Psicologia científica EUGENIO DAVIDOVICH 1. Introdução; 2. Realidade 3. Relações psicofísicas. 1. mental; Introdução No século XVII a humanidade resistia a uma grave mudança na sua concepção do universo. O homem, instalado em seu planeta, pretendia ser o centro do universo, enquanto as leis físicas forçavam a sua penetração numa visão científica do mundo em que vivemos. Hoje ocorre uma situação semelhante em psicologia. Os conhecimentos atuais já oferecem subsídios para colocar o homem e o seu mundo mental em sua posição natural, no contínuo físico do universo, no qual ele existe. Mas o homem resiste, refugiando-se nas suas ilusões de poder espiritual e de livre arbítrio. O amadurecimento científico torna a ciência impessoal e seus métodos de comprovação objetivos. Em psicologia, parece que se pode escolher arbitrariamente entre as escolas, bastando haver um autor e uma coleção de livros para se definir um modelo de verdade. A teoria correta seria aquela prescrita por uma escola ou alguma amálgama eclética, dispensando-se a coerência com um sistema teórico mais amplo. Entretanto, nenhum grande cientista foi realmente filiado a Arq. bras. Psic. apl., Rio de Janeiro, 26(4 ):30-36, out./dez. 1974 detenninadas idéias. Em geral, foram pioneiros, divergindo de escolas ou tendências de sua época. Na sua procura científica, tentavam descobrir fatos e relações, e no percurso mudavam ou criavam novos modelos e novas teorias. Segui-los seria imitar o seu exemplo, não copiar suas palavras. Quando tomamos o primeiro contato com uma idéia nova, a tendência mais comum é identificá-la com os padrões referenciais que já possuímos, às nossas estruturas de conhecimento e compreensão. Somente mais tarde podemos chegar a discriminar a idéia como algo novo, diferente. A assimilação pode-se fazer a idéias ou conhecimentos com os quais concordamos ou discordamos. Apesar de as percepções, relações e significados apreendidos na observação e descrição da realidade representarem aspectos mentais humanos, a regularidade das observações em cada um e em vários indivíduos permite inferir uma realidade inacessível, que seria descrita nos termos das regularidades apreendidas. 2. Realidade mental Acreditamos que uma grande parte da confusão existente a respeito dos fenômenos psicológicos decorre dos limites escolhidos para as definições das classes de fenômenos a serem estudados. Definimos a realidade mental oomo a experiência, como o campo da vida subjetiva, experimentada conscientemente pelo próprio indivíduo. Defmimos comportamento como qualquer alteração física, que ocorra no organismo, no corpo, descritos através dos correlatos perceptuais ou conceituais, instrumentados ou não, de processos na realidade própria, inacessível em si mesma, correspondendo à realidade física. Defmimos fenômenos inconscientes como comportamentos humanos que podem ser interpretados ou descritos em termos mentais, como se fizessem parte da realidade mental, isto é, psicomorficamente. Este conceito inclui processos observados ou esperados, no sentido de que não são experimentados conscientemente pelo sujeito, mas -são suspeitados ou inferidos por observadores. Referindo-se a processos inconscientes, escreve Freud: ''Quizá fuera más exacto decir que no se trata de procesos de naturaleza psíquica, sino de procesos físicos, cuya consecuencia psíquica se manifesta como si lo expresado ... hubiera sucedido realmente."l Mesmo quando afirma: "Lo inconsciente es lo psíquico verdaderamente real; su naturaleza interna nos es tan desconocida como la realidad deI mundo exterior por el de nuestros órganos sensoriales"2 - está dando ênfase à importância dos processos inconscientes no comportamento humano. A realidade mental parece ser um estágio evoluído de uma sensibilidade primitiva que caracteriza os seres vivos mais rudimentares. Quando observamos um 1 2 Freud, S. Obras completas. Madrid, Ed. Biblioteca Nueva, 1948. v. 1, p. 177. Ibid. p. 584. hicologill cientifico 31 comportamento animal, temos a tendência antropomórfica de atribuir ao animal experiências mentais semelliantes às nossas. O animal pode ter um elaborado comportamento e não ter nenhuma experiência mental associada. Um cachorro demonstra desejo de alimentar-se e parece pedir o alimento. Todo este comportamento pode-se fazer sem que haja nenhuma experiência subjetiva para o cachorro. Ao examinarmos os ollios de abellias, observamos terminações nervosas sensíveis a variações de brilho e não de cor, distribuídas em número relativamente pequeno, e podemos inferir que a abellia vê como se fosse uma figura de jornal, em branco e preto, com os grãos separados. Todo o comportamento da abellia pode ocorrer utilizando os receptores nervosos para determinar suas respostas como se fosse um pequeno robô - sem qualquer experiência subjetiva. O próprio homem tem comportamentos às vezes complexos - que não são acompanhados de experiência subjetiva correspondente, mas a tendência que temos é ver sempre esta experiência, esta realidade mental, nos animais. Não queremos afirmar que não existe realidade mental nos animais, isto é especulativo no momento, queremos clarificar o conceito de realidade mental do homem, que sabemos existir. Queremos dizer que o campo visual, no qual iríamos estabelecer características para os outros animais, está provado existir apenas para o homem, como parte de sua realidade mental. Defmidos os limites da vida mental como aquilo que é experimentado pelo homem em sua subjetividade consciente, vejamos alguns aspectos que podemos observar neste campo. A realidade mental inclui todas as percepções, os sentimentos, os afetos percebidos pelo indivíduo. Inclui a lembrança de um sonho ou de um fato sentido como tendo ocorrido no passado, mas não o sonho nem uma memória que não seja explicitamente consciente. Inclui os sons, os sistemas lógicos, como nós os compreendemos. Inclui não apenas a representação de um objeto, mas também as características percebidas ou imaginadas. Inclui conceitos, teorias e compreensões em vários níveis, quando evocados. Se estabelecermos uma relação entre uma situação mental, um padrão fisiológico e um padrão de estímulos, estes três níveis podem estar incluídos na realidade mental pelas suas representações. A realidade IPental nunca poderia ser reduzida a uma forma física, por exemplo, a uma forma de energia. No momento em que se pudesse captar alguma forma de energia concomitante com o aparecimento de uma imagem mental, mesmo que esta energia pudesse ser utilizada para produzir imagens na mente de alguém, as imagens constituiriam experiências subjetivas, parte da realidade mental, e a energia parte da realidade física. Não temos como observar a realidade física em si mesma, uma vez que o conhecimento pelo homem implica como primeiro passo uma organização mental na qual o homem estrutura o seu modelo mental. Entretanto, se não temos como saber como seria a realidade física vista por outros seres, os seus contornos e .propriedades, como se apresentam para nós em nossa realidade mental são determinados e não arbitrários. Da mesma forma, as relações causais, estruturais, a 32 A.B.P.A. 4/74 lógica são aspectos relativamente ~stáveis da organização mental, em relação à realidade física. O fato de os seres humanos terem realidades mentais semelhantes apesar das diferenças não é mais estranho do que as outras semelhanças, orgânicas e funcionais, da espécie. A consciência - a realidade mental - não é uma janela embaçada através da qual observamos a realidade física. Não tem sentido aftrmar que a natureza intema - ou a natureza própria - do inconsciente, como da realidade externa nos é dada pelo testemunho de nossa consciência de maneira incompleta ou imperfeita. Não tem sentido falar da imperfeição de nossos sentidos, sensíveis apenas a uma fração QÚnima dos estímulos existentes, oferecendo-nos, por isso, uma visão pálida, deformada e empobrecida da realidade física. A consciência não nos permite ver a realidade do mundo exterior ou interior, e sim, nos apresenta quadros dela mesma e isto se faz de acordo com os princípios da organização mental. Não olhamos através de uma janela, e sim para um quadro, selecionado entre um número imenso de quadros existentes, possíveis, de acordo com o padrão ftsiológico, compreendendo a organização de todo o corpo, num estado de semi-equilíbrio. Esta determinação depende da realidade física, de um padrão de distribuição de estúnulos, cujo resultado fmal é uma determinada resposta ftsiológica total. É bem verdade que os limites físicos têm signiftcados relativos e que o meio corporal, no qual podemos observar o padrão ftsiológico, se continua diretamente até o meio externo, no qual podemos observar o padrão de estúnulos. Além disso, o organismo apresenta também padrões compostos, consistindo de sucessões de respostas encadeadas. É provável que o processamento das infonnações no organismo se faça em nível molecular, com respostas binárias, de forma digital. Por outro lado, é interessante notar que o "armazenamento de informação é uma atividade passiva e não requer intrinsecamente uma fonte de energia (apesar de na verdade certas formas de armazenamento, como a memória de semicondutores de computadores digitais necessitarem de uma fonte de energia)" .3. No caso do sistema nervoso a energia de armazenamento poderia ser a energia· do metabolismo dos tecidos em condições basais. A precisão seria muito grande, pois a seleção pelos estúnulos de respostas "pré-fabricadas" daria precisão em todas as mensagens em seu âmbito de respostas. O rendimento,em nível molecular, é máximo, permitindo a variedade dos quadros mentais que constituem a realidade mental de cada um. O aspecto contínuo da sucessão dos estados mentais correspondentes aos estados de seIqi· equilíbrio ftsiológicOs subjacentes representa apenas um aspecto da organização mental. Um ponto crucial que torna extremamente difícil a concepção objetiva da função mental é a aparente incompatibilidade e dissociação entre o determinismo Tnõus, Myron & McIrvine, Edward C. Energy and information. Scientific American, n. 224,p. 184,Sep. 1971. 3 Psicologia cientifica 33 da realidade física - no sentido da universalidade e regularidade de suas leis - e, portanto, do seu concomitante mental e a "aparência-certeza:" do livre arbítrio da liberdade. Parece que há certas coisas em que há opções e escolhas, como se houvesse algum ponto do qual cada um pudesse controlar o curso de sua ação e do seu pensamento. Livrarmo-nos da ilusão de que a percepção é um espelho da realidade foi um primeiro passo para não nos iludirmos com as aparências mentais, que são efeitos, e não os processos que conduzem a esses efeitos. A descoberta dos processos inconscientes revelou uma corrente determinística do pensamento e da ação, relacionando-os com motivações inconscientes. É apenas complementar incluir totalmente os processos que regem a vida mental no contexto universal. Reconhecer que o homem, seu comportamento e sua experiência são processos que se inserem naturalmente na realidade física é o primeiro passo para uma psicologia científica, que inclua o estudo do comportamento, dos processos inconscientes e da consciência dentro de um mesmo quadro de referência em que possam ser estabelecidas teorias coerentes com os modelos teóricos mais amplos do universo. 3. Relações psicofísicas As relações psicofísicas não podem ser compreendidas se aceitarmos, sem exame mais meticuloso, a aparência das influências recíprocas da realidade física e da realidade mental. O exame mais cuidadoso demonstra que a realidade mental é determinada - não criada, mas selecionada - pela realidade física; que a realidade mental é a concomitância de um processo físico determinístico e portanto não pode influir sobre aquele - nem mesmo sobre a própria realidade mental subseqüente. Imaginemos uma situação na qual um homem vê um objeto. O objeto reflete ondas, isto é, modifica, pela sua presença, o padrão das ondas existentes entre ele e o sujeito. O homem tem uma vida mental, da qual faz parte um campo visual. A presença daquele padrão de ondas naquele momento entre o objeto e o homem influi nas células sensíveis da retina, produzindo alterações em vários pontos do organismo. Chamaremos a estas alterações padrão fisiológico. Neste momento, o indivíduo vê o objeto. Se procurarmos uma "imagem" do objeto no cérebro do indivíduo, é claro que não encontraremos senão células, feixes nervosos, substâncias químicas, alterações elétricas, dependendo dos meios de observação. Isto é óbvio, pois a· imagem pertence à realidade mental. O mesmo ocorre com o som. A fonte sonora, por suas vibrações, faz com que surja uma área mais densa de ar, que é empurrada; segue-se uma área menos densa e assim por diante. Desta maneira forma-.se o que chamamos de onda sonora. Quando esta influência chega até a membrana do tímpano de um sujeito, produz modificações, empurra, depois reduz a tensão. Essas oscilações da membrana timpânica vão produzir alterações 34 A.B.P.A. 4/74 em outros pontos do organismo - despolarização em membranas nervosas, alterações em pontos do sistema nervoso central. Mas na vida mental do indivíduo, ele ouvirá um som. O Som existe apenas na realidade mental do sujeito. As influências dos fatores físicos se fazem na seleção, isto é, na determinação das características " do som, entre as possibilidades existentes na vida mental. Imaginemos um estÚDulo qualquer da realidade física - seja uma alteração do meio interno proveniente de uma reação no próprio organismo, ou proveniente de um fator ou mudança no meio externo ao corpo. Este estímulo produzirá mudanças no organismo, ocorrendo um padrão ftsiológico, que podemos considerar como um estado de semi-equilíbrio físico-químico A, ao qual corresponde um estado mental A'. Supomos que o indivíduo está acordado e tendo uma experiência mental. O padrão A, entretanto, passa ao estado de semi-eqUillÕriO ftsiológico B, pela sua própria condição físico-química, extensa com o mundo externo ao organismo. Esta transformação é totalmente sujeita às leis que regem o universo físico, no qual o organismo está incluído. Todas as provas experimentais apontam nesta direção e nada foi encontrado que sugerisse o oposto. A este padrão fisiológico B corresponde um padrão mental B'. As relações entre cada padrão ftsiológico e o padrão mental correspondente são também determinadas. Novamente, todos os estudos e observações científtcas das manifestações ou experiências mentais indicam que a relação entre um padrão ftsiológico e o padrão mental é de uma correspondência determinada e indissolúvel, unívoca, apesar de não ser necessariamente biunívoca (um padrão mental só pode corresponder, naquele indivíduo, a um certo padrão ftsiológico, mas é concebível que alguns padrões ftsiológicos possam correspOnder a um mesmo padrão mental). Assim sendo, se o padrão ftsiológico A passa ao padrão ftsiológico B, na sucessão dos estados de semi-equiHbrio fíSico-quÚDico, o padrão mental A' passará ao padrão mental B', sem que haja a possibilidade de outra alternativa. Poder-se-ia dizer, iridependentemente da natureza dos estados A' e B'; entretanto, se encararmos a vida mental como função adaptativa bem evoluída, não é estranho o signiftcado da adequação do processo mental de A' e B', com freqüência, mas' não necessariamente. É verdade que" as imagens mentais são vividas como um contínuo no qual temos a ilusão do poder e da escolha, mas estas ilusões fazem parte dos quadros mentais, não os determin~ste sentido, um ·sentimento ou um desejo vividos no plano mental, nãp podem produzir alterações ftsiológicas nem mentais. O homem não pode, pelo pensamento ou desejo, criar, apesar de pensar que pode. Essas imagens poderiam sugerir que se abandonasse a exploração da realidade mental, que seria então mera conseqüência dos processos físicos. Entretanto, os conceitos, teorias e leis físicas são em si uma parte da realidade mental, na qual se constrói imagens da realidade física. E o próprio mundo mental tem a sua realidade, que pode ser descrita, sendo suas constâncias e relações apreendidas e confirmadas. A realidade mental pode também ser estudada pela influência das forças que atuam na sua construção - a organização mental, Psicologia de n tifica 3S processos inconscientes. Na realidade física a ciência se apóia em conceitos teóricos suficientemente abstratos para contrastar sensivehnente com as individualidades reais das quais os conceitos teriam sido "abstraídos". É verdade que um modelo em que uma força física atuaria num campo mental, fazendo com que um indivíduo se aproximasse ou se afastasse de um estímulo, deve ser compreendido como uma representação metafórica. Entretanto, é bem metafórica a atração dos corpos físicos, exceto pela aparência de seus efeitos. Os próprios modelos químicos são mais instrumentos lógicos que imagens da realidade. Podemos usar os conceitos de forças aplicadas a uma situação na vida mental em que se comprovam certos efeitos com regularidade, mas não é necessário ficamos presos a um conceito de economia, supondo uma energia mental que não existe, limitando a amplitude e a utilidade das abstrações. Nós, da Fundação Getulio Vargas, estamos trabalhando para o Correio. Para O Correio da Unesco Entregamos cultura. 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