1 O CONTEÚDO ÉTICO DA SENTENÇA 2 EXISTE ÉTICA NA SENTENÇA? Sentenciar é fazer incidir concretamente a vontade da lei sobre a causa submetida à apreciação judicial. A receita clássica é a subsunção calcada no silogismo em que a lei é a premissa maior, o fato a premissa menor e a conclusão resultaria de se subsumir – inserir – esta naquela. Qual a pertinência disso com a cogitação ética? 3 TUDO A VER! A procura intensificada pelo Judiciário pode refletir um poliedro de causas: o intensificado apreço pelos direitos, a redescoberta da Justiça, o destemor do injustiçado, anteriormente desesperançado quanto à efetividade das prestações estatais. Mas não deixa de significar, também, uma crise de valores. O desrespeito pelo pactuado, a desconsideração pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a falência do caráter. 4 AO PROCURAR A JUSTIÇA... ...o injustiçado pretende mais do que a tópica solução para a questão posta em juízo. Pretende obter – talvez até de forma não inteiramente consciente – uma resposta para a perplexidade gerada pelos dilemas morais desta era. Crise moral seria insuficiente a caracterizar este período. Crise é transitória e os desafios éticos da contemporaneidade parecem ostentar vocação de permanência. 5 OS VALORES DESAPARECERAM? O drama é a indefinição de múltiplos temas morais, marcados por sua subdeterminação institucional, flexibilidade, mutualidade e fragilidade. A multidão de tradições encontra-se em pânico: algumas sobrevivem apesar dos empecilhos. Outras ressuscitam ou são reinventadas. Todas lutam por lealdade e por (re)conquista de autoridade de guiar a conduta pessoal, embora sem esperanças de estabelecer hierarquia que liberasse o destinatário de fazer suas próprias escolhas. 6 TURBULÊNCIA E CONTENCIOSIDADE Esta não é a única leitura da realidade, nem pretende ser a verdadeira. Existem os que se refugiam nas suas rígidas convicções, estruturadas no alicerce imodificável da verdade absoluta. Se a sociedade está a submergir, eles acreditam que sobreviverão, ancorados em suas crenças. Outros se entregarão ao fluir dos fatos, não tentarão reagir à morte da ética ou à sua bem recebida substituição pela estética. Não há certezas nesse campo minado em que a justiça humana se propõe a atuar. Na dúplice missão de pacificar e de sinalizar o que é o correto. 7 A ERA DAS INCERTEZAS A única certeza é a incerteza, muitos afirmam. Suficiente examinar a mensagem de respeitados pensadores, dentre os quais Gilles Lipovetsky. Em “O crepúsculo do dever”, o autor de “A era do vazio” e do “Império do efêmero” sugere que a Humanidade está na era do pós-dever (l’après devoir), uma época pós-deontológica, em que a conduta humana finalmente se libertou dos últimos vestígios de opressivos deveres infinitos, mandamentos e obrigações absolutas. 8 O QUE ISSO SIGNIFICA? A deslegitimação da idéia de auto-sacrifício implica em que o ser humano não se sente estimulado a se lançar na busca de ideais morais e cultivar valores éticos. Os políticos depuseram as utopias. Os idealistas de ontem tornaramse pragmáticos. A presente era é a de individualismo não-adulterado e de busca de boa vida, só limitada pela exigência da tolerância. Esta, casada com individualismo autocelebrativo e livre de escrúpulos, equivale à indiferença. 9 O DESENCANTO DO MUNDO Acreditar que a única postura seja deixar-se levar e não se opor à corrente, representará desencanto para os que acreditam na capacidade humana de edificar um mundo melhor. É preciso reagir a esse torpor e, sem desconhecer as leituras do desalento, extrair delas a vontade de trilhar outros rumos. Urge descontaminar-se do vício da resignação: “O peixe apodrece pela cabeça”, é a frase inicial de um dos sermões de Vieira. 10 OS GRANDES TEMAS DA ÉTICA Os direitos humanos, a justiça social, o equilíbrio entre cooperação pacífica e auto-afirmação pessoal, sincronização da conduta individual e do bem-estar coletivo nada perderam de sua relevância e atualidade. Eles impregnam todos os conflitos enfrentados pelo Judiciário. Apenas precisam ser encarados e tratados de maneira nova. A chave desse exercício é reconhecer a força latente da individualidade humana. 11 INDIVIDUALIDADE CONSTRUÍDA O indivíduo é o ser humano dotado de identidade em perene construção. Constrói-se a identidade fazendo escolhas no processo de autoformatação. As ações que a pessoa precisa escolher, ações que a pessoa escolheu dentre outras que podia escolher mas que não escolheu, é que não prescindem de cálculo, mensuração e avaliação. A avaliação é parte indispensável da tomada de decisão. Necessidade sobre a qual corre-se o risco de não refletir, quando se decide apenas por hábito. 12 RESPONSABILIDADE NA AVALIAÇÃO Ao se avaliar, fica evidente que útil não é necessariamente bom, que belo não tem que ser verdadeiro e que legal nem sempre é justo. Tarefa complexa e difícil. Quando se questionam os critérios de avaliação, as dimensões da mensuração ramificam-se e tomam direções cada vez mais distanciadas entre si. O modo certo, uma vez unitário e indivisível, começa a dividir-se em economicamente sensato, esteticamente agradável, moralmente apropriado. 13 O DRAMA DO JUIZ As decisões podem ser certas num sentido e erradas noutro. Como mensurar as conseqüências da decisão e por que critérios? A legalidade formal ou a legitimidade? Quando numerosos critérios se aplicam – todos razoavelmente fundamentáveis – a qual se deve conceder prioridade? 14 NINGUÉM SE SUBTRAI À PRÓPRIA CONSCIÊNCIA O ônus de cada opção é individual, embora o erro costume recair sobre a Instituição por inteiro. Não há receita infalível para a decisão eticamente indiscutível. O código ético a toda prova – universal e fundado inabalavelmente – nunca vai ser encontrado. Uma moralidade não aporética e não ambivalente, uma ética que seja universal e objetivamente fundamentada, constitui impossibilidade prática. É um oxímaro, uma contradição em termos. 15 E ISSO PORQUE? As asserções “Os seres humanos são essencialmente bons, e apenas precisam de ajuda para agir segundo sua natureza” e “Os seres humanos são essencialmente maus e devem ser impedidos de agir segundo seus impulsos” são ambas errôneas. Os humanos são moralmente ambivalentes: a ambivalência é ínsita à criatura. Todos os arranjos sociais – instituições amparadas pelo poder, regras e deveres racionalmente articulados e ponderados – desenvolvem essa ambivalência como seu material de construção, dando o melhor de si para purificá-lo de seu pecado original de ser ambivalência. 16 APRENDER A VIVER SEM GARANTIAS Não se pode garantir a conduta moral absoluta, sem o risco de desvios – maiores ou menores – de rota. É preciso aprender a viver sem essas garantias e conscientes de que elas nunca serão oferecidas. Uma sociedade perfeita, assim como um ser humano perfeito, não é perspectiva viável. É o que nos deve impregnar de humildade. 17 FENÔMENOS MORAIS SÃO IRRACIONAIS Não são regulares, repetitivos, monótonos ou previsíveis de forma a permitir sejam representados como guiados por regras. Não se podem exaurir por qualquer código ético. Não são suscetíveis de enquadramento em definições exaustivas e não-ambíguas, a sugerir imediata distinção entre adequado e inadequado sem deixar a penumbra da ambivalência e das múltiplas interpretações possíveis. 18 IMPULSOS CONTRADITÓRIOS A maior parte das escolhas morais são feitas entre impulsos contraditórios. Ao se atender plenamente a um impulso moral, pode-se chegar – paradoxalmente – a uma conseqüência imoral. Impor escolhas, na síntese do cuidar do Outro, como opção levada ao extremo, conduz à aniquilação da autonomia do Outro, situação indesejável de dominação moral e de opressão. 19 O HORIZONTE MORAL A situação moral livre de ambigüidade tem apenas a existência utópica de horizonte e estímulo, imprescindíveis para a construção de um eu moral, mas não como alvo realista de prática ética. Ao sentenciar, o juiz emite expressivos sinais da etapa em que se encontra nessa edificação interminável. Em cada decisão, pode ser detectado o DNA MORAL de seu prolator. 20 SE A MORAL NÃO É UNIVERSALIZÁVEL... ...o que não significa adotar a tese do relativismo moral, de acordo com a proposição de que a moralidade não passa de costume local e temporário... Existem alguns valores universais que podem variar de conteúdo, mas têm um núcleo semântico irredutível. Valores que foram explicitados no pacto fundante e ao qual o juiz se comprometeu a observar durante toda a sua carreira. 21 MATÉRIA PRIMA DA SOCIABILIDADE Tais valores refletem o arranjo excelente da convivência humana. Constituem a matéria-prima da sociabilidade e do compromisso com outros, forma e modelo de todas as ordens sociais. Precisam ser domesticados, aproveitados e explorados, de preferência a serem meramente supressos ou proscritos, situação ocorrente quando são ignorados nas decisões. Depende do juiz a sua implementação, a disseminação da crença de que são necessários e naturais e que sem eles é quase impossível o desenvolvimento do eu moral. 22 QUAIS SÃO ESSES VALORES? São quase todos os princípios de que é pródiga a Carta Cidadã. São aqueles valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social de que fala o preâmbulo. São os valores da cidadania, o supra-valor, o princípio norteador e parâmetro hermenêutico da dignidade da pessoa humana. São os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político e aqueles traduzíveis pela expressão objetivos fundamentais da República. 23 NÃO É POUCA PRETENSÃO... ... construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Existe uma carga semântica mínima no valor/compromisso de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Princípios como a prevalência dos direitos humanos e a solução pacífica dos conflitos devem inspirar o julgador brasileiro. 24 INQUESTIONÁVEL O CONTEÚDO ÉTICO Toda decisão tem conteúdo ético, pois a função de julgar está fundada numa Constituição que pela primeira vez explicita o princípio da moralidade. A eticidade presente no pacto fundante se irradiou para o Código Civil, a Constituição do homem comum, na expressão de Miguel Reale e está presente em todo ordenamento. Não há decisão ou ato judicial desconectado da ética. 25 INEXISTE JULGAMENTO AÉTICO Restringir a decisão à mera técnica asséptica e pretensamente neutral é trilhar a ética da indiferença, da insensibilidade, da omissão ou do descompromisso com os valores fundantes. A decisão identifica o eu moral do prolator. É preciso repensar o conceito de direito como mínimo ético, na dicção de Jellineck. 26 INEXISTE POSTURA AÉTICA Excessivo formalismo, opção pelo procedimentalismo estiolante, procrastinação deliberada, desatenção quanto aos aspectos metajurídicos ou extrajurídicos de cada processo, é desconsiderar comandos constitucionais e legais (LOMAN). A par disso, é desatender a comando de um órgão do Poder Judiciário – o CNJ – que editou um Código de Ética da Magistratura e exorta cada juiz brasileiro à sua observância. E apela ao magistrado desenvolva adequadamente a noção de consequencialismo. 27 URGÊNCIA ÉTICA Se existe algo de que se possa dizer que quanto mais dele se necessita, tanto menos facilmente está disponível, esse algo é a ética. É a matéria-prima de cuja carência o Brasil de hoje mais se ressente. Clama-se por ética para revigorar a crença nas instituições e a esperança no futuro da Nação. Ética é mais urgente do que o conhecimento jurídico ou a capacidade técnica. A Magistratura está credenciada a cuidar desse suprimento e a obter êxito nessa missão. 28 FIM