1 2 O CONTEÚDO ÉTICO DA SENTENÇA Sentenciar é

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O CONTEÚDO ÉTICO DA SENTENÇA
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EXISTE ÉTICA NA SENTENÇA?
Sentenciar é fazer incidir concretamente a vontade da lei sobre a
causa submetida à apreciação judicial.
A receita clássica é a subsunção calcada no silogismo em que a lei é a
premissa maior, o fato a premissa menor e a conclusão resultaria de
se subsumir – inserir – esta naquela.
Qual a pertinência disso com a cogitação ética?
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TUDO A VER!
A procura intensificada pelo Judiciário pode refletir um poliedro de
causas: o intensificado apreço pelos direitos, a redescoberta da
Justiça, o destemor do injustiçado, anteriormente desesperançado
quanto à efetividade das prestações estatais.
Mas não deixa de significar, também, uma crise de valores. O
desrespeito pelo pactuado, a desconsideração pelo princípio da
dignidade da pessoa humana, a falência do caráter.
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AO PROCURAR A JUSTIÇA...
...o injustiçado pretende mais do que a tópica solução para a questão
posta em juízo.
Pretende obter – talvez até de forma não inteiramente consciente –
uma resposta para a perplexidade gerada pelos dilemas morais desta
era.
Crise moral seria insuficiente a caracterizar este período. Crise é
transitória e os desafios éticos da contemporaneidade parecem
ostentar vocação de permanência.
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OS VALORES DESAPARECERAM?
O drama é a indefinição de múltiplos temas morais, marcados por sua
subdeterminação institucional, flexibilidade, mutualidade e fragilidade.
A multidão de tradições encontra-se em pânico: algumas sobrevivem
apesar dos empecilhos. Outras ressuscitam ou são reinventadas.
Todas lutam por lealdade e por (re)conquista de autoridade de guiar a
conduta pessoal, embora sem esperanças de estabelecer hierarquia
que liberasse o destinatário de fazer suas próprias escolhas.
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TURBULÊNCIA E CONTENCIOSIDADE
Esta não é a única leitura da realidade, nem pretende ser a
verdadeira.
Existem os que se refugiam nas suas rígidas convicções, estruturadas
no alicerce imodificável da verdade absoluta. Se a sociedade está a
submergir, eles acreditam que sobreviverão, ancorados em suas
crenças.
Outros se entregarão ao fluir dos fatos, não tentarão reagir à morte da
ética ou à sua bem recebida substituição pela estética.
Não há certezas nesse campo minado em que a justiça humana se
propõe a atuar. Na dúplice missão de pacificar e de sinalizar o que é o
correto.
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A ERA DAS INCERTEZAS
A única certeza é a incerteza, muitos afirmam. Suficiente examinar a
mensagem de respeitados pensadores, dentre os quais Gilles
Lipovetsky.
Em “O crepúsculo do dever”, o autor de “A era do vazio” e do “Império
do efêmero” sugere que a Humanidade está na era do pós-dever
(l’après devoir), uma época pós-deontológica, em que a conduta
humana finalmente se libertou dos últimos vestígios de opressivos
deveres infinitos, mandamentos e obrigações absolutas.
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O QUE ISSO SIGNIFICA?
A deslegitimação da idéia de auto-sacrifício implica em que o ser
humano não se sente estimulado a se lançar na busca de ideais
morais e cultivar valores éticos.
Os políticos depuseram as utopias. Os idealistas de ontem tornaramse pragmáticos.
A presente era é a de individualismo não-adulterado e de busca de
boa vida, só limitada pela exigência da tolerância. Esta, casada com
individualismo autocelebrativo e livre de escrúpulos, equivale à
indiferença.
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O DESENCANTO DO MUNDO
Acreditar que a única postura seja deixar-se levar e não se opor à
corrente, representará desencanto para os que acreditam na
capacidade humana de edificar um mundo melhor.
É preciso reagir a esse torpor e, sem desconhecer as leituras do
desalento, extrair delas a vontade de trilhar outros rumos.
Urge descontaminar-se do vício da resignação: “O peixe apodrece
pela cabeça”, é a frase inicial de um dos sermões de Vieira.
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OS GRANDES TEMAS DA ÉTICA
Os direitos humanos, a justiça social, o equilíbrio entre cooperação
pacífica e auto-afirmação pessoal, sincronização da conduta individual
e do bem-estar coletivo nada perderam de sua relevância e
atualidade.
Eles impregnam todos os conflitos enfrentados pelo Judiciário.
Apenas precisam ser encarados e tratados de maneira nova.
A chave desse exercício é reconhecer a força latente da
individualidade humana.
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INDIVIDUALIDADE CONSTRUÍDA
O indivíduo é o ser humano dotado de identidade em perene
construção.
Constrói-se a identidade fazendo escolhas no processo de
autoformatação.
As ações que a pessoa precisa escolher, ações que a pessoa
escolheu dentre outras que podia escolher mas que não escolheu, é
que não prescindem de cálculo, mensuração e avaliação.
A avaliação é parte indispensável da tomada de decisão. Necessidade
sobre a qual corre-se o risco de não refletir, quando se decide apenas
por hábito.
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RESPONSABILIDADE NA AVALIAÇÃO
Ao se avaliar, fica evidente que útil não é necessariamente bom, que
belo não tem que ser verdadeiro e que legal nem sempre é justo.
Tarefa complexa e difícil. Quando se questionam os critérios de
avaliação, as dimensões da mensuração ramificam-se e tomam
direções cada vez mais distanciadas entre si.
O modo certo, uma vez unitário e indivisível, começa a dividir-se em
economicamente sensato, esteticamente agradável, moralmente
apropriado.
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O DRAMA DO JUIZ
As decisões podem ser certas num sentido e erradas noutro.
Como mensurar as conseqüências da decisão e por que critérios? A
legalidade formal ou a legitimidade?
Quando numerosos critérios se aplicam – todos razoavelmente
fundamentáveis – a qual se deve conceder prioridade?
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NINGUÉM SE SUBTRAI À PRÓPRIA CONSCIÊNCIA
O ônus de cada opção é individual, embora o erro costume recair
sobre a Instituição por inteiro.
Não há receita infalível para a decisão eticamente indiscutível. O
código ético a toda prova – universal e fundado inabalavelmente –
nunca vai ser encontrado.
Uma moralidade não aporética e não ambivalente, uma ética que seja
universal e objetivamente fundamentada, constitui impossibilidade
prática. É um oxímaro, uma contradição em termos.
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E ISSO PORQUE?
As asserções “Os seres humanos são essencialmente bons, e apenas
precisam de ajuda para agir segundo sua natureza” e “Os seres
humanos são essencialmente maus e devem ser impedidos de agir
segundo seus impulsos” são ambas errôneas.
Os humanos são moralmente ambivalentes: a ambivalência é ínsita à
criatura.
Todos os arranjos sociais – instituições amparadas pelo poder, regras
e deveres racionalmente articulados e ponderados – desenvolvem
essa ambivalência como seu material de construção, dando o melhor
de si para purificá-lo de seu pecado original de ser ambivalência.
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APRENDER A VIVER SEM GARANTIAS
Não se pode garantir a conduta moral absoluta, sem o risco de
desvios – maiores ou menores – de rota.
É preciso aprender a viver sem essas garantias e conscientes de que
elas nunca serão oferecidas.
Uma sociedade perfeita, assim como um ser humano perfeito, não é
perspectiva viável.
É o que nos deve impregnar de humildade.
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FENÔMENOS MORAIS SÃO IRRACIONAIS
Não são regulares, repetitivos, monótonos ou previsíveis de forma a
permitir sejam representados como guiados por regras.
Não se podem exaurir por qualquer código ético.
Não são suscetíveis de enquadramento em definições exaustivas e
não-ambíguas, a sugerir imediata distinção entre adequado e
inadequado sem deixar a penumbra da ambivalência e das múltiplas
interpretações possíveis.
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IMPULSOS CONTRADITÓRIOS
A maior parte das escolhas morais são feitas entre impulsos
contraditórios.
Ao se atender plenamente a um impulso moral, pode-se chegar –
paradoxalmente – a uma conseqüência imoral.
Impor escolhas, na síntese do cuidar do Outro, como opção levada ao
extremo, conduz à aniquilação da autonomia do Outro, situação
indesejável de dominação moral e de opressão.
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O HORIZONTE MORAL
A situação moral livre de ambigüidade tem apenas a existência utópica
de horizonte e estímulo, imprescindíveis para a construção de um eu
moral, mas não como alvo realista de prática ética.
Ao sentenciar, o juiz emite expressivos sinais da etapa em que se
encontra nessa edificação interminável.
Em cada decisão, pode ser detectado o DNA MORAL de seu prolator.
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SE A MORAL NÃO É UNIVERSALIZÁVEL...
...o que não significa adotar a tese do relativismo moral, de acordo
com a proposição de que a moralidade não passa de costume local e
temporário...
Existem alguns valores universais que podem variar de conteúdo, mas
têm um núcleo semântico irredutível.
Valores que foram explicitados no pacto fundante e ao qual o juiz se
comprometeu a observar durante toda a sua carreira.
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MATÉRIA PRIMA DA SOCIABILIDADE
Tais valores refletem o arranjo excelente da convivência humana.
Constituem a matéria-prima da sociabilidade e do compromisso com
outros, forma e modelo de todas as ordens sociais.
Precisam ser domesticados, aproveitados e explorados, de preferência
a serem meramente supressos ou proscritos, situação ocorrente
quando são ignorados nas decisões.
Depende do juiz a sua implementação, a disseminação da crença de
que são necessários e naturais e que sem eles é quase impossível o
desenvolvimento do eu moral.
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QUAIS SÃO ESSES VALORES?
São quase todos os princípios de que é pródiga a Carta Cidadã.
São aqueles valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos, fundada na harmonia social de que fala o
preâmbulo.
São os valores da cidadania, o supra-valor, o princípio norteador e
parâmetro hermenêutico da dignidade da pessoa humana.
São os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo
político e aqueles traduzíveis pela expressão objetivos fundamentais
da República.
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NÃO É POUCA PRETENSÃO...
... construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o
desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Existe uma carga semântica mínima no valor/compromisso de
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Princípios como a prevalência dos direitos humanos e a solução
pacífica dos conflitos devem inspirar o julgador brasileiro.
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INQUESTIONÁVEL O CONTEÚDO ÉTICO
Toda decisão tem conteúdo ético, pois a função de julgar está fundada
numa Constituição que pela primeira vez explicita o princípio da
moralidade.
A eticidade presente no pacto fundante se irradiou para o Código Civil,
a Constituição do homem comum, na expressão de Miguel Reale e
está presente em todo ordenamento.
Não há decisão ou ato judicial desconectado da ética.
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INEXISTE JULGAMENTO AÉTICO
Restringir a decisão à mera técnica asséptica e pretensamente neutral
é trilhar a ética da indiferença, da insensibilidade, da omissão ou do
descompromisso com os valores fundantes.
A decisão identifica o eu moral do prolator.
É preciso repensar o conceito de direito como mínimo ético, na dicção
de Jellineck.
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INEXISTE POSTURA AÉTICA
Excessivo formalismo, opção pelo procedimentalismo estiolante,
procrastinação deliberada, desatenção quanto aos aspectos
metajurídicos ou extrajurídicos de cada processo, é desconsiderar
comandos constitucionais e legais (LOMAN).
A par disso, é desatender a comando de um órgão do Poder Judiciário
– o CNJ – que editou um Código de Ética da Magistratura e exorta
cada juiz brasileiro à sua observância. E apela ao magistrado
desenvolva adequadamente a noção de consequencialismo.
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URGÊNCIA ÉTICA
Se existe algo de que se possa dizer que quanto mais dele se
necessita, tanto menos facilmente está disponível, esse algo é a ética.
É a matéria-prima de cuja carência o Brasil de hoje mais se ressente.
Clama-se por ética para revigorar a crença nas instituições e a
esperança no futuro da Nação.
Ética é mais urgente do que o conhecimento jurídico ou a capacidade
técnica.
A Magistratura está credenciada a cuidar desse suprimento e a obter
êxito nessa missão.
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FIM
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