décadas, entre eles FURTH (1966) e CROMER (1991). O que vem primeiro, o
pensamento ou a palavra?, PIAGET (1960) pergunta.. Como é o desempenho cognitivo e social de
um adulto surdo, sem contato com linguagem verbal, que tem acesso à língua de sinais pela
primeira vez na vida adulta?, questiona SCHALLER (1995). YAMADA (1990), investigando uma
jovem autista, argumenta, a partir do seu estudo, a favor da modularidade da mente, ou seja, da
dissociação entre pensamento e linguagem. KERTESZ (1991), estudando a relação pensamento e
linguagem em pessoas com quadros severos de afasia também dá suporte a idéia da independência
entre funções de linguagem e de pensamento não-verbal. Olhando de lugares distintos, investigando
diferentes patologias, várias contribuições recentes vêm dando suporte à idéia de que a palavra é
fundamental, mas outros sistemas semióticos também podem exercer funções similares para a
mente representacional humana, entre elas algumas linguagens não-verbais, como a língua de
sinais.
Na educação do aluno surdo, há várias frentes que buscam, na literatura científica,
argumentos para promover suas idéias. Profissionais favoráveis ao oralismo se apóiam em estudos
que mostram o descompasso entre idade cronológica e desempenho escolar de alunos surdos,
enquanto aqueles que defendem a língua de sinais como alternativa constitutiva para a pessoa surda
colecionam estudos que argumentam a favor da independência entre o raciocínio e a linguagem
verbal; esses também se fundamentam em pesquisas que mostram que filhos surdos de pais surdos,
que têm a língua de sinais como primeira língua, apresentam desempenho escolar compatível com
sua faixa etária. A polêmica continua, sempre com ênfase na palavra.
A imagem: uma alternativa semiótica
Como professora de artes, atuando com alunos surdos, no entanto, considero que está na
hora de olhar para outra alternativa simbólica, que vem sendo subestimada no seu valor semiótico e
na sua função como instrumento mediador de aprendizagem. Estou falando da imagem.
Dada a tradição escolar fundamentada na linguagem verbal, bem como a qualidade estética
questionável das imagens presentes nos materiais didáticos e nos espaços escolares, cabe aos
educadores envolvidos com a escolarização do surdo refletir mais sobre o papel da imagem visual
na apropriação de conhecimento. Considero que a imagem vem sendo utilizada na escola com uma
função primordialmente decorativa, de tal forma a diluir o tédio provocado pela grafia de textos
visualmente desinteressantes. Às vezes, a imagem tem a função de auxiliar o aluno a compreender o
texto, funcionando como exemplificação ou ilustração.
No entanto, a figura visual, tanto a representação abstrata quanto a figurativa ou
pictográfica, traz consigo o potencial de ser aproveitada como recurso para transmitir conhecimento
e desenvolver raciocínio. Para o aluno surdo que estuda na rede regular de ensino, mas também no
caso do aluno surdo atendido em instituição de educação especial, o caminho de aprendizagem
necessariamente será visual, daí a importância de os educadores compreenderem mais sobre o poder
constitutivo da imagem, tanto no sentido de ler imagens, quanto no de produzi-las.
No sentido mais simples, talvez, a imagem isolada pode configurar, descrever, caracterizar.
Em paralelo com a linguagem verbal, ela exerce a função de léxico: permite que o espectador
identifique a figura, ou até a nomeie. As figuras (fotografias ou desenhos) são muito utilizadas na
escola neste viés, como exemplos. As imagens também são utilizadas como momentos isolados de
uma história, em que retratam um evento, um acontecimento específico, ou uma ação.
No entanto, mesmo nestas funções mais simples, a imagem já traz consigo um conceito
fundamental do raciocínio lógico. No primeiro exemplo, aparece a idéia subjacente do genérico
versus o específico. Trata-se de um conceito importante para o raciocínio classificatório, que pode
ser trabalhado por meio de imagens com alunos surdos. No segundo exemplo, encontra-se contida
na imagem o tempo – algo que ocorreu antes, algo que está por vir.
Na imagem bidimensional, linhas, cores, formas e texturas são os elementos utilizados para
representar idéias. A linguagem visual apresenta uma pragmática diferente da verbal, mas também
trabalha a partir de relações e comparações. Por exemplo, a representação de relações de
equivalência ou diferença, de hierarquia e valor, de seqüência temporal ou espacial, de presença e
ausência, de distância e proximidade no tempo ou no espaço, de causa e efeito, todos esses
conceitos podem ser representados por imagens, tanto no plano figurativo como no não-figurativo,
utilizando a composição dos elementos visuais acima citados. O exercício metalíngüístico exige a
leitura da imagem de forma a extrair a sua lógica, para saber criar imagens que traduzem raciocínio
lógico. Conceitos como os citados acima são muito difíceis de explicar em linguagem verbal e no
texto escrito para crianças surdas, mas quando se domina a lógica da imagem, é possível agir
cognitivamente sobre o objeto – é possível aprender. Para o surdo, necessariamente a forma
possível de perceber e representar o mundo será por veículos de natureza visual e gestual, já que a
significação não será processada por vias que dependam da audição.
Além destas questões lógicas, a imagem também pode apresentar o lúdico. Pela sua natureza
polissêmica, significados diversos, e às vezes incongruentes, estão presentes, literalmente ou em
sentido figurado. A imagem faz rir quando contrapõe duas situações impossíveis; a imagem
emociona quando sugere uma rede de significações interligadas, pontuadas por detalhes comuns.
Para o aluno surdo, aprender a perceber as interfaces dos signos, compreender o humor e o absurdo
na imagem, pode servir mais tarde como ponte para fazer o mesmo na segunda língua que ele
necessariamente vai precisar estudar se freqüentar uma escola inclusiva.
Proposta de trabalho com imagens com pré-escolares surdos
Nesta comunicação, então, apresento uma proposta realizada com três grupos de préescolares surdos, com idades entre 4 e 7 anos (com cerca de 6 alunos por grupo), na qual o objetivo
primordial foi a trabalho de artes visando a apropriação de sistemas de representação de natureza
não-verbal.
As crianças são atendidas no Cepre 1 quatro vezes por semana, em grupo, no programa
denominado “Linguagem e surdez: programa infantil”. Cada grupo tem uma professora
responsável, que propõe atividades que valorizam a aprendizagem lingüística e o lúdico. No geral,
essas crianças moram nas regiões periféricas de Campinas, e são de famílias de baixo poder
aquisitivo. Algumas vem de famílias com estrutura familiar garantida, mas esta realidade não se
aplica a todas. Algumas foram diagnosticadas como surdas precocemente, e, nesses casos, a família
recebeu um acompanhamento próximo, bem como orientação, apoio e aulas de língua de sinais.
Outras entraram no nosso serviço de atendimento com quatro, cinco ou seis anos, sem conhecer
nenhum sinal convencional, interagindo por indicações criadas em parceria com os familiares.
Nestes casos, a adaptação da criança e a socialização em grupo são os primeiros objetivos, a serem
atingidos no coletivo, na atividade.
1
Centro de Pesquisas e Estudos em Reabilitação Prof. Dr. Gabriel Porto, vinculado à Faculdade de Ciências Médicas da
Unicamp.
As crianças recebem atendimento fonoaudiológico, com objetivos que incluem melhorar a
oralização, quando a perda auditiva é moderada, e aprender a realizar leitura labial. Também
aprendem língua de sinais com instrutores surdos; em situações naturais, esses adultos surdos
promovem atividades de jogos e brincadeiras, contam histórias e realizam atividades de culinária e
jardinagem, por exemplo, ensinando Libras2 de forma contextualizada. As famílias das crianças são
orientadas e as mães fazem aulas de línguas de sinais em grupo.
Para estimular novos campos para o desenvolvimento língüístico, o programa vem
organizando passeios a diversos espaços públicos e culturais, como o zoológico, o correio, um
borboletário, uma empresas de fabricação de papel, o jardim de ervas medicinais da Unicamp, a
exposição de Portinari no MAC de Campinas, entre outros. Ao voltar, os vários profissionais
retomam as experiências vividas no coletivo, registrando as lembranças e conversando a respeito.
Os profissionais que atuam no programa têm contato esporádico com professores e orientadores das
escolas da rede regular de ensino, e assim acompanham um pouco do desafio que a educação
inclusiva do surdo representa para o professor da pré-escola local.
Quando comecei a trabalhar com pré-escolares surdos neste programa, em 1996, eu já tinha
muitos anos de experiência com crianças com deficiências em outras áreas, particularmente
deficiência mental e distúrbios neuromotores. No início, percebi que o tipo de programação
multissensorial que eu estava acostumada a oferecer para crianças com paralisia cerebral não
atendia às necessidades de representação lingüística desses alunos. Trabalhos envolvendo temáticas
previamente estabelecidas também estavam fadadas ao fracasso, não porque as crianças não
estavam representando figurativamente; pelo contrário, a grafia destes pré-escolares era plenamente
compatível com as representações de quaisquer outras crianças dessa faixa etária. O problema que
se apresentava era a dificuldade de travar um diálogo no começo da aula em língua de sinais que
fosse rico o suficiente para servir de pontapé inicial para levar cada criança para um rumo próprio
de representação. O meu domínio de Libras era precário, mas o das crianças também era, porque
muitas eram tão iniciantes quanto eu. Quando eu fornecia um exemplo, todas seguiam o exemplo
sugerido, como se fosse uma instrução. Quem não entedera a conversa sinalizada, resolvia seu
problema copiando o que os outros estavam fazendo. Nesta prática, meu principal objetivo de arteeducadora, que era a construção de um repertório pessoal de marcas com ou sem intenção figurativa
ia por terra.
Ao avaliar as respostas das crianças às atividades propostas, percebi a necessidade de
focalizar a representação pictográfica mais intensamente, utilizando imagens como suporte para
minhas intenções.
Neste processo, tive oportunidade de ver a capacidade dessas crianças pré-escolares com
surdez severa e profunda de reconhecer figuras escondidas, perceber pequenos detalhes,
compreender incongruências visuais, se identificar com personagens, imitar configurações e
expressar-se graficamente. Ao constatar a receptividade das crianças, comecei a trazer mais livros
com imagens, fotografias, figuras de calendários, reproduções de quadros, com objetivos mais
pontuais.
Utilizando vários livros de imagens de Eva Furnari, instiguei as crianças a anteciparem
possibilidades que poderiam estar nas páginas a seguir. Num dos livros, a autora / ilustradora cria
situações engraçadas para um bicho: em cada página, o rabo aparece de forma inusitada, e a
expressão do bicho muda de acordo. Com a ajuda deste livro, as crianças imitaram as caras,
sinalizaram as situações denotadas pelo desenho do rabo. Depois disso, naturalmente as crianças
criaram suas próprias possibilidades com rabos de barbantes de todos os tamanhos. Não havia uma
única solução certa, e sim tantas quanto a imaginação permitisse criar.
Outros livros de fotografias de animais ajudaram no processo de representação de
expressões faciais. Ao imitarem as expressões dos animais fotografados, as crianças indicavam por
gesto o sentimento expresso por cada animal. Uma mostrava a outra detalhes interessantes. Com
2
Libras: Língua de Sinais Brasileira
isso, puderam produzir representações de animais significativos para si, sem se apoiarem tanto nos
desenhos das crianças identificadas por eles como as desenhistas mais habilidosas.
O livro Hanimals representa formas de animais por fotografias de mãos pintadas. As
crianças se encantaram com este livro e não tiveram dificuldade nenhuma em reproduzir as
configurações das mãos, nem de identificar e mostrar o sinal do animal sugerido. Pelas dicas de
cores e detalhes das formas, conseguiram perceber que animal estava sendo pretendido. Neste caso,
procuraram copiar com fidelidade as colorações pintadas nas mãos. O livro funcionou como modelo
neste primeiro contato.
As pinturas de Arcimboldo, artista do século XVI que produziu retratos da nobreza européia
em composições onde aparecem frutas e legumes para representar as feições, fizeram muito sucesso
com as crianças. Ao identificar o todo e analisar as partes, realizaram importante exercício de
análise e síntese, enquanto também perceberam que o sério pode ser lúdico, o bonito, feio. Outras
obras de artistas que trabalham com o absurdo foram apresentadas, como figuras de Escher. As
crianças interagiram nas figuras, mostrando detalhes umas às outras com os dedos. Nesta mesma
linha, trabalhamos com um livro de moda, na qual um Weimahanner é fotografado com diferentes
roupas e acessórios, como top model. Depois as crianças desenharam seu próprio cachorro,
vestindo-o. Uma menina desenhou seu cachorro sem o vestuário. Explicou que sua mãe não ia
deixar colocar roupa nele.
É justamente neste nível que pretendemos chegar: mostrar que na representação gráfica,
muito mais “pode” do que no mundo real regido por leis da natureza e dos homens...
Trabalhando com o inusitado, o inesperado, o humor e a imagem em metamorfose,
incitamos a curiosidade das crianças, levando-as a produzir representações de vários tipos. A
utilização de imagens na atuação pedagógica valorizou o espaço de ensino de Arte como campo de
investigação semântica, trazendo conteúdos para a atuação dos outros profissionais do programa
“Linguagem e surdez: programa infantil”..
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CROMER, R. Language and thought in normal and handicapped children. Oxford, Reino
Unido: Basil Blackwell Ltd., 1991.
KERTESZ, A. Cognitive function in severe aphasia. IN: Weiskrantz, L. (org.) Thought without
language. Oxford: Clarendon Press,1991.
PIAGET, J. Psychology of intelligence. Paterson, NJ: Littlefield, Adams, 1960.
SCHALLER, S. A man without words. Berkeley, Calif: University of California Press, 1995.
VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
YAMADA, J. Laura: a case for the modularity of language. Cambridge, Massachusetts: The
MIT Press, 1990.
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