CEFAC CENTRO DE ESPECIALIZAÇÃO EM FONOAUDIOLOGIA CLÍNICA LINGUAGEM AUTISMO INFANTIL Uma abordagem fonoaudiológica dirigida à família MARIA LETÍCIA CAUTELA DE ALMEIDA MACHADO RIO DE JANEIRO 2000 RESUMO Este trabalho refletiu sobre o autismo infantil, procurando caracterizar a cultura do autismo, em especial a forma como estas crianças organizam e processam seu pensamento e linguagem. Crianças autistas são geralmente consideradas como não interativas. Este estereótipo pode ser decorrente dos métodos tradicionais de tratamento destas crianças, nos quais não se levava em conta o contexto comunicativo. O uso de situações experimentais pode distorcer o perfil de comportamentos comunicativos mostrado pela criança autista. Este estudo relatou que algumas crianças autistas usam comunicação intencional em um contexto natural e familiar. Esta pesquisa pretendeu construir uma imagem mais adequada do autismo infantil e, assim, elaborar uma proposta terapêutica mais próxima da necessidade destas crianças, abrangendo aquela que é a sua maior dificuldade: o uso da linguagem na interação. Nesta perspectiva, os pais precisam ser envolvidos diretamente neste processo, uma vez que são eles que proporcionam o ambiente em que a criança passa a maior parte do tempo. Pretende-se, assim, contribuir para que todos os profissionais que lidam com o autismo, e em especial a família, compreendam este quadro tão complexo, como entrar no mundo da criança autista e como trazê-la para o mundo real. 7 ABSTRACT This study pondered about child autism, attempting to characterize the autism culture, specially the way in which these children organize and process their thought and language. Autistic children are usually considered as non-interactive. This stereotype may be a result of traditional treatment methods that those children are submitted to, in which the communicative context is not considered. The use of experimental situations may deform the communicative behavior profile shown by the austistic child. This study reported that some autistic children do use intentional communication in a natural and familiar context. This research intendeds to build a more adequate image of childish autism, then to elaborate a therapeutic proposal closer to these children needs, incorporating the most difficult issue for these children: the use of the language to communicate. In this approach, the parents need to be directly involved in the process, since they are the ones who provide the environment in which the child spends most of the time. It is intended to help all professionals that deal with autism and also the family to understand such complex context, and how to get inside the world of an autistic child and bring him back to the real wor d. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO_________________________________________________ 4 2. PERSPECTIVA HISTÓRICA ______________________________________ 6 3. DEFINIÇÃO___________________________________________________ 9 4. QUADRO CLÍNICO ____________________________________________ 10 4.1. INTERAÇÃO SOCIAL RECÍPROCA _________________________________ 12 4.2. CAPACIDADE COMUNICATIVA E ATIVIDADE IMAGINATIVA__________ 12 4.3. REPERTÓRIO DE ATIVIDADES E INTERESSES RESTRITOS ____________ 15 5. HIPÓTESES ETIOLÓGICAS _____________________________________ 17 5.1. A PERSPECTIVA PSICODINÂMICA__________________________________ 17 5.2. A PERSPECTIVA ORGANICISTA____________________________________ 18 6. DIAGNÓSTICO _______________________________________________ 20 6.1. CRITÉRIOS PARA DIAGNÓSTICO DO AUTISMO (DSM-IV) ______________ 22 6.2. EXAMES CLÍNICOS_______________________________________________ 26 7. CARACTERIZANDO O PENSAMENTO E A LINGUAGEM DA CRIANÇA AUTISTA _______________________________________________________ 27 7.1. PENSAMENTO___________________________________________________ 28 7.2. LINGUAGEM ____________________________________________________ 35 8. DESENVOLVIMENTO DA COMUNICAÇÃO FUNCIONAL NA CRIANÇA AUTISTA _______________________________________________________ 45 9. TERAPIA DE LINGUAGEM_______________________________________ 54 10. O PAPEL DA FAMÍLIA _________________________________________ 60 11. CONSIDERAÇÕES FINAIS ______________________________________ 69 12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _______________________________ 72 1. INTRODUÇÃO Poucas doenças mobilizam mais o ser humano do que o autismo. Temos uma criança normalmente bonita, sem sinais óbvios de uma lesão, que mostra uma falta de receptividade e interesse pelas pessoas, incapacidade na comunicação interacional e na atividade imaginativa e um repertório de atividades e interesses restritos. A conceituação de autismo infantil evoluiu desde a proposta de Síndrome de Kanner, nos anos cinqüenta, até a noção de síndrome autística, nos anos noventa. Neste período já foram desenvolvidas muitas explicações, justificativas e teorias para se compreender o problema e diversas questões essenciais foram levantadas, porém poucas foram definitivamente respondidas. Uma das questões envolve a classificação do autismo infantil que deixou de ser incluído entre as psicoses para, a partir dos anos oitenta, ser considerado um distúrbio global do desenvolvimento e designado como síndrome autística. Uma outra questão que está longe de ser respondida, apesar dos avanços dos estudos, é a que se refere à causa ou às origens desse quadro clínico. Os diferentes graus de intensidade das alterações observadas acrescentam a questão: se estão sendo estudadas patologias diferentes ou diferentes manifestações da mesma patologia. A questão do diagnóstico parece ser também bastante controvertida. Ainda não dispomos de um exame específico e este dependerá dos critérios utilizados para a classificação e hipótese etiológica. O objetivo deste trabalho teórico é refletir sobre estas questões e ir além, procurando compreender a cultura do autismo, em especial, a forma como estas pessoas organizam e processam seu pensamento e linguagem. Entendendo como estas crianças se comunicam e como o mundo pode se comunicar com elas é possível construir propostas terapêuticas mais próximas das necessidades destas crianças. Até poucos anos atrás, os poucos autores que mencionavam a hipótese da atuação do fonoaudiólogo com crianças autistas o faziam com a perspectiva de que este trabalho envolveria exclusivamente o treino de fala. Os estudos abordando as dificuldades com o uso funcional da linguagem forneceram um ponto de partida para uma melhor forma de atuação profissional. Porém, ainda hoje, muitos profissionais se sentem “impotentes” diante de um quadro clínico tão complexo como o autismo e acabam optando por não atendê-los. Este trabalho poderá contribuir cientificamente com todos os profissionais que lidam com a criança autista, permitindo uma melhor compreensão sobre esta síndrome e todos os aspectos do desenvolvimento envolvidos, possibilitando uma detecção e intervenção precoce. Baseado em evidências de que a criança autista apresenta mais comunicação social na presença dos pais, e baseado no fato de que são eles que proporcionam o ambiente em que a criança passa a maior parte do tempo, a intervenção fonoaudiológica deve ter um enfoque familiar. Muitas vezes os pais não compreendem o que está acontecendo com seus filhos, por que eles não interagem e não respondem como as outras crianças. Eles não sabem lidar com esta situação, o que gera ansiedade e conflitos, agravando ainda mais o problema. As famílias de crianças autistas também poderão ser beneficiadas com este trabalho na medida em que forem orientadas por profissionais gabaritados e puderem, desta forma, participar ativamente do processo de aprendizagem de suas crianças. A partir do momento em que os pais compreenderem o que é o autismo e suas implicações clínicas, souberem como entrar no mundo de seus filhos e como trazê-lo o mais próximo possível para o nosso, seus filhos deixarão de ser rotulados como não comunicativos. Com isto, a ansiedade e o sentimento de impotência, e muitas vezes de culpa, diminuirão e os pais se sentirão mais capazes e mais receptivos para as necessidades de suas crianças. Desta forma, o objetivo principal deste trabalho é possibilitar aos pais de crianças autistas a participação ativa no desenvolvimento de seus filhos, de forma que eles tenham um papel central na facilitação da aprendizagem da linguagem. 2. PERSPECTIVA HISTÓRICA Qualquer abordagem sobre o autismo infantil deve citar os pioneiros Leo Kanner e Hans Asperger que, separadamente, publicaram os primeiros trabalhos sobre este transtorno. O artigo de Kanner tornou-se o mais citado em toda a literatura sobre autismo, enquanto que o artigo de Asperger, escrito em alemão e publicado durante a Segunda Guerra Mundial, foi largamente ignorado. Surgiu uma crença de que Asperger teria descrito um tipo bem diferente de crianças, que não deveria ser confundido com o de Kanner. Esta crença não tem fundamento, o que pode ser percebido quando recorremos aos artigos originais. Em 1943, Leo Kanner, um psiquiatra infantil dos EUA, descreveu onze crianças que tinham em comum um padrão peculiar de comportamento. Este padrão compreendia muitos aspectos diferentes mas, segundo Kanner , os principais eram os seguintes: falta de contato emocional com as outras pessoas; ausência de fala ou formas peculiares, idiossincráticas de falar que não parecem adequadas à conversação; fascinação por objetos e destreza no manuseio deles; ansioso e obsessivo desejo de preservar a imutabilidade do ambiente e/ou rotinas familiares; evidências de inteligência potencialmente boa segundo a aparência facial ; feitos de memória ou habilidades de realizar tarefas envolvendo encaixe e montagens, tais como jogos de encaixe e quebra-cabeça. Kanner considerou que tais características definiam uma síndrome específica, completamente distinta de outras perturbações infantis e decidiu designá-la de “Autismo Infantil Precoce”. Ele acreditava que essas crianças poderiam ser potencialmente normais ou até terem inteligência acima do normal (Wing,1996). Um ano após o trabalho original de Kanner, Hans Asperger, um psiquiatra australiano, escreveu sobre um grupo de adolescentes que eram extravagantes em seus relacionamentos sociais, tinham falta de empatia com os demais, apresentavam comunicação não-verbal muito pobre (fala gramatical tortuosa, literal no conteúdo e anormal na entonação), se engajavam em atividades repetitivas, reagentes a mudanças de rotina e ficavam absorvidos em interesses especiais, tais como tabelas de horários de trens ou movimentos de planetas. Revelaram memória mecânica, mas pobre compreensão de idéias abstratas. Tendiam a apresentar alguns movimentos corporais exóticos e muitos eram desajeitados e sem coordenação em movimentos complexos. Asperger se referiu a este conjunto de características como “Psicopatia Autística”. Ainda complicações posteriores foram introduzidas por autores que descreveram crianças com dificuldades motoras, fala repetitiva e acentuadas anormalidades na inter-relação social, e se referiram a elas como tendo “dificuldades centrais de processamento”. Fonoaudiólogos também publicaram relatos de crianças com fala repetitiva e severos problemas em aspectos sociais interpessoais e no comportamento verbal, que eles chamaram de “distúrbios pragmáticos”. Todos esses autores acreditavam que estavam falando de perturbações distintas. Eles não mencionaram ou descartaram a possibilidade de que todas estas “síndromes” se sobrepusessem mutuamente. Atualmente, acredita-se que a perturbação social é um distúrbio de desenvolvimento e que as diferentes manifestações, sejam ou não designadas por síndromes, são todas partes de um espectro de distúrbios relacionados, a serem referidos como um “contínuo autístico” (Wing,1996). O conjunto global é mais ou menos equivalente à categoria geral de “Transtornos Invasivos do Desenvolvimento” usado no Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM IV) da Associação Americana de Psiquiatria, ou pela Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial de Saúde (CID 10). 3. DEFINIÇÃO O autismo é um transtorno de desenvolvimento. Ele não pode ser definido simplesmente como uma forma de retardo mental, embora muitos quadros de autismo apresentem QI abaixo da média. Existem três definições para este grave transtorno do desenvolvimento que devem ser consideradas. A definição da Associação Americana de Autismo (ASA), aprovada em 1977 por uma equipe de profissionais reconhecidos pela comunidade científica mundial, refere-se ao autismo como “uma inadequacidade no desenvolvimento que se manifesta de maneira grave por toda a vida. É incapacitante e aparece tipicamente nos três primeiros anos de vida. Acomete cerca de cinco entre cada dez mil nascidos e é quatro vezes mais comum em meninos do que em meninas. É encontrada em todo o mundo e em famílias de qualquer configuração racial, étnica e social. Não se conseguiu até agora provar nenhuma causa psicológica no meio ambiente dessas crianças que possa causar a doença. Os sintomas, causados por disfunções físicas do cérebro, são verificados pela anamnese ou presentes no exame ou na entrevista com o indivíduo” ( Gauderer,1997). Para a Organização Mundial da Saúde (CID10,1992) o autismo é classificado como uma “desordem abrangente do desenvolvimento, definido pela presença de desenvolvimento anormal e/ou comprometimento que se manifesta antes da idade de três anos e pelo tipo de funcionamento caracterizado por déficits qualitativos na interação social recíproca e nos padrões de comunicação e por repertórios de atividades e interesses restritos, repetitivos e estereotipados” ( APARJ,1998). A Associação Americana de Psiquiatria, em seu Manual Diagnóstico e Estatístico dos Distúrbios Mentais (DSM IV,1994/95) refere-se ao autismo como um “transtorno invasivo do desenvolvimento no qual há um comprometimento qualitativo na interação social e na comunicação e padrões de comportamento, interesse ou atividades repetitivos ou estereotipados” (AMA,1999). A palavra autismo pode ser associada a diversas síndromes. Os sintomas variam amplamente, o que explica por que atualmente refere-se ao autismo como um “Contínuo Autístico”; o autismo manifesta-se de diferentes formas, variando do mais alto ao mais leve comprometimento, e dentro desse espectro o transtorno, que pode ser diagnosticado como autismo, pode também receber diversos outros nomes, concomitantemente (Frith,1989). Schwartzman (1994) também acredita que se possa referir-se a um espectro das manifestações autísticas, uma vez que podemos encontrar quadros em que o grau de severidade é muito variável, apesar de certas características comuns ( sempre envolvendo as áreas da comunicação e linguagem, interação social e jogo simbólico). 4. QUADRO CLÍNICO Se considerarmos as descrições clínicas do autismo tais quais elas existem atualmente, sobressai essencialmente uma grande heterogeneidade interindividual: um autista não apresenta exatamente o mesmo quadro que outro, em razão de diferentes graus de severidade. Heterogeneidade devido à evolução dos sintomas no tempo: tal sinal vai desaparecer ou se atenuar paralelamente ao desenvolvimento da criança. Heterogeneidade das capacidades mnêmicas: alguns autistas tem uma memória fotográfica notável, são capazes de fazer cálculo mental numa velocidade prodigiosa ou ainda tem uma memória musical excepcional. Heterogeneidade devida à associação do autismo à deficiência mental ou a outras doenças orgânicas como a rubéola, a fenilcetonúria ou espasmos infantis; enfim, heterogeneidade do prognóstico. Nestas condições, a descrição ou a definição de itens específicos torna-se difícil (Leboyer,1987). As características a serem descritas abaixo, baseadas principalmente no DSM IV e CID-10, não são exclusivas do autismo. Muitas das características vistas no autismo são vistas em outros transtornos do desenvolvimento, tais como deficiência mental, transtornos de aprendizagem e transtornos da linguagem. Algumas são vistas em algumas condições psiquiátricas, tais como o transtorno obsessivo-compulsivo e a personalidade esquizóide. Muitas delas são também vistas em crianças com desenvolvimento normal, ou em nós mesmos. O que distingue o autismo são: o número, a gravidade, a combinação e interação de problemas, que resultam em deficiências funcionais significativas. Para Mesibov & Shea (1996) o autismo é um compósito de déficits, não uma característica isolada. 4.1. INTERAÇÃO SOCIAL RECÍPROCA Há uma falta de receptividade e interesse pelas pessoas, não se estabelecendo relações interpessoais. O comportamento é indiferente diante de pessoas, como se elas não estivessem presentes. Pessoas conhecidas ou desconhecidas são pouco distinguidas. Na primeira infância isto pode ser verificado pela falta de contato olho a olho e de responsividade facial, pelo fracasso no aconchego e pela indiferença ou aversão ao contato afetivo e físico. Em alguns casos há um período de desenvolvimento social aparentemente normal nos primeiros anos de vida, mas até mesmo na primeira infância há invariavelmente um comprometimento do desenvolvimento do jogo imaginativo e das amizades. Posteriormente a criança pode, contudo, desenvolver um maior nível de alerta e de interesse social, podendo alcançar um estágio em que podem se envolver passivamente em brincadeiras ou incluir outras crianças como “ajudantes mecânicos” em suas próprias atividades estereotipadas. É comum também o uso de pessoas como ferramentas: puxa, empurra ou conduz o parceiro de comunicação para expressar o seu desejo. Esta aparente sociabilidade é, entretanto, superficial e pode causar confusão quanto ao diagnóstico. 4.2. CAPACIDADE COMUNICATIVA E ATIVIDADE IMAGINATIVA A incapacidade na comunicação inclui tanto as habilidades verbais quanto as não-verbais. A linguagem pode estar totalmente ausente ou apresentar as seguintes características: • estrutura gramatical imatura, mas essencialmente normal, • fala repetitiva ou ecolálica, • inversão pronominal ( por exemplo, uso da terceira pessoa no lugar da primeira pessoa), • uso preponderante de substantivos e verbos, dificuldades no uso de pronomes, preposições e conjunções,- dificuldade no uso de expressões como: em cima, embaixo, em frente, dentro, fora, etc. • afasia nominal (inabilidade em nomear objetos), • troca de palavras com o mesmo som/significado, • dificuldade de articulação em certas combinações de sons ou devido à pouca motricidade de língua e boca, • inabilidade no uso de termos abstratos, • linguagem metafórica (sons de significados idiossincráticos, ou seja, cujo significado só é claro para aqueles que estão familiarizados com as experiências passadas da criança), • expressões bizarras (uso de linguagem literária), jogos de palavras e neologismos, • preferência por temas negativos: morte, acidentes, doenças, etc. • em todos os casos a compreensão e o uso da fala, dentro do contexto social, mais do que a compreensão do significado literal, são perturbados, embora as habilidades de linguagem mecânicas sejam boas. A dificuldade na compreensão da linguagem também é evidenciada pela inabilidade em entender piadas e sarcasmos, • registro verbal de forma parcial de uma situação vivenciada, • rigidez de significados (dificuldade em associar diversos significados a um único significante), • melodia sonora anormal, com elevações interrogativas fora de lugar ou tom monótono de voz, • redução da fala com intenção comunicativa, direcionada às pessoas com contato visual. A manifestação do transtorno da comunicação pode variar desde a ausência de qualquer desejo de se comunicar com os outros até algumas crianças de mais idade que falam bastante, mas não se envolvem numa verdadeira conversação recíproca. As crianças fazem repetidas vezes a mesma pergunta ou fazem extensos monólogos sem ligação com o conteúdo da conversa e com as respostas do ouvinte. São indiferentes a expressões de chateação e demonstração do desejo de encerrar a conversa. • a comunicação não-verbal está ausente ou aparece de forma socialmente inapropriada, havendo pobreza de gesticulação e mímica e poucas alterações na expressão emocional, ocorrendo às vezes inversão da mímica. Até mesmo quando não há anormalidades grosseiras na linguagem, a comunicação é muitas vezes prejudicada, por irrelevâncias e circunstancialidades. O comprometimento na atividade imaginativa pode incluir a ausência de jogos simbólicos com brinquedos, ou a ausência de representação dos papéis do adulto, ou a atividade imaginativa pode ser restrita em conteúdo e repetitiva e estereotipada na forma. Uma criança com distúrbio pode, por exemplo, insistir em arrumar sempre da mesma maneira um número exato de brinquedos ou imitar repetidamente os personagens da televisão. A performance é com freqüência melhor em tarefas que requerem memória simples ou habilidade visoespacial, do que naquelas que requerem capacidade simbólica ou lingüística. 4.3. REPERTÓRIO DE ATIVIDADES E INTERESSES RESTRITOS Podem ocorrer resistência ou mesmo reações catastróficas a mudanças mínimas no ambiente. A ordenação do ambiente é rígida, sem regras subjacentes, como por exemplo, arrumação no quarto, preferência por certas roupas, fixação em realizar atividades sem qualquer tipo de alteração. A perseverança (repetição permanente) envolve tanto as ações, quanto as idéias. Pode haver insistência em seguir rotinas de modo preciso e fascinação pelo movimento, tal como permanecer passivamente diante de um ventilador ou de um objeto que rode rapidamente. Existem freqüentemente ligações a objetos estranhos, como, por exemplo, a uma tira de borracha. Estão presentes estereotipias motoras como bater palmas, movimentos peculiares das mãos, dedos e cabeça ou balanceamento de todo o corpo. Músicas despertam um interesse especial nessas crianças. Pode haver também grande interesse em botões, partes do corpo, brincadeiras com água ou lembranças de horários ou datas históricas. Em crianças mais velhas tarefas que envolvem memória a longo prazo podem ser excelentes, mas a informação tende a ser repetida infinitamente, indiferente ao contexto social. São descritas ainda outras características que podem estar associadas ao autismo: • Aproximadamente de 10 a 15% de pessoas com autismo tem inteligência na média ou acima, 25 a 35% funcionam a níveis próximos a deficiência mental leve, enquanto o restante são portadores de deficiência mental moderada ou severa ( Mesibov & Shea, 1996). • Todos apresentam graves déficits cognitivos, inclusive os poucos que apresentam uma inteligência dentro dos padrões de normalidade ou acima (Facion,1997). • Podem estar presentes problemas de motricidade, de orientação espacial e funções autônomas. Inicialmente há um baixo nível de agitação: apatia e comportamento geral extremamente tranqüilo. Posteriormente há agitação acentuada: inquietação e hipercinesia. A criança pula, anda de lá para cá, anda sem flexão dos joelhos e gira em torno de si mesma. Os movimentos são mais simples e pode haver dificuldade na imitação de movimentos mais complexos e no que concerne às funções mais primitivas. Há uma leve defasagem na coordenação de movimentos (Kehrer,1997). Podem ser notados ainda movimentos de mãos e postura corporal bizarros, caminhar na ponta dos pés e respostas anormais em resposta à excitação (braços batendo em asas, pulos e caretas). • Reações inapropriadas aos estímulos sensoriais, ignorando certas sensações como, por exemplo, a dor. Pode apresentar supersensibilidade ou fascínio por outras como, por exemplo, reações estranhas e exageradas a luzes ou sons. É comum a não identificação de perigos reais, como veículos em movimento ou grandes alturas e medo excessivo de objetos ou situações inócuas. • Anormalidades no comer, beber e/ou dormir, podendo limitar a dieta a poucos alimentos e bebendo líquidos em excesso. O sono pode ser irregular e normalmente perturbado, aparentemente pouca necessidade de sono, insônia e sono leve. Pode haver ainda mudanças acentuadas de temperatura, sudorese e febre sem causa aparente. • Anormalidades de humor, por exemplo: risadas ou choro sem motivo aparente, ausência de reações emocionais, ansiedade e tensão generalizadas. • Comportamentos automutilantes, como bater na cabeça ou morder partes do corpo. 5. HIPÓTESES ETIOLÓGICAS Até hoje não se conhece precisamente a etiologia da síndrome do autismo, e uma discussão que está longe de ser resolvida é a oposição, ou a inter-relação entre fatores constitucionais, ou orgânicos, e fatores ambientais, ou psicodinâmicos. 5.1. A PERSPECTIVA PSICODINÂMICA A maior parte dos autores que trabalham com a teoria psicanalítica consideram o autismo infantil como um dos tipos possíveis de psicose infantil. Esses autores, de uma forma geral, utilizam critérios psicodinâmicos para o diagnóstico de autismo infantil, o que resulta em grupos de certa forma diferentes dos grupos obtidos a partir de listas de sintomas como critério diagnóstico (Fernandes, 1996). A importância da relação mãe-filho é mencionada por praticamente todos os autores que consideram a questão emocional significativa na patogênese do autismo infantil. Podemos citar os trabalhos de Mahler (1979) em que ela relata que parece haver crianças que tornaram-se alienadas do meio ambiente, devido a uma inerente fragilidade do ego desde o estágio de indiferenciação. Essas seriam as crianças com “psicose autística infantil”, em que a mãe permaneceria um objeto parcial, que não seria distinta dos objetos inanimados. A partir de uma atuação clínica em psicanálise com crianças autistas, Tustin (1981) atribui os quadros de autismo infantil a uma experiência traumática de nascimento psicológico, ou seja, as vivências de não-eu ocorreram sem que a criança tivesse “integração neuromental” para manejar a tensão determinada por essas experiências. 5.2. A PERSPECTIVA ORGANICISTA Embora a etiologia do autismo infantil não seja precisamente conhecida, pode-se fazer uma série de relações direta ou indiretamente com o autismo tornando-o uma expressão final para vários fatores causais. Wing (1996) afirma que a idéia de que o autismo seja causado por “pais anormais” usando métodos impróprios de criação foi, há muito tempo, abandonada pela maioria dos especialistas da área. Meticulosos estudos mostraram que os pais se originam de todas as classes sociais e suas personalidades variam tanto quanto as do resto da população. Já é de conhecimento dos pesquisadores que existe uma correlação entre determinados achados neurológicos e autismo infantil. Déficits cognitivos, crises epilépticas e deficiência mental indicam alguns desses fatores orgânicos no autismo infantil. A freqüência da correlação do autismo com a rubéola congênita, com a esclerose tuberosa, com a tendência a convulsões já na infância, com fenilcetonúria não tratada, com a encefalite herpes e uma série de outras transformações levam-nos a crer que feixes nervosos específicos, localizados no cérebro, estão ligados a esses déficits que desencadeiam os comportamentos típicos do autismo. Como fator causal pode-se fazer ainda uma relação entre ocorrências pré, peri e pós natal e autismo. Uma grande porcentagem de casos apresenta uma redução de “condições ótimas” (APGAR) antes, durante ou depois do período de gravidez . Há também grande evidência, em pelo menos alguns casos, da existência de fatores genéticos relacionados com o autismo, segundo estudos com gêmeos. A anormalidade do cromossomo X frágil, descoberta recentemente, pode envolver algumas dessas crianças (Wing,1996). Um dos autores que vem estudando os componentes neurológicos e de linguagem envolvidos no autismo infantil é Michael Rutter (1993). Ele afirma que crianças autistas manifestam um déficit cognitivo global, envolvendo não apenas a linguagem mas os processos centrais de codificação. Não é o autismo em si o que é herdado, mas os déficits cognitivos e lingüísticos mais amplos, dos quais o autismo é uma manifestação. A hereditariedade e os fatores orgânicos teriam um papel importante na gênese do autismo, embora funcionem em caminhos diferentes. Os fatores hereditários corresponderiam às anormalidades lingüísticocognitivas mais que ao autismo em si. Por outro lado, os fatores orgânicos, gestacionais e pós-natais estariam associados ao autismo, mas seriam completamente dissociados dos déficits cognitivos. Outros autores, que também trabalham com hipóteses organicistas, consideram o autismo resultado de uma disfunção cortical do hemisfério dominante para a linguagem nos moldes de uma disfunção auditiva central ou de disfunções nos sistemas de tronco cerebral (Fernandes,1996). Não podemos deixar de citar também que existem algumas hipóteses que estão sendo examinadas no que concerne à liberação dos neurotransmissores. Acredita-se que os autistas liberam essas substâncias em maior quantidade do que crianças normais. 6. DIAGNÓSTICO Apesar dos avanços dos conhecimentos que dispomos sobre o autismo há ainda grande dificuldade para se chegar a um diagnóstico preciso sobre esta síndrome. Ainda não dispomos de um exame específico, o que significa que continuamos formulando o diagnóstico baseado em um conjunto de informações meramente clínicas adquiridas através da anamnese, exames laboratoriais e observações dos comportamentos da criança. O diagnóstico do autismo dependerá dos critérios utilizados para classificação e hipótese etiológica. Num enfoque psicanalítico, onde os autores atribuem o autismo infantil a alterações no vínculo materno infantil, o elemento diagnóstico mais significativo é a perturbação nesse vínculo. Desta forma, o autismo infantil é determinado pela ausência de relação objetival, ou seja, a mãe não é percebida pela criança como uma entidade separada, como um objeto integrado de afeto (Fernandes, 1996). Muitos autores e instituições baseiam seus trabalhos não em complexos e subjetivos raciocínios a respeito da psicodinâmica de crianças tão comprometidas, mas em listas de comportamentos que funcionam como critérios para inclusão em um ou outro grupo diagnóstico. Para tentar diminuir a margem de erro nas observações sobre manifestações comportamentais, objetivando um diagnóstico mais preciso, dispomos de algumas check-list, como, por exemplo, Diagnostic Check-List for Behavior- Disturbed Children do Institute for Child Behavior Research, Autism Diagnostic Interview-R, Autism Diagnostic Observation Scchedule de Michael Rutter e outras ( Galderer,1997). A Associação Americana de Psiquiatria, em seu Manual Diagnóstico e Estatístico dos Distúrbios Mentais diagnóstico do autismo (AMA,1999): propõe os seguintes critérios para o 6.1. CRITÉRIOS PARA DIAGNÓSTICO DO AUTISMO (DSM-IV) Um total de seis (ou mais) itens de (1), (2) e (3), com pelo menos dois de (1) e um de cada de (2) e (3). 1) Comprometimento qualitativo na interação social, amplo e persistente, manifestado por pelo menos dois dos seguintes itens: • destacada diminuição no uso de comportamentos não-verbais múltiplos, tais como contato ocular, expressão facial, postura corporal e gestos para lidar com a interação social. • falha no desenvolvimento de relações interpessoais apropriadas à idade. • ausência da busca espontânea em compartilhar divertimentos, interesses ou realizações com outras pessoas. • falta de reciprocidade social ou emocional. 2) Prejuízo qualitativo na comunicação, marcante e persistente, manifestado por pelo menos um dos seguintes itens: • atraso ou ausência total do desenvolvimento da linguagem oral, sem ocorrência de tentativas de compensação através de modos alternativos de comunicação, tais como gestos ou mímicas. • em indivíduos com fala normal, destacada diminuição da habilidade de iniciar ou manter diálogo. • linguagem estereotipada, repetitiva ou idiossincrática. • ausência de jogos ou brincadeiras de imitação social variados e espontâneos de acordo com a idade. 3) Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamentos, interesses e atividades, manifestados por pelo menos um dos seguintes itens: • obsessão por um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesse que seja anormal tanto em intensidade quanto em foco. • adesão aparentemente inflexível a rotinas ou rituais específicos e não funcionais. • maneirismos motores estereotipados e repetitivos. • preocupação persistente com partes dos objetos. Atraso ou funcionamento anormal em pelo menos uma das seguintes áreas, com início antes dos três anos de idade: • interação social. • linguagem usada na comunicação social. • Ação simbólica ou imaginativa. O transtorno não é melhor classificado como Síndrome de Rett ou doença degenerativa infantil. Fernandes (1990) em sua tese de mestrado afirma que a lista de sintomas, proposta pelo DSM III-R, para o diagnóstico da síndrome autística falha em evidenciar as diferenças observadas entre as diversas crianças e sugere a utilização de uma observação mais abrangente, partindo dos mesmos critérios, permitindo explicitar as diferenças encontradas nas diversas crianças com um mesmo diagnóstico. Outra crítica pode referir-se ao fato de que em países como o Brasil, onde o diagnóstico e atendimento precoces estão muito distantes da maior parte da população, esses critérios identificam como autistas grande parte das crianças portadoras de paralisia cerebral e muitas das crianças com deficiência auditiva ou visual. Fica fácil supor que crianças com limitações sensoriais ou motoras severas, associadas ou não a algum grau de deficiência mental, sem nenhum tipo de estimulação adequada, apresentem oito ou mais dos sintomas exigidos para o diagnóstico da síndrome autística. Seria complexo distinguir os quadros em que o autismo estaria associado a uma deficiência, daqueles em que ele teria sido ocasionado por ela. Assim, a utilização desse modelo diagnóstico pouco contribui para a atuação terapêutica do fonoaudiólogo. Entretanto, permite identificar os progressos obtidos com crianças autistas em terapia fonoaudiológica. Os quadros a seguir mostram a proposta de Fernandes para observação dos sintomas que podem estar presentes na síndrome autística. Os itens em destaque apontam os sintomas determinados pelo DSM III-R como critério diagnóstico, e uma observação isolada deles pode evidenciar como esse procedimento unifica os diversos quadros clínicos. Quadro 1 - Grupo A : Incapacidade Qualitativa na Interação Social Sintomas ignora presença e sentimentos uso instrumental de pessoas comportamento invasivo não busca apoio ou conforto busca estereotipada de apoio não acena adeus repetição estereotipada ausência de jogo social opção por atividades isoladas ausência de jogo cooperativo incapacidade para amizades Início 2 Anos Depois Legenda: X sintoma presente sintoma ausente Quadro 2 - Grupo B : Distúrbios na Comunicação e na Atividade Imaginativa Sintomas ausência de comunicação expressão facial distante ausência de mímica facial ausência de gestos expressivos ausência de contato visual retraimento ao contato físico ausência de antecipação sem atividade imaginativa desinteresse por estórias alterações na intensidade vocal alterações de timbre vocálico alterações de ritmo da fala alterações na entonação ecolalia imediata ecolalia tardia inversão pronominal expressões estereotipadas frases descontextualizadas dificuldade na conversação dificuldade em manter conversa Início 2 Anos Depois Legenda: X sintoma presente sintoma ausente * total ausência de comunicação verbal Quadro 3 - Grupo C : Repertório Restrito de Atividades e Interesses Sintomas estereotipias e repetições movimentos giratórios auto-agressão interesses restritos interesse por objetos rotatórios exploração do meio pelo paladar exploração do meio pelo olfato resistência a mudanças no ambiente insistência em seguir rotinas atividade monótona rotineira 6.2. Início 2 Anos Depois Legenda: X sintoma presente sintoma ausente * total ausência de interesses EXAMES CLÍNICOS Alem do uso de observações clínicas comportamentais e escalas de comportamentos característicos desta síndrome, podemos lançar mão de uma série de exames clínicos para auxiliar no diagnóstico do autismo. Exames radiológicos, neurobiológicos e neuroquímicos poderão nos indicar possíveis alterações que a criança venha a apresentar. Entretanto, existem crianças com sintomas de autismo que não apresentam qualquer tipo de alteração que possa ser detectada em tais exames. Isto não quer dizer que eles não tenham alguma alteração neurofisiológica ou neuroquímica, mas, sim, que a tecnologia das Ciências Biomédicas de que dispomos não esteja tão avançada quanto gostaríamos que estivesse. A ressonância magnética tem demonstrado, em alguns pacientes, alterações cerebelares e dos núcleos da base, diminuição do volume cortical e espaço subaracnoidiano e heterotipias da substância cinzenta. O EEG de pacientes autistas pode apresentar a amplitude da freqüência posterior inversa, em relação às pessoas normais, ou seja, a ativação é maior no hemisfério não dominante . Tomografias computadorizadas podem apresentar lesões de substâncias cerebrais e uma atrofia central em muitos casos de autismo Exames neurofisiológicos mostram que um número bastante grande de pacientes autistas apresentam defeitos nos lobos temporais e no cerebelo. Quanto aos exames neuroquímicos, poucos resultados foram obtidos, talvez até pelo fato de sua complexidade e, por conseqüência das dificuldades da sua realização. Há algumas hipóteses sendo examinadas no que se concerne à liberação dos neurotransmissores serotonina e dopamina, assim como a liberação da endomorfina. Parte-se do ponto de vista que os pacientes autistas liberam essas substâncias em maior quantidade do que crianças normais. 7. CARACTERIZANDO O PENSAMENTO E A LINGUAGEM DA CRIANÇA AUTISTA O autismo produz padrões de comportamentos característicos e previsíveis nas pessoas sob esta condição, afetando a maneira como elas pensam, entendem seu mundo, se comunicam, se alimentam, se vestem, usam seu tempo de lazer, etc. Nesta perspectiva, para trabalharmos com a criança autista é necessário entendermos muito bem a sua cultura, em especial, a forma como seu pensamento se processa. 7.1. PENSAMENTO O pensamento do autista caracteriza-se, segundo Mesibov & Shea (1996), essencialmente por: 7.1.1. Falta do conceito de sentido. O problema primário que caracteriza o pensamento de crianças com autismo é a inabilidade de dar sentido às suas experiências. Eles atuam sobre seus ambientes, podem aprender habilidades, alguns podem aprender a usar a linguagem, mas eles não tem capacidade independente de entender o significado de suas ações. Eles não estabelecem relações entre idéias e eventos. Seu mundo consiste de uma série de experiências e demandas sem relação umas com as outras, enquanto os temas, conceitos, razões ou princípios subjacentes são, para eles, tipicamente obscuros. Este grave prejuízo na geração de sentido está provavelmente relacionado a várias outras graves dificuldades cognitivas. Nós não podemos nem ao menos assumir que estas crianças entendam porque nós pedimos que elas façam determinadas coisas, como as habilidades e os comportamentos que as ensinamos estão relacionados, ou mesmo o que, especificamente, estamos pedindo que façam. 7.1.2. Foco excessivo em detalhes Essas crianças são, com muita freqüência muito boas na observação de detalhes minúsculos, especialmente os visuais. Elas freqüentemente percebem quando os objetos do seu ambiente foram mudados, podem ver pequenos fragmentos de refugo para serem colhidos, fios de linha para serem puxados, quadrados do forro a serem contados, etc. Algumas delas também notam outros detalhes sensoriais, como os sons de ventiladores e maquinário. Crianças que funcionam em um nível de inteligência mais alto usualmente se concentram em detalhes mais cognitivos, tais como chamadas de estações de rádio, números de telefones ou capitais de estados. Mas essas crianças são menos capazes de acessar a importância relativa de todos os detalhes que foram observados. Elas podem se concentrar na visão do fio de linha que estão balançando enquanto atravessam uma rua, e não perceberem a aproximação de um ônibus que estiver chegando; ou elas podem entrar numa sala e comentar sobre os sons dos ventiladores, ignorando o fato de que o almoço está na mesa. 7.1.3. Distratibilidade É freqüentemente difícil para crianças com autismo prestar atenção no que os outros querem, porque estão concentrados em sensações que para elas são mais interessantes e importantes. Alem do mais, seus focos de atenção com freqüência muda rapidamente de uma sensação para outra. Geralmente as fontes de distração para crianças de nível funcional mais baixo são visuais. Os estímulos auditivos podem ser também fonte de bastante distração. Ou elas podem ser distraídas por processos cognitivos internos tais como rimar, contar, calcular ou recitar fatos que tenham memorizado. Independentemente da fonte de distração, crianças com autismo tem uma grande dificuldade em interpretar e priorizar a importância da estimulação externa e dos pensamentos que as “bombardeiam”. Algumas delas olham, se movem e exploram constantemente, como se todas as sensações fossem igualmente novas e excitantes. Outras lidam com este bombardeamento aparentemente bloqueando a maior parte da estimulação circundante, ficando preocupadas com um tipo muito limitado de objetos. 7.1.4. Pensamento concreto Crianças autistas, independentemente do nível cognitivo, tem relativamente maior dificuldade com conceitos lingüísticos simbólicos ou abstratos do que com fatos e descrições objetivas. Na cultura do autismo cada palavra significa apenas uma coisa, elas não tem conotações adicionais ou associações subjacentes. 7.1.5. Dificuldade em combinar ou integrar idéias. É mais fácil para crianças autistas entender fatos ou conceitos isolados do que combinar conceitos, ou integrá-los com informações relacionadas a este, particularmente quando estes conceitos parecem ser de alguma forma contraditórios. 7.1.6. Dificuldade em Organizar e Seqüenciar. Os problemas em organização e seqüenciamento estão relacionados com a dificuldade geral em integrar múltiplas informações. A capacidade de organizar requer a integração de vários elementos para atingir um objetivo pré- determinado. Por exemplo, se alguém está planejando uma viagem, esta pessoa tem que antecipar o que será necessário levar para fazer as malas antes de sair. As habilidades de organização são difíceis para pessoas com autismo porque elas demandam, ao mesmo tempo, a habilidade de concentração tanto na tarefa imediata quanto no resultado almejado. Este tipo de foco duplo é no qual pessoas que respondem a detalhes específicos e individuais não se dão bem. Seqüenciar é algo difícil para pessoas com autismo porque demanda habilidades similares. Não é incomum para pessoas com autismo executar uma série de atos em uma ordem ilógica e contraprodutiva, que eles parecem não perceberem. Por exemplo, uma pessoa pode levantar pela manhã, pentear o cabelo, depois tomar banho e lavar o cabelo. Desta forma, eles nos mostram que apesar de ter dominado as etapas isoladas de um processo complexo, eles não entendem a relação entre as etapas ou o sentido destas etapas em relação ao objetivo final. 7.1.7. Dificuldade em generalizar. Pessoas com autismo com freqüência aprendem habilidades ou comportamentos em uma situação, mas tem grande dificuldade em transferi-las para uma outra situação. Bebês com desenvolvimento normal tem uma capacidade inata de reconhecer categorias gerais (por exemplo, a qualidade humana) e o reconhecimento de pessoas ou objetos específicos, dentro das categorias gerais, ocorre posteriormente. Talvez em crianças autistas haja uma ausência de conceitos generalizados e, desde o início, vejam cada objeto ou mesmo o ambiente como sendo independente e sem relação com todas as demais coisas. Algumas evidências disto podem ser encontradas em estudos os quais mostram que crianças autistas encontram grande dificuldade em situar itens individuais, de qualquer espécie, em um contexto significativo mais amplo (Wing, 1996). Especialistas em neurociência computacional e uma psiquiatra da Universidade Federal do Rio de Janeiro desenvolveram um sistema capaz de simular o comportamento do cérebro de um autista. O resultado revelou que os autistas, por um defeito biológico ainda pouco definido, não conseguem organizar no cérebro as informações que recebem. Eles são incapazes de relacionar novos fatos porque criam um excesso de categorias mentais. Em indivíduos normais o cérebro agrupa todas as informações em categorias. Por exemplo, gatos são todos rotulados juntos, não importando se são de cores e tamanhos diferentes. É o sistema de categorias que permite que façamos associações e possamos aprender fatos novos relacionando-os com os já conhecidos. Um autista, entretanto, põe cada gato numa categoria. Isso o torna extremamente detalhista e lhe dá capacidade limitada de aprendizagem. Os autistas trocam um mapa cerebral generalizante por outro discriminativo. Criar um número gigantesco de categorias exige enorme esforço cerebral e incapacita a pessoa para realizar atividades triviais. Por outro lado, faz com que execute algumas atividades com maestria, principalmente as ligadas à música, ao desenho e à matemática. Isto explicaria o que se convencionou chamar de “ilhas de habilidades”, que fazem com que alguns autistas sejam exímios pintores, realizem cálculos complexos em segundos ou decorem listas telefônicas em minutos (Azevedo,1999). Além dos déficits cognitivos múltiplos, o autismo apresenta alguns padrões bio-comportamentais característicos: • Forte impulsividade. Crianças autistas são freqüentemente extraordinariamente persistentes em buscar coisas que elas desejem, quer sejam objetos preferidos, experiências ou sensações, tais como tocar algo, executar um ritual complexo ou repetir um padrão comportamental estabelecido. Estes comportamentos, que se assemelham aos sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo, podem ser muito difíceis para professores e pais desviarem ou controlarem. Na verdade, existe nestes comportamentos tamanha determinação que eles parecem não estar sob o controle consciente do indivíduo com autismo. Direcionar, controlar e canalizar estes comportamentos é o maior desafio. • Ansiedade excessiva. Muitas crianças autistas tendem a apresentar altos níveis de ansiedade; eles estão freqüentemente frustrados ou por um fio para ficarem. Uma dose desta ansiedade é provavelmente atribuível a fatores biológicos. Além disto, a ansiedade pode ser resultado das constantes confrontações com o ambiente, que é imprevisível e opressivo. Por causa de seus déficits cognitivos, as pessoas com autismo tem dificuldade em entender o que é esperado delas e o que está acontecendo ao seu redor; a ansiedade e a agitação são reações compreensíveis diante desta constante incerteza. • Anormalidades Sensório-perceptuais. Já se sabe há muitos anos que os sistemas de processamento sensorial são alterados nas pessoas com autismo. Nós podemos observar crianças com preferências alimentares muito incomuns, crianças que usam seu tempo olhando seus dedos em movimento, ou friccionando texturas em suas bochechas, ou se atendo a ouvir sons não usuais muito perto do ouvido para poder também sentir as vibrações. Sabemos que eles não respondem a sons da mesma forma que os outros, fazendo com que as pessoas pensem que eles são surdos, quando, na verdade, eles tem perfeita acuidade auditiva. Algumas crianças autistas parecem confundir o sentimento de ser beliscado com o de receber cócegas, ou parecem ter insensibilidade a estímulos de dor, frio, calor ou a gosto desagradável. Estas crianças costumam explorar o ambiente através do olfato e paladar em detrimento do uso da visão e audição, cheirando e lambendo os objetos. Podem apresentar também reações paradoxais a estímulos sensoriais, como por exemplo: cobrir os olhos quando ouve um ruído ou tampar os ouvidos diante de estímulos luminosos. • Resistência como resultante da falta de entendimento. A maioria dos comportamentos que os autistas apresentam é devido a sua dificuldade cognitiva em entender o que se espera deles. É extremamente raro um autista ser deliberadamente desafiante ou provocativo. Infelizmente, alguns observadores interpretam seu comportamento desta forma, particularmente quando o autista olha diretamente para eles e depois faz o oposto do que foi solicitado, ou faz justamente o que foi proibido. É mais plausível que o autista não tenha entendido as palavras usadas, a expressão facial e a linguagem corporal da pessoa que lhe falou, ou as expectativas sociais da situação. Ele pode estar sendo movido por impulsos fortes que agem independentemente das regras ou das conseqüências, ou pode estar agitado ou sobrecarregado pela estimulação sensorial do ambiente. As normas podem ser muito abstratas ou muito vagas. A negação é uma concepção raramente útil no autismo. 7.2. LINGUAGEM Qualquer que seja a abordagem conceitual, a hipótese etiológica e o critério diagnóstico envolvendo autismo infantil, a linguagem sempre representa um aspecto fundamental do quadro clínico. Fernandes (1995) afirma que as dificuldades de linguagem são associadas às causas do autismo infantil em inúmeras pesquisas, quer como um elemento desencadeador, quer como um aspecto afetado pelas mesmas desordens que causam o distúrbio. O próprio Kanner observou a existência de algumas alterações de linguagem que posteriormente passaram a ser descritas como características de crianças autistas. A partir de então, todas as referências ao autismo infantil mencionam as alterações de linguagem como uma das características mais importantes. A tendência mais atual considera a linguagem não mais apenas uma característica do autismo infantil mas um fator subjacente a ele. A linguagem é também associada ao prognóstico do autismo infantil. O desenvolvimento de algum tipo de linguagem até os cinco anos está diretamente relacionado com os progressos futuros (Wolf & Ruttenberg,1967; Bloch e cols.,1980; Schuler & Baldwin,1981). Diversos estudos sobre a linguagem de crianças autistas sugerem que as alterações de linguagem encontradas correspondem a um desvio dos padrões de aquisição observáveis em crianças normais e não apenas a um atraso de desenvolvimento. As maiores dificuldades estão no uso social da linguagem e na emissão de respostas às tentativas de interação. Bartolucci (1982) afirma que o desenvolvimento da linguagem nas crianças autistas é atípico, especialmente no que diz respeito aos aspectos envolvendo significado, enquanto podem ser observadas evidências de atraso no desenvolvimento dos sistemas fonológico, morfológico e sintático. Pode ser notado também um déficit no processamento sintático da informação. Hermelin & Frith (in Fernandes, 1996), investigando mecanismos de memória, concluíram que crianças autistas tendem a memorizar melhor as últimas palavras de uma seqüência mesmo se as primeiras palavras formarem uma sentença. Alguns autores, como Loveland & Landry (1986), sugerem que um déficit de atenção específico para os elementos sociais seria o responsável tanto pelas alterações funcionais da linguagem, quanto pelas outras dificuldades de contato e socialização. Outros citam alterações em habilidades simbólicas e de representação, consideradas pré-requisito para o surgimento do uso funcional da linguagem, e atribuem a essa falha no desenvolvimento cognitivo as características de atraso e desvio de comunicação da criança autista (Wetherby & Gaines,1982; Gould,1986). 7.2.1. ECOLALIA A ecolalia é um dos aspectos mais freqüentemente mencionados nas discussões sobre a linguagem das crianças autistas. Vários investigadores sugeriram que todas as crianças autistas que adquirem habilidade de fala manifestam alguma história de ecolalia (Fernandes,1995). Há, entretanto, divergências envolvendo desde a sua definição exata, suas características e diferentes tipos, até as possíveis causas e as abordagens terapêuticas mais adequadas. Para Schuler (1979) a ecolalia é a repetição não significativa da fala dos outros. Já Bernard-Optiz (1982) define a ecolalia de forma mais abrangente, como a presença de emissões que são repetições exatas ou modificadas de suas próprias emissões ou de emissões do interlocutor, nitidamente sem intenção comunicativa; respostas ecóicas imediatas e tardias estão incluídas nessa perspectiva. Na criança autista a ecolalia, ou seja, a repetição de palavras ou expressões ouvidas anteriormente, pode ser imediata ou tardia, literal ou mitigada, a entonação pode ser reproduzida ou não e ela pode ocorrer de forma mais ou menos relacionada a contextos específicos. A ecolalia imediata refere-se à repetição automática, imediatamente após a emissão original. A ecolalia tardia refere-se à reprodução de emissões ouvidas anteriormente. Essa definição inclui também os aspectos da ecolalia mitigada, citada por Paccia & Curcio (1982), que se refere a modificações da emissão original no sentido apropriado. Fernandes (1995) salienta que é possível detectar clinicamente uma evolução entre a ecolalia tardia, a imediata e a mitigada, no sentido de uma comunicação mais eficaz. Quanto a entonação da emissão ecolálica, a resposta da criança pode ser em prosódia imitativa ou contrastiva ( com um contorno de entonação diferente da emissão original). A entonação contrastiva, segundo Paccia & Curcio, indica um nível mais alto de processamento que a entonação imitativa. Em relação às características das emissões ecolálicas, alguns autores atribuem a elas rigidez, associada freqüentemente à presença de inversão pronominal. Outros vêem a ecolalia como um comportamento perseverativo, equivalente à perseveração motora (Fernandes, 1995). Além dito, Schuler (1979) sugere que a ecolalia representa um desejo de dominar o ambiente, indo de encontro à necessidade de manutenção da mesmice, freqüentemente citada como uma das características do autismo infantil. O valor comunicativo das verbalizações ecolálicas também é objeto de opiniões divergentes. Muitos consideram-na sem função comunicativa. Outras vezes atribui-se à ecolalia um valor maior como descarga emocional do que como comunicação (Ornitz & Ritvo,1976). Alguns pesquisadores atribuem algumas funções de comunicação à fala ecolálica. Schuler, por exemplo, refere-se à ecolalia imediata como sinalizador de afirmação e enfatiza que a ecolalia tardia pode ou não ser sensível ao contexto e ao estímulo verbal precedente sugerindo a presença de algumas habilidades expressivas. Investigando as interferências do contexto da linguagem na ecolalia, Paccia & Curcio (1982) observaram que a incidência de ecolalia era influenciada mais pelo tipo de pergunta dirigida à criança do que pela compreensão das relações expressas na pergunta. Respostas ecolálicas freqüentemente devem acontecer, em sua maior parte quando as orações básicas são transformadas em perguntas que requerem um sim ou não como resposta. Menos freqüentemente para perguntas do tipo "Wh” (quem, o que, qual, quando, onde, porque) e menos ainda para formas que requerem conclusão de uma oração incompleta (por ex: “Isto é um ______ “). Isto pode ser explicado pelo fato desta última forma de expressão especificar o contexto completamente para a resposta. Em contraste, a forma interrogativa é menos contextualmente explícita. Para uma pergunta “Wh”, uma resposta apropriada requer a habilidade para deduzir que a palavra “Wh” deverá ser substituída por uma apropriada. Uma forma interrogativa mais abstrata são as perguntas “sim/não” pois não contêm nenhuma sugestão lingüística explícita relativa à resposta apropriada. Alem de aumentar nosso entendimento a respeito dos determinantes situacionais da ecolalia autista, o achado que diferentes formas de perguntas influenciam a incidência de ecolalia exibe significação terapêutica. Porque as crianças autistas tendem a iniciar fala infreqüentemente, os pais e profissionais confiam pesadamente em perguntas para manter alguma forma de interação verbal com eles. A consciência de que a forma de uma pergunta pode ser manipulada para habilitar a criança a responder mais adequadamente pode facilitar a comunicação entre a criança e as pessoas em seu ambiente. Num estudo também a respeito das funções comunicativas da ecolalia tardia, Prizant & Rydell (1984) estabeleceram categorias funcionais interativas e não interativas, determinadas segundo sua simbolização, interpretabilidade e evidência de intenção comunicativa. Nesta perspectiva, é necessário enfatizar que existem importantes conclusões a serem obtidas a respeito da funcionalidade das verbalizações ecolálicas e que, para isto, as observações do contexto situacional no qual elas ocorrem são essenciais. Nessa linha de investigação, Prizant & Duchan (1981), analisando a fala ecolálica e o contexto comunicativo, segundo uma perspectiva pragmática, determinaram sete categorias funcionais distintas, que de acordo com o contexto comunicativo, as características estruturais e o tempo de latência até a emissão, podem ser expressas pela ecolalia: • não focalizada - é a mais automática, • tomada de turno - destinada à manutenção de interação social, • declarativa - como, por exemplo, os comportamentos de nomeação, • ensaio – tem uma função mais cognitiva, • auto-reguladora – ajuda a dirigir o próprio comportamento, • respondendo sim – a afirmação por repetição, • pedido – cujo exemplo mais extremo é a mitigação intencional Esses pesquisadores concluíram que expressões vocais ecolálicas não podem simplesmente serem descritas como patológicas ou não funcionais, mas devem ser vistas como um “contínuo” entre o comportamento automático e intencional. Quanto as possíveis causas, a atribuição da ecolalia a fatores emocionais, a aspectos do desenvolvimento, a dificuldades com a linguagem, a desordens auditivas ou a disfunções centrais parece depender do posicionamento mais organicista ou mais psicodinâmico de cada autor. Dentre as hipóteses organicistas Fernandes (1995) comenta que há, por exemplo, a de que haveria uma falha nas assimetrias corticais superiores. Por outro lado, Wetherby, Koegel e Mendel (1981), concluíram que o mecanismo subjacente à ecolalia no autismo pode ser um desenvolvimento perturbado das áreas de associação cortical superiores. Charney (1980) e Paccia & Curcio (1982) descrevem especificamente em limitações na compreensão lingüística, associando, como já visto, a produção ecolálica ao tipo de emissão precedente. Numa perspectiva psicodinâmica, Wetherby & Gaines (1982) mencionam que a ecolalia tem sido associada à hostilidade, medo e hipersugestibilidade. Isto estaria envolvendo os componentes de isolamento, ansiedade e desejo de manutenção da mesmice, que são características observadas em crianças autistas. Neste sentido, a fala poderia funcionar como um apoio, um elemento sempre perfeitamente sob o controle da criança. Com tudo isto, a abordagem terapêutica da ecolalia, bem como o valor atribuído a ela no processo, obviamente dependem dos elementos causais e dinâmicos que lhe são atribuídos. Assim, fica claro que, se a ecolalia é tida como um sintoma indesejável, não funcional e que tende a agravar o isolamento social da criança, sua extinção é considerada um objetivo terapêutico importante. Entretanto, Schuler (1979) afirma que pode ser difícil decidir sobre procedimentos específicos para a redução da ecolalia, pois a cessação de toda a fala seria indesejável e respostas mais adequadas teriam que ser ensinadas junto com a extinção da ecolalia. Por outro lado, quando se admite que a ecolalia pode servir a diferentes funções de comunicação para a criança autista, sua extinção indiscriminada é desaconselhada ( Prizant & Duchan, 1981) e todas as verbalizações da criança devem ser reforçadas e expandidas. Neste sentido, a fala comunicativa é vista não como uma progressão natural da fala expressiva mas como algo que pode ser adquirido através de um programa prescritivo e integrativo de terapia de linguagem, do qual a repetição verbal é um estágio que pode servir no processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem por uma criança autista. Especificamente a respeito dos diferentes enfoques terapêuticos já mencionados anteriormente, a parte mais significativa do imput lingüístico para a criança são as interpretações do adulto, expandidas ou aumentadas, das emissões da própria criança; parece essencial que o adulto transmita à criança as interpretações que ele está dando às suas emissões. É importante considerar, também, que para a família freqüentemente a ecolalia é uma mostra das possibilidades de fala da criança. Isto tende a produzir situações em que são criadas rotinas verbais que reforçam os comportamentos ritualísticos da criança e cujo manejo exige cuidado especial, pois provavelmente envolverá a imagem da criança, enquanto sujeito lingüístico, construída por seus familiares. 7.2.2. ASPECTOS FUNCIONAIS DA LINGUAGEM Crianças autistas são estereotipadas como não comunicativas e não interativas, entretanto, isso pode ser parcialmente atribuído aos tradicionais métodos de pesquisa que não consideram as intenções da criança ou o contexto de interação social. A partir dos anos oitenta podem ser encontradas na literatura pesquisas a respeito da linguagem de crianças autistas que consideram não apenas seus aspectos formais mas principalmente seus aspectos funcionais, numa perspectiva pragmática. As teorias pragmáticas propõem a inclusão dos elementos do contexto, lingüístico ou não, no estudo da linguagem. A partir disso podem ser estabelecidas as funções dos atos comunicativos, ou seja, o valor social da linguagem. A interação determina, dessa forma, os usos da linguagem. Por outro lado, a interação associa-se ao desenvolvimento cognitivo e à experiência social na determinação do desenvolvimento da linguagem (Fernandes,1996). Essas pesquisas levam em conta o contexto em que a comunicação ocorre e todas as formas de expressão comunicativa das crianças, permitindo-nos investigar o início do processo de desenvolvimento da linguagem, chegando ao estágio anterior às primeiras palavras. O contexto de interação social influencia no comportamento comunicativo. O uso de situações experimentais controladas, não familiares para a criança pode distorcer o perfil de comportamentos comunicativos mostrados pela criança autista. Para se conseguir uma representação de como a linguagem é usada funcionalmente, o comportamento comunicativo deve ser estudado quando ocorre naturalmente no contexto familiar. Existem poucas investigações do comportamento comunicativo das crianças autistas mostrados em interações naturais. Bernard- Optiz (1982) analisou a performance da criança autista interagindo com sua mãe, seu clínico e um adulto desconhecido. A pesquisadora observou que esta criança mostrou uma maior freqüência de atos comunicativos com a mãe e o clínico. Mais recentemente, Wetherby & Prutting (1984) investigaram como a criança autista no estágio pré-lingüístico e em estágios iniciais do desenvolvimento da linguagem usa comunicação espontânea através de recursos gestuais, vocais e verbais, em comparação com o funcionamento da criança normal em estágios similares do desenvolvimento da linguagem. Encontraram que apesar da variabilidade do nível de desenvolvimento da linguagem e do grau de retardo mental, o indivíduo autista mostra um perfil relativamente homogêneo de funções comunicativas que são quantitativamente e qualitativamente diferente dos indivíduos normais. O sujeito autista demostrou um repertório mais limitado de funções comunicativas que a criança normal, o que não aparenta ser meramente um retardo na taxa do desenvolvimento normal. O maior achado deste estudo foi que os indivíduos autistas demonstraram tanto quanto, ou mais, atos comunicativos interativos que os indivíduos normais. 8. DESENVOLVIMENTO DA COMUNICAÇÃO FUNCIONAL NA CRIANÇA AUTISTA A comunicação intencional normalmente emerge entre os 9 (nove) e 13 (treze) meses de idade. A intenção comunicativa é mostrada inicialmente através de gestos pré-verbais e vocalizações, e posteriormente através da fala. Então, a criança normal usa as funções comunicativas como um guia para a aquisição das formas lingüísticas. A criança normal usa o comportamento interativo e não interativo intencionalmente para um largo número de funções antes de emergir a fala referencial. Estas funções são mostradas nos quadros a seguir: Quadro 4 - Funções Comunicativas da Linguagem Interativa A - Regular o comportamento de outro para obter um fim ambiental ( função regulatória ) 1 - pedido de objeto 2 - pedido de ação 3 - protesto B - Atrair a atenção do outro sobre si próprio ( função social ) 1 - pedido de rotina social 2 - cumprimento / saudação 3 - chamada 4 - exibição 5 - pedido de consentimento (*) C - Dirigir a atenção do outro para um objeto ou evento ( garantir um foco de atenção conjunta ) 1 - nomeação interativa 2 - comentário interativo 3 - pedido de informação (*) Não Interativa A - Praticar ou reagir a estímulo interno / externo 1 - exclamativo 2 - reativo 3 - não focalizado B - Focar a própria atenção em um objeto / evento 1 - performativo 2 - nomeação não interativa 3 - comentário não interativo C - Regular o próprio comportamento 1 - auto-regulatório (*) Wetherby, 1986 (*) - tipicamente não emerge antes da criança estar além do estágio pré-linguístico, usando uma ou duas palavras Quadro 5 – Definição das Categorias das Funções Comunicativas 1) 2) 3) 4) 5) 6) 7) 8) 9) 10) 11) 12) 13) 14) 15) 16) 17) 18) 7.2.1.1.1. Ca Definição teg ori as Pedido de objeto atos ou emissões usados para solicitar um objeto concreto desejável. (Ex.: estende a mão para o objeto) Pedido de ação atos ou emissões usados para solicitar ao outro que execute uma ação. Inclui pedidos de ajuda e outras ações envolvendo outra pessoa ou outra pessoa e um objeto. (Ex.: criança puxa o adulto para a porta, coloca a caneta na mão do adulto e indica o papel) Pedido de rotina social atos ou emissões usados para solicitar ao outro que inicie ou continue um jogo de interação social. É um tipo específico de pedido de ação envolvendo uma interação. (Ex.: criança atira-se no colo do adulto para que ele levante-a e gire, abre os braços para ganhar um abraço) Pedido de consentimento atos ou emissões usados para pedir o consentimento do outro para a realização de uma ação. Envolve uma ação executada. Pedido de informação atos ou emissões usados para solicitar informações sobre um objeto ou evento. Inclui questões como: Porque, Qual, Onde, Quando e outras emissões com contorno entoacional de interrogação. Expressão de protesto choro, manha, birra ou outra manifestação de protesto não necessariamente dirigida a objeto, evento ou pessoa. Protesto atos ou emissões usados para interromper uma ação indesejada. Inclui oposição de resistência à ação do outro e rejeição de objeto oferecido. (Ex.: choro, grito, autoagressão diante de uma ação indesejada, a criança levanta-se assim que o adulto senta perto) Reconhecimento do outro atos ou emissões usados para obter a atenção do outro e para indicar o reconhecimento de sua presença. Inclui cumprimentos, chamados, marcadores de polidez e de tema. (Ex.: criança olha e esconde o rosto) Exibição atos ou emissões usados para atrair a atenção para si. A performance inicial pode ser acidental e a criança repete-a Quando percebe que isso atrai a atenção do outro. (Ex.: empurra um objeto para bater na outra pessoa, assobia para chamar) Comentário atos ou emissões usados para dirigir a atenção do outro para um objeto ou evento. Inclui apontar, mostrar, descrever, informar e nomear de forma interativa. Auto-regulatório Emissões usadas para controlar verbalmente sua própria ação. As emissões precedem imediatamente ou co-ocorrem com o comportamento motor. (Ex.: a criança dizendo: “calma” enquanto calça o sapato, “não chora” enquanto choraminga) Performativo atos ou emissões usados em esquemas de ação familiares aplicados a objetos. Inclui efeitos sonoros e vocalizações ritualizadas produzidas em sincronia com o comportamento motor da criança. (Ex.: onomatopéias com carrinhos e aviões, chuta a bola de volta para o outro) Exploratório atos envolvendo atividades de investigação de um objeto particular ou parte do corpo ou vestimenta do outro. Exclamativo atos ou emissões que expressem uma reação emocional a um evento ou situação. Inclui expressões de surpresa, prazer, frustração e descontentamento e sucede imediatamente um evento significativo. (Ex.: a criança grita quando batem com força na porta) Reativos Emissões produzidas enquanto a pessoa examina ou interage com um objeto ou parte do corpo. Não há evidência de intenção comunicativa mas o sujeito está focalizando atenção em um objeto/parte do corpo e parece estar reagindo a isso. Pode servir a funções de treino ou auto-estimulação. (Ex.: criança ri com cócegas) Não-focalizado Emissões produzidas embora o sujeito não esteja focalizando sua atenção em nenhum objeto ou pessoa. Não há evidência de intenção comunicativa. Pode servir a funções de treino ou auto-estimulação. (Ex.: pulos, balanceios, murmúrios, auto-agressão, ecolalia) Jogo atos envolvendo atividade organizada mas auto-centrada, inclui reações circulares primárias. Pode servir a funções de treino ou auto-estimulação. (Ex.: criança desenha, rola a bola e observa, enche potes com pequenos objetos) Jogo compartilhado atividade organizada compartilhada entre adulto e criança. 19) Nomeação atos ou emissões usados para focalizar sua própria atenção em um objeto ou evento através da identificação do referente. 20) Narrativa Emissões destinadas a relatar fatos reais ou imaginários, pode haver ou não atenção por parte do ouvinte. Wetherby, 1986; Fernandes, 1996 Pesquisas nesta área revelaram diferenças entre crianças autistas e seus pares em 2 (dois) aspectos importantes da comunicação funcional: as formas de comunicação que eles usam e as funções ou objetivos relacionados aos esforços de comunicação . Formas de comunicação podem variar de métodos não verbais (gestos ou sinais), a métodos verbais (a fala). As formas de comunicação usadas por crianças autistas aparentam ser qualitativamente diferentes daquelas usadas por crianças normais (Stone & Caro Martinez, 1990). Existem poucos estudos das funções comunicativas gestuais da criança autista. Por exemplo, Wetherby e colaboradores (1989) descobriram que crianças pré-escolares autistas tem mais probabilidade do que outras crianças prélingüísticas a usarem formas gestuais de comunicação no isolamento, sem acompanhamento de vocalizações. Crianças autistas também aparentam ser limitadas no tipo de gestos que elas usam. Um número menor de gestos de compartilhar a atenção, como apontar ou mostrar objetos, são vistos neste grupo. Isto representa um grande desvio do desenvolvimento pré-lingüístico normal e pode estar relacionado de alguma forma, à sua falha no uso da linguagem espontânea com função comunicativa . Quanto aos objetivos relacionados aos esforços comunicativos, em contraste com o desenvolvimento sincronizado das funções comunicativas visto em crianças normais, parece que a criança autista apresenta um padrão irregular de desenvolvimento, com funções específicas emergindo numa seqüência previsível, adquirindo as funções de linguagem uma de cada vez. Recentes estudos indicam que existe alguma consistência na ordem de emergência das funções comunicativas na criança autista (Prizant & Duchan, 1981; Prizant & Rydell, 1984; Wetherby & Prutting, 1984). Um modelo da ontogênese das funções comunicativas na criança autista foi proposto por Wetherby (1986), derivado desses recentes estudos, assim como de observações clínicas. Este modelo é relatado a seguir. As crianças autistas estudadas mostraram a capacidade de regular o comportamento do outro para obter um propósito (função regulatória), e uma deficiência na habilidade de atrair e direcionar a atenção do outro para si próprio ou para um objeto. Então, parece que a criança autista usa comunicação intencional inicialmente fora do contexto de interação social a fim de alcançar um fim ambiental. Uma criança autista pode pegar a mão de um adulto para obter o objeto desejado, como se a mão do adulto fosse um objeto inanimado. O grau que a criança autista adquire no uso da comunicação para alcançar um fim social pode variar da falha completa até o uso de ecolalia tardia ou de criativas expressões verbais para este propósito. Wetherby & Prutting (1984) reportaram que os indivíduos autistas inicialmente tendem a obter um fim social através da função de pedido de rotina social, representando um uso rudimentar de comunicação para atrair a atenção do outro sobre si próprio. A intenção precoce da criança autista em atrair a atenção de outros (função de pedido de rotina social) pode também estar amarrada a fins ambientais. Crianças autistas podem desenvolver o uso de certos comportamentos, por exemplo saudações, como parte de um ritual, ao invés de perceber a presença de outra pessoa. As funções de “chamada” e “pedido de consentimento” podem ser usadas com um objetivo de obter um fim ambiental. A função de “exibicionismo”, que leva a um fim social puramente, pode hipoteticamente emergir mais tarde, entretanto o uso desta função pela criança autista não foi reportada na literatura. A função de dirigir a atenção do outro para um objeto ou evento com um fim social (garantir um foco de atenção conjunta) parece ser uma função usada “tardiamente” pela criança autista. Crianças autistas falham no uso de nomeação interativa e comentário no nível pré-lingüístico, como mostrar, apontar e/ou vocalizar, usado pelas crianças normais. Estas funções não são ausentes na síndrome autística mas preferencialmente são adquiridas através do uso da ecolalia imediata ou tardia pelas crianças autistas de níveis mais avançados de desenvolvimento lingüístico (Prizant & Rydell,1984). Em 1986, Loveland & Landry, ao estudar a atenção compartilhada de crianças autistas verificaram que estas crianças tiveram performances indicativas de dificuldades em compartilhar atenção mesmo em situações que não havia necessidade de uso ou compreensão de linguagem oral. A interferência das dificuldades de compartilhar atenção na comunicação de crianças autistas também foi investigada por Mundy e col. (1990), que concluíram que as dificuldades sociais interferem nos níveis pragmáticos da comunicação. Crianças autistas mostram heterogeneidade na emergência das funções não interativas, similar as funções comunicativas interativas. Com base nas evidências disponíveis até esta data, parece que as funções não interativas são desenvolvidas paralelamente as funções interativas. A motivação inicial da criança autista para o uso das funções não interativas é a auto estimulação ou prática e diminuem com os avanços do nível lingüístico e cognitivo. A função não interativa de regular o seu próprio comportamento (autoregulatório) parece emergir nos estágios precoces do desenvolvimento verbal das crianças autistas, como nas crianças normais, usualmente na forma de ecolalia imediata ou tardia. A aquisição da função de focar a própria atenção em um objeto ou evento é uma função não interativa “tardia” nas crianças autistas. Esta função parece emergir subseqüentemente à função auto-regulatória, e primeiro na forma performativa. Algumas crianças autistas eventualmente adquirem as funções de nomeação e comentário não interativo em estágios mais avançados do desenvolvimento da linguagem através do uso da ecolalia imediata ou tardia. O desenvolvimento comunicativo na criança autista é caracterizado por um desdobramento gradual das funções comunicativas envolvendo formas contextuais restritas até formas mais flexíveis. A função comunicativa emerge primeiro através do uso de formas contextualmente restritas, isto é, formas cujos significados são demarcados no contexto. A criança autista desenvolve o uso de comportamentos estereotipados que são estritamente atados a um contexto e podem adquirir a forma de gestos idiossincráticos ou expressões verbais ecolálicas contextualmente restritas. Pode desenvolver posteriormente o uso de gestos convencionais e fala referencial ou sinais, primeiro usado rigidamente no contexto de aquisição e depois usado criativamente num contexto flexível. Embora a criança autista possa ter progredido no uso de significados flexíveis contextualmente para uma função comunicativa, a evolução da descontextualização de cada nova função é repetida e é cíclica por natureza. Em resumo, embora várias funções de linguagem, para alcançar fins ambientais e sociais, para propósitos interativos e não interativos, emergem concorrentemente no desenvolvimento normal, na criança autista elas aparecem no desenvolvimento independentemente, como uma evidência da heterogeneidade de aquisição. Certas funções são mais fáceis para a criança autista e então emergem mais cedo do que outras funções. Além disso, a emergência das funções comunicativas foram descritas como um processo cíclico de formas contextualmente restritas até formas mais flexíveis. Para Wetherby (1986) o perfil distinto das funções comunicativas mostradas pelas crianças autistas não assemelha-se a um estágio primitivo do desenvolvimento normal. Embora muitas funções comunicativas mostradas por essas crianças se pareçam em alguns pontos com o desenvolvimento normal, o tempo relativo ao surgimento é discrepante em relação ao processo normal de desenvolvimento. Embora algumas crianças autistas não desenvolvam algumas funções comunicativas, a falta de certas funções não são inerentes a síndrome autística. O perfil comunicativo associado ao autismo pode ser parcialmente explicado por fatores relacionados ao ambiente e a qualidade das interações, assim como por fatores inerentes à criança, tais como as habilidades sociais e cognitivas. A seqüência proposta de aquisição do desenvolvimento comunicativo no autismo é especulativa e necessita de suporte e de estudos adicionais da comunicação autista. Na investigação sobre os aspectos funcionais da comunicação de cinquenta crianças autistas, Fernandes (1996) chama a atenção para a assimetria que costuma ocorrer na comunicação entre adultos e crianças autistas, manifestada pelo domínio do espaço comunicativo pelos primeiros. O senso comum coloca a criança autista como um sujeito que não se comunica e, portanto, autoriza e até indica que o adulto tome mais iniciativas de comunicação, como forma de “estimulação de linguagem”. Os resultados apresentados, entretanto, indicam que se o adulto tomar menos iniciativas de comunicação provavelmente a criança ocupará este espaço. Os dados desta pesquisa a respeito dos aspectos funcionais da comunicação das crianças autistas também exigem reflexão a respeito do estereótipo de que crianças autistas não se comunicam. Os resultados indicam que, se houver espaço, essas crianças podem ocupá-lo , embora muito menos do que as crianças normais. Ou seja, sua interação também parece ser influenciada pelo contexto lingüístico. Evidentemente não se trata de afirmar que a diferença entre a comunicação da criança autista e da criança normal seja apenas quantitativa. Trata-se de enfatizar que as grandes diferenças quantitativas provavelmente mascaram algumas das possibilidades comunicativas dessas crianças. 9. TERAPIA DE LINGUAGEM Há aproximadamente uma década, a literatura internacional a respeito de “terapia de linguagem” com crianças autistas apresentava exclusivamente relatos de procedimentos de condicionamento operante, ou seja, experiências de treino de fala. Esses procedimentos incluem variáveis como o espaço físico no qual as sessões de treino eram realizadas e os elementos utilizados nas etapas de aproximações sucessivas – desde a imitação de sons não humanos (Wolf & Ruttemberg,1967) e postura corporal global até rotinas escolares com chamada e calendário . A partir dos anos oitenta, a literatura passa a contar com relatos de utilização de procedimentos de condicionamento operante para treinar o uso de gestos simbólicos em crianças autistas, como um procedimento alternativo ao treino de fala, cujos resultados eram sempre inferiores ao esperado. Esses procedimentos, entretanto, envolviam também elementos primitivos. Diversos estudos relatam a utilização conjunta de gestos e fala em procedimentos de treino de comunicação, entretanto, os resultados obtidos são inconsistentes (Fernandes, 1995). A perspectiva de que o treino de linguagem deva ser conduzido numa situação mais próxima das situações naturais às quais a criança está exposta passou a ser enfatizada por diversos autores, embora sem que a terapia de linguagem deixasse de ser abordada como uma situação de treino. A partir disso, as propostas de treino de fala passaram a incluir aspectos da interação, facilitação, generalização, transferência e colaboração (Bloch e col.,1980). Para Fernandes (1995) as propostas terapêuticas que envolvem treino de fala partem do pressuposto que fala e linguagem são uma coisa só e acabam por enfocar apenas a menor das dificuldades da criança autista. Os estudos abordando as dificuldades com o uso funcional da linguagem fundamentaram propostas terapêuticas mais próximas às necessidades das crianças autistas. A relação entre cognição e linguagem e as diversas funções da linguagem em diferentes contextos começaram a ser estudadas sob a ótica da teoria pragmática. Dessa forma, torna-se possível o estudo das alterações da linguagem de crianças autistas em sua característica mais evidente: as dificuldades de interação. Por outro lado, só a adoção de uma perspectiva abrangente permite que o estudo da comunicação de crianças autistas forneça subsídios para a prática clínica e possibilite ao fonoaudiólogo a construção de uma identidade mais distante da caracterização do treinador e mais próxima do conceito de terapeuta. A investigação da linguagem das crianças autistas passou a incluir elementos como as iniciativas de comunicação, motivação, a interferência de diferentes interlocutores na performance da criança, suas intenções comunicativas, o contexto interacional, diferenças de papéis comunicativos e as possibilidades cognitivas da criança (Wetherby, 1986; Frith, 1989; Mundy e col.,1990; Stone & Caro- Martinez, 1990). Os recentes estudos relatados acima sobre a comunicação de crianças autistas trouxeram implicações diretas aos programas de intervenção da linguagem para crianças autistas. Primeiro, a noção de intenção comunicativa deve ser o foco inicial dos esforços de intervenção da linguagem. Wetherby & Prutting (1984) encontraram intenção comunicativa vocal, assim como imitação vocal, como pré-requisito de fala referencial nos indivíduos autistas. Similarmente, intenção comunicativa gestual, assim como imitação gestual, foram descobertas como precursores para sinais referenciais de linguagem. A segunda implicação clínica foi que certas funções comunicativas são mais complexas que outras para a criança autista, de uma maneira discordante do desenvolvimento normal. Programas de intervenção de linguagem devem divergir do modelo “normal” e refletir o curso do desenvolvimento comunicativo do menos complexo ao mais complexo para a criança autista. Com base no modelo preliminar de emergência das funções comunicativas nas crianças autistas, apresentado anteriormente, a intervenção deve começar com a função comunicativa de regular o comportamento do outro para atingir um fim ambiental (função regulatória). A linguagem deve ser trabalhada dentro do contexto comunicativo de requerer objetos ou assistência e protestar (quadros 4 e 5). Situações comunicativas podem ser facilmente planejadas, por exemplo, oferecendo a escolha de alguns objetos mas retendo o item desejado; apresentando uma tarefa interessante que a criança não consiga completar sem ajuda; e oferecendo itens não desejados ou utilizando eventos que ocorrem naturalmente durante o horário das refeições, hora do lanche e hora de brincar. As ações de interação entre a criança e o adulto forma o contexto social da aquisição normal da linguagem. A criança autista parece ter dificuldade inerente de regular a atenção conjunta e a ação de interação. Similar ao desenvolvimento normal, as funções sociais de comunicação (quadro 4 e 5) parecem emergir dentro de contextos de jogos sociais ritualizados. A predileção da criança autista por comportamentos ritualizados pode ser capitalizada para estabelecer rotinas sociais e ,então, ser utilizada para ensinar a criança a requerer essas rotinas sociais. Subseqüentemente, a função comunicativa de comentar pode ser trabalhada através de atividades que destaquem características particulares (por exemplo: coisas que estão quentes, molhadas ou pegajosas, ou que rodopiam, ou produzem sons musicais) Por exemplo, alguns objetos frios podem ser dados a criança, seguidos imediatamente pela apresentação de objetos quentes, ou alguns blocos podem ser dados a criança para empilhar ou despejar numa caixa, seguido imediatamente pela apresentação da figura de um animal ou outro brinquedo não esperado. A criança pode ser ensinada a comentar em um nível pré-lingüístico, apontando ou mostrando, ou em um nível lingüístico, nomeando ou descrevendo a qualidade do objeto inesperado. A função de comentar deve prover uma ligação transicional importante com outras funções comunicativas (Stone & Caro-Martinez,1990). Comentar deve ser a primeira função de atenção conjunta (quadros 4 e 5) a ser desenvolvida. Para crianças com fala, em particular, a presença dos comentários pode significar o potencial de expandir a outras funções de atenção conjunta (por ex., a busca de informações) e deve servir como um “trampolim” para ensinar outras funções mais avançadas. Funções não interativas da linguagem (quadro 4) também devem ser endereçadas na intervenção da linguagem. A terceira implicação clínica é que programas de intervenção de linguagem devem considerar o desenvolvimento recíproco entre meios/ recursos comunicativos e funções comunicativas na criança autista. Recursos mais convencionais e recursos contextualmente flexíveis devem ser mapeados para funções existentes, e novas funções devem inicialmente ser ensinadas através de recursos rudimentares (por ex.: gestos contextualmente restritos). Embora a criança possa usar recurso verbal para uma função, uma nova função pode necessitar ser trabalhada num nível pré-lingüístico através de recursos gestuais. Além disso, a criança pode usar fala criativa numa função e uma nova função ser adquirida através de recursos de ecolalia. A quarta implicação clínica dos estudos pragmáticos da linguagem refere-se ao contexto social da intervenção da linguagem. O contexto da aprendizagem de linguagem deve ser desenhado para facilitar o uso espontâneo da comunicação através de recursos convencionais. Para promover a generalização da linguagem espontânea, outros fatores devem ser considerados no contexto de aprendizagem da linguagem: a necessidade da criança experimentar o papel de ”iniciador” e “respondedor”, o efeito da variação do parceiro comunicativo, assim como a importância de selecionar metas de linguagem baseadas nas funções comunicativas, ao invés de ter como alvo meramente vocabulários ou estruturas sintáticas. Programas de intervenção de linguagem baseados nos princípios de modificação de comportamento podem ser planejados para facilitar a comunicação espontânea com um discreto formato experimental. O clínico pode selecionar materiais estimulantes que são funcionais e interessantes para a criança autista. O clínico pode também utilizar pragmaticamente conseqüências apropriadas. Por exemplo, quando trabalha com a criança a função de pedido de objetos, a conseqüência deve ser dar o objeto requerido à criança. Quando ensina à criança a função de protesto, a conseqüência deve ser remover o objeto protestado. Quando trabalha a função de comentário, a conseqüência deve ser dirigir a atenção ao objeto ou evento comentado, direcionando o olhar para ele, apontando ou fazendo um comentário semanticamente contingente sobre ele. Como uma alternativa do discreto formato experimental, o clínico pode planejar um ambiente de aprendizado da linguagem mais natural usando procedimentos de ensino incidentais. Numa situação de ensino incidental a criança indica interesse em um objeto particular ou uma necessidade de assistência através de recursos verbais e não verbais. Por exemplo, quando ensina a criança a pedir, o clínico pode deslocar alguns objetos desejados para fora do alcance da criança ou quando a criança mostrar interesse em algum objeto, o clínico pode estimular um ato comunicativo como apontar, pedir o objeto com um sinal ou palavra. Portanto, no ensino incidental o clínico segue a direção da criança, ao invés de determinar a priori o que interessa à criança autista. Certos aspectos de programas de tratamento comportamental tipicamente usados com crianças autistas podem ser pragmaticamente contra produtivos, uma vez que usam situações não naturais e ignoram as intenções comunicativas da criança. Tais programas podem inibir, interromper ou terminar com a interação social e podem não permitir que a criança entenda o uso da comunicação para alcançar um fim social. Neste sentido, sabendo a importância da utilização das ocorrências naturais/usuais do dia-a-dia, com suas conseqüências como forma de intensificar o aprendizado da linguagem; as abordagens mais atuais de linguagem com crianças autistas vem cada vez mais salientando a importância do envolvimento dos pais neste processo, como grandes agentes do desenvolvimento de seus filhos. 10. O PAPEL DA FAMÍLIA Na última década, tem sido aumentada a ênfase na importância da intervenção precoce de linguagem com crianças autistas e na habilitação dos pais para participar ativamente deste processo, já que são eles que proporcionam o ambiente em que a criança passa a maior parte do tempo. O programa Hanen (Pinto,1998) para pais de crianças com alterações de linguagem se baseia nestas questões e busca orientar os pais de forma que eles possam ter um papel central na facilitação da aprendizagem da linguagem. O programa é interacionista e está centrado na filosofia de que a linguagem do ser humano se desenvolve no ambiente familiar, frente a estímulos contínuos e necessidades da vida diária. Além do vínculo afetivo entre pais e crianças ser incomparavelmente mais forte do que o vínculo terapeuta/criança, também as oportunidades que surgem em casa são infinitamente mais propícias ao desenvolvimento da comunicação do que aquelas que aparecem dentro de um consultório. Além disso, há evidências que sugerem que a comunicação espontânea de crianças autistas é mais limitada em situações não familiares (Stone & CaroMartinez, 1990). Crianças autistas demonstram mais comunicação social na presença de seus pais do que na presença de adultos não familiares. O enfoque familiar assume a unidade familiar como uma entidade bio-psicosocial, na qual a criança é vista como parte de um sistema maior familiar. O envolvimento dos pais serve não apenas para promover o aprendizado da linguagem da criança, mas também para enriquecer o relacionamento entre pais e filhos. Esta é uma conseqüência natural do aumento da sensibilidade dos pais em relação às necessidades das crianças, interesses e esforços comunicativos. Os pais precisam aprender a aproveitar ao máximo as situações do dia a dia fazendo com que estas se tornem a forma mais prazerosa e constante de estimulação da linguagem. Para isto é preciso que os pais aprendam primeiro a avaliar seu próprio comportamento e percebam as reações de sua criança. Uma ferramenta importante para este fim são as filmagens das interações da criança com sua família. Desta forma eles podem ajustar posturas e atitudes, melhorando, conseqüentemente, a comunicação com seus filhos. Grupos de pais ou conversas informais entre a família e o fonoaudiólogo podem ser feitas, com muita dinâmica e pouca teoria, com o objetivo de discutir sobre o processo de desenvolvimento da linguagem normal e na criança autista, os recursos e as funções da comunicação e outros assuntos de interesse. No desenvolvimento normal, o bebê logo começa a ter um diálogo com sua mãe. A mãe brinca com ele, ele gorjeia, ela brinca de novo, ele sorri, e assim esse diálogo prossegue, sempre tendo o caminho de ida e volta da comunicação até que, quando a criança já é maior, isto vai se tornar uma conversação. Com a criança autista tudo acontece de forma diferente, sua forma de passar a mensagem é muito tênue e principalmente muito vagarosa, parecendo haver uma falta de receptividade e interesse pelas pessoas. A mãe não percebendo a resposta e na ansiedade de preencher o silêncio deixado pela criança, começa a mandar mais estímulo, falando mais. E quanto mais ela fala, mais inibe a resposta de seu filho. Assim, desaparece o “vai e vem da linguagem”, passando a existir somente o “vai”. Por esta razão, o programa Hanen (Weitzman,1998) orienta que, em vez de bombardearmos a criança com fala, devemos Observar, Esperar e Escutar. Através da “observação” da criança os pais vão aprender como e porque seus filhos se comunicam, portanto, aumentando sua sensibilidade aos esforços da criança para se comunicar. Muitas crianças tentam se comunicar com seus pais passando mensagens da forma que sabem ou conseguem. Pode ser um reflexo, um gesto, um olhar ou uma “fala ecolálica”. Quando os pais não são observadores, essas mensagens não são decodificadas e o canal da comunicação fica fechado. Sabendo “Esperar” os pais dão à criança o tempo que ela precisa para se expressar. E “ouvindo”, o pai dá a atenção individual e o encorajamento que a criança precisa para continuar a conversação. A tendência do adulto é direcionar a criança o tempo inteiro com ordens e perguntas, não dando a ela nem o tempo nem a liberdade necessária para fazer o que ela realmente deseja. Muitas vezes pensamos que a criança não colabora, mas, na verdade, estamos querendo o tempo inteiro impor nossos desejos. Se invertemos a situação, deixando a criança liderar, veremos que a comunicação com ela se torna mais fácil. Para que isto aconteça, é necessário adaptar nosso comportamento para que possamos compartilhar o momento com nossa criança. Uma regra simples da comunicação e que funciona muito bem é mantermos os olhos à altura de nossos filhos, estando face a face. Outra regra simples que obtém bons resultados é a imitação. Sempre que quisermos nos conectar com uma criança pequena, basta imitá-la. Isto faz com que ela perceba que estamos nos interessando por ela. É como se nós passássemos a aceitá-la, como se entrássemos em seu mundo. Depois disso ela poderá começar a prestar atenção em nós e começar também a nos imitar. A regra do “vai e vem” também é de grande importância. Esta prática deve ser trabalhada desde cedo em todo tipo de brincadeira. Sempre deverá haver a vez da criança e a vez do adulto alternadamente. Há brinquedos que propiciam mais este tipo de prática, que nada mais é do que um treinamento para um futuro diálogo. A grande vantagem dos pais aprenderem a avaliar os próprios filhos é que eles passam a ajustar suas expectativas a um patamar mais real. O isolamento da criança autista e a falta de resposta para as pessoas do seu ambiente pode ter outro impacto para seus pais. Nós precisamos de uma resposta para nossas ofertas de amor e para nossos esforços em confortar e satisfazer nossas crianças. A falta de resposta da criança autista pode desencorajar os pais para conversas com ela como fariam com uma criança que responde normalmente. Então, a criança tem uma experiência mínima de verbalização e recepção de estímulos verbais. A partir do momento em que o tipo de linguagem da criança autista for traduzido e correspondido, o canal comunicativo abre-se e começa a interação pais e filho. Porém, isto só poderá acontecer após uma observação cuidadosa do comportamento da criança por parte dos pais. Após conhecerem profundamente o comportamento de seus filhos, os pais precisam fazer um auto-conhecimento. O método Hanen descreve cinco tipos de pais: • pai “salvador” é aquele que quer fazer tudo por seu filho, não dando a ele a oportunidade de desenvolver suas potencialidades e sua personalidade própria. • a mãe “apressada” é aquela que vive correndo, que está sempre atrasada, que não presta atenção em seu filho pois não tem tempo para isto. • pai “professor” é aquele que nunca brinca com seu filho, mas que não perde uma só ocasião para ensinar tudo a ele. O que este pai não sabe é que se brincasse no mesmo nível da criança, de forma alegre e sem questionamentos, ela aprenderia muito mais. • a mãe “cansada” é aquela que, como a mãe apressada, também nunca tem um momento para brincar com seu filho. • por último, há a mãe “afinada ou adequada” que desce ao nível da criança, que brinca de forma tranqüila, que observa, espera e escuta, que deixa que seu filho lidere a brincadeira. É lógico que seria utópico querer que os pais fossem durante todo o tempo afinados, mas quanto maior o tempo em que eles o puderem ser, melhor. Para que os pais de crianças autistas tenham sucesso no papel de facilitadores da comunicação, o programa Hanen para famílias de crianças com PDD (Distúrbio Pervasivo do Desenvolvimento) levanta alguns pontos importantes (Weitzman,1998): • O foco inicial dos pais deve ser no engajamento da criança na interação, o que envolve a resposta da criança mais do que a iniciativa, particularmente nos primeiros estágios do desenvolvimento da linguagem. Por exemplo, os pais devem ser orientados a iniciarem rotinas sociais ou jogos e estruturá-los de forma que a criança manifeste uma resposta através da requisição para que os pais continuem o jogo. • Rotinas altamente estruturadas devem ser o contexto inicial para a promoção da interação. Isto inclui rotinas sociais, rotinas diárias e rotinas de atividades estruturadas. É preciso ajudar os pais a estabelecerem uma rotina que tenha papéis claramente definidos, uma seqüência previsível de eventos, que seja quebrada em pequenos passos para construir oportunidades repetitivas para a criança responder. Os pais devem marcar cada passo por frases ou jargões consistentes e deve repetí-los tão freqüentemente quanto possível. Uma vez que as rotinas estiverem bem estabelecidas, elas podem ser alteradas ou violadas para introduzir novas ações e vocabulários ou eliciar respostas diferentes ou mais avançadas da criança. • Os pais devem ser orientados a usarem “prompts” consistentemente, variando daqueles que são extremamente diretivos àqueles que têm um grau mínimo de direcionamento. Como as crianças autistas freqüentemente ainda não aprenderam a tomar seu turno numa interação, “prompts” devem ser altamente diretivos num primeiro momento, tal como a assistência física para a criança acenar tchau ou dizer à criança o que se espera que ela diga. Os “prompts” são referidos como “sinais” e são tratados com o significado de suporte para a participação contínua da criança numa interação, deixando-a saber exatamente o que é esperado que ele faça com o objetivo de tomar seu turno na interação. O objetivo é diminuir gradualmente “prompts” altamente diretivos ou substituí-los por outros menos diretivos. Por ser uma expressão difícil de ser traduzida para o português, o termo “prompt” foi mantido originalmente, poderíamos pensar em “incitadores” de interação. • Como já relatado, parece que as crianças autistas adquirem as funções da linguagem uma de cada vez e numa ordem de emergência previsível. As crianças pesquisadas por Wetherby (1986) foram mais competentes na regulação do comportamento dos adultos para a obtenção de um fim ambiental ( para requisitar um objeto ou ação ). Com isto em mente, os pais devem ser orientados a enfocar primeiro o encorajamento de suas crianças a fazerem requisições tanto para obter fins ambientais ( como pedir comida ou pedir aos pais para assoprar bolas ) quanto para alcançar fins sociais ( como completar parte de uma rotina social ). Os pais podem conseguir isto manipulando o ambiente para obrigar as crianças a fazer requisições, oferecendo escolhas, dando coisas aos poucos, sendo criativamente malicioso ( servindo sorvete sem uma colher ou esquecendo propositadamente uma parte esperada de uma rotina, por exemplo ). • Apoios visuais são importantes com crianças autistas porque sua compreensão visual é quase sempre superior do que a compreensão auditiva. Apoios visuais podem ajudar estas crianças a focalizar e compreender melhor. Figuras e gravuras podem ser usadas como uma forma de aumentar a compreensão e ajudar a diminuir a dependência das crianças de “prompts” verbais. • Crianças autistas são pensadores concretos que tem dificuldade em interpretar a linguagem abstrata. Portanto, não é suficiente apresentar apenas a linguagem para eles. “Estórias Sociais” precisam ser adicionadas para ensiná-los sobre o que significa sentir-se feliz, triste, chateado ou assustado, por exemplo. • Crianças autistas não se saem bem em brincadeiras com bonecas e jogos de “faz-de-conta”. Nos primeiros estágios elas se saem melhor em brinquedos que tem funções específicas, como por exemplo, quebra-cabeças e jogos de encaixe. Freqüentemente elas precisam da direção dos adultos para ensiná-las a usar estes brinquedos apropriadamente. O próximo objetivo é o adulto criar oportunidades para a interação social e comunicação através da brincadeira. Pais precisam encontrar uma boa interação com os brinquedos para engajar suas crianças na brincadeira. O jogo de “faz-de-conta” das crianças autistas é freqüentemente aprendido mecanicamente ( adquirido por repetição ). Desta forma, os pais precisam primeiro direcionar as brincadeiras das crianças e então criarem novos cenários. • Uma vez que a interação social é o ponto crucial das dificuldades que as crianças autistas encontram, os pais devem ser aconselhados a colocarem suas crianças num ambiente de pré-escola estruturado, o mais rápido possível, para dar a elas a vantagem dos modelos de seus pares. Os pais precisam saber os passos que as crianças devem seguir no aprendizado de brincar com outros: inicialmente são indiferentes aos outros, depois passam a observá-los, começam a brincar em paralelo e, finalmente, brincam em participação conjunta. As atividades que são colaborativas e possuem um produto final encorajam mais as interações com outras crianças do que as atividades em aberto. Quando os pais adquirem mais confiança na habilidade de estimular a linguagem de seus filhos, e conseqüentemente se tornam menos ansiosos, a interação e comunicação entre eles se tornam mais efetivas, proporcionando um maior equilíbrio emocional para ambas as partes, além de um maior desenvolvimento intelectual e social da criança. 11. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho consistiu de uma retrospectiva sobre o que é o autismo, o quadro clínico envolvido, as hipóteses etiológicas e o diagnóstico, procurando traçar um perfil da criança autista, a forma como ela se comunica e como podemos nos comunicar com estas crianças. A motivação para a realização de uma pesquisa sobre o Autismo Infantil partiu da necessidade de buscar respostas par uma série de questões sobre este tema, que é objeto de controvérsias e frequentes mudanças em sua conceituação e enfoque terapêutico. Em nossa experiência clínica, muitas vezes somos procurados por pais com queixa de que seus filhos de quatro anos ainda não falam. A família sente-se angustiada por não conseguir se comunicar e não compreender o que está acontecendo com seus filhos. Quando começamos a investigar a história da criança, verificamos que há uma série de comprometimentos que muitas vezes não chamaram a atenção da família ou mesmo do pediatra. São crianças que apresentam uma falta de receptividade e interesse pelas pessoas, dificuldades na comunicação interacional e nas atividades ou jogos simbólicos. Os profissionais que trabalham com crianças precisam estar preparados para que, diante destes quadros, possam fazer um diagnóstico precoce, os encaminhamentos necessários e orientar às famílias. Entretanto, ainda hoje, muitos profissionais se sentem “impotentes” diante de um quadro clínico tão complexo como o autismo. Outra situação comumente vivenciada pelos profissionais, e em especial pela família, é a dificuldade em lidar com o diagnóstico de AUTISMO. É uma palavra que carrega um “estigma” forte, e traz consigo discriminação. Isto se deve à falta de conhecimento e à imagem distorcida que por muito tempo foi associada à criança autista. Este trabalho refletiu a respeito do estereótipo de que crianças autistas não se comunicam. Falhas no uso da linguagem para propósitos comunicativos são expressões muito fortes e não contabilizam as diferenças individuais da população autista. Em adição à heterogeneidade da população de crianças autistas, a natureza do déficit de linguagem muda ao longo do desenvolvimento. As habilidades comunicativas, assim como todas as outras características envolvidas, necessitam ser vistas como um “continuum”. Existe alguma consistência na ordem de emergência das funções comunicativas na criança autista. Pode ser traçado um perfil relativamente homogêneo dessas funções. Mas as características específicas da comunicação mostradas por uma criança individual tem a tendência de variar como uma função das características de desenvolvimento da criança e das características do ambiente de aprendizado de linguagem. Este estudo relatou que algumas crianças autistas usam comunicação intencional através de gestos e/ou fala em um contexto natural. Se houver espaço, essas crianças podem ocupá-lo, embora muito menos do que as crianças normais. Mas para isto é preciso que os pais e todos os profissionais envolvidos saibam OBSERVAR, ESPERAR e ESCUTAR estas crianças e aproveitar todas as situações naturais para estimular o desenvolvimento da linguagem e da comunicação. A partir de uma estrutura pragmática para estudar a linguagem e o comportamento comunicativo associado ao autismo foi possível a proposta de uma abordagem fonoaudiológica mais próxima à necessidade da criança autista. Envolvendo não apenas os aspectos formais da linguagem mas principalmente os funcionais e o contexto em que a comunicação ocorre Nesta visão, o fonoaudiólogo deixa de ter um papel de “treinador de fala” e passa a considerar as dificuldades que a criança apresenta com o uso da linguagem, criando contextos em que as interações possam ser vivenciadas. Os pais devem ser envolvidos no processo, valorizando toda manifestação comunicativa da criança, independente da forma que aparece. Este trabalho poderá abrir novos caminhos para pesquisas sobre a Comunicação da criança autista e para a construção de uma atuação fonoaudiológica que envolva os pais, uma vez que a criança está inserida num sistema maior, na entidade bio-psíco-social que é a família. 12. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMA – Associação de Amigos do Autista. www.ama.org.br, 1999. APARJ – Associação de Pais de Autistas do Rio de Janeiro. www.geocities.com., 1998. AZEVEDO, A.L. Sistema de computador criado no Brasil ajuda a reproduzir cérebro de autistas. O Globo, Rio de Janeiro, 2 abr. 1999. BARTOLUCCI, G. – Formal aspects of language in childhood autism. Advences in Child Behavioral Analysis and Therapy,2:159-185,1982. BERNARD-OPTIZ, V. – Pragmatic analysis of the communicative behavior of na autistic child. Journal of speech and hearing disorders, 47 (1):76-89, 1982. BLOCH, J.; GERSTEN, E.; KORNBLUM, S. – Evaluation of a language program for young autistic children. 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