FILOSOFIA E EDUCAÇÃO -CONFLUÊNCIAS Amarildo Luiz Trevisan Noeli Dutra Rossatto (Orgs.) FILOSOFIA E EDUCAÇÃO CONFLUÊNCIAS __________________________________________________________ Filosofia e educação - confluências. Amarildo Luiz Trevisan; Noeli Dutra Rossatto (Orgs.). Santa Maria, RS: Ed. FACOS/UFSM, 2004. p. 542. ISBN 85 – 98031 – 11 - 9: 2. 3. 4. __________________________________________________________ Ficha catalográfica elaborada por Biblioteca Central da UFSM 2 “Pois elas [a filosofia pragmática e a filosofia hermenêutica] abandonam o horizonte no qual se move a filosofia da consciência com seu modelo do conhecimento baseado na percepção e na representação de objetos. No lugar do sujeito solitário, que se volta para objetos e que, na reflexão se toma a si mesmo por objeto, entra não somente a idéia de conhecimento lingüisticamente mediatizado e relacionado com o agir, mas também o nexo da prática e da comunicação quotidianas, no qual estão inseridas as operações cognitivas que têm, desde a origem um caráter intersubjetivo e ao mesmo tempo cooperativo”. Jürgen Habermas Consciência Moral e Agir Comunicativo 3 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Amarildo Luiz Trevisan e Noeli Dutra Rossatto .................... 08 PRAGMATISMO E EDUCAÇÃO A Prática do Pragmatismo: Aprender Vivendo, Viver Aprendendo Floyd Merrell .......................................................................... 12 Pragmatismo, Filosofia e Verdade: Uma Introdução Waldomiro José da Silva Filho ............................................... 48 ENSINO DE FILOSOFIA: NOVAS PROPOSTAS Teoria dos Estágios da Argumentação Frank Thomas Sautter ............................................................. 62 A Filosofia no Vestibular: Elitização do Ensino, ou, Democratização da Filosofia? Humberto Guido ..................................................................... 76 4 A Fala Docente e o Paradoxo do Ensino Marcelo Fabri ......................................................................... 97 ENSINO DE FILOSOFIA COM CRIANÇAS NO BRASIL Sobre o Espaço da Filosofia no Currículo Escolar Ronai Pires da Rocha ............................................................ 114 Ula – Um Diálogo Filosófico entre Adultos e Crianças Sérgio Augusto Sardi ............................................................ 140 Prolegômenos ao Tema Ensino de Filosofia na Educação Fundamental no Brasil Leoni Padilha Henning ......................................................... 173 FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O ENSINO DE FILOSOFIA Formação Inicial do Professor de Filosofia: Algumas Considerações Elisete Medianeira Tomazetti ............................................... 196 Formação do Professor de Filosofia e “as três metamorfoses” de Nietzsche Sílvio Gallo ........................................................................... 211 Formação de professores para o ensino de filosofia José Pedro Boufleuer ............................................................ 226 CURRÍCULO E FILOSOFIA Algumas Questões sobre Currículo e Filosofia Henrique Garcia Sobreira ..................................................... 240 5 Currículo: uma Questão somente Técnica? Roberto Luiz Machado ......................................................... 266 EPISTEMOLOGIA E EDUCAÇÃO Entre Epistemologia e Hermenêutica - A Questão da Racionalidade e da Historicidade do Conhecimento e o Debate sobre tese da Complementaridade Luiz Carlos Bombassaro ....................................................... 279 A Relação entre Epistemologia e Hermenêutica: uma análise a partir da filosofia de Richard Rorty Altair Fávero ......................................................................... 302 Filosofia e Educação: O ponto de vista neo-pragmático de Richard Rorty Vitor Hugo Mendes .............................................................. 317 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO BÁSICA Filosofia e Educação: Aprendendo uma Razão-Emoção CríticoReflexiva Celso Henz ............................................................................ 340 Sobre o significado e o papel da pedagogia em Kant Cláudio Almir Dalbosco ....................................................... 365 Filosofia e Educação Básica Clovis R. J. Guterres ............................................................. 356 HERMENÊUTICA, LINGUAGEM E EDUCAÇÃO 6 Hermenêutica, Linguagem e Educação Nadja Hermann ..................................................................... 387 Pragmática do Saber: a Mudança de Paradigma na Educação Amarildo Luiz Trevisan ....................................................... 403 Hermenêutica e Formação na Virada Lingüística Noeli Dutra Rossatto ............................................................ 420 MOVIMENTOS SOCIAIS, EDUCAÇÃO E FILOSOFIA Ecologistas, antropófagos e outros bárbaros – uma contribuição filosófica à educação Valdo Hermes Barcelos ........................................................ 438 Formação de Professores, Educação Dialógico-Problematizadora e Movimentos Sociais Fábio da Purificação de Bastos ............................................. 468 ÉTICA E EDUCAÇÃO A Ética Aristotélica das Virtudes e a Educação: complementaridade entre o universalismo e o particularismo Denis Coitinho Silveira ........................................................ 483 A Racionalidade Comunicativa e suas implicações na formação ética na Educação Luiz Cláudio Borin ............................................................... 523 Ética: uma Ação Comunicativa Jerônimo José Brixner .......................................................... 532 7 Apresentação O I Seminário Nacional de Filosofia e Educação – Confluências, realizado entre os dias 13 e 16 de abril de 2004, nos auditórios do Centro de Educação – CE e do Centro de Ciências Rurais – CCR, da UFSM, reuniu um expressivo número de participantes para debater diversas interfaces da relação entre Filosofia e Educação. As inscrições para apresentação de trabalhos, em forma de comunicações e oficinas pedagógicas, e para participantes, foram em grande número, superando as expectativas mais otimistas, demonstrando o elevado grau de interesse que despertou a temática do evento. O propósito do seminário foi discutir as relações entre Filosofia e Educação na perspectiva do debate crítico entre Filosofia Analítica e Pragmatismo, de um lado, e Filosofia Continental, do ponto de vista da Hermenêutica 8 Filosófica e da Escola de Frankfurt, de outro. Em geral, os debates pretenderam elucidar alguns problemas comuns que são observados no processo de formação educativa e cultural, como: a busca de alternativas para a crise dos fundamentos da educação, novos sentidos para a prática pedagógica e a superação dos obstáculos enfrentados pelo ensino de Filosofia nas escolas e universidades. O encontro teve a pretensão de proporcionar o esclarecimento de questões emergentes do contexto atual e suas implicações pedagógicas, a partir da reflexão sobre algumas propostas filosóficas que estão na base das discussões de grandes aportes teóricos do pensamento contemporâneo, como Jürgen Habermas e Richard Rorty, Donald Davidson e Hans-Georg Gadamer. Além disso, buscar uma atualização e ressignificação das linguagens utilizadas no campo da Educação e da Filosofia, de acordo com o desenvolvimento das novas formas de pensar o conhecimento numa época marcada pelo pluralismo de imagens, signos, símbolos e ícones da cultura do espetáculo. Assim, o seminário procurou incentivar o entendimento crítico e a apropriação do impacto de algumas propostas filosóficas recentes no saber educacional, operacionalizando novas competências que poderiam colaborar para a formação de uma cultura da sensibilidade, da cientificidade e da solidariedade. Essa abertura permitiu repensar algumas imagens dominantes na Filosofia contemporânea, incentivando a criação de novos horizontes para reinterpretar as racionalidades tomadas normalmente como idéias-força pelo campo educacional. O evento contou com o apoio da Fundação e Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS, Fundação Banco do Brasil, Direção do Centro de Educação e Gabinete do Reitor - 9 UFSM, Grupo de Pesquisa Formação Cultural, Hermenêutica e Educação (www.ufsm.br/filosofiaform), Programas de Pós-Graduação em Educação e Filosofia - UFSM, Programa de Acesso ao Ensino Superior – PEIES/UFSM, Programa de Pós-Graduação em Educação UFRGS, Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – campus de Erechim, Santiago, Santo Ângelo e Frederico Westphalen, Faculdade Palotina – FAPAS e Editora FACOS/UFSM. A seguir, apresentamos os textos das palestras do evento que resultaram na produção do livro. Na oportunidade, agradecemos a contribuição valorosa e competente oferecida pelos palestrantes para o esclarecimento das temáticas abordadas. Juntamente com os textos das comunicações e oficinas pedagógicas já disponibilizados em forma de CD-Rom, a reunião desses trabalhos dará uma idéia bastante aproximada do que foi a experiência do seminário. Em última análise, uma experiência acadêmica aberta, democrática e pluralista, com ênfase na idéia de fazer Filosofia não como um saber sublime e distante dos outros saberes, e sim, algo capaz de dialogar com as diferentes áreas do conhecimento, debatendo, mas sempre respeitando e aprendendo com as diferenças e semelhanças. Prof. Dr. Amarildo Luiz Trevisan Prof. Dr. Noeli Dutra Rossatto 10 Santa Maria, agosto de 2004. PRAGMATISMO E EDUCAÇÃO 11 A PRÁTICA DO PRAGMATISMO: APRENDER VIVENDO, VIVER APRENDENDO Floyd Merrell∗ Na aprendizagem, a mente não é tudo Esta é a premissa principal que guia as seguintes páginas: A aprendizagem é uma questão de interdependência, inter-relacionalidade e interatividade. É interdependência, porque cada passo pela estrada pedagógica em direção ao conhecimento tem uma dependência com todos os passos. É inter-relacionalidade, porque todo conhecimento tem relação com os objetos do conhecimento, com o conhecimento das múltiplas interpretações destes objetos, e com todos os signos através dos quais o conhecimento é conhecimento. E a aprendizagem é radicalmente interativa, porque qualquer mudança tem conseqüências que afetam tudo. Deste modo, os passos da aprendizagem são como um conjunto de jazz expressado em forma de uma dança sincopada.1 Professor da Universidade de Purdue/EUA e autor de vários livros, entre eles, A semiótica de Peirce hoje. Salvador: Arcadia (no prelo), 2004 e Semiótica e vida cotidiana. Salvador: Arcadia (no prelo), 2004. Endereço eletrônico: [email protected] 1 Desenvolvo com mais detalhes o tema da interdependência, a inter-relacionalidade e a interatividade em Merrell (2000b, 2000c, 2002, 2003). 12 Esta premissa vai contra os modelos tradicionais da experiência, a aprendizagem e o conhecimento do pensamento ocidental, que consiste geralmente em reducionismo e dualismo. O reducionismo e o dualismo têm expressão dentro de duas correntes filosóficas em luta perpétua: empirismo e racionalismo. O empirismo é antes de mais nada reducionistica; o racionalismo é sobretudo dualista. Os dois modelos têm dificuldades que resultam num beco sem saída, porque não podem abranger os fatos e os valores dos fatos ao mesmo tempo; também não podem resolver os problemas da subjetividade e objetividade e o que têm a ver com a experiência. Então, se o beco sem saída destes dois modelos pode ter solução, parece que devemos resolver, pelo menos até onde for possível, os problemas que eles revelam. O problema principal do empirismo é que ele concebe a experiência de maneira atomística e ignora a interdependência e a interrelacionalidade de tudo que é possível, existente e necessário ou provável. Não pode dar conta da realidade holística da experiência. Só existem associações das sensações recebidas do mundo objetivo e o sujeito tem a tarefa de coligir essas sensações numa construção taxonômica que é geralmente pré-concebida. O problema é que este processo explica a unidade de nossa experiência tomando como premissa o fenômeno mesmo que presume explicar: a capacidade de coligir as sensações de um modo habituado pressupõe o hábito que é capaz de coligir as sensações de um modo costumado, que, por sua vez, pressupõe o hábito de coligir as sensações de certo modo. O círculo é vicioso, um impasse sem libertação. O racionalismo dualístico, por outro lado, prioriza a mente, quer dizer a intelectualidade, dentro do processo de interpretação das 13 sensações. Para o racionalismo, a aprendizagem e o conhecimento são uma questão do funcionamento da mente, que tem o poder da categorização dos objetos do mundo de um modo a priori e segundo processos e estruturas pré-estabelecidas. O problema é que acaba dando ênfase demais no rol da mente à interpretação, e exclui os fatores das sensações recebidas. Então, as perguntas agora são: Como pode existir a aprendizagem do que ainda não sabemos se a mente tem conhecimento a priori? Se a mente não é ignorante, mas sabe dividir o mundo nas categorias próprias, como é que pode errar? Como pode reconhecer os erros? Como pode descobrir e aprender novidades que antes ficavam fora do seu conhecimento para se dar conta de que os erros foram erros e agora existem alternativas aos erros na forma de nova aprendizagem e novo conhecimento possíveis? Temos mais outro círculo vicioso. Outro problema que têm o empirismo e o racionalismo em comum é a incapacidade de explicar o processo de abranger a consciência da novidade, isto é, o processo da invenção de mundos imaginários e o descobrimento de novas perspectivas e características do mundo. Segundo o racionalismo, o poder da mente não é capaz de dar conta suficientemente das suas próprias limitações: não existe uma carestia de conhecimento. Segundo o empirismo, a mente parece nunca irá carecer da capacidade de coligir as sensações que recebe num pacote de generalidades para dar conta do mundo da experiência. Nos dois casos faz falta uma certa dose de ignorância — a humildade de reconhecer que nós somos pobres seres flutuando num mar de ignorância — faz falta uma história adequada sobre o processo de conhecer os nossos erros, e faz falta uma explicação do ato de inventar ou descobrir novidades. Dito de outro modo, se a experiência fosse 14 produto exclusivo de atos mentais, e se a mente não reconhecesse propriamente as suas limitações, então essa mente seria quase incorrigível. Certamente algo fica fora da conta do empirismo e do racionalismo. Precisamos de algo além da mente. Em lugar de descrever a experiência desde fora, como se fosse algo afastado do sujeito, eu sugiro que seria mais proveitoso se tentássemos dar conta da experiência no ato mesmo em que estamos experimentando os fenômenos da mente (interior) e nosso mundo (exterior). O aspecto vital e comum da experiência humana é o processo de perceber, conceber e aprender os fenômenos e, durante o processo, de fazer o intento de sentir, e em algum nível da consciência de entender, esse mesmo processo. Durante esse processo, nós dirigimos nossa atenção aos fenômenos que achamos significativos e entendíveis. De fato, podemos dizer que a natureza mesma da consciência consiste dessa orientação ao redor da significação, ao processo de dar significado aos fenômenos mentais (interiores) e os fenômenos percebidos e concebidos do mundo (exteriores). A cada momento de nossa vida estamos no processo de tirar significados do mundo, interiores ou exteriores, e experimentamos nossa realidade em termos de esses significados.2 Sobre as debilidades da mente autônoma Então, os objetos, acontecimentos, idéias e também outras pessoas, são experimentados como ‘isto que experimentamos porque é o que experimentamos’. Simples, certo? Somos autores da nossa 2 Sobre as inter-relações do interior e o exterior e o rol da criação do pensamento na filosofia de Peirce, ver em conjunto as obras de Boler (1964), Dozoretz (1979), Fann (1970) e Turley (1977). 15 experiência, e o que experimentamos é o que temos aqui dentro e aí fora. Não? Não. Não é tão simples. Os objetos, acontecimentos, idéias, e outras pessoas ficam sobrecarregados de significados, porque eles mesmos são interdependentes, inter-relacionados e interativos, e nós somos interdependentes, inter-relacionados e interativos com eles. Eles não existem e nem são conhecidos e reconhecidos como átomos da nossa experiência e nem como funções das nossas capacidades intelectuais. Encontram-se em inter-relacão interdependente dentro do mundo, que não consiste de ‘átomos’ de experiência no sentido nominalístico do empirismo e racionalismo, senão que se encontram dentro do fluxo em processo da totalidade interconectada e interativa. Então não somos agentes autônomos; não somos simplesmente os autores das nossas experiências. Os objetos, acontecimentos, ideais e outras pessoas, e nós mesmos, não estamos exclusivamente independentes de nossos mundos interiores e exteriores nem estamos exclusivamente dependentes deles. Um paradoxo? É. Mas é um paradoxo necessário. Sem a possibilidade de perceber e conceber algo como se fosse uma entidade independente, não poderíamos articular nossa percepção e concepção; não poderíamos adquirir uma aprendizagem do nosso mundo. Ou melhor, não poderíamos dar conta do mundo em termos de generalidades, e não poderíamos nos dar a ilusão de que nossas generalidades são autosuficientes e completas. Mas não existe entidade nenhuma totalmente independente. Tudo está interdependente com tudo o mais. Falando dessa totalidade em termos gerais, inevitavelmente ela nos deixa num mar de vaguezas, porque não podemos dar conta cabal dessa totalidade sem entrar em contradições, inconsistências e paradoxos. Se nos damos 16 conta do mundo em termos gerais com respeito a entidades particulares com toda confiança, caímos no marasmo das nossas limitações, de vaguezas; se nos damos conta do mundo em termos da totalidade como se essa totalidade fosse uma generalidade, nossa abordagem ficaria eternamente incompleta.3 Parece que ficamos entre a espada e a parede. Dá uma sensação incômoda. Por conseqüência, um refúgio lógico nos aprisiona desde o empirismo e o racionalismo. Mas como fugimos daí? Então, como podemos escapar dessa sensação de inconformidade? Primeiridade Segundidade Terceiridade FIGURA 1 Peirce, entre pólos opostos 3 Sobre a vaguidade e a generalidade no pensamento de Peirce, ver Brock (1979), EngelTiercelin (1992), Nadin (1982, 1983), Rescher and Brandom (1979), Rosenthal (1994, 2000) e Merrell (1997, 1998, 2000a). 17 Simplesmente dito, não podemos escapar. Isto é, não podemos resolver o problema no sentido de escolher uma opção entre duas opções, de dizer simplesmente ‘Sim’ ou ‘Não’ para entrar num caminho ‘verdadeiro’ ou ‘falso’. Isto é pensamento binário, dualístico. Charles Sanders Peirce oferece outra possibilidade: pensamento triádico, e de fato, radicalmente não-linear, de modo que entre cada par de opções sempre existe outra opção..., e entre os pares de opções que ficam, outras opções..., e outras..., e outras, sem fim. Primeiridade 0 Segundidade Terceiridade FIGURA 2 Tem a ver com a concepção de Peirce das três categorias: Primeiridade, Segundidade e Terceiridade (Figura 1).4 Como explicamos as 4 Para as categorias e o conceito do signo de Peirce, ver CP (2:227-390) e em geral Almeder (1980) e Hookway (1985). 18 categorias? Bom, a resposta é, ao mesmo tempo, fácil demais, mas talvez impossível demais. É fácil demais, porque é tão simples como o ato de começar com o Zero e daí proceder a Um, Dois, Três. E acabou. E é impossível demais, porque o Zero, de nenhum modo, é simplesmente o ‘nada’, pelo menos no sentido comum do termo nas línguas ocidentais como a ‘ausência de algo’ (Figura 2). O conceito de Zero foi contribuição do Oriente ao Ocidente. Mas no Oriente tem outro significado. Quer dizer o ‘nada’ no sentido comum de que não existe coisa nenhuma e, além disso, quer dizer que existe, no ‘nada’, a possibilidade da emergência, da criação de tudo que houve, que há e que deverá haver no universo inteiro. Isso é uma complexidade tão pantanosa que é impossível lhe dar uma explicação em palavras precisas e sem ambigüidades e contradições. Então, como posso prosseguir? Pela impossibilidade de possibilitar o impossível. De qualquer maneira, vou tentar uma narrativa do Zero e das categorias pelo seguinte caminho. Antes de tudo, há o ‘nada’ ou Zero. Mas na matemática o Zero não é número. De modo semelhante, o ‘nada’ também não pode se contar entre as categorias de Peirce. Então parece conveniente esquecer o ‘nada’ e Zero. Isto seria um passo gigantesco na possibilitação do impossível. Ficamos só com os três números mais simples da série infinita. De forma semelhante, e em termos das categorias peirceanas, temos Primeiridade, Segundidade e Terceiridade. Fácil demais? De novo, não. A vida está cheia de surpresas. É sumamente difícil a questão das categorias, porque a Primeiridade é apenas um; um, sem qualquer outra coisa. Como é isso? A Primeiridade é o que é. É auto-contido, auto-reflexivo e auto-suficiente. Deste modo é um, porque não entra em relação com mais nenhuma outra coisa e não 19 pressupõe a existência de outra coisa: só há um, Primeiridade. Se pensamos na Primeiridade, já deixou de ser Primeiridade, porque agora existe Primeiridade e alguém que está no ato de pensar nela. Então há pelo menos duas entidades: o agente dos pensamentos e a categoria Primeiridade. Se pronunciamos a palavra ‘Primeiridade’, então também não é Primeiridade, porque agora há pelo menos três coisas, esta Primeiridade que agora sumiu — sumiu porque não é mais simplesmente o que é — alguém que pronunciou ‘Primeiridade’, e a palavra mesma, ‘Primeiridade’. Então há três entidades: Um, Dois, Três. A Primeiridade autocontida, auto-reflexiva e auto-suficiente; a Segundidade que consiste da Primeiridade e um Outro (neste caso uma pessoa que fala ‘Primeiridade’); e a Terceiridade — esta palavra, ‘Terceiridade’. Mas ainda não é tão simples. É tão complexo como o universo mesmo, porque a Primeiridade incorpora a possibilidade de tudo que pode existir, que existe e que poderá existir. Como é isso? Já escrevi que o Zero é precisamente essa possibilidade de tudo. A diferença fica no fato de que o Zero é a possibilidade pura. A Primeiridade, em contraste, é algo: é o que é, ponto, sem nenhuma outra coisa. Isto quer dizer que é, mas que não existe nenhum Outro. Não existe nenhum ‘eu’ ou qualquer outra coisa à parte do que é — só é. Isto traz a implicação de que nem ‘eu’ nem ‘outra pessoa’ pode estar consciente desta Primeiridade, porque se estamos em algum momento conscientes dela, então deixou de ser Primeiridade. Isto pode parecer absurdo. Se não podemos ter consciência desta suposta Primeiridade, por que precisamos dela? Porque não começamos pela Segundidade e, daí, passamos à Terceiridade, e a 20 história acabou? Porque ao contrário do Zero, que é possibilidade pura, a Primeiridade tem ‘existência’, mas não tem existência para nós, isto é, para nossa consciência. Por exemplo, vamos supor que você tem os olhos fixos nesta página, e que há na parede, à direita, uma pequena mancha preta que não consegue alcançar sua atenção. Os seus olhos ficam focalizados nas marcas desta página mas não desviam o foco na direção da mancha. Contudo, você, a sua atenção quase-consciente, sente o preto que se destaca contra o fundo branco. Sente que há algo, mas não alcança uma consciência até o ponto de reconhecer a mancha pelo que é: uma mancha preta que ressalta desde um fundo branco. Você só sente algo, sem distinguir este algo de qualquer outra coisa. Não existe mancha separada da mancha percebida por você, nem existe você como organismo que está plenamente consciente de algo separado da sua consciência. Só existe a mancha, e além disso, um sentimento vago e inconsciente de que há algo, sem distinção. Isto é a Primeiridade da mancha. Isto pode parecer vago, mas de qualquer maneira vamos à Segundidade, e talvez a natureza da Primeiridade fique um pouco melhor esclarecida. As categorias e a concepção do outro Vamos supor que você levanta os olhos para fixá-los na mancha. E reconhece que é uma mancha. Agora identificou o objeto, que consiste em algo que está em contradição com esse algo, o fundo desde o qual ressalta a mancha. Você fez uma distinção entre algo e 21 mais alguma outra coisa. Este algo é a Primeiridade — a mancha preta — de que você antes não estava consciente, mas agora sim. Existem duas coisas: isto e o Outro. Se isto é a Primeiridade, a Primeiridade em união com o Outro é a Segundidade. Mas o Outro, fora de todo contexto, como algo também autocontido, auto-reflexivo, e auto-suficiente, também é Primeiridade. Quando os dois objetos — fundo branco e objeto preto ressaltado desde o fundo — existem em união dentro da sua consciência, compõe a Segundidade. Além disso, reconhecendo isto e o Outro como dois objetos de Primeiridade, você toma consciência de que o objeto em questão, a mancha, têm certas qualidades. É mais ou menos circular, tem diâmetro de aproximadamente 20 centímetros e é preto. Você realizou, então, três operações semióticas: (1) se deu conta de que havia algo (Primeiridade), (2) estava consciente de esse algo em contraste com algum Outro, e que pertencia à classe de objetos que têm como nome ‘manchas’— a identificação (Segundidade) e (3) reconheceu que esse algo tem certas qualidades que compartilha com todos os objetos que pertencem à classe de ‘manchas’. Esse reconhecimento de que algo tem natureza geral, de que existe uma classe inteira de objetos com as mesmas qualidades, marca a emergência da Terceiridade. Em suma, as operações são: (1) algo, (2) algo que é identificado dentro de certo sistema classificatório e (3) algo que consiste de um conjunto particular de características. Em outras palavras, (1) é a manifestação de que você tomou consciência de um objeto que foi uma possibilidade; mas agora não é possibilidade porque foi atualizado por você, (2) é uma indicação de que você reconhece o objeto como este algo e não outra coisa e (3) este algo é precisamente 22 algo porque tem as qualidades gerais que pertencem a toda uma classe de objetos. Primeiridade, Segundidade e Terceiridade. Simples e, ao mesmo tempo, extremamente complicado. Falando sério, qual é o rol do ‘0’ e o ‘Ø’? Na Figura 3 temos um esquema das categorias, 0, Ø, e um ponto dentro do signo de ‘raiz quadrada’. Indubitavelmente surgem as perguntas: O que significam estes signos em relação às categorias? E a aprendizagem? Bom. Tudo começa do nada. Não quero dizer o nada em sentido comum e corrente? Não. Quero dizer o ‘nada’, ou o ‘vazio’, no sentido oriental, do Budismo. O ‘nada’ não é simplesmente nada. Não é algo, mas também não é uma ausência total: contém, dentro de ele mesmo, a possibilidade da emergência de tudo — este é mais ou menos a idéia do ‘espaço’ dentro da teoria dos quanta da ciência ocidental. Primeiridade 'Both + and -' 0 'Neither + nor -' 'Either + or -' Segundidade Terceiridade ( ) FIGURA 3 23 O ‘conjunto vazio’, Ø, também não é simplesmente ‘nada’. E o reconhecimento de que houve algo e agora não há, ou que nunca houve nada, mas pode haver em algum momento no futuro. Quer dizer que o ‘nada’ não tem nada mais que isto, o ‘nada’; ao contrário, o ‘conjunto vazio’ tem pelo menos mais alguma coisa, nós, com o reconhecimento de que é um ‘conjunto vazio’. Não tem mais nada. Só estamos nós, com a imaginação de que onde, no presente, não há nada, poderia ter havido algo no passado ou poderá haver algo no futuro. E o √•? Quando algo emerge no Ø e não tem emergido mais outra coisa, então não temos mais que um binarismo simples. O Ø tem A e não tem mais outra coisa, não tem não-A. Isto é tudo. É o equivalente do número dentro do √ como ‘número imaginário’. O ‘número imaginário, √-1, tem como solução a possibilidade de +1 ou -1. Mas qual é? A resposta não pode ser +1, e não pode ser -1. Então não tem resposta. Ou, podemos dizer que a resposta é +1 e -1 (‘Both + And –’), ou que e é +1 ou -1 (‘Either + or –’), ou que não é nem +1 nem -1 (‘Neither + Nor –’). Na Figure 3 — onde uso os termos em Inglês para ser mais específico —temos o começo da Primeiridade (+1), a Segundidade (-1, o que +1 não é) e a Terceiridade. Que quer dizer o nem +1 nem -1 da Terceiridade? Que a resposta de qualquer pergunta pode ser que não é nenhuma das duas alternativas, mas alguma alternativa que pode emergir em algum momento no futuro. E desde onde vai emergir? Desde 0, Ø, √•, e o começo da Primeiridade e a Segundidade. Isto é a idéia de processo. Alem disto, a Terceiridade não tem valor. Quer dizer que não tem nem o signo ‘+’ nem o signo ‘-’. É neutro. É o equivalente do ‘i’ (o ‘Ψ’ dentro do esquema triádico da Figura 3), que os matemáticos usam 24 no lugar de √-1. O símbolo i (ou Ψ) não tem valor; simplesmente é o que é. Mais oferece a possibilidade da emergência de mais outra coisa, de muitas outras coisas dentro do fluir do tempo.5 Como emergem as coisas do 0 Porque estou complicando as coisas tanto? É em parte porque não posso simplesmente dar uma explicação concreta do ato criativo durante o processo da aprendizagem. É também porque quero evitar o reducionismo do empirismo e o dualismo mente/corpo e sujeito/objeto do racionalismo. É porque a vida não é simples e ao mesmo tempo é tão simples como um, dois, três. De qualquer maneiro, vou tentar dar conta do modo em que as coisas emergem do ‘0’, do ‘nada’. O físico dos quanta, John Archibald Wheeler, autor da famosa tese dos ‘buracos negros’, dá um exemplo dos mais simples possíveis para dar conta da complexidade do mundo, e além disso, para dar conta do nosso papel como interdependentes de, e inter-relacionados e interativos com nosso mundo. Wheeler quer dizer que não somos simplesmente sujeitos dentro do mundo como objetos da nossa contemplação. Somos co-participantes do grande drama da existência como processo. Qual é esse exemplo de Wheeler? Existe um jogo para a gente, depois de uma ceia agradável, quando estão dentro da sala e com uma xícara de café na mão. Para começar o jogo, uma pessoa sai da sala. As pessoas que ficam decidem 5 Devo mencionar que √-1 é classificado como um número ‘imaginário’; não tem representação direta e concreta no mundo físico. Mais este número tem uso na teoria dos quanta, a teoria da relatividade, na ciência da computação, e em muitos cálculos na engenharia. Não existe dentro da realidade, mas é essencial para as descrições dela. 25 que o objeto do jogo vai ser algum objeto dentro da sala — uma cadeira, um quadro, o piano, a luminária, etc. A pessoa ausente agora volta. E começa fazendo perguntas sobre a natureza de esse objeto que foi escolhido. Cada pergunta que faz é a possibilidade de que haja adivinhado qual é esse objeto escolhido. E se não adivinhar bem, já sabe que tem que ser outro objeto. No momento que adivinha, acaba o jogo, e a pessoa que teve que admitir que o adivinhador adivinhou bem agora tem que sair. E o jogo começa de novo (ou, se o adivinhador não adivinhar qual é o objeto depois de fazer 20 perguntas, ele mesmo tem que sair de novo). Agora Wheeler conta que numa ocasião ele saiu da sala, e as pessoas que ficaram presentes decidiram que não escolheriam nenhum objeto. Wheeler mesmo teria que eliminar os objetos adivinhados depois de cada pergunta que fez, um por um, até 20. Figure 12 4 FIGURA Möbius strip Logo depois de fazer a pergunta 20, todos diriam: ‘Correto, isto é!’. Wheeler mesmo, com a participação deles, e, além disso, com a participação de todos os objetos da sala, colaboraram na emergência, na criação do objeto do jogo. Isto é precisamente, escreve Wheeler, o nosso 26 rol como co-participantes com o universo físico. Somos coparticipantes com a auto-organização do universo. Somos uma parte do nosso universo, e nossa percepção e concepção são co-existentes com todas as características do universo mesmo. Quer dizer, o universo é coparticipante com a nossa criação como entidades infinitesimais deste mesmo universo, e nós somos co-participantes com a totalidade do universo.6 Então, de acordo com a Figura 3 o jogo de Wheeler das 20 perguntas começa do ‘nada’ (0), e daí temos possibilidades (Ø √• Primeiridade), a maior parte delas erradas ( Segundidade), mas sempre existe outras possibilidades, algumas um pouco mais prováveis que outras ( Terceiridade). E continuamos, errando, de vez em quando dando certo, e a cada passo aprendendo mais um pouco, dentro do jogo, dentro do nosso universo.7 Um modelo do processo Qual é a natureza do processo de co-participação? Exemplifico o processo através do modelo topológico na Figura 4. É uma ‘Banda de Möbius’. Consiste de uma banda de duas dimensões que é torcida e conectada dentro de três dimensões. Uma banda de duas dimensões tem um lado e outro lado. Porém, a Banda de Möbius não tem ‘lados’; só tem ‘lado’. Dentro destas três dimensões que contêm a banda, não 6 Agora, sua teoria é complicada demais, e com minha experiência nas ciências e a matemática — como professor nas escolas de segundo nível — eu alcanço entender um pouco mais, não tudo. Mas acho que o exemplo que oferece é ótimo. 7 Eu gostaria de acreditar que de modo geral a teoria de Paulo Freire (1970) cabe dentro da teoria de co-participação no sentido de que o mestre e o aluno colaboram na criação de novidades para o aluno e no processo existe uma auto-conscientização de parte dele. 27 podemos dizer com certeza que parte da banda considerada como uma banda de duas dimensões é de um lado e que parte é do outro lado. A banda dentro de três dimensões é uma continuidade: não tem dois lados; tem só um lado. Neste sentido a banda é como √-1, que tem a representação neutra em i (ou Ψ na Figura 3). Dito de outra maneira, a banda é como as categorias: Primeiridade (+1), Segundidade (-1), e Terceiridade (i, a mediação entre +1 e -1 de modo que qualquer ponto na banda não é nem de um lado nem de outro lado, porque não existem ‘lados’). O ‘dobro’ da Banda de Möbius representa um aspecto da banda em duas dimensões (‘este lado’) e ao mesmo tempo o outro aspecto da banda (o ‘outro lado’). É como se Alice do País das Maravilhas pudesse existir nos ‘dois lados’ do seu espelho simultaneamente. Existe um mundo (0 Ø √• +1 [Primeiridade]) e seu mundo inverso (-1 [Segundidade]), e, além disso, existe o espelho (Ψ [Terceiridade]) que une os dois mundos e dá a possibilidade de tudo que existe dentro de estes dois mundos e tudo que pode emergir no futuro. FIGURA 5 Agora, se esmagamos a Banda de Möbius, ficamos com a Figura 5. É como se 28 transformássemos o objeto de três dimensões em só duas dimensões. Mas não. A Figura não é exatamente de duas dimensões, porque existem zonas de ‘sobreposição’. Quer dizer que o objeto tem de ser de duas dimensões, e mais um pouco — uma dimensão ‘fractal’. Tudo bem. Mas nós moramos num mundo de três dimensões de espaço e uma dimensão de tempo. Então o modelo topológico de nosso mundo deve ser mais complexo do que a representação na Figura 5. Deve ser como o ‘Triângulo de Penrose’—do físico Roger Penrose, que usa o exemplo para ilustrar a complexidade do espaço do universo dos quanta (Figura 6). Agora, no ‘Triângulo de Penrose’ temos o equivalente da Figura 5 dentro dum mundo em quatro dimensões de espaço—que é comumente o modo de ilustrar o universo da relatividade de três dimensões do espaço e uma dimensão de tempo. Imediatamente nasce mais outra pergunta: Tudo isto, que diabos pode ter a ver com a aprendizagem? FIGURA 6 29 É o seguinte, sugiro. Em primeiro lugar, o modelo triádico do signo peirceano é o modelo geral da sua filosofia. E este modelo filosófico é, segundo Peirce, o modelo do universo e da própria vida. Em segundo lugar, Peirce, o Peirce anti-cartesiano, o Peirce que resistia a distinção entre corpo e mente e sujeito e objeto, é também um dos autores mais profundos de uma filosofia do corpomente. Segundo esta filosofia, a aprendizagem e o conhecimento não são simplesmente uma questão própria da mente, da razão, do intelecto, da lógica clássica e formal—que são fanaticamente dualísticas. A filosofia do corpomente abrange interconexões de interdependência, inter-relacionalidade e interação entre corpo e mente considerados como entidades distintas. Mas não são entidades distintas. Ficam unificadas. São corpomente. Quer dizer que há aprendizagem e conhecimento explícitos e tácitos que misturam corpo e mente. Além disso, há língua e também linguagem (língua mas todos os signos além de língua). Há concepção e também sentimento-sensação (feeling). E há atenção focalizada ou focal (consciente) e também atenção subsidiária (não-consciente) (Figura 7). A filosofia do corpomente abrange muito mais do que uma filosofia dualística. 30 Conhecimento explícito Concepção b Atenção subsidiaria a c Atenção focal Sentimento -Sensação (Feeling) a = b = c = Conhecimento tácito Interrelacionalidade Interdependência Interação FIGURA 7 Um exemplo Considere você o caso relativamente simples de dirigir um carro. O aprendiz que quer ser motorista dentro das aulas tenta assimilar as instruções verbais dadas a ele por seu professor, com um grande número de exemplos visuais oferecidos. Mas tudo é dificílimo só com signos verbais e visuais sem interdependência, inter-relacionalidade, interação e co-participação com o mundo físico. Por isso ele permanece excessivamente embaraçado a primeira vez que se encontra atrás do volante. Ele deve se concentrar, só focalizando explícitamente e intensivamente quase todos seus movimentos em série. A tarefa é agonizante, e após muitas tentativas, ele acaba todo suado. Porém depois de muita prática, sua destreza em dirigir gradualmente se torna uma segunda natureza para ele. Ele aprende a colocar seus movimentos 31 ‘em nacos’, aos poucos, em conjuntos maiores e maiores, até que, finalmente, toda a atividade se torna mais ou menos subsidiária, implícita e tácita — icônica seria outra maneira de dizer isto. Ele pode agora dirigir quase ‘sem pensar’. Já não tem que ser consciente de suas ações. Viraram hábito; são sedimentadas, automatizadas. Uma vez que ele já não precisa mais estar consciente de muitos de seus movimentos, os tem convenientemente embutidos como parte de sua atividade de todos os dias, e compõe uma sinfonia contínua de seu viver cotidiano. Enquanto dirige, ele pode agora se concentrar numa conversação com um amigo a seu lado, as notícias no rádio, um jantar de negócios que ele tem agendado com um cliente para esta noite, e assim por diante. Poderia ser dito que ele está ‘dentro’ da sua direção do carro. Seus movimentos viraram hábito, no sentido Perceiano (Boler 1964). Ele agora é capaz de levar a cabo seu ato de dirigir de um jeito mais impensado, quase-mecânico; o hábito fica liberado da necessidade de pensar a cada passo. Nas palavras de William James (1950 I:122): “Quanto mais detalhes de nossa vida diária nós pudermos aprender pelo caminho sem esforço da automação, tanto mais nossos mais altos poderes mentais serão liberados para seu próprio trabalho.” Dito de outra maneira, nosso motorista que já tem muita experiência, ‘colocou em nacos’, aos poucos, signos individuais dentro de conjuntos conglomerados de signos que foram tomados virtualmente de maneira automática. Muitos signos se tornaram unidos dentro de um signo como conjunto, e no processo signos que normalmente seriam construídos como símbólicos ou indéxicos são postos paulatinamente em termos de seu processamento. Quer dizer, ao invés de pensar quando está dirigindo o carro, ‘Eu estou indo a x milhas por hora, então 32 eu deveria liberar a alimentação do combustível, pisar na embreagem, e fazer um câmbio de velocidade’, isto é simplesmente feito. É feito pelo corpomente; o corpomente aprendeu a fazer o que faz sem necessidade da intervenção da mente; faz o que faz o corpomente em níveis de conhecimento tácito em lugar de ser focalizado pela mente ativa; o corpomente começa com sensações em lugar de concepções mentais. Agora, para nosso motorista, os signos estão todos aqui e o resultado desejado é trazido para a fruição, mas os signos não são conscientemente e intencionalmente levados a seu fim cognitivo, explícito, e bem-pensado pela mente. Pode-se dizer que os signos são interpretados em termos de semelhança entre este contexto e numerosos contextos comparáveis no passado pelo hábito do corpomente, como se a relação fosse puramente icônica, ao invés de indexical e/ou simbólica.8 Agora, para o corpomente na interatividade interdependente e inter-relacionada, não há língua (simbolicidade) tomando lugar explicitamente, nem existem quaisquer relações naturais de causa-efeito (indexicalidade), mas meramente signos ‘colocados em nacos’ e uma resposta em termos de relação de signos com um signo comparável como ocorreu em numerosos momentos passados. Nosso motorista pode, é claro, convenientemente ‘interromper’ sua atividade enquanto o diabo pisca o olho. Suponha que uma criança 8 Os três signos básicos de Peirce, ícones, índices e símbolos, têm inter-relação com as categorias. De maneira breve, pode-se dizer que um ícone possivelmente (de Primeiridade) tem alguma qualidade que compartilha com algum objeto (por exemplo, uma caricatura e a pessoa caricaturada), e se esta qualidade for inter-relacionada com o objeto (como Segundidade), a iconicidade do signo ficaria estabelecida. Um índice tem alguma relação existente (de Segundidade) com algum objeto (por exemplo, um relâmpago e um trovão). E um símbolo tem alguma inter-relação com algum objeto através de alguma convenção social (por exemplo, signos lingüísticos, lógicos ou matemáticos) e por meio de algo ou alguém (o terceiro elemento, de Terceiridade, que pode interpretar esse símbolo). 33 subitamente corre para a rua, passando em sua frente, surgida detrás de um carro estacionado. Ele quase instantaneamente pisa no freio e desvia-se para a direita. A criança afortunadamente escapa, mas ele bate num carro estacionado. As ações iniciais do motorista foram, é claro, impensadas. Depois do fato, contudo, quando ele foi interrogado pelo policial de trânsito, ele pôde refletir sobre suas razões, no processo dividindo-as em detalhes e peças e analisando cada peça separadamente. Isto quer dizer, ele está agora propriamente ‘do lado de fora’ de sua interatividade tácita, implícita, subsidiária e corpomental de direção de carros. Como um par de jogadores de xadrez que podem, em comum acordo, parar o jogo e mentalmente falar a respeito de suas estratégias, ele pode agora saltar facilmente de um conjunto de signos adequadamente categorizados para outro e conversar sobre os signos de maneira explícita, focalizada e conceptual. Nosso motorista reverteu agora o processo semiósico, pegando os conglomerados de signos que ele se tornou acostumado a assimilar em conjunto e a interpretar de maneira icônica, quebrando-os em suas partes constituintes, e consciente e intencionalmente as interpretando em termos de seu caráter como índices e símbolos, em acréscimo à sua natureza icônica. Contra o dualismo O químico e filósofo Michael Polanyi (1958) lutou por anos com a idéia de que todos nós, desde o mais humilde espécime humano atrás do volante de um carro até Einstein e um mestre do xadrez, conduzimos os negócios do nosso viver cotidiano na presença de basicamente dois diferentes tipos de consciência: focalizada e subsidiária (Figura 7). 34 Se você agarra um martelo e prego para golpear na parede para uma cerimônia de colocação-de-quadro, você começa por segurar o prego em uma das mãos, tentando bater nele com o martelo seguro na outra mão, e esperando evitar seu polegar. No processo, você presta atenção tanto ao martelo quanto ao prego, mas não do mesmo jeito. Em uma das mãos, você mantém contato visual com o efeito (indéxico) de seus golpes no prego enquanto maneja seu martelo. Por um lado, você não sente tanto o contato do instrumento com a palma de sua mão quanto você sente que o martelo golpeou a cabeça do prego. Por outro lado, você está alerta para o signo-sentimento (icônico) em sua palma, seus dedos e polegar no prego e seus golpes, enquanto esforça-se para coordenar suas ações. Nos termos de Polanyi, você está subsidiariamente (tacitamente, icônicamente) consciente do todo de sua atividade, o que lhe dá um sentimento até certo ponto vago, em conjunção com o seu contato visual focalmente (explicamente, indexicalmente) diretamente conectado em direção à cabeça do prego (ver novamente a Figura 7). O vago sentimento é agora visto não diretamente, mas indiretamente e corpomentalmente. A atenção direcionada mentalmente é, em contraste, bastante precisa. Em outra maneira de colocar a questão, você enfoca com a mente sua atenção na cabeça do prego, mas ao mesmo tempo você está subsidiariamente consciente do conjunto dos seus movimentos através do corpomente. Sua consciência geral de ambos os processos não é percebida diretamente, mas você tem confiança nisto em relação a seus movimentos, culminando em bater no prego com seu martelo. Você possui consciência subsidiária do todo do seu movimento e a consciência focalizada de você atualmente está no 35 processo de cravar o prego na parede. Sua interatividade procede da consciência subsidiária para a consciência focalizada. Neste relacionamento de-para, o último é completamente consciente, enquanto o anterior pode existir em vários graus de consciência. Seu sentimento geral é o de um todo, tomado de maneira mais automática, não-consciente, subsidiária e icônica. Sua atenção direta é consciente, focalizada, e afinada para o signo-martelo descido com força no signo-martelo. Se o signo-martelo está agora ligeiramente encurvado, você ajusta a força e a direção de seu golpe com o signomartelo de forma a corrigir a entrada do signo-prego na parede, que é um outro signo em relação contígua com o signo-prego e o signomartelo. Sua atenção focalizada compele você a ajustar seus movimentos, assim como a coordená-los com seu sentimento subsidiário pela atividade em geral. Você opera em níveis conscientes (indéxicos e icônicos) assim como em níveis não-conscientes (icônicos). Signos simbólicos (lingüísticos) são processados basicamente do mesmo jeito. Suponha que, enquanto pregava o prego na parede, você ouviu uma voz no quarto ao lado e a mensagem: “Aqui está a pizza que você pediu”. E você responde de acordo — mas, infelizmente, não sem golpear seu polegar quando sua atenção voltou-se em direção a um conjunto de signos totalmente diferentes. Você percebeu subsidiariamente um conglomerado de sons, totalmente não relacionados a seu objeto em termos de semelhança ou conexões naturais, e você focalmente os ligou a seus “objetos semióticos” numa maneira simbólica apropriada. A iconicidade está sempre lá: os sons que você ouviu pareciam-se a sons passados na sua memória. E há a 36 indexicalidade: os sons, após terem progredido da atenção subsidiária para a atenção focal, se ligaram a algum outro. Então, como um resultado da palavra em seu polegar, você emite uma série profana de signos dignos da admiração de qualquer carpinteiro respeitável. E a aprendizagem? O conhecimento? De novo a pergunta: Tem isso tudo algo a ver com a aprendizagem e o conhecimento? Tem. A aprendizagem é processo, nunca produto. É processo por meio da interdependência, interrelacionalidade e interação—para usar esse trio de termos já acostumados. Isto é em geral a filosofia da educação de Alfred North Whitehead (1957, ver também Gill, 1993). Aprendizagem não é uma imagem metafórica como a de arrumar as malas. Não é questão de encher o cérebro de fatos como se jogássemos camisas, calças, calcinhas, e meias na mala, como se a mente estivesse predisposta a organizar os fatos no sentido do racionalismo dualístico. É um processo de co-participação (Carl Rogers 1983). Também não é a simples idéia de observar fatos objetivos como se o sujeito fosse um observador neutro (a teoria do sujeito como ‘espectador’ [‘spectator theory’] segundo o termo de John Dewey [1975]). Não. A aprendizagem é um processo de interação com o mundo físico e com a comunidade dentro da qual se encontra o sujeito. É a idéia de Dewey, e também de Peirce, de que a mente e o corpo, o corpomente, é produto da evolução biológica, e por isso deve ser coparticipante de e com o mundo físico; deve ser de uma natureza compatível com o mundo físico; deve estar em harmonia e em 37 coerência como o mundo físico (CP 2.754, 5.591, 6.604). O corpomente e o mundo físico são interdependentes, inter-relacionados e interativos. São como a metáfora de Ludwig Wittgenstein (1969) do rio e seu leito, o leito desse rio. O rio mesmo não é a idéia do rio nem a palavra ‘rio’ no sentido que é o que é, ontem, hoje e amanhã, uma entidade fixa, ou fixada pela língua. O leito do rio e o rio mesmo são co-participantes dum processo. O rio muda o leito e a forma do leito em parte dirige o fluir do rio. É a mesma maneira entre corpo e mente como co-participantes. Concebendo mente e corpo e as palavras ‘mente’ e ‘corpo’ como Primeiridade (+1) e Segundidade (-1) respectivamente, então Terceiridade seria corpomente (i, Ψ). Corpomente, porém, não é uma entidade estática. É dinâmica, cinética. A cinética existe dentro do corpomente; então também é somática. Combinando os dois termos, então teremos cinesomática. A cinesomática como processo da vida é também processo da comunicação. E como processo da comunicação, é processo de aprendizagem. A abordagem, então, deve ser dialógica (Ponzio, 1990). O processo dialógico estipula a aprendizagem e a aquisição do conhecimento pela invenção e a re-invenção; isto é, a construção — de uma filosofia construtivista (Goodman, 1978). Deste modo, o conhecimento não é uma coisa obtida no passado e agora no presente valorizada como objeto que é propriedade do sujeito — no sentido dualístico. O conhecimento ‘acontece’. É um verbo, não um nominativo, não algo de essência ou substância, não algo que o sujeito adquire. Só ‘acontece’ (‘it just happens’). ‘Acontece’, porque como verbo sempre está num processo de mudança. Muda mudando, como verbo em perpétuo movimento. Deste modo, o sujeito dialoga com ele 38 mesmo (interior) e com o mundo e com os indivíduos da sua comunidade (exterior). O sujeito fica interdependente, inter-relacionado e interativo com ele mesmo, com o mundo e com a comunidade. É um agente co-participante. Por isso o conhecimento implica a autoconscientização do sujeito (Freire, 1970). As limitações Mas esse conhecimento, como processo dialógico, sempre fica sem terminar. Fica incompleto (subdeterminado) e/ou inconsistente, contraditório ou paradoxal (sobre-determinado).9 Tudo sempre está virando outra coisa diferente daquilo que foi. É como dança. A dançarina e a dança são complementares. A dança precisa da dançarina para que possa se desenvolver como dança, e a dançarina precisa da dança para que consiga se desenvolver como dançarina. No ato da performance, a dançarina e a dança não são duas; são uma — como corpomente é um. 9 Para mais detalhe sobre a incompletudo, inconsistência, sobredeterminação a subdeterminação ver Merrell (1997, 2002, 2003). 39 Primeiridade Possibilidade Inconsistência ('Both-And') Sobredeterminação Segundidade Existência Não-Contradição ('Either/Or') Hiperdeterminação Terceiridade ProbabilidadeNecessidade Incompletude ('Neither-Nor') Subdeterminação Figura 8 Esta união entre dançarina e dança, e entre corpo e mente, de interdependência, inter-relacionalidade e interação implica também uma ‘visão perspectivista’. Mas não é o perspectivismo de Friedrich Nietzsche; é de Nelson Goodman dos ‘Jeitos de Fazer Mundos’ (‘ways of worldmaking’) (1978). Para Goodman, em primeiro lugar, o nosso conhecimento do mundo é questão de uma perspectiva particular e sentida através das sensações e o sentimento dentro do que eu denomino corpomente é concebido e articulado através da língua. Em segundo lugar, não existe só um mundo senão uma pluralidade de 40 mundos. Cada comunidade tem seu mundo — ou talvez mundos — e entre uma comunidade e outra existem dois ou mais mundos. Nenhum mundo particular é o que o Mundo Total, completo e coerente é, porque não pode haver completude e consistência no nosso mundo, já que somos finitos e falíveis—segundo Peirce (CP 1.151-53, 1.171-73, 5.587). E a coleção de todos os mundos que existem num momento no tempo e no espaço compõe um mundo, mas não pode ser o mundo completo e coerente. Qualquer coleção de mundos existentes e atuais sempre fica incompleta, e se tem pretensões de completude, fica inconsistente (Nadin 1982, Merrell 1987, 2000a). Os mundos em conjunto sempre se encontram num processo de interdependência, interrelacionalidade e interação. O toque pessoal do conhecimento A aprendizagem e o conhecimento não são da esfera da objetividade de acordo com as premissas tradicionais, cartesianas, do ocidente. São de natureza pessoal, particular, individual. Então sempre tem um forte toque de subjetividade. Desta maneira são pós-objetivistas (Polanyi, 1958). Então como é que não caímos dentro do ‘solipsismo’ de modo que não pode haver comunicação entre nós? Já temos a resposta. Se o corpomente é de processo natural igual a própria natureza, então existirá algo em comum entre todos nós? Compartilhamos, entre nossas premissas, predisposições, propensões, inclinações, e também até entre nossos preconceitos, algum sentido do que nós somos, e do que são todas as coisas orgânicas e inorgânicas do nosso mundo. Estou escrevendo de 41 processo, não produto, porque tudo que há sempre está num processo de virar outra coisa do que é e do que foi. Nada fica estático; tudo muda. Quer dizer que a dança da aprendizagem e o conhecimento não faz distinção bem marcada entre o sujeito da aprendizagem e o conhecimento, e entre o objeto aprendido e o conhecido, entre sujeito e objeto, e entre mestre e aluno. Isto testemunha as limitações do empirismo reducionista e o racionalismo dualístico. Eles querem descrever, explicar e ensinar os fenômenos como se existissem objetivamente ‘fora’, e como se o sujeito que objetivamente aprende e conhece esses fenômenos ficasse ‘dentro’. Mas não existe, propriamente dito, ‘fora’ e ‘dentro’. É de novo o caso da Banda de Möbius da Figura 4. Onde quer que estivermos na banda — ou o mundo — sempre estamos ‘dentro’. É como se fôssemos seres bidimensionais, de duas dimensões, morando dentro da banda. Para nós, não haveria ‘fora’ e ‘dentro’; sempre estaríamos ali, ‘dentro’ da banda — dentro do nosso mundo — e para nós, não poderia haver mais que um espaço de duas dimensões e uma dimensão de tempo. (Ou, de outro jeito, é como se fôssemos seres de três dimensões e morássemos dentro do ‘Triângulo de Penrose’, da Figura 6, dentro de um espaço de três dimensões e uma dimensão de tempo). Seguindo a filosofia de José Ortega y Gasset (1964), somos nós e as nossas circunstâncias, e não pode haver distinção absoluta entre nós e as nossas circunstâncias, porque tudo está inter-relacionado, interdependente e interativo. E, já que todos nós compartilhamos algo da natureza mesma dentro de nós e entre nós e nosso mundo físico, nossa aprendizagem e nosso conhecimento não podem ser completamente 42 afastados dos processos hermenêuticos, sobretudo à maneira de HansGeorg Gadamer (1975). Ou, melhor dito, é compatível com o processo da ‘triangulação’ na ‘interpretação radical’ de Donald Davidson (1984). Como os tripés das Figuras 1 a 3, duas pessoas em comunicação ocupariam dois eixos e o objeto da comunicação ocuparia o terceiro eixo. Mas não é simples questão de um triângulo, porque os três eixos existem dentro de um sistema de interdependência, inter-relação e interação. Quer dizer, o processo de interconexão entre os três lados do ‘triângulo’ é um ‘processo de integração’. E de onde começa essa integração? Desde Zero, 0. O Zero engendra Ø e logo √, e valores positivos e negativos, e daí tudo que há é engendrado. Limitações, ou libertação? Existem os objetos, atos e acontecimentos engendrados de maneira tácita e os objetos, atos e acontecimentos explícitos, pelas sensações e os sentimentos (feelings), e pela atenção conscientemente focalizada e a atenção subsidiária, tudo segundo a Figura 7. E a Figura 7 em conjunção com a Figura 8 demonstra que do possível, passamos pelo engendramento — quer dizer, invenção, construção — à existência dos objetos, atos e acontecimentos do nosso mundo. Daí, pelas premissas, predisposições, propensões, inclinações, e também os preconceitos, temos a probabilidade e a necessidade de interpretar o mundo segundo os costumes habituados. Da sobredeterminação e a inconsistência (onde pode haver ‘Both-And’), passamos aos objetos, atos e acontecimentos que são para nós a existência e a hiperdeterminação (por isso imperam as exigências de ‘Neither-Nor’) e finalmente ficamos mais ou menos confortáveis dentro dos processos da 43 probabilidade-necessidade, que não pode menos que ficar incompleto e subdeterminado (e entram as possibilidades de ‘Neither-Nor’). Neste processo, não há exclusivamente nem subjetividade nem objetividade, nem atenção focalizada nem atenção subsidiária, nem conhecimento explícito nem conhecimento tácito, nem concepção nem sensação-sentimento. Não há mais que o fluxo, a efervescência, a ebulição, a ondulação, a rítmica dança, da semiose (Figura 9). A semiose não é algo fixo; não é produto de mentes racionalísticamente mecanizantes. É processo que acontece, entre nós e o nosso mundo que inventamos e construímos. É o nosso mundo particular, engendrado entre todos os mundos possíveis. Sujetividade Mente Interdependência Interatividade Objetividade Corpo Segundidade Interrelacionalidade Idealismo ObjetivoRelativismo Sujetivo Constructivismo 'CorpoMente' Figura 9 44 Bibliografia ALMEDER, Robert. The Philosophy of Charles S. Peirce. Totowa: Rowman and Littlefield, 1980. BOLER, John. “Habits of Thought.” In Studies in the Philosophy of Charles Sanders Peirce, E. C. Moore and R. S. Robin (eds), 382-400. Amherst: University of Massachussetts Press, 1964. BROCK, Jarrett E. ‘Principle Themes in Peirce's Logic of Vagueness’. In Peirce Studies 1, J. E. Brock, et al. (eds.), 41-50. Lubbock: Institute for Studies in Pragmaticism, 1979. DAVIDSON, Donald. Inquiries into Truth and Interpretation. Oxford: Clarendon Press, 1984. DEWEY, John. Experience and Education. New York: Macmillan, 1975. DOZORETZ, Jerry. ‘The Internally Real, the Fictitious, and the Undubitable’. In Peirce Studies I, J. E. Brock, et al. (eds.), 77-87. Lubbock: Institute for Studies in Pragmaticism, 1979. 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Mas não se pode seriamente filosofar de um modo sem rejeitar ou incorporar os outros modos. Uma dança pode estar fora de moda, mas não se torna por isso incorreta. Por seu lado, a filosofia, como toda ciência, ocupa-se Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia – UFBA. Endereço eletrônico: [email protected] 48 com a verdade. Por isso, filosofar de um jeito ou de outro pode ser moderno ou antiquado, mas a constatação disso não é da conta daquele que filosofa, e sim do historiador. Se me perguntam por que filosofo deste jeito e não de outro, eu mesmo não posso responder ‘porque é moderno’, mas apenas: ‘porque é o modo correto de filosofar’. Mas aí cabe então a obrigação implícita de se legitimar a prentensão de correção. A apresentação de um modo de filosofar inclui a tarefa de relacioná-lo com outros modos possíveis de filosofar e, no confronto entre eles, demonstrar sua correção” (Tugendhat, 1992, p. 14). Por isso, quando filosofamos – quando nos perguntamos pelas razões, quando examinamos nossas crenças, quando nos questionamos sinceramente sobre o sentido das coisas e sobre a verdade – é importante nos perguntarmos que diferença faz para nosso modo de compreender o sentido das coisas adotarmos uma perspectiva teórica ou outra. Para nós que vivemos no Brasil de hoje (para nós que estamos preocupados com o destino da sociedade brasileira, que nos ocupamos da política, da democracia e, principalmente, da educação), há uma pergunta que não é trivial (nem é um luxo pequeno-burguês): como pensar? O que podemos entender por razão, conhecimento, ciência, verdade? Eu creio que o pragmatismo oferece um modo para enxergar o sentido das coisas e sugere um modo de pensar; mas este é apenas um modo e há muitos outros. [2] As obras de Charles S. Peirce, William James, John Dewey, Ludwig Wittgenstein, Willard von Quine e Wilfrid Sellars, significaram, no horizonte da Filosofia Contemporânea, uma severa reação ao ideal de uma fundamentação racional do conhecimento – ao menos nos moldes do ideal cartesiano. E que, de algum modo, com a publicação de 49 Philosophy and the Mirror of Nature em 1979, Rorty outorgou ao pragmatismo um sentido de tradição e uma má-consciência histórica identificados ao abandono da filosofia como epistemologia e como garantidora de crenças e ações morais racionais. A obra recente de Hilary Putnam, Richard Rorty, Jurgen Habermas, Donald Davidson e de Floyd Merrell (que nos brinda com sua inestimável presença neste encontro) expressam um salto de grandes proporções no sentido de pensar não o ser oculto, a verdade primeira, o sentido originário, mas, sobretudo, a experiência singular e concreta das mulheres e homens que vivem no mundo, que falam sobre ele e, surpreendentemente, se compreendem mutuamente. Ora, a idéia de uma fundamentação racional do conhecimento e da ação esteve, no espírito do cartesianismo, vinculada à idéia de um espírito (mind) reflexivo que procura compreender primeiramente a sua própria existência interior e privada como base e pressuposto de toda compreensão possível e se edificara sobre um “eu” que representa a si mesmo sem as sombras do erro e da ilusão — posto que o “eu” diante de si, diferentemente de quando está diante de um objeto, não pode, sob qualquer hipótese, estar enganado: seria a consciência da consciência que forma e constitui a sustentação sólida da razão e do conhecimento (do ser, das coisas externas e dos outros espíritos). A guinada pragmático-lingüística rompeu radicalmente com essa perspectiva, elaborando de modo original e singular uma refutação da idéia de “interioridade fundadora”, “subjetividade-espírito-mente”, “significado e certezas privados” e “linguagem fenomenológica para os sense data” ao afirmar (de Peirce a Wittgenstein e Quine) que nossa compreensão do mundo não pode estar apartada das nossas crenças e 50 significados na linguagem e que, por sua vez, a expressão “significado” e a expressão “linguagem” não podem significar outra coisa senão “significado público” e “linguagem pública”. Com a emergência do interesse pelo “significado da palavra” e pela “sentença”, sob a égide de Gottlob Frege, e com o interesse pelo significado em geral, como está em Peirce, o conhecimento se tornou — como a palavra, a sentença, o signo — em arte pública e social (Quine , 1999, p. IX) e deixou de ser um artefato privado. [3] Do ponto de vista da história das idéias, o pragmatismo se inscreve no leito da crise da unidade da razão e do conhecimento científico que caracteriza a virada do século XIX para o século XX. O surgimento e o êxito das Humanidades ou Ciências do Espírito fez com que a Filosofia (como Ciência Geral do Conhecimento) não só perca gradativamente a soberania sobre seus territórios como veja-se forçada a incorporar novas categorias forjadas na investigação hermenêutica, sociológica, lingüística e antropológica, como o signo, enunciado, linguagem, ação, praxis, produção, compreensão. Num lugar, Habermas fez ver que as Ciências do Espírito haviam reunido provas suficientes da natureza contextual e contingente da razão, da verdade, do conhecimento e, em geral, de todas as obras da mente humana (Habermas , in Niznik e Sanders, 1996). Este enfoque tendeu a uma naturalização da verdade e da razão e, em muitos autores, passou a significar o fim de critérios gerais que pudessem estabelecer uma distinção entre, de um lado, uma crença e, do outro, uma crença verdadeira e, do mesmo modo, entre agir e agir racional. O intérprete do fenômeno humano não pode mais assumir uma perspectiva objetivante (um ponto de vista “de lugar nenhum” ou do 51 “Olho de Deus”) que se suponha externa ao domínio da existência histórica, social e lingüística. A linguagem e o contexto da vida compõe o repertório das condições que tornam possível a interpretação de quaisquer coisas que sejam pertinentes aos membros da comunidade lingüística dentro dos limites do mundo contingente. O intérprete não poderia compreender seus objetos se já não estivesse envolvido num processo no qual ele e seu objeto formam parte desde o primeiro momento. Posto que para o intérprete não há maneira de escapar deste contexto, uma interpretação pode ser mais profunda ou mais superficial, mas nunca verdadeira ou falsa nem reivindicar uma garantia superior às outras interpretações diversas. Tudo isso nos leva a admitir o caráter plural, etnocêntrico, gramatical, histórico e não-racional (no sentido clássico) das crenças sobre o mundo, sobre nós mesmos e sobre os outros. Mais ainda, nos faz pensar na incomensurabilidade das crenças, pois todos os regimes simbólicos definem para seu domínio diferentes condições de verdade e de satisfação, impondo formas de racionalidade e aceitabilidade próprias, mas que deveriam gozar, todas, e sem o juízo de um Tribunal da Razão Geral, da mesma dignidade. Por fim, para Rorty, o pragmatismo histórico — cujas referências são Dewey, James, Wittgenstein, Sellars e Quine, mas também Nietzsche e Heidegger — deve ser entendido como o abandono deliberado e programático de qualquer metafísica e epistemologia como disciplinas possíveis (Rorty, 1980, p. 6): na tradição que iria de Dewey e James até Davidson, o pragmatismo estaria liberto do projeto filosóficoepistemológico e, ao invés de uma “fundamentação epistemológica”, dedicar-se-ia ao modo como nos inscrevemos na linguagem pública, no 52 hábito de uma comunidade, num esquema conceitual e seguimos regras convencionadas como aquilo que estabelece o sentido de razão, do que somos e sabemos e porque agimos. Hábitos e regras nascidos do acordo que, por sua vez, não podem ser justificados, apenas descritos. Tornou-se evidente que para aqueles que herdam os “jogos de linguagem”, a “semiose ilimitada”, o “relativismo ontológico”, “tradução radical” e “versões-de-mundo” em Wittgenstein, Peirce, Quine e Goodman, que nosso conhecimento não consiste num espelhamento imediato das coisas externas, mas na construção de “narrativas” e “interpretações” que são, por sua vez, sistemas de símbolos que ordenam e categorizam a experiência. Estas versões, ainda mais, são plurais, prestam contas a formas diversas de construção e se esgotam com a mesma freqüência com que se corrigem e renovam. A guinada lingüístico-pragmático-hermenêutica dissolveria o fundacionismo, o representacionismo e o transcendentalismo e o lugar da epistemologia e da metafisica seriam ocupado com “um mundo sem substâncias ou essências”, “uma verdade sem correspondência com a realidade” e “uma ética sem princípios” (Rorty, 1999). [4] Entrementes, estou firmemente convencido que isto que constitui a espinha dorsal e a anima do pragmatismo – a crítica do “mito da subjetividade” ou “mito da interioridade” – não me obriga, necessariamente, a abandonar a idéia de verdade e de objetividade nem interdita, para mim, a possibilidade de argumentos transcendentais. Mas será que eu não estou caindo em contradição? Se se admite que não há realidade não-interpretada, que é um erro gramatical distinguir a ordem da linguagem e ordem do mundo e que não há conhecimento exterior às crenças e significados socialmente firmados, 53 enfim, se aprendemos corretamente a lição do pragmatismo, como podemos falar de verdade e de objetividade? Mais ainda, se realmente nossa compreensão do mundo, das coisas e das outras mentes está associado à história natural do gênero humano – se o conhecimento é um fenômeno naturalizado – como é possível se falar de racionalidade e reivindicarmos algum princípio transcendental? Eu estaria enganado quanto ao sentido da lição de James, Dewey e Wittgenstein segundo a qual o conhecimento tem necessariamente uma face humana? Eu teria esquecido que, com Dewey, devemos nos distanciar da epistemologia da representação e deixar de falar de “representação exata”, de “representação inexata” ou de “não-representação” nem do que é “aparente” e do que é “essencial e real”? E, ainda, que o conhecimento é algo que temos razões para acreditar e que sua justificativa é um acontecimento social que envolve o acordo entre atores humanos (e não uma relação direta e bem sucedida entre o sujeito cognoscente e a realidade)? ... Algo tão próximo da terapia wittgensteiniana que, ao assinalar que “a harmonia entre pensamento e realidade, como tudo que é metafísico, encontra-se na gramática da língua”, interroga-se: “‘Deste modo você está dizendo que a concordância entre os homens decide o que é certo e o que é errado?’ — Certo e errado é o que os homens dizem. E os homens estão de acordo na linguagem” (Wittgenstein , 1973, § 241). [5] Não posso me opor séria e sinceramente a tudo isto. Mas se falamos que as mulheres e homens estão concordes na linguagem e que este acordo – falível e plural – decide o que é certo e errado... do que estamos falando quando dizemos que há compreensão na linguagem? Como e a propósito de quê essa compreensão é possível? Rorty nos 54 convida a deixar de lado a Filosofia e adotarmos a Conversação... Mas qual é o objeto e a meta do diálogo? Como é possível a conversação sem os conceitos quase-transcendentais de “interpretação que visa a compreensão” e de “verdade”? Defendo que este que é, no meu modo de ver, o núcleo duro do pragmatismo – a assunção do caráter público do significado e da linguagem, a refutação do “mito do subjetivo” e a defesa da idéia de que mulheres e homens podem se compreender mutuamente – envolve uma teoria sobre como compreendemos o sentido da “realidade objetiva”. Assim como no diálogo conduzido por Sócrates, o falar (um fenômeno necessariamente social e público) não depende do fato de que dois ou mais falantes falem do mesmo modo (compartilhando ponto a ponto uma regra gramatical); ele requer, outrossim, que o falante expresse suas crenças por meio de suas palavras, solicitando ser interpretado pelo ouvinte e, do mesmo modo, que o ouvinte se envolva na tarefa de interpretar as suas palavras como expressão de uma crença. O intérprete, para compreender a fala do outro, parte da suposição de que as sentenças que um falante tem por verdadeiras — especialmente aquelas que sustenta com mais obstinação, as mais centrais no sistema de suas crenças — são ou devem ser verdadeiras, at least in the opinion of the interpreter (Davidson , 2001, p. 130) (sem esta “estrutura” não há dialética, não há comunicação). 55 O carácter conceitualmente primitivo da verdade10 que está na base do “princípio de caridade”, prescreve a necessidade de fundo de crenças verdadeiras para que quaisquer conceitos e sentenças sejam racionais. Donald Davidson, por exemplo, diz: “A verdade é importante (...) não porque ela é especialmente valorosa ou útil, embora, é claro, este possa ser o caso em determinadas ocasiões, mas porque sem a idéia de verdade não seríamos criaturas pensantes, nem entenderíamos o que é para qualquer entidade ser uma criatura pensante” (Davidson , 2000, p. 72). [6] A interpretação radical, conceito central em Davidson, prevê que o intérprete é aquele que busca estabelecer uma relação entre o que é dito pelo seu interlocutor e as coisas que existem e acontecem no mundo objetivo (e que causam suas crenças). Dessarte, a comunicação lingüística é o que estabelece a distinção entre o subjetivo e o objetivo (distinção fundamental para o conteúdo de uma crença). Na comunicação real entre interlocutores, para que seja possível compreender a linguagem doutrem devemos ser capazes de conceber ou pensar aquilo que ele concebe ou pensa. Entrementes, não somos obrigados a concordar com todos os seus pontos; mas, mesmo para estarmos em desacordo somos obrigados a pensar a mesma proposição e, deste modo, conceber a mesma coisa (Davidson, 1982, p. 318-27). 10 A verdade é, em Davidson, um conceito primitivo, qual seja, não pode ser definido. Isto se dá porque uma definição qualquer de verdade terá que ser elaborada proposicionalmente e, deste modo, recorrer a características próprias a proposições verdadeiras, ou seja, implicará o próprio conceito de verdade: necessitamos sempre dominar o conceito de verdade que esses traços característicos da proposição pressupõem. Para definir a verdade precisamos dominar o conceito de proposição verdadeira e de verdade, o que quer significar, o conceito de verdade é indefinível: “Uma noção geral e pré-analítica da verdade é pressuposta pela teoria. Porque temos esta noção, podemos determinar o que conta como evidência para a verdade de uma sentença-T” (Davidson, op. cit., p. 223). 56 Para que alguém tenha uma crença será decisivo que compreenda a possibilidade de estar equivocado e conheça o contraste entre verdade e erro, crença verdadeira e crença falsa. No entanto, estes contrastes não estão dispostos numa experiência ou na observação, mas na interpretação que é constituída pela idéia de uma verdade objetiva, pública (Davidson, 2001, p. 170). O sentido de objetividade, para além da perspectiva idealista ou realista e da “epistemologia da primeira pessoa”, é conseqüência de uma espécie de triangulação: o conteúdo do pensamento de uma pessoa depende das suas relações com outras pessoas e com o mundo, de modo que para que se dê tal triangulação se requer dois seres (supostamente racionais) que interagem com um objeto e que se inscrevem, pela interpretacao radical, num diálogo. Porque ambos partilham o conceito de verdade lhes é permitido dar um sentido à suposição de que cada um deles tem uma crença e que eles são capazes ter crenças sobre um mundo objetivo. Este externalismo tem dois elementos característicos: a) há a necessidade ontológica de uma interação causal entre os objetos do mundo e nossas crenças e b) há a exigência do caráter público e social dos pensamentos e dos significados nas condições de uma comunicação intersubjetiva. Sem um intérprete que determine do exterior como uma cadeia causal (que vai do mundo às palavras) determina o conhecimento do significado de uma palavra, não há meio de definir se o sujeito utiliza esta palavra corretamente ou não, com sentido ou não. Para explicar o que e porque alguém disse ou fez alguma coisa necessitamos interpretar os objetivos, intenções, razões e crenças que o falante desposa: o trabalho de interpretação obrigatoriamente está associado ao ato de 57 outorgar desejos e crenças e outros pensamentos a uma fala. Por isso, podemos afirmar que o diálogo é o contexto da objetividade. A comunicação na linguagem impõe que o falante tenha um conceito de mundo e imagine que o outro falante também tenha um conceito correto do mundo. Imaginar que o outro não tem um conceito do mundo (que nos seus traços mais gerais é verdadeiro como o nosso) é, de um lado, compreender que a linguagem e a ação do outro são irracionais e, ao mesmo tempo, pensar na impossibilidade de um mundo concebivelmente intersubjetivo. O conceito de um mundo intersubjetivo é o conceito de um mundo objetivo, um mundo sobre o qual cada comunicante pode ter crenças (Davidson, 1982, p. 325-7). [7] Obviamente que isto que disse até aqui é apenas uma leitura apressada e não serve para educar e domar o Pragmatismo. Creio apenas, como horizonte da pesquisa sobre Pragmatismo e Filosofia Americana, que as obras de Peirce, Davidson, Putnam e Floyd Merrell nos ensinam a ver as coisas por um ângulo mais simples: a vida comum, a convivência livre entre mulheres e homens de várias línguas e culturas, não eliminam a especulação filosófica, mas alimentam-na. As pretenções filosóficas estão associadas ao pensamento especulativo que tenta conceber a estrutura incerta, falível, humana do diálogo que revê, problematiza, semantiza nosso mundo. Como disse em outro lugar, estes são ingredientes simples, mas profícuos para a pesquisa filosófica: uma epistemologia e uma metafísica do ponto de vista do intérprete (e não da primeira pessoa), uma perspectiva que solicita a possibilidade efetiva do acerto e do erro, do outro e do mundo. A verdade, para um pragmatista não é um dobrão espanhol que pouquíssimas pessoas viram, menos ainda tocaram e apenas duas ou três 58 pessoas os possui (príncipes, sacerdotes, escolhidos). A verdade é uma moeda de R$ 0,10; não digo que é uma moeda de R$ 0,01, que não vale nada. Digo que qualquer um pode tê-la, que ela passa de mão-em-mão. Todos nós possuimos a verdade desde que sejamos criaturas pensantes, falantes e ouvintes. Se perguntarmos a um filósofo metafísico “qual o sentido das coisas, do conhecimento e da verdade?” ele nos apresentará uma rigorosa reflexão sobre o “eu”, discutirá argumentos auspiciosos sobre as garantias racionais da conduta e do existência do mundo externo, demonstrará raciocínios de valor transcendental e anistórico. Mas se fizermos a mesma pergunta a um pragmatismo ele dirá que tudo que há de relevante para compreendermos que há um mundo e que podemos conhecer e dominar o sentido de verdade se encontra no fato singelo de que conversamos uns com os outros, que, no mais das vezes, condordamos. Mas tudo isso necessita, antes de qualquer coisa, da democracia, pois somente na democracia as discordâncias geram crescimento, progresso, renovação. Bibliografia DAVIDSON, D. Inquiries into truth and interpretation. Oxford: Clarendon Press, 1984 e reeditado em 2001. _____. “Truth rehabilited”, in Robert Brandom (ed.), Rorty and his critics. Massachusetts/Oxford: Basil Blackwell, 2000. _____. “Rational Animal”, in Dialectica, n. 36, 1982. HABERMAS, J. in: J. Niznik e J. Sanders (ed.), Debating the State of Philosophy. Westport: Greenwood Publishing Group, 1996. QUINE. Word and Object. Cambridge/Massachusetts: MIT Press, 1999. 59 RORTY, R. Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton/New Jersey: Princeton University Press, 1980. _____. Philosophy and Social Hope. Penguin, 1999. TUGENDHAT, Ernest. Lições Introdutórias à Filosofia Analítica da Linguagem. trad. Mario Fleig et al. Ijuí: Editora Unijuí, 1992. WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. Oxford: Blackwell, 1973. 60 ENSINO DE FILOSOFIA: NOVAS PROPOSTAS 61 TEORIA DOS ESTÁGIOS DA ARGUMENTAÇÃO∗ Frank Thomas Sautter∗ Um princípio metodológico manifesto prescreve que não devemos abandonar nossas teses até que tenhamos bons motivos para fazê-lo, ou seja, até que elas se mostrem insustentáveis, até que elas se mostrem incompatíveis com teses melhor assentadas. Ao examinarmos a história recente da lógica – a história da lógica contemporânea – auxiliados por este princípio, constatamos a pressa com que a tese ortodoxa da natureza da lógica – a tese de que a lógica tem natureza única, qual seja, formal-dedutiva – foi abandonada em prol de diversas teses heterodoxas da natureza da lógica, mantidas por promotores da lógica informal, do pensamento crítico, da teoria da argumentação, etc., segundo as quais a lógica tem natureza múltipla. Neste trabalho tomarei o partido da ortodoxia contra essas variantes lógicas da heresia de Nestório. Minha contribuição não consistirá num ataque direto às bases das teses opostas. Ao invés disso procurarei mostrar, recorrendo a um Texto publicado em CANDIDO, Celso; CARBONARA, Vanderlei (orgs). Filosofia e Ensino: um diálogo transdisciplinar. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2004, p. 233-244. ∗ Doutor em Filosofia, UNICAMP, 2000. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria. Endereço eletrônico: [email protected] 62 exemplo concreto simples, que a incapacidade do cânone lógico para dar conta de diversos aspectos da avaliação dos argumentos pode ser aparente. Utilizarei uma proposta elaborada por Peter Suber, cujo material encontra-se à disposição na INTERNET (Suber, 2000). Antes, contudo, como preparação à apreciação dessa proposta, vou recorrer primeiro a um contraste entre retórica, dialética e filosofia, elaborado por Armando Plebe e Pietro Emanuele (1992), e depois a uma leitura da história da lógica proposta por Jaakko Hintikka (2001). Combativo versus Colaborativo, Individual versus Coletivo As duas dicotomias – combativo versus colaborativo e individual versus coletivo – são utilizadas por Plebe e Emanuele para distinguir as três disciplinas – retórica, dialética e filosofia – emergentes no mundo grego ao longo do quarto século antes de Cristo e rivais entre si. Enquanto que a retórica constituiu-se numa atividade individual e combativa (agonística), a dialética opôs-se completamente a ela, por estabelecer-se como uma atividade coletiva e colaborativa (não agonística) (Plebe; Emanuele, 1992, p. 12). Para estes autores, a filosofia concorda, pelo menos nesse primeiro momento da sua história, parcialmente com ambas. À semelhança da retórica ela é uma atividade individual, e à semelhança da dialética ela é uma atividade colaborativa (não agonística). Essa localização da filosofia entre retórica e dialética precisa ser acolhida com uma pitada de sal, pois surgiram exceções notáveis. Mas, quanto ao caráter individual da atividade filosófica, mesmo nalguns casos em que houve recurso ao diálogo, e, portanto, 63 aparentemente houve contra-exemplos à tese de Plebe e Emanuele, eles mostram como essas situações podem ter sido bastante artificiais. Por exemplo, citam uma passagem do Górgias de Platão em que Sócrates pede ao seu interlocutor que lhe faça uma determinada pergunta; em tal situação estamos, evidentemente, bastante distantes de um verdadeiro diálogo. Não é decisivo para a minha exposição se esta leitura de Plebe e Emanuele é fidedigna, exagerada ou simplesmente falsa. O ponto interessante a respeito da dicotomia individual versus coletivo consiste em que, na proposta de Suber, um argumento para ser qualificado como um bom argumento precisa ser o resultado de uma atividade coletiva. Quanto ao caráter colaborativo em detrimento do caráter competitivo, o stylus conciliandi ao invés do stylus pugnax (Plebe; Emanuele, 1992, p. 32), os autores tocam numa distinção de fundamental importância para a avaliação da proposta de Suber. Enquanto que a filosofia, por seu caráter colaborativo, guia-se por critérios dicotômicos – verdadeiro versus falso, lícito versus ilícito, válido versus inválido, para citar alguns – a retórica, por seu turno, por ser uma atividade de caráter combativo, guia-se por critérios “agonístico-hierárquicos” (Plebe; Emanuele, 1992, p. 22) em que há uma gradação contínua do melhor para o pior. Um critério agonísticohierárquico é todo aquele em que se atribui um peso (ónkos, em grego, e pondus, em latim) aos juízos segundo as diferenças de eficácia por eles apresentadas (Plebe; Emanuele, 1992, p. 25). Fornecer objetivamente um critério desse tipo representa um verdadeiro desafio aos defensores do estilo combativo. Mostrarei que a proposta de Suber, apesar da sua simplicidade, fornece um critério objetivo à eficácia argumentativa e que esse critério objetivo acolhe, sob si, múltiplos pesos. 64 Excelência versus Prevenção, Regras Definitórias versus Regras Estratégicas Considerarei, agora, as teses de Hintikka e em que medida elas poderão nos auxiliar a compreender a proposta de Suber. Hintikka inicia seu artigo fazendo uma analogia do desenvolvimento da lógica com o desenvolvimento da ética. Ele nos convida a fazer um contraste entre a ética tal como era compreendida na antigüidade clássica e a ética tal como passou a ser praticada a partir da era vitoriana. Segundo Hintikka, a ética principia como “um estudo das diferentes formas de excelência” (Hintikka, 2001, p. 35) e é completamente deturpada na era vitoriana quando passa a ser “uma prevenção dos erros morais, uma preservação das virtudes” (Hintikka, 2001, p. 35), ou seja, ela transforma-se de uma atividade positiva, uma atividade em que bens são acrescentados, numa atividade negativa, uma atividade visando a minimização da subtração de bens supostamente possuídos. Um destino similar teria ocorrido à lógica. Um começo nos Tópicos de Aristóteles caracterizado como uma busca por excelência descamba para uma atitude defensiva nas obras dos algebristas da lógica e de Frege (Hintikka, 2001, p. 36). Contudo, o ponto interessante aqui é a lição extraída por Hintikka desse paralelismo entre o desenvolvimento da lógica e o desenvolvimento da ética: para ele, as tendências recentes que se opõem à lógica formal-dedutiva não se encontram em melhor situação do que ela, pois “em cada livro-texto [de lógica informal, pensamento crítico, teoria da argumentação, e congêneres] há tipicamente capítulos sobre o que conhecemos pelo nome de falácias” (Hintikka, 2001, p. 36), sendo tais capítulos nucleares em boa parte dessas obras. Pois bem, para Hintikka é bastante óbvio que 65 as falácias constituem-se em aspectos essencialmente defensivos do proceder argumentativo. Suber enfrenta essa dificuldade propondo uma teoria da excelência argumentativa, como verei na seqüência. Antes, contudo, quero fazer referência a uma distinção proposta por Hintikka que explica o que está errado, ou melhor, o que está faltando à lógica formal-dedutiva, quando se diz que ela é inadequada para determinados propósitos práticos. Hintikka distingue entre regras definitórias e regras estratégicas (Hintikka, 2001, p. 37). Exemplificando: no xadrez as regras definitórias são aquelas que estabelecem o próprio jogo, determinando quais movimentos são permitidos e, por exclusão, quais são proibidos, mas elas não explicam como atingir a excelência no jogo. Quem determina o bem jogar são as regras estratégicas. Assim, quem conhece as regras definitórias não está propriamente apto a jogar. Consideremos, agora, o caso da lógica. Suas regras definitórias nada mais são, segundo Hintikka, do que as regras de inferência (Hintikka, 2001, p. 37), elas determinam somente os movimentos permitidos e proibidos, e nada nos dizem sobre a excelência na condução do processo argumentativo. Mas, o que serão, então, as regras estratégicas do “jogo” da lógica? Para responder esta questão podemos novamente recorrer ao exemplo do jogo de xadrez. Entende-se que estratégias em xadrez envolvem o exame de longas seqüências de jogadas, um planejamento a médio e longo prazo, nunca a referência a uma jogada isolada. Assim, também as regras estratégicas da lógica não podem se ocupar de inferências particulares (como ocorre quando nos ocupamos, por exemplo, das falácias), mas devem se ocupar de seqüências inteiras de passos argumentativos. O restante do artigo de Hintikka é dedicado ao exame duma proposta de regras estratégicas para 66 a lógica baseada no seu método de árvores e cuja ênfase recai na produção de novos conhecimentos e não na persuasão, como é o caso na teoria da argumentação de Perelman e assemelhadas (Hintikka, 2001, p. 43 ss.). Ele conclui que não é preciso substituir a lógica formal-dedutiva por nenhuma outra para se obter excelência na argumentação, quer dizer, não é preciso e sequer se deve mexer nas regras definitórias da lógica, o que é preciso é encontrar boas regras estratégicas, mesmo que essas regras não possam ser mecanicamente aplicadas ou mesmo ensinadas em sentido estrito, mas apenas compreendidas pela constante exposição a situações que as empregam. Estou inteiramente de acordo com Hintikka e entendo que a proposta de Suber é um exemplo daquilo que se pode oferecer em prol da aplicabilidade da lógica formaldedutiva às situações cotidianas. Examinemos, portanto, a proposta de Suber. Teoria dos Estágios da Argumentação Tradicionalmente, a avaliação do processo argumentativo leva em conta somente a validade dos argumentos, a capacidade de persuasão dos argumentadores, a veracidade e a aceitabilidade dos pontos-departida da argumentação. Suber propõe a identificação de diferentes etapas argumentativas e, em decorrência disso, o estabelecimento de distintos graus de persuasão em diferentes momentos da argumentação, sem que seja preciso abandonar a lógica formal-dedutiva. Para fixar a terminologia empregada na exposição da proposta de Suber vou fazer uma breve exposição daquilo que entendo ser a gênese e função do processo argumentativo. 67 Um processo argumentativo principia quando Fulano assere uma tese e acolhe de Beltrano uma das seguintes reações possíveis, excluída a absoluta indiferença: a) concordância, ou seja, Beltrano assente à tese de Fulano; b) discordância, ou seja, Beltrano dissente da tese de Fulano; c) nem concordância nem discordância, ou seja, Beltrano suspende seu juízo sobre a tese de Fulano. O dissentimento da tese é uma situação na qual Fulano é desafiado a justificar sua asserção, o dissentimento é uma situação na qual Fulano é solicitado a oferecer razões em apoio à sua tese, caso queira promover a adesão à mesma. Mas também a suspensão de juízo sobre a tese é uma situação na qual Beltrano não compartilha da tese asserida por Fulano e que pode levar Fulano a reagir sob forma de uma persuasão racional. Designo “dissentimento em sentido amplo” às situações em que Beltrano não compartilha da tese asserida por Fulano, ou seja, àquelas situações nas quais há dissentimento propriamente dito (dissentimento em sentido estrito) e àquelas situações nas quais há suspensão de juízo. Em situações nas quais há dissentimento em sentido amplo, Fulano desempenha o papel de proponente de uma tese, enquanto que Beltrano desempenha o papel de oponente dessa mesma tese. Designo “argumentação” ao processo de reação crítica do proponente ao oponente, e vice-versa, e designo “argumento” ao produto, integral ou parcial, desse processo. Por exemplo, Fulano assere que o aborto deve ser legalizado. Beltrano poderá reagir dissentindo, em sentido amplo, da asserção de Fulano. O proponente da tese poderá, face ao desafio lançado pelo 68 oponente da sua tese, oferecer razões em apoio à legalização do aborto; ele poderá, por exemplo, alegar que a liberdade de escolha é um valor a ser respeitado. O oponente poderá objetar que a vida de uma pessoa é o valor supremo. O proponente poderá contra-objetar que não há critérios objetivos para determinar o momento a partir do qual um feto é uma pessoa, e assim por diante. O conjunto de ações e reações ao dissentimento, em sentido amplo, à tese é a argumentação. A asserção e as réplicas do proponente ao oponente constituem o argumento integral do proponente; o dissentimento, em sentido amplo, e as tréplicas do oponente ao proponente constituem o argumento integral do oponente. Para compreender a teoria dos estágios da argumentação, proposta por Suber, ainda é preciso ter em conta as seguintes dicotomias relativas aos argumentos: positivo versus negativo, unilateral versus multilateral, responsivo versus não-responsivo. Um argumento é positivo quando ele oferece razões a favor de uma asserção, e um argumento é negativo quando ele oferece razões contra uma asserção. Argumentos positivos podem ser oferecidos por ambas as partes, proponente e oponente, envolvidas no debate: um argumento positivo do proponente é uma razão em favor da sua tese, enquanto que um argumento positivo do oponente é uma razão em favor do seu dissentimento da tese do proponente. Argumentos negativos também podem ser oferecidos por ambas as partes, proponente e oponente, envolvidas no debate: um argumento negativo do proponente é uma razão contra o dissentimento da sua tese, enquanto que um argumento negativo do oponente é uma razão contra a tese do proponente. A Figura 1 contém uma representação de argumentos 69 positivos do proponente e do oponente, e a Figura 2 contém uma representação de argumentos negativos do proponente e do oponente. PROPONENTE OPONENTE Figura 1. Representação de argumentos positivos do proponente e do oponente. Um argumento positivo de alguém é representado por uma flecha saindo do e chegando ao retângulo que representa esse alguém. PROPONENTE OPONENTE PROPONENTE OPONENTE 70 Figura 2. Representação de argumentos negativos do proponente e do oponente.Um argumento negativo de alguém é representado por uma flecha saindo do retângulo que representa esse alguém e chegando ao retângulo que representa seu adversário. Um argumento é unilateral quando ele se compõe exclusivamente de argumentos positivos ou quando ele se compõe exclusivamente de argumentos negativos, e um argumento é multilateral quando ele se compõe tanto de argumentos positivos como de argumentos negativos. A Figura 3 contém uma representação de argumentos unilaterais do proponente e do oponente, e a Figura 4 contém uma representação de argumentos multilaterais do proponente e do oponente. A Figura 5 contém uma representação do início de um processo argumentativo. PROPONENTE OPONENTE OPONENTE PROPONENTE 71 OPONENTE PROPONENTE OPONENTE PROPONENTE Figura 3. Representação de argumentos unilaterais do proponente e do oponente. PROPONENTE PROPONENTE OPONENTE OPONENTE 72 Figura 4. Representação de argumentos multilaterais do proponente e do oponente. PROPONENTE (Tese) OPONENTE (Dissensão da tese) Figura 5. Início de um processo argumentativo. Um argumento é responsivo quando ele contém argumentos dirigidos a objeções do adversário, e um argumento é não-responsivo quando ele não contém argumentos dirigidos a objeções do adversário. A Figura 6 contém uma representação do início do argumento relativo à legalidade do aborto, utilizado anteriormente na exposição da terminologia aqui empregada. d c FULANO a d c e BELTRANO b 73 Figura 6. Exemplo de processo argumentativo, onde (a) é a tese de que o aborto deve ser legalizado, (b) é a dissensão, em sentido amplo, da tese, ou seja, o não-assentimento da legalização do aborto, (c) é a asserção de que a liberdade é um valor a ser respeitado, (d) é a asserção de que a vida humana é o valor supremo, (e) é a asserção de que não se tem critérios objetivos para definir quando um feto é uma pessoa. A marcação “x” na saída da flecha y representa o fato de que y responde a x; por exemplo, d é uma resposta a c. Suber identifica quatro estágios da argumentação: a) O Estágio 1 é, a rigor, um estágio pré-argumentativo, um estágio dogmático, no qual a tese é asserida mas ainda não se oferecem razões em apoio à mesma. b) O Estágio 2 é aquele estágio da argumentação no qual as partes envolvidas propõem somente argumentos unilaterais, ou seja, argumentos exclusivamente positivos ou argumentos exclusivamente negativos, sem a preocupação em considerar argumentos em apoio às distintas posições. c) O Estágio 3 é aquele estágio da argumentação no qual as partes envolvidas propõem argumentos multilaterais, ou seja, argumentos que contém componentes positivos e negativos, argumentos a favor das distintas posições no debate. Porém ainda não há argumentos responsivos. d) O Estágio 4 é aquele estágio da argumentação no qual as partes envolvidas propõem argumentos multilaterais e responsivos, ou seja, argumentos destinados a apoiar as diferentes posições da 74 controvérsia e que respondem a objeções do adversário ou que respondem às defesas do adversário. Esta teoria dos quatro estágios da argumentação fornece uma valoração objetiva óbvia para o processo argumentativo. Ela constitui, a meu ver, uma primeira aproximação daquilo que se pode entender como o peso dum argumento, podendo ser ampliada, seja pelo reconhecimento de distinções no interior dos estágios argumentativos, seja pelo reconhecimento de novos estágios argumentativos. É vantajosa frente a diversas propostas concorrentes por ser uma abordagem dinâmica, sendo capaz de analisar a evolução e a involução dos argumentos. Acima de tudo, constitui uma proposta compatível com o cânone lógico, uma proposta que não nos obriga a abandonar a lógica formal-dedutiva. Embora não tenha estabelecido a dispensabilidade de uma segunda natureza lógica, caminhei um passo nessa direção. Se couber valor de verdade às teses da natureza da lógica, pode ser o caso que uma variante lógica da heresia de Nestório, aqui rejeitada, seja verdadeira, mas seria negligência sustentá-la sem que se fizessem muitos esforços na direção oposta. Bibliografia HINTIKKA, Jaakko. Is logic the key to all good reasoning. Argumentation, v. 15 (2001): 35-57. PLEBE, Armando; EMANUELE, Pietro. Retórica, dialética e filosofia: uma antiga rivalidade. In: _____. Manual de retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 11-34. 75 SUBER, Peter. Stages of argument [página da web]. 2000. http://www.earlham.edu/~peters/courses/argstages.htm [acessado em 27.02.2004]. 76 A FILOSOFIA NO VESTIBULAR: ELITIZAÇÃO DO ENSINO OU DEMOCRATIZAÇÃO DA FILOSOFIA? Humberto Aparecido de Oliveira Guido∗ A Filosofia nos Processos Seletivos da Universidade Federal de Uberlândia A Universidade Federal de Uberlândia, doravante UFU, possui dois sistemas de ingresso no ensino superior, a saber, o vestibular tradicional e o Programa Alternativo para Ingresso no Ensino Superior (PAIES). O sistema alternativo segue os padrões de seleção de outras universidades que há mais tempo adotaram esta inovação, que consta de exames periódicos para cada série do ensino médio, envolvendo estudantes das escolas secundárias previamente cadastradas na Comissão Permanente do Vestibular (COPEVE). Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Faculdade de Artes, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia; Coordenador do Grupo de Estudo da Filosofia de G. Vico. Endereço eletrônico: [email protected] 77 As duas modalidades de seleção contam com as provas de conteúdos específicos de Filosofia. No PAIES são quatro questões que são apresentadas na forma de testes nos quais o candidato deve assinalar Verdadeiro ou Falso nos enunciados propostos. No vestibular ocorrem duas provas; uma na primeira fase, contendo dez questões de múltipla escolha; a outra prova, na segunda fase, é composta de quatro questões discursivas. A experiência de Uberlândia é pioneira11 e polêmica. As polêmicas menores ocorrem no interior da UFU. As áreas tecnológicas e da saúde, até hoje não concordam com a inclusão da Filosofia nos processos seletivos. A alegação mais inusitada foi apresentada, certa vez, por um diretor de uma das unidades acadêmicas da área tecnológica durante reunião do conselho Superior em 2001. No entendimento desse diretor, as provas de Filosofia obrigaram as escolas secundárias à reduzir a carga horária de Matemática, este fato é responsável pelo baixo desempenho dos estudantes do ciclo básico das engenharias. Portanto, é preciso suprimir as provas de Filosofia para que os estudantes do secundário voltem, o quanto antes, a ter mais aulas de matemática para que depois, quando forem estudantes de engenharia, não sejam reprovados na disciplina de Cálculo! Outra polêmica, menos brejeira, ocorreu no Departamento de Filosofia. Em 1995, o Conselho do Departamento foi solicitado para elaborar o programa das provas. Na primeira ocasião que o assunto esteve em pauta, os docentes debateram a pertinência da inclusão da Filosofia nos processos seletivos. O corpo docente, composto na época 11 Algumas universidades adotaram, depois da UFU, a prova de Filosofia em seus vestibulares, é o caso da UFMG que incluiu a Filosofia como prova específica para os candidatos do Curso de Filosofia. No Paraná a UFPR e a UEL, há alguns anos atrás, aprovaram a inclusão da Filosofia no vestibular. 78 de 16 professores, estava dividido, uns consideravam os riscos de elitização do ensino superior que poderia ser acarretada com a novidade. Outros acreditavam na introdução da Filosofia nas escolas secundárias da região atendida pela UFU. Na segunda reunião dedicada à discussão da matéria, os professores foram alertados pela COPEVE que a deliberação do Conselho Departamental deveria resultar na apresentação de um programa para as provas, pois a inclusão da Filosofia nos processos seletivos já havia sido aprovada pela Comissão e começaria a vigorar no vestibular de janeiro de 1996, independente da posição favorável ou contrária do Departamento de Filosofia. Aqui cabe uma digressão. Em 1994 a COPEVE, após avaliar o modelo de seleção — ainda não havia o PAIES — tomou a decisão de contemplar todas as disciplinas do ensino médio. A nova proposta foi aprovada pelo Conselho Universitário, o que implicou na ampliação de dez para doze provas de ingresso. O modelo estava e está respaldado pela Constituição do Estado de Minas Gerais, de 1989, que determina a obrigatoriedade do ensino da Filosofia12 nas escolas secundárias. Na ocasião em que promulgavam a Constituição do Estado de Minas Gerais, os deputados estaduais acreditavam que esta seria a orientação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que ainda tramitava no Congresso Nacional. A situação do ensino da Filosofia antes da sua inclusão no vestibular da UFU 12 Constituição do Estado de Minas Gerais de 21 de setembro de 1989, Título IV, Da Sociedade, Capítulo I, Da Ordem Social, Seção III, Artigo 195, Parágrafo Único: “Para assegurar o estabelecido neste artigo, o Estado deverá garantir o ensino de Filosofia e de Sociologia nas escolas públicas de Segundo grau”. 79 Após a promulgação da constituição mineira, a Secretaria Estadual da Educação de Minas Gerais apresentou à rede oficial a Proposta Curricular para o ensino da Filosofia (1990), que resultou do trabalho empreendido durante o ano de 1990 em todas as regiões do Estado. Dois professores do Departamento de Filosofia da UFU participaram dos trabalhos de elaboração da Proposta Curricular na região do Triângulo Mineiro. A proposta da Secretaria da Educação é estruturada a partir de temas filosóficos, cujo conteúdo está em conformidade com a antiga disciplina da Antropologia Filosófica, característica dos tempos em que a Filosofia ficava a cargo dos clérigos, que a tratavam como apêndice da Teologia. A proposta curricular oficial deixa entrever esta deficiência, ou seja, evidencia que os signatários da proposta, em sua maioria, não eram licenciados em Filosofia, o que é comprovado quando se tem acesso à lista de nomes dos responsáveis pela formulação final da proposta. No conteúdo sugerido fica nítida a distância entre a atividade filosófica tal como é praticada nos Cursos de Filosofia e a percepção que certos profissionais de outras áreas do conhecimento têm da Filosofia, tomando-a na perspectiva da Antropologia Filosófica de matiz teológico, peculiar à cultura escolar até o final da década de setenta do século passado. A derrubada da obrigatoriedade da habilitação profissional do ensino de segundo grau, com a Lei 7.044 de 1982, foi também o marco para a definitiva introdução da Filosofia na vida escolar brasileira. Esta afirmação não omite a relevância do cultivo da Filosofia nas décadas passadas, remontando inclusive aos períodos colonial e imperial. Porém, é inegável que somente a partir de 1982 é que a Filosofia torna-se 80 predominantemente laica, chegando até as escolas secundárias sob nova orientação, libertando a atividade filosófica da pecha de educação moral e evitando, também, a incidência no ensino religioso. Não se pretende omitir a relevância das aulas de Filosofia no secundário clássico, anterior à LDB de 1961 e à reforma produzida pela Lei 5.692 de 1971, porém, esta modalidade do secundário atendia um número extremamente reduzido da população de meados do século passado, sem penetrar na vida brasileira representada pelo grande contigente de estudantes das modalidades científica e técnica do secundário de então. A Proposta Curricular da Secretaria da Educação de Minas Gerais representou um avanço para a implementação do ensino da Filosofia, porém, enquanto proposta de ensino, a orientação da Secretaria está distante da relevância que a atividade filosófica possui, o que limita o alcance do trabalho crítico que esta disciplina proporciona. O conteúdo programático oficial está muito próximo da linha temática do livro Filosofando (1986), de Maria Lúcia Aranha e Maria Helena Martins, que sugere temas. No entanto, muitos deles extrapolam a especificidade da reflexão filosófica; na Proposta Curricular de Minas Gerais são cinco os temas propostos: filosofia, o conhecimento, o trabalho, política e existência. As abordagens relativas aos temas trabalho e política estão mais próximos do ensino da sociologia e da história, deixando de contemplar a significativa literatura filosófica dedicada aos temas. A política, por exemplo, apresenta em seu conteúdo programático apenas dois filósofos, Hobbes e Locke. Apesar das deficiências da Proposta oficial, apenas a equipe de Pratica de Ensino tomou conhecimento da Proposta oficial, os demais professores, embora sabendo da participação de dois representantes do 81 Departamento de Filosofia da UFU nas discussões que culminaram na Proposta, desconheciam a existência da versão final. Esta informação é relevante porque em 1995 ainda não estava constituída a equipe de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado em Filosofia, de modo que a elaboração do Conteúdo Programático para as provas do vestibular, e depois também do PAIES, foi elaborado por professores mais identificados com o bacharelado, que ignoravam a existência de uma proposta oficial para a Filosofia nas escolas da rede oficial de ensino. Os conteúdos programáticos de Filosofia para os Processos Seletivos da UFU: elitismo ou equívoco didático? A elaboração do conteúdo programático de Filosofia para as provas de ingresso no ensino superior ficou a cargo de uma comissão composta por três professores, que tomaram a história da filosofia como critério para a elaboração dos conteúdos, restringindo o ensino da filosofia aos autores consagrados. A conseqüência da aplicação do programa tem sido fator de inibição do filosofar, ficando o ensino da Filosofia restrito à transmissão de doutrinas filosóficas a partir dos autores selecionados e os seus respectivos textos. Outro fator limitador do conteúdo programático foi a seleção dos autores. Apesar da arbitrariedade de toda seleção, há consenso quanto à importância de determinados pensadores, por terem sido paradigmáticos para o tempo em que viveram e também para a posteridade, que se deixou influenciar por esses pensadores. A seleção dos autores deixou evidente a deficiência do programa, uma vez que as escolhas recaíram sobre as especialidades dos professores do Departamento, ficando de fora nomes expressivos do passado e do presente, tais como: Espinosa, Leibniz, 82 Nietzsche, Adorno, Heidegger, Merleau-Ponty, Wittgenstein, Habermas, além dos grandes movimentos que adentraram as sendas filosóficas do século XX, desencadeados por pensadores sociais, tais como Foucault e Derrida. Outro aspecto limitador da seleção se deve ao fato de que alguns pensadores foram contemplados apenas por um aspecto do seu pensamento, é o caso de Locke que aparece no programa apenas como pensador político, sem ser abordado em sua significativa contribuição para a teoria do conhecimento. Aconteceu também de, após 18 meses de vigência do programa, alguns pensadores serem excluídos, foi o caso de Maquiavel e Comte, para darem lugar a Pedro Abelardo e Guilherme de Ockham que reforçaram o rol dos pensadores medievais. A opção metodológica da comissão que elaborou o programa para as provas era justificada com o argumento, segundo o qual, a rede oficial de ensino teria que dar preferência para os licenciados em Filosofia, pois os professores de outras habilitações não teriam competência para tratar dos pensadores em suas respectivas especificidades. Porém, é oportuno lembrar que somente no final de 1998 o Curso de Filosofia da UFU formou a sua primeira turma de licenciados. Portanto, entre 1996 e 1998 as aulas de Filosofia, nas escolas públicas e particulares, ainda eram ministradas predominantemente por professores de outras áreas do conhecimento. Em um estudo conduzido pela, então, recém criada equipe de Prática de Ensino, foi constatado que havia em Uberlândia, no segundo semestre de 1996, 19 professores ministrando aulas de Filosofia nas escolas públicas e particulares, dos quais apenas três eram licenciados, e mesmo esses três professores manifestaram dificuldade em trabalhar o conteúdo programático recém elaborado. 83 A adoção da história da filosofia como opção careceu de fundamentação metodológica. A apresentação dos conteúdos programáticos não se fez acompanhar da fundamentação metodológica para a execução dos conteúdos filosóficos nas séries do ensino secundário. Foram oferecidos alguns cursos de extensão para professores de Filosofia como tentativa de suprir esta deficiência. Contudo, durante esses cursos somente os conteúdos programáticos eram abordados e transmitidos, sem que a questão metodológica fosse tratada durante as atividades de extensão. Apesar de haver, nas ocasiões em que esses cursos foram oferecidos, um tópico intitulado Metodologia do Ensino da Filosofia, essa atividade era consumida com a exposição da relevância da Filosofia a partir da leitura de Antonio Gramsci. Em que pese a relevância do pensador italiano, a questão metodológica não era discutida com os professores do ensino médio. Kant incluiu na sua vasta obra o problema do ensino da Filosofia, antes dele outros o fizeram, no entanto em outro contexto, anterior à Modernidade, isto é, no tempo em que a escola não era uma realidade social e o ensino era um assunto privado, uma atividade doméstica. Quando Kant fala do ensino da filosofia, ele aborda o problema na perspectiva da educação escolar, de modo que as suas ponderações têm valor metodológico e sugere ações para a prática filosófica que colocam em questão a validade do ensino doutrinário que obstrui o exercício da razão. Na arquitetônica da razão pura estão contidas as considerações mais contundentes em favor do livre pensamento; escreveu Kant: 84 ... aquele que propriamente aprendeu um sistema de filosofia, o wolffiano, por exemplo, nada mais possui do que um conhecimento histórico completo da filosofia wolffiana, mesmo que tenha presente na mente e possa contar nos dedos todos os princípios, explicações e provas junto com a divisão de todo o sistema; ele só sabe e julga tanto quanto lhe foi dado (1988, p. 236/237 — grifos do autor). Prosseguindo em suas considerações, Kant constatou que a Filosofia “é o sistema de todo o conhecimento filosófico” (1988, p. 237), enquanto sistema, a Filosofia “é uma simples idéia” (Ibdem) e como idéia possui conotação subjetiva que adquire ares doutrinais quando abdica da crítica em favor do dogmatismo. Assim é o ensino ingênuo da Filosofia, uma transmissão opaca do conhecimento histórico das muitas filosofias, este é o risco de toda prescrição dogmática para o ensino da Filosofia. A elaboração do conteúdo programático de Filosofia para os processos seletivos da UFU não atentou para o nó metodológico a ser desatado tendo em vista o ensino da Filosofia. A presença da Filosofia entre as disciplinas dos exames de ingresso na UFU não incide na elitização do seu ensino. Esta convicção remonta a Kant, para ele aquilo que era denominado de Filosofia no seu tempo, não passava “de um conceito escolástico de Filosofia” (1988, p. 238 — grifos do autor), e como tal, impossível de se popularizar. Mas há que se popularizar a Filosofia, para que o conhecimento seja a manifestação da razão liberta das opiniões. Uma vez que a Filosofia não está para o elitismo do seu ensino, o conteúdo programático das provas incorre no equívoco didático, dito de outra forma, o ensino da Filosofia carece da didática especial deste ensino. Recorrendo mais uma vez a 85 Kant, “só é possível aprender a filosofar, ou seja, exercitar o talento da razão” (1988, p. 237), esta é a grande tarefa a ser realizada após a inclusão da Filosofia nas escolas secundárias da região de influência da UFU. É muito provável que Hegel encontrou inspiração na arquitetônica da razão pura de Kant para formular o seu conceito de história da filosofia. Por mais que Hegel critique Kant pelo formalismo do seu sistema de crítica da razão, é inegável a influência da definição de atividade filosófica como exercício da razão. Hegel entende por Filosofia a experiência da consciência, uma experiência histórica, isto é, no mundo. A História é a experiência do pensamento e o mundo é o palco dessa experiência, o lugar no qual a consciência humana se desdobra e se explica, para que neste exercício se reconheça como ser real, que ao refletir sobre si mesmo atinge o auto-conhecimento para si. O sistema hegeliano toma a Filosofia como a verdade. Resulta desta definição de Filosofia o paradoxo da história da filosofia: como pode aquilo que é, sempre, ter a sua história? Para resolver o paradoxo, Hegel dedicou-se à história da filosofia. A história é, segundo Hegel, “o trabalho de todas as gerações precedentes do gênero humano” (1989, p. 87). Portanto, a história não é produto, ela é processo. Aqui fica latente outra proximidade do idealismo absoluto com Kant. Para este último — cabe recordar — o exercício da razão é a propedêutica dela própria, Hegel por seu turno, considerou a história da filosofia, isto é, a experiência da consciência como “iniciação no conhecimento da própria ciência” (1989, p. 89), note-se que a história da filosofia é somente a iniciação da razão que percorre a série de trabalhos precedentes que produziram a cultura do 86 presente. Contudo, o mais importante é o pensamento, a sua experiência incessante. Por isso, a história da filosofia é a “ciência da filosofia” (1989, p. 90). Kant remete o estudante de Filosofia ao exercício da razão, Hegel exige a experiência do pensamento, nenhum desses ancestrais do ensino moderno da Filosofia se manifesta em favor da doutrinação filosófica. Muito pelo contrário, cada filosofia é tão só uma experiência da consciência, e na medida em que se afasta do pensamento se torna doutrina, por isso o conhecimento histórico é dogmático, porém, ele é apenas prolegômenos, o dogmático Platão (1989) diria que é somente o prelúdio da filosofia. A ausência de critério para o ensino da Filosofia precisa ser superada, a execução desta tarefa demanda maior reflexão sobre o método a ser adotado tendo em vista as aulas de qualidade, única maneira de vencer o alheamento do jovem e do adolescente para com a reflexão filosófica, distância a ser vencida em decorrência de muitos estereótipos atribuídos à Filosofia, dada a suposta falta de especificidade do seu ensino. De acordo com Nielsen Neto é fundamental o rigor na formação do professor de Filosofia: Por isso, o ensino de filosofia, para ser eficiente, não pode ser aleatório. Isso significa que ela só deve ser ministrada por alguém licenciado. A improvisação nunca deu certo em atividade alguma, muito menos em filosofia. Mesmo entre os licenciados na disciplina, é possível encontrar alguns que não tiveram a oportunidade de examinar com mais vagar certos momentos da história da filosofia. Isso porque é essencial que o aluno 87 percorra a história do pensamento para perceber que filosofia não é estado de espírito, nem, muito menos, conduta de vida. É imprescindível que o educando saiba disso e distinga o pensamento filosófico de vulgaridades que são divulgadas em seu nome (1986, p. 47). Os proponentes do conteúdo programático de Filosofia para os processos seletivos da UFU reputam-se partidários da história da filosofia, porém, colocam-se distantes da definição clássica deste disciplina enunciada por Hegel. Nisto há coerência, porque, Hegel só foi ser estudado na França na década de 30 do século passado, na mesma época em que as Missões Francesas introduziam as técnicas do estudo acadêmico da Filosofia na Universidade de São Paulo, polo pioneiro da implantação da Universidade no Brasil. Com o passar do tempo a metodologia implantada pelos mestres franceses ficou conhecida de maneira equivocada como História da Filosofia, quando na realidade o que se fez foi a introdução das técnicas da leitura estruturalista do texto clássico de Filosofia, cujas origens remontam ao mesmo contexto alemão de Kant e Hegel, no qual teve início, também, a prática da hermenêutica das obras filosóficas. A técnica francesa para o estudo filosófico foi disseminada nos novos cursos de Filosofia, tornando-se prática corrente e em oposição ao ensino teológico da Filosofia. Assim, a comissão do Departamento de Filosofia da UFU que elaborou o conteúdo programático de Filosofia para a COPEVE propõe como metodologia do ensino da Filosofia para adolescentes e jovens do ensino médio a mesma modalidade de leitura instrumental dos textos clássicos praticada nos cursos de bacharelado. 88 Recuperado o equívoco que leva muitos professores de filosofia a denominar de história da filosofia aquilo que é apenas leitura estruturalista do texto filosófico, é possível tecer alguns poucos comentários à deficiência desta opção metodológica, quando se trata do ensino médio para adolescentes e jovens. A história da filosofia, tal como foi enunciada por Hegel, é essencial para as aulas de Filosofia, permite o contato do estudante com aquilo que já é conhecido, preparando-o para indagar sobre aquilo que ainda não lhe é manifesto. Aquilo que ainda permanece como não saber precisa ser inquirido pelo aluno e este exercício não pode ser substituído pelas respostas prontas extraídas deste ou daquele texto. A presença do texto clássico nas aulas do ensino médio é indispensável, porém, o uso deve estar voltado para a introdução da Filosofia, servindo de estímulo para o exercício do pensamento do estudante. O texto clássico não pode substituir a curiosidade do estudante, não é um modelo a ser imitado; como modelo o texto proporciona o conhecimento das experiências realizadas por outros pensadores, mas não deve inibir a prática salutar e intransferível do pensar por si mesmo. A este respeito Descartes foi magistral na introdução do seu Discurso do método: “o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei por conduzir a minha” (1987, p. 30). Muito mais que o elitismo do ensino, o equívoco na redução da história da filosofia à mera leitura estruturalista do texto filosófico impõe uma especialização precoce e impossível de ser atingida nas séries do ensino médio. Na melhor das hipóteses o aluno saberá o que é a virtude, por exemplo, para um ou mais filósofos, porém, o estudante 89 estará de posse — se isto acontecer — de respostas limitadas, que podem limitar a sua definição, ao invés de levá-lo a explorar o conceito de virtude para atender as suas necessidades peculiares, inerentes à sua formação como pessoa. Recordando mais uma vez as sábias palavras de Kant sobre alguém que conhece a filosofia wolffiana, “ele só sabe e julga tanto quanto lhe foi dado” (1988, p. 237), e para isto não é necessário professor, basta a leitura atenta dos livros de Wolff. É esperado algo mais do ensino da Filosofia, principalmente no momento em que o adolescente começa a estabelecer um novo contato com o mundo, deixando entrar em seus pensamentos novos conteúdos que sejam capazes de lhe oferecer novas interpretações do mundo. No pequeno escrito de intervenção, Resposta à pergunta: que é esclarecimento? (1985) Kant se referiu à emancipação do entendimento infantil, algo possível desde a mais tenra idade, mas que demanda disciplina para que o adolescente atinja naturalmente a maturidade. A saída da menoridade coincide com o uso autônomo da razão, o que exige a independência de raciocínio. O esclarecimento é a condição daquele adolescente que não se submete mais à tutela do outro, que não se deixa guiar pelo outro. Esta deve ser a principal qualidade da educação escolar. Outra vez a contribuição de Kant é considerável, parafraseando-o é possível afirmar que o ensino da Filosofia nas escolas eqüivale ao uso privado da razão, ao aprendizado da razão em emancipação. O resultado do uso privado da razão é o seu uso público, que cada um deve fazer, eis a definição dada por Kant: “entendo contudo sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto SÁBIO, faz dela diante do grande público do mundo letrado” (1985, p. 104 — grifos do autor). O ensino da 90 filosofia é, portanto, um problema filosófico e não pedagógico, porque o responsável pelo ensino da razão, ou filosofar, é o filósofo, é ele o tutor que uma vez liberto “do jugo da menoridade” atuará como o tutor dos seus alunos tendo em vista a mesma liberdade (Kant, 1985, p. 102). Mais recentemente, em 2001, foi feita uma nova revisão do conteúdo programático, que resultou na elaboração de justificativas para a seleção dos filósofos e dos temas escolhidos, porém, as diretrizes metodológicas para a abordagem desses pensadores e suas obras respectivas ainda não se fizeram presentes. Mais uma vez a elaboração do programa não foi feita pela equipe de Prática de Ensino, apesar da experiência acumulada nos últimos cinco anos de atividades dessa equipe. Os responsáveis pela revisão do conteúdo programático foram os mesmos que elaboraram a primeira versão, contudo, na elaboração da nova proposta a comissão tentou incorporar algumas considerações sobre o ensino da Filosofia feitas pela equipe de Prática de Ensino em reuniões departamentais. Apesar do reconhecimento da pertinência das reflexões conduzidas pela equipe de Prática de Ensino, a comissão manteve a rigidez do conteúdo focado em pensadores e suas principais obras. As novidades da revisão feita em 2001 foram a recondução de Maquiavel, depois de cinco anos longe das provas, e a inclusão de Hegel, restringindo-o à idéia de história. A filosofia: democratização do ensino e emancipação social As páginas precedentes apresentaram a leitura crítica de uma experiência inédita e que merece ser discutida tendo em vista o aprimoramento da atividade filosófica, não apenas na região em que a 91 Filosofia é parte integrante dos processos de ingresso no ensino superior, até porque a presença da Filosofia no vestibular depende dos humores dos dirigentes e representantes da comunidade local, que são facilmente influenciados pelos argumentos utilitaristas que pretendem, no caso específico de Uberlândia e sua universidade federal, a redução do número de disciplinas requeridas para o ingresso na instituição. Está em curso na UFU uma nova avaliação dos processos seletivos e a orientação proposta pela COPEVE é a eliminação do vestibular tradicional em favor do exame seriado do modelo alternativo, o PAIES. Para tanto, a COPEVE tomou emprestado o modelo em prática na UFPB. Certamente, a UFU não copiará integralmente o modelo UFPB, contudo, é dada como certa a redução do número de disciplinas para os exames de ingresso. Dados preliminares dos trabalhos da Comissão de Avaliação dos Processos Seletivos apontam para a possibilidade de cada curso superior determinar as disciplinas necessárias para a definição do perfil do futuro estudante, quebrando a universalidade das provas para todas as carreiras universitárias. Caso a proposta de seleção induzida prosperar, a universidade estará provocando um novo retrocesso na formação escolar de adolescentes e jovens, regredindo ao estágio da primeira metade do século passado, pois trará novamente o ensino médio compartimentado conforme as carreiras universitárias almejadas pelos estudantes secundaristas. A grande rede comercial de ensino criará cursos secundários flexíveis, com carga horária mínima, de acordo com as áreas do conhecimento. A degradação das condições de ensino no país criam o temor de que o novo quadro do ensino médio será bem pior que aquele de quarenta anos atrás, com as suas três modalidades de curso 92 secundário: o clássico destinado às humanidades, o científico para as áreas tecnológicas e profissionalizante para que já está fadado à exclusão social. As críticas formuladas no tópico anterior têm o propósito de aprimorar o ensino da Filosofia, pois dado o estado de abandono da educação escolar básica, o simples fato da Filosofia estar presente no processo seletivo de uma universidade pública trouxe muitos benefícios, seja para a comunidade filosófica, seja para a melhoria do ensino médio. As páginas seguintes apresentam as pequenas, mas não poucas, conquistas alcançadas nestes últimos oito anos nos quais a Filosofia, por força do vestibular e do PAIES, esteve presente nas escolas de Uberlândia e região do Triângulo Mineiro. Em pesquisa recente, feita em 2002 e tendo apenas as 23 escolas da rede pública da cidade de Uberlândia como universo, foi constatado que há 19 professores em atividade — em 1996 eram 19 professores distribuídos entre as escolas públicas e particulares —, dos quais 11 são licenciados em Filosofia — contra 3 da pesquisa de 1996. Todos os professores da rede pública adotam o conteúdo programático das provas do vestibular. O número de professores licenciados atuando na rede pública denota um dos muitos avanços alcançados com a inclusão e manutenção da Filosofia entre as provas dos processos seletivos da UFU, dentre os 11 professores licenciados, 8 são egressos do Curso de Filosofia da UFU, porém, nos últimos seis anos — o Curso de Filosofia da UFU iniciou suas atividades no primeiro semestre de 1994, tendo a primeira turma de licenciados em 1998 — foram formados 77 professores, um 93 número pequeno, e mais pequeno ainda é o número dos que conseguiram ingressar nas redes pública e particular de ensino. As escolas públicas e particulares de Uberlândia e a maioria das escolas da região de influência da UFU incluíram a Filosofia em suas grades curriculares, porém, a carga horária é mínima, apenas uma hora aula semanal durante duas das três séries do ensino médio. O conteúdo programático para as provas do vestibular é composto de 29 tópicos relativos a 19 pensadores, o que obriga os professores a utilizarem o expediente da transmissão de informações relativas ao pensador e à sua doutrina, elucidando os aspectos centrais do seu sistema de pensamento. As aulas de Filosofia não concorrem apenas para a ampliação da cultura geral dos estudantes do ensino médio, a Filosofia contribui para a melhoria global da instrução escolar. Em um estudo ainda inédito relativo ao período de 1996 a 2000, o ex Presidente da COPEVE, Elias Bitencourt, identificou a acentuada diminuição das provas em branco na segunda fase e também a melhoria nas notas das questões discursivas das demais disciplinas. Para o pesquisador o cruzamento de dados permite a elaboração desta inferência: a Filosofia contribui para a melhoria do ensino. Apesar das limitações impostas pelo programa que se tornou obrigatório e a carga horária diminuta, os estudantes do ensino médio demonstram boa receptividade ao ensino da Filosofia, tanto é assim que a procura pelo Curso de Filosofia da UFU aumentou significativamente nos últimos cinco anos. Nos primeiros anos de funcionamento do Curso, entre 1994 e 1999, a relação candidato/vaga não ultrapassava o percentual de um candidato/vaga; a partir do vestibular de janeiro de 2000 a relação candidato vaga passou a ser, em média, de cinco 94 candidatos por vaga, no último vestibular — janeiro de 2004 — a média foi de 5,53 candidatos por vaga. Este percentual é significativo quando se trata de uma região interiorana e distante dos grandes centros urbanos do país. Além do crescimento da procura pelo Curso de Filosofia da UFU, foi criado um novo Curso de Filosofia na cidade de Uberlândia, mantido pela Faculdade Católica de Uberlândia, cujas atividades foram iniciadas no primeiro semestre de 2001. A mantenedora do Curso justificou a sua criação, entre outras razões, em virtude do excedente que não ingressa no curso da UFU. O funcionamento de dois cursos de Filosofia em uma mesma cidade faz prosperar a atividade filosófica, criando condições para o desenvolvimento de outras atividades além daquelas tipicamente acadêmicas, é o caso da Filosofia Clínica que tem expandido a sua atuação, chegando a oferecer, a partir de 2003, um Curso de Especialização em Uberlândia, contando inclusive com professores ministrantes egressos do Curso de Filosofia da UFU e que há alguns anos se dedicam à esta atividade vinculada à Filosofia. A tendência da introdução do ensino da Filosofia no ensino fundamental é uma realidade em Uberlândia, três escolas particulares e a Escola de Aplicação da UFU já introduziram as atividades que são identificadas como filosofia para crianças. Nesses estabelecimentos ainda não há licenciados em Filosofia coordenando e dirigindo estas atividades, de modo que há este campo a ser explorado pelos professores de Filosofia. 95 A mobilização pela inserção no mercado de trabalho é outra meta buscada pelos egressos da UFU que, em conjunto com os poucos licenciados oriundos de outras localidades, fundaram em 07 de junho de 2003 a Associação dos Graduados em Filosofia, que conta com assessoria jurídica aos filiados e mantém um jornal informativo das atividades da Associação, com espaço reservado à mobilização nacional em prol da Filosofia. De acordo com os coordenadores da Associação, a criação do órgão de classe surgiu durante o Curso de Licenciatura, na época da Prática de Ensino e do Estágio Supervisionado (2003, p. 1). Apesar da sua natureza classista, a Associação evidencia o grau de organização dos bacharéis e licenciados em Filosofia na defesa dos seus interesses e, também, na defesa da propagação da Filosofia. Talvez nem tudo seja decorrência da inclusão da Filosofia no vestibular, mas certamente, este fato permitiu aos adolescentes e jovens um primeiro contato com ela, mesmo que limitado, evidenciando que há o interesse pela Filosofia, que o seu ensino consegue atrair a atenção dos estudantes do ensino médio. Não serão os exames de admissão no ensino superior que garantirão estas conquistas, e mais ainda, a sua expansão. É preciso intensificar a mobilização em prol do ensino da Filosofia nas escolas, ministrado em aulas destinadas à esta disciplina, sem confundi-la com os supostos temas transversais que, sem a Filosofia, jamais atingem aquilo que em décadas passadas foi chamado de interdisciplinaridade. A ausência da Filosofia, como disciplina, faz dos temas transversais apenas conceitos indeterminados de um ensino limitado e inoperante. A defesa da Filosofia é a defesa da educação de qualidade tendo em vista a emancipação da sociedade brasileira, pois como dizia Kant, para encerrar, “é difícil para um homem em particular 96 desvencilhar-se da menoridade” (1985, p. 102), assim é a Filosofia, a prática da liberdade conquistada no esforço coletivo de humanização do mundo. Bibliografia ARANHA, M.L. & MARTINS, m.h. Filosofando, introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Constituição do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1990. ASSOCIAÇÃO DOS GRADUADOS EM FILOSOFIA. Editorial. Jornal da Associação do Graduados em Filosofia. Uberlândia, Ano 1, n. 1, Dezembro de 2003. DESCARTES, R. Discurso do método. In: ___. Descartes. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, Volume I. Coleção Os Pensadores, 1987. HEGEL, G.W.F. Introdução à história da filosofia. In: ___. Hegel. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Nova Cultural, Volume II. Coleção Os Pensadores, 1989. KANT, I. Crítica da Razão Pura. In: ___. Kant. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Nova Cultural, Volume II. Coleção Os Pensadores, 1988. ___. Resposta à pergunta: que é “esclarecimento”? In: ___. Immanuel Kant: textos seletos. 2.ed. Tradução de Raiumndo Vier. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 100-117. NIELSEN NETO, H. Prolegômenos à destruição do ensino no Brasil. In: ___. (Org.) A filosofia no 2º grau. São Paulo: SEAF/SOFIA Editora, 1986. PLATÃO. A República — Livro VII. Tradução de Elza Moreira Marcelina. Brasília/São Paulo: Editora da UnB/Ática, 1989. SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DE MINAS GERAIS. Proposta Curricular de Filosofia — 2º Grau. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais, 1990. 97 A FALA DOCENTE E O PARADOXO DO ENSINO Marcelo Fabri∗ Uma abordagem fenomenológica do ensino e da filosofia permite retomar o conceito de logos mediante um recurso metodológico que, à primeira vista, pode parecer um mero jogo de palavras: no ensino e na atividade filosófica, a relação dos educandos com uma fala docente vai se tecendo graças a uma tensão sempre recomeçada entre o originário e o pré-originário, entre princípio de orientação e ausência de princípio. A fala docente, independentemente de todo o contexto, existe como possibilidade de organização do caos dos fatos, como início de uma disciplina que só poderia se estabelecer graças ao domínio do universo indiferenciado dos fenômenos. Por isso, o ato de ensinar é uma espécie de manifestação do humano, e não uma prática exclusiva de instituições escolares. Por outro lado, a sincronia promovida ou aspirada pela situação de ensino já traz em si o não-sincronizável das relações humanas, a dúvida cética que sempre dá inicio a um novo processo de construção do conhecimento. Na situação de ensino, a razão se reencontra com o espectro do ceticismo. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia/UFSM. Endereço eletrônico: [email protected] 98 O ensino é paradoxal porque, no momento mesmo em que se reconhece a necessidade de demonstração de saberes ou a elevação dos interlocutores ao plano comum do conceito como a condição de toda aprendizagem, descobre-se igualmente que, no próprio ato de ensinar, a tarefa crítica do saber tem início. Assim, o “mestre”, que é aquele que dá início ao processo de unificação das diferenças, é também a base humana ou hipóstase por meio da qual ocorre o lapso de tempo que desestabiliza a sincronia do logos. Se é correto afirmar que somente um “mestre” poderia trazer o sentido do que é demonstrar e conceituar, também se pode dizer que a fala docente é aquela que ocasiona a realização do sentido do logos a partir da situação concreta do ensino. A fala docente Comecemos com a pergunta: o que entender por fala docente? Na perspectiva de Levinas, trata-se de uma expressão que remete à presença concreta de outrem diante de mim, ao encontro com uma exterioridade humana que me faz face e, assim sendo, me permite descobrir a condição de separado em que me encontro. Em outros termos, outrem é aquele que me desperta para a condição de existente que se desligou de tudo o que possa formar um mundo comum, e é por isso que, na perspectiva levinasiana, a relação ao outro provoca uma ruptura da totalidade (Cf. Levinas, 1974). A relação inter-humana supõe uma distância intransponível entre os interlocutores, e é graças a esta separação que outrem pode propor o mundo a mim, trazendo com isso um princípio de orientação, uma quebra da anarquia dos fatos (Levinas, 1974, pp. 64-65). Esta ruptura marca o início de toda construção teórica e de toda crítica do conhecimento. 99 Temos, assim, dois movimentos que parecem se opor, mas que no fundo convergem. Em primeiro lugar, é a superação do caos dos fatos que se encontra em questão. O ensino é a condição de todo o fenômeno, pois é ele que articula o aparecer das coisas com a linguagem. Sem a presença daquele que ensina, tudo estaria imerso na indiferença e na confusão. No segundo caso, é o próprio questionamento do sistema ou ruptura da totalidade que se converte no sentido da vida filosófica ou do trabalho científico. Daí poder-se dizer que a fala docente é o começo de uma nova etapa do saber. Explica Levinas: O ensino, como fim do equívoco ou da confusão, é uma tematização do fenômeno. É porque o fenômeno me foi ensinado por aquele que se apresenta em si mesmo – apreendendo os atos desta tematização que são os signos, isto é, falando – que eu não sou mais o joguete de uma mistificação, mas tomo em consideração os objetos. A presença de outrem rompe a feitiçaria anárquica dos fatos: o mundo torna-se objeto (1974, p. 72). Outrem é a condição do ensino e da razão, isto é, da formação de um mundo conceptual comum, é aquele que me traz a possibilidade de organizar o mundo pelo saber, revelando-me o sentido da objetividade e preparando as bases de toda universalização. Mas, curiosamente, outrem é o diferente capaz de revelar-me que a busca de um plano comum entre nós tem como contrapartida o encontro com uma diferença intransponível, uma impossibilidade de nos colocarmos no mesmo plano, numa palavra, outrem marca a origem de uma dissimetria que torna praticamente impossível evitar o recomeço da crítica do 100 conhecimento. Ora, o começo desta crítica é o pôr-em-questão o primado da universalidade e do sistema sobre os interlocutores. A comunicação de idéias, a reciprocidade do diálogo, já escondem a profunda essência da linguagem. Esta reside na irreversibilidade da relação entre Mim e o Outro, na docência do Mestre coincidindo com sua posição de Outro e de exterior. A linguagem só se pode falar, com efeito, se o interlocutor for o começo de seu discurso, se ele permanecer, por conseguinte, para além do sistema, se ele não estiver no mesmo plano que eu (Levinas, 1974, p. 73. Grifo do autor). Por conseguinte, o ensino é a condição de possibilidade da crítica do conhecimento. Estranha condição, aliás, pois a aspiração fundamental da filosofia, que desde Aristóteles se reconhece como sendo a realização da epistême ou da teoria, é como que subvertida por um movimento que não aspira ao repouso, que não aponta para a primazia do ato sobre a potência. O filosofar será, então, um movimento de pôr-se-a-si-mesmo em questão, o reconhecimento de que a linguagem proposicional, antes de ser a condição primeira do exercício filosófico e científico, é como que o produto da fala docente, vale dizer, é a situação na qual o mundo é proposto a mim e pela qual a objetividade começa a ser possível. Para Levinas, a objetividade “se põe num discurso, numa com-versa (entretien) que propõe o mundo. Esta proposição se mantém entre dois pontos que não constituem sistema, cosmos, totalidade” (Levinas, 1974, p. 68). Nesse sentido, toda proposição marca a presença concreta de uma alteridade, sem a qual não haveria saber objetivo, e é precisamente esta palavra vinda de outrem que pode ser chamada fala docente. Graças a ela, o mundo pode ser tematizado e interpretado de modo permanente; 101 através dela, os interlocutores permanecem separados, resistindo à totalização. Em cada palavra pronunciada, anuncia-se uma tarefa de esclarecimento, um esforço para ensinar, uma luta para atualizar o presente. A fala docente é uma espécie de presentificação, uma luta para vencer a corrosão do tempo, para evitar a queda infindável das coisas presentes no mundo do passado. Do mesmo modo, o docente representa uma oportunidade para que o eu receba um ensinamento, para que o mundo venha até ele sob a forma de objeto tematizado. Daí poderse dizer que a fala docente é aquela que articula a própria crítica do conhecimento. Ela propicia, a uma só vez, a entrada e a saída dos indivíduos no mundo comum do saber ou dos sistemas teóricos. Por isso, a fala docente é sempre uma batalha contra o caos e a anarquia dos fatos, uma espécie de compromisso com a objetivação. O mestre põe em marcha a obra conceptual, o trabalho de generalização. Por outro lado, ele propicia a ocorrência ou ressurgimento do ceticismo, como se fosse impossível duvidar sem o acolhimento de um mestre, daquele que é origem de toda orientação e, consequentemente, de todo saber. De algum modo, é pela presença de uma fala docente que se pode compreender que a vida filosófica é sinônimo tanto de comunicação de idéias quanto de exercício crítico das mesmas. A resposta de um mestre não deixa de ser sempre uma pergunta, uma interrogação, um questionamento a quem aprende. Acolher um mestre é ser colocado em questão. Temos, assim, dois movimentos em permanente tensão. Em primeiro lugar, a relação com o outro abre a possibilidade da partilha, do mundo comum, da universalidade. O trabalho do conceito depende desta situação de ensino. Nas palavras de Levinas: “O pôr em questão das 102 coisas num diálogo não é a modificação de sua percepção; ele coincide com a objetivação. O objeto se oferece, desde que tenhamos acolhido um interlocutor” (1974, p. 41. Grifo do autor). Eis porque os fatos deixam de ser indiferentes ou caóticos, ganhando uma orientação. De outro lado, o acolhimento de um interlocutor é também a condição de possibilidade da crítica e da autocrítica, numa palavra, é a oportunidade de um recomeço de toda atividade teórica. O saber é essencialmente crítico, pois sua realização depende de um questionamento que não pode vir de mim mesmo. A situação de ensino coincide com a vida filosófica, ela é o móvel mesmo do filosofar. Sem o acolhimento de um mestre, não tomaríamos consciência de nossa imperfeição e de nossa arbitrariedade (Levinas, 1974, p. 56). Por conseguinte, uma fenomenologia da fala docente permite visualizar a tensão, sempre recomeçada, entre a busca de um mundo comum por meio dos conceitos, e a descoberta de que a tarefa crítica do saber depende da separação dos interlocutores, isto é, da constatação de que eles não se encontram no mesmo plano. Pensamos que a fala docente é a condição de possibilidade não só da razão, mas também e, sobretudo, do ceticismo. Por quê? Retorno do ceticismo e ensino Um dos grandes problemas da filosofia, hoje, talvez seja o de saber se há sentido em relacionar a razão com o seu adversário mais temível: o ceticismo. A razão é, em certo sentido, a luta interminável contra o ceticismo. Se este não pudesse retornar ou ressurgir, deixando assim de incomodar e ameaçar, haveria nisto um sinal de que a razão tornou-se uma quimera, um jogo de palavras, um exercício de retórica. Não se trata de dizer que não temos mais produção filosófica de 103 qualidade, mas sim que há uma grande chance de que tenhamos esquecido o significado da fala docente. O ceticismo não é uma simples descrença na razão, mas sinal de que o logos se encontra em plena atividade. O esquecimento da fala docente seria a causa de uma indiferença generalizada, o sintoma de que as diferenças existentes (correntes, atitudes e grupos filosóficos, por exemplo) perderam toda chance de encontrar um sentido que as oriente e as conduza ao diálogo. Tudo se passa como se estivéssemos distantes de toda possibilidade de encontrar a origem e o começo do que falamos em nossas próprias intenções, como se os diferentes jogos de linguagem merecessem uma psicanálise sem fim. A esse respeito, Levinas afirma: O mundo contemporâneo, científico, técnico e gozador se vê sem saída – isto é, sem Deus – não porque tudo lhe é permitido e, pela técnica, tudo possível, mas porque nele tudo é igual. O desconhecido logo faz-se familiar e o novo, costumeiro. Nada é novo sob o sol. A crise inscrita no Eclesiastes não está no pecado, mas no tédio. Tudo se absorve, se deturpa pouco a pouco e se enclausura no Mesmo. Encantamento dos lugares pitorescos, hipérbole dos conceitos metafísicos, artifício da arte, exaltação das cerimônias, magia das solenidades – em todas as situações se suspeita e se denuncia um aparato teatral, uma transcendência de pura retórica, o jogo (2002, p. 31). É possível ir além deste predomínio do jogo? Pensamos que a reflexão sobre o ensino de filosofia representa, na atualidade, uma inquietação que permite reagir a esta situação de jogo denunciada por Levinas, indo além inclusive de interesses teóricos e profissionais. Trata-se de repensar a própria filosofia mediante a discussão sobre o 104 ensinar e o aprender, sobre a inseparabilidade entre a fala docente e o exercício crítico do pensar. A abundância de pesquisas e de publicações é sem dúvida algo positivo para a vida de reflexão, mas não pode ser a razão de ser desta vida. Diante de milhares de periódicos nacionais e internacionais, de que maneira os estudantes se decidirão? Como selecionar e interpretar a interminável bibliografia existente e disponível hoje? Sem a situação de ensino, estaremos entregues à indiferença dos fatos, ao caos da informação desmedida. Mais ainda: o que significa a crítica cética num mundo em que tudo se tornou indiferente? Mesmo quando se confunde com o trabalho de um treinador esportivo, com o técnico que prepara os atletas para uma competição, um professor não pode fugir à sua própria condição. A fala docente é necessária como ponto de partida de todo processo educacional. Do mesmo modo, podese dizer que não há produção de idéias e conceitos que possa prescindir da situação de ensino, que já não implique a fala docente. Toda vez que esta situação é menosprezada ou violentada, cai-se inevitavelmente na impessoalidade e na indiferença. Os interlocutores são forçados a renunciar à separação. O filosofar esmorece. A fala docente conduz ao seguinte paradoxo: o esforço para sincronizar e universalizar, presente em todo ato de ensinar, choca-se, infindavelmente, com a dissimetria da relação inter-humana, isto é, com a impossibilidade de que as diferenças sejam ultrapassadas pelo discurso elaborado e unificado. Mestre, assim o pensamos, é aquele que torna possível a diferença sem a qual o discurso pedagógico e filosófico estaria impedido de avançar, de retomar-se continuamente sob a forma de um ter-de-responder ao outro. Um discurso fixado pela escrita, dizia Platão, não pode responder, não pode prestar auxílio a si mesmo (Platão, 1975, 275 a - 276 a). Só uma fala docente poderia recuperar o já dito e 105 escrito, sob a forma de interpretação ou de um novo dizer. No ensino de filosofia, é toda a história do pensamento que pode de novo falar. O acolhimento do mestre marca o começo e o recomeço de todo o filosofar. A esse respeito, o Sócrates platônico nos parece exemplar. No Primeiro Alcibíades, o mestre da ironia zomba das pretensões do jovem aspirante à vida pública, supostamente dono de um saber consistente sobre a justiça. “Foi o deus, Alcibíades, que até este dia me impediu de conversar contigo; é a fé que tenho nele que me leva a asseverar-te que só por meu intermédio chegarás a conseguir a glória ambicionada” (Platão, 1975, 124 d). Eis a ironia socrática. A glória ambicionada – o poder -- é justamente aquilo que a filosofia deve desprezar. O erro de Alcibíades é pensar que o conhecimento é algo que pode encontrar um termo e, a partir daí, ser aplicado à uma situação prática. Os problemas filosóficos implícitos em questões morais e políticas são o convite a uma busca permanente da sabedoria. O que é a justiça? Sócrates simplesmente não responde, apenas interroga o jovem pretensioso, desarmando-o, deixando-o tonto. Como filósofo, Sócrates está convencido de que sua presença é sinônimo de uma impossibilidade de resposta final, de um fechamento da questão. Sócrates, que é capaz de duvidar sempre, possui a certeza de que tem algo em seu poder. Sem ele, quer dizer, sem a situação de ensino que ele representa, o jovem estaria condenado à sedução do poder e da opinião pública. A justiça não é um objeto a ser conhecido, mas um valor a ser buscado, um cuidado permanente com o que há de mais nobre em nós: a alma (Platão, 1975, 133 a-c). Assim, numa pólis ameaçada pela recusa da filosofia, Sócrates cumpre a missão divina de desestabilizar esta in-diferença, mostrando o 106 descompasso entre a busca da glória política e a prática da filosofia. Se é verdade que no diálogo o ato de caminhar juntos estabelece a cumplicidade e o companheirismo entre os envolvidos, concorrendo para uma certa sincronia das almas, não é menos verdade que a interlocução propicia o choque e a violência da fala docente. “És violento, Sócrates”, afirma Alcibíades. Ao que o mestre responde: “Pois só por violência vou provar-te precisamente o contrário daquilo que não quiseste demonstrar-me” (Platão, 1975, 115 d). O interlocutor se descobre, então, constrangido a realizar um exame interminável de suas idéias e de suas atitudes de vida. Ele encontrou o sentido do que seja filosofar: o cuidado para que o exame das idéias e a inter-locução não sejam traídos pelo “saber” que de certo modo o diálogo trouxe à tona. A fala docente não é somente aquela que presentifica e orienta, mas choque ou trauma contestando a origem e a sincronia. Ela é, portanto, a condição de toda posição e de toda refutação, ou ainda, é a alteridade sem a qual o ceticismo não retornaria infindavelmente, nem poderia ser refutado (Cf. Levinas, 1990, 256-266). O diálogo não é apenas busca de uma ordem a ser realizada, ou um dizer perfazendo sua sincronia num todo que se completa de modo definitivo. Ele é também e, sobretudo, a vida da razão como impossibilidade de que os interlocutores sejam absorvidos pelo discurso e pela ordem comum construída. O diálogo deixa uma tarefa, uma abertura, um vazio que é, fundamentalmente, consciência de uma responsabilidade, e não a congruência ou fixação dos interlocutores num sistema. O que está dito está dito, mas o dizer sempre recomeça sob a forma de uma nova exposição ao outro, de uma certa convocação à resposta. Assim, o ceticismo, ele mesmo, não é somente uma capacidade de duvidar, um ato de pôr em questão uma verdade, o exercício da liberdade por parte 107 de um sujeito pensante, mas a diacronia que ressurge ou reincide, a despeito do saber alcançado ou realizado e, sendo assim, ele é o espectro de uma an-arquia retornando, interminavelmente, na história da filosofia (Levinas, 1990, p. 160). Daí poder-se dizer que a fala docente é princípio de orientação e ruptura de toda origem, é sincronia e diacronia a uma só vez. Ensinar não é somente um sinal de aproximação, mas também de distância, sendo por isso a condição da razão e do ceticismo. No primeiro caso, o ensino coincide com a tematização do mundo, com a origem do fenômeno a partir da relação inter-humana (linguagem), na qual o outro, separado do eu, lhe fala e, assim fazendo, fornece a origem sem a qual os fenômenos não poderiam ser recolhidos ou interpretados (Levinas, 1974, pp. 64-65). É por isso que outrem, que não é de modo algum uma realidade objetiva, é a origem de toda tematização e de toda objetivação. No segundo caso, o interlocutor é o estrangeiro, aquele que abala o estar-em-si-mesmo de um determinado eu (Levinas, 1974, p. 9). Na situação de ensino produz-se, então, uma transcendência, uma impossibilidade de que os interlocutores sejam elevados a um conceito comum, anulando desta sorte a distância intransponível entre eles. A fala docente é aquela que promove a paradoxal relação entre a positividade da resposta e a negatividade da questão, entre a posse comum do conceito e o retorno inesperado do ceticismo. A fala docente ou ensino é a condição de possibilidade do ceticismo e, por conseqüência, é o sentido de toda obra da razão. Mas, perguntamos, que entender por razão? 108 Ensino e razão Para responder a esta questão, é preciso mostrar em que mediada a fala docente, enquanto condição de possibilidade da razão e do ceticismo, torna possível realizar uma epoché fenomenológica das discussões sobre o ensino de filosofia, em benefício da tarefa de filosofar sobre o ensino. Refletir sobre a situação de ensino já não é uma forma de reconhecer a necessidade e a possibilidade de se ensinar filosofia? Neste caso, a filosofia não é somente uma disciplina que faria parte de currículos escolares, pois a relação inter-humana, sem a qual não haveria a construção de conhecimento e nem o retorno necessário do ceticismo, é a vida filosófica que se ignora ou que ainda não despertou de seu sono, numa palavra, é o filosofar como vida da linguagem e surgimento do humano. Se é verdade que a competência e o saber de cada profissional devem ser preservados e enriquecidos em toda prática educativa, é verdade também que o filosofar surge ou emerge a partir do encontro com a fala docente, estejamos ou não na condição de professores. Por conseguinte, a fala docente, passível de estar implícita em qualquer relação inter-humana, e que pode inclusive ser descrita por um olhar fenomenológico sensível, deve ser assumida pelo profissional do ensino, e de modo especial pelas práticas dos profissionais envolvidos com filosofia. Esses profissionais talvez sejam os primeiros a ter responsabilidade pela articulação entre presentificação e abertura ao futuro, entre sincronia e diacronia, entre razão e ceticismo, pois esta tensão constitui, mesmo que seja de um modo inconsciente, a trama mesma do ensinar e do aprender, que não é outra senão a trama do próprio filosofar. 109 A fala docente, uma vez assumida, reúne competência profissional e atitude ética, ela incorpora o sentido do filosofar às práticas concretas da educação. Nenhum condicionamento de que somos vítima, nenhuma idéia que defendemos e nenhuma política que manifestamos retiram de nós a responsabilidade pela realização do ensino. Como explica Paulo Freire: “esta é uma das significativas vantagens dos seres humanos – a de se terem tornado capazes de ir mais além de seus condicionantes” (2000, p. 28). A pratica docente é, assim, uma espécie de condenação. Responder pelo saber acumulado pela humanidade, defender nossos próprios pontos de vista sobre este saber e por outras interpretações deste mesmo saber e, ainda assim, ser capaz de dizer não a todo e qualquer tipo de determinismo, tudo isso é sinônimo de uma prática docente autêntica e responsável. Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo. Se sou puro produto da determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço no mover-me no mundo e se careço de responsabilidade não posso falar em ética. Isto não significa negar os condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa reconhecer que somos seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a história é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático e não inexorável (Freire, 2000, p. 21. Grifos do autor). O teor profético da fala de Paulo Freire chama a nossa atenção para o sentido profético da linguagem humana como um todo e, por conseqüência, de toda situação de ensino. O educador não determina aquilo que ele mesmo torna possível durante um processo de 110 aprendizagem, assim como o educando não pode prever o rumo que sua vida tomará, desde que a situação de ensino seja assumida por ele. Na situação de ensino educador e educando são como que postos em questão, a despeito de todo o controle que pretendem possuir. Mas ambos descobrem, também, a dimensão do possível e do futuro, isto é, a temporalidade como saída de si ou inquietude. A assimetria da relação não traz de volta somente o espectro do ceticismo, mas também e, fundamentalmente, a esperança de que o humano seja o sentido da razão, e não o contrário. O ensino, que sempre é a ocasião de respostas ou geração de conhecimentos, é por outro lado a situação humana em que os interlocutores chegam juntos a um questionamento que os desafia talvez para sempre, pois a assimetria de sua relação vai além da sincronia e da resposta que puderam de algum modo realizar. Daí a pergunta: O poder de um educador como Sócrates era tão inabalável assim? Ora, todo aquele que duvida sempre possui um saber, uma carta escondida em sua manga. Mas até que ponto vai este poder? Como preservar a diferença que choca o discurso coerente, como pensá-la a partir da própria distância que ela abre em relação à ordem do saber, ordem esta que sempre deve ser refeita? Aqui tem início uma fenomenologia do ensino. Esta descreve o lapso de tempo que não pode ser recuperado pelo discurso, pondo a descoberto minha exposição ao interlocutor, para além de toda afirmação que pretenda ser a última palavra. Na situação de ensino, quero convencer, orientar, dizer a minha palavra, demonstrar o que eu já sei, mas é o interlocutor que no fundo é a referência primordial de todo este desejo. É para ele que se dirige aquilo que desejo significar. Eis porque, para Levinas, não há totalização possível, não há dizer definitivo. 111 O retorno permanente do ceticismo não significa tanto a explosão possível das estruturas, mas o fato de que elas não podem ser a ossatura última do sentido, e de que talvez seja necessária a repressão para promover o acordo entre elas. Tal retorno nos lembra o caráter político – num sentido muito amplo – de todo racionalismo lógico, a aliança da lógica com a política (Levinas, 1990, p. 265). De nossa parte, afirmamos e enfatizamos que o ensino, pensado a partir desta fenomenologia, é sinônimo de uma razão pré-original (Levinas, 1990, p. 259), isto é, de uma razão que manifesta o humano em sua resistência a tudo o que possa violentar a relação assimétrica entre os interlocutores. Talvez seja isto que Paulo Freire chame presença consciente no mundo. Talvez seja este o sentido da ética em Levinas. Ser humano é descobrir-se responsável pelo outro, independentemente de toda escolha que fazemos, para além de todo presente e de toda deliberação. Com isso, a fala docente se vê mais uma vez às voltas com o paradoxo. Ensinar é ter-de-responder em um duplo sentido: respondese tornando o mundo presente na tematização e na objetivação, mas responde-se igualmente quando o tematizado é posto em questão. O ensino é, assim, a situação humana em que razão e ceticismo se encontram e se refutam interminavelmente, não por um mero capricho ou fatalidade, mas porque o ensino, tanto quanto o humano, é o sentido mesmo do racional. Eis porque, antes de se pensar sobre a possibilidade e os modos de se ensinar filosofia, seria preciso descobrir o sentido e o valor do próprio ensino. 112 Bibliografia FÉRON, E.- De l’idée de transcendance à la question du langage. L’ itinéraire philosophiique de Levinas. Grenoble: Jérôme Millon, 1992. FREIRE, Paulo - Pedagogia da Autonomia. Saberes Necessários à Prática Educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. LEVINAS, E.- Totalité et Infini. La Haye: Martinus Nijhoff, 1974. LEVINAS, E. Autrement qu’ être ou au-delà de l’ essence. Paris: Kluwer Academic, 1990. LEVINAS, E.- De Deus que vem à Idéia. Trad. Pergentino S. Pivatto (coord.), Petrópolis: Vozes, 2002. PLATÃO. Diálogos. vol. V. Trad. Carlos Alberto Nunes, Universidade Federal do Pará, 1975. 113 ENSINO DE FILOSOFIA COM CRIANÇAS NO BRASIL 114 SOBRE O ESPAÇO DA FILOSOFIA NO CURRÍCULO ESCOLAR∗ Ronai Pires da Rocha∗ Introdução Os debates sobre ensino de filosofia no nível médio, nos últimos anos, permitem identificar algumas características do mesmo. Apontarei algumas delas, sem pretender ser exaustivo: a) não existem programas oficiais definidos por Secretarias Estaduais de Ensino ou Coordenadorias de Educação Regionais ou Municipais; b) quanto à escolha dos programas de ensino, predominam as decisões tomadas pela escola e, em última instância, pelo professor. Com isso, a unidade existente entre as aulas de filosofia das diversas escolas de uma mesma região, quando existe, está baseada na adoção dos mesmos livros didáticos; Texto publicado em CANDIDO, Celso; CARBONARA, Vanderlei (orgs). Filosofia e Ensino: um diálogo transdisciplinar. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2004, p. 17-37. ∗ Professor do Curso de Filosofia da UFSM. Endereço eletrônico: [email protected] 115 c) a inexistência de diretrizes e programas básicos de ensino permite que o professor de filosofia tenha, na maior parte dos casos, ampla liberdade de escolha de conteúdos, formas de abordagem, atividades didáticas, bibliografia, etc; d) constata-se, em algumas regiões mais do que outras, que as direções de escolas por vezes aceitam entregar as aulas de filosofia para professores não titulados na área. Esta tendência aumenta na medida em que cresce a demanda por programas de filosofia com crianças, que tem acolhido profissionais da área de Pedagogia; e) verifica-se, em muitas escolas, o fato que a aula de filosofia é vista pelos professores das demais disciplinas como um tempo que pode ser tomado emprestado no horário escolar; assim, não é raro que o professor de filosofia ceda seu espaço para o colega que está com falta de carga horária para os conteúdos de sua disciplina. A filosofia é vista por esses professores como uma disciplina pouco comprometida com conteúdos obrigatórios e por isso tem o seu tempo curricular predado pelos colegas. A filosofia, para esses professores, é vista como um espaço de debates sobre coisas como “sexo, drogas & videoteipes”. Diante desse quadro, pode-se dizer que não é muito fácil compreender em que consiste uma aula de filosofia. Talvez isso seja assim porque existem muitos tipos de aulas de filosofia, em uma mesma sala e classe, e isso nem sempre é reconhecido. Estou convencido que, se queremos ter uma visão mais realista sobre o ensino dessa disciplina, precisamos reconhecer – e isto quer dizer acolher - algumas ambigüidades da aula de filosofia. Ao escrever isso, estou pensado no chamado “ensino de filosofia realmente existente”, e não em alguma proposta ideal, baseada no último grito da moda filosófica européia. 116 A lista de características apontadas acima poderia ser ampliada. Em especial, teríamos que lembrar o grande vazio de propostas didáticas e de bibliografias, o deserto de discussões sobre didática de filosofia. Nesse trabalho, quero apresentar argumentos sobre a natureza da filosofia que poderiam ajudar na compreensão dessas características – em especial a ambigüidade da aula de filosofia. Não poderei tratar, por uma questão de espaço, da aula de filosofia enquanto uma questão da didática. Por outro lado, creio que uma didática da filosofia deve começar por um debate sobre esses fatos que todos nós conhecemos bem. Abordarei alguns aspectos da questão da aula de filosofia no nível médio, em especial a necessidade de uma melhor caracterização dos objetivos de nossa disciplina no contexto do currículo escolar. Procurarei também ligar a discussão sobre a natureza da filosofia e de seu ensino com o fato de que muitas vezes aceita-se uma fraca profissionalização para seu ensino. Meu objetivo não é engrossar o coro dos que falam mal da predação da aula de filosofia. Não quero rir dessas coisas, tampouco chorar; gostaria apenas de compreendê-las melhor, pois facilmente incorremos em algum tipo de moralismo pedagógico, se a nossa compreensão desses fenômenos – em especial, das ambigüidades da aula de filosofia - se reduz a uma queixa sobre as incompreensões de que somos vítimas. 117 Esquema de uma discussão sobre programas de filosofia para o nível médio A discussão sobre programas de ensino tem ocorrido dentro de certos esquemas de argumentação. De modo geral, a situação poderia ser resumida como segue. Há, de um lado, um pequeno partido daqueles que acreditam que a filosofia tem conteúdos. Os conteudistas (vamos chamá-los assim) pensam que a filosofia, ao longo de sua história, acumulou uma razoável riqueza discursiva, na forma de argumentos e discussões sobre alguns problemas fundamentais que afligem o ser humano. Diante disso, os conteudistas entendem que é adequado que essa herança seja colocada ao alcance das novas gerações. Os conteudistas pensam que a filosofia, em um sentido parecido com a matemática ou a física, tem algo para ensinar; os filósofos, ao longo da história, quebraram suas cabeças junto à problemas que, muitos deles, continuam a afligir as gerações, e estas só tem a ganhar convivendo com esse tesouro conceitual. Um conteudista não é um professor de história da filosofia, no entanto. Ele entende que todo tipo de conteúdo filosófico pode ser abordado a partir de problemas fundamentais, sem que necessariamente a história da filosofia tenha que ser contada ou resumida. Assim, um conteudista defende a existência de programas de filosofia que indicam tópicos bem definidos, que, em última instância, podem ser cobrados dos estudantes da mesma forma que os conteúdos, digamos, da geografia ou de português. O outro partido é mais loquaz. Contra os conteúdos, eles gostam de enfatizar os processos. O processista – a palavra não existe e é horrível – entende que essa crença em conteúdos congela a vida do conceito filosófico, imobiliza a natureza conversacional da disciplina. 118 Ele diria, talvez, que a fixação de conteúdos contém em germe a rigidez das fórmulas que esvaziam a riqueza dos conceitos. Ele diria que a definição de conteúdos de filosofia vai fazer com que ela seja vítima da mesma estratégia que é usada em outras disciplinas escolares: a memorização vazia, a decoreba, e isso seria a morte em vida da filosofia. Assim, um processista defende a aula de filosofia como um espaço mais fluido, não travado por problemas e argumentos a serem examinados escrupulosamente. Os processistas são muito sedutores. Tradicionalmente, tem levado a melhor nas discussões: experimente apresentar a sua lista de conteúdos: não apenas mil outros poderão ser facilmente contrapostos, como surgirá a objeção: a filosofia não é uma matéria de conteúdos, como as outras... ela ensina a pensar, a ser crítico, etc. Essa descrição é, por certo, apenas esquemática, e não faz justiça à riqueza da realidade; mas creio que ela apresenta alguns traços relevantes da polêmica sobre o ensino de filosofia. Como poderia ser decidida essa polêmica entre o partido do conteúdo e o partido do processo? Talvez devêssemos nos perguntar se algum desses partidos pode ser vencedor nesse tipo de disputa. Para que isso acontecesse, a disputa deveria ter termos claros, decidíveis. Talvez isso não ocorra. Talvez os dois partidos detenham, cada um, parte da verdade, e nossa melhor atitude seja, nesse caso, examinar e tentar combinar os aspectos positivos de cada posição. Mas não apenas isso. O debate sobre o ensino de filosofia, enquanto é compreendido como uma oposição entre partidos assemelhados a esses, está condenado à esterilidade. Esse debate pouco avança – ao contrário, se esvazia - entre outras razões, porque lhe falta um cenário real. Esse cenário somente pode ser 119 proporcionado pela consideração da escola como um todo. A visão de planejamento curricular subjacente às nossas discussões sobre ensino de filosofia costuma ser aquela dos reis que homenageiam o recém-nascido: um currículo escolar pode ser obtido pela junção dos presentes bemintencionados que cada rei traz para o presépio. Precisamos ser capazes de justificar e explicar a presença de nossa disciplina, na escola, não para nós mesmos, mas para nossos colegas de currículo. E o núcleo duro da resposta que temos que dar é o seguinte: como o nosso trabalho se articula com os demais? Ou somos reis magos, os filantropos do conceito? O lugar da filosofia no contexto das disciplinas escolares Meu ponto de partida é uma pergunta sobre a nossa compreensão do lugar da disciplina Filosofia no contexto das demais disciplinas escolares. É evidente que isso implica em refletir sobre a natureza da filosofia, e, nesse sentido, alguém poderia objetar que se trata da mesma e interminável discussão: o que é a filosofia, afinal? De certa forma, esta objeção procede. Mas eu gostaria de propor uma abordagem mais contida, que procura tomar em conta a existência curricular da disciplina nas escolas. Isso obriga o professor de filosofia a participar de reuniões com os professores das demais disciplinas sobre o planejamento de ensino; nessas ocasiões, ele precisa, ao ter que dar conta do lugar didático de sua disciplina, oferecer algo mais do que os conhecidos lugares-comuns: a formação de consciência crítica, por exemplo. Não é recomendável chamar para si o monopólio de tal formação, diante do trabalho do colega de história, geografia, literatura, 120 e todas e cada uma das demais disciplinas, que, cada uma a seu jeito, são peças fundamentais na formação crítica de cada um de nós. Se quisermos entender o papel de cada disciplina nesse processo, isso nos obriga a procurar algum esclarecimento sobre a natureza de cada uma delas. É nesse sentido que procuro por uma compreensão mais contida do lugar pedagógico da filosofia. Para tanto, vou sugerir um esquema que está baseado na idéia de que as disciplinas escolares, em última instância, representam os esforços humanos para dar conta das nossas curiosidades mais legítimas, de nossos mais legítimos anseios de compreensão. Nesse sentido, as disciplinas da área de Ciências Naturais – Física, Química, por exemplo – visam dar conta de como o mundo é, de como o mundo funciona, por assim dizer, sem as gentes. As disciplinas escolares como as Sociais e Humanas – Sociologia, História, Geografia – operam em uma outra esfera de nossa curiosidade. Elas visam dar conta de como o mundo é, com as gentes e com a gente. Os estudos de Psicologia, nesse sentido, ocupam uma espécie de espaço intermediário entre esses dois grupos, na medida em que oferece ao jovem uma discussão sobre como as gentes funcionam. Podemos dizer, nesse sentido, que as ciências naturais e humanas pertencem a uma e mesma área geral, a um mesmo interesse básico, que é o da compreensão do mundo, em sentido amplo: mundo natural, mundo social-histórico. A diferença importante, em todo o caso, é que no caso da compreensão do mundo social-histórico estamos pessoalmente implicados. Na aula de Educação Física, o aluno pode explorar sua corporeidade; nas disciplinas de Artes, o estudante explora suas capacidades expressivas. Mas a curiosidade humana segue. A vida cotidiana - e também as disciplinas escolares - coloca para a criança uma série de perguntas que as disciplinas até aqui mencionadas não tem o 121 compromisso de enfrentar; um professor de Matemática não tem o compromisso de acolher uma conversa que surge entre os alunos sobre a infinitude dos números naturais e o que se pode fazer com esse intrigante conceito de “infinito”; o professor de ciências não precisa dar conta dos limites de aplicação do conceito de causalidade, que é indispensável em suas aulas, e que os alunos aplicam em áreas e objetos nem sempre adequados. Assim, surge a pergunta sobre se o espaço de formação escolar tem o compromisso de acolhimento de certas curiosidades – um certo gênero de curiosidade - que não são contempladas por nenhuma das disciplinas particulares. Eu ofereci poucos exemplos, no parágrafo acima, mas creio que falam por si mesmos. Não se trata apenas de que os alunos podem ter curiosidades sobre o funcionamento e a condições de aplicação do conceito de “infinito”, mas, prosaicamente, podem se perguntar, afinal de contas, o que é “número”? A ausência de resposta para essas curiosidades, por parte do professor de matemática não prejudica o aprendizado na disciplina. Ninguém melhora sua performance nas operações de matemática pelo fato de passar por uma boa discussão sobre o conceito de número; são campos diferentes de operações e de conceitos. Em um caso, precisamos dominar símbolos e regras operacionais; em outro, trata-se de uma discussão conceitual, de segunda ordem. Se o aluno se pergunta – e ele se pergunta, sim, apenas que de maneiras enviesadas, que nem sempre reconhecemos e acolhemos como o conceito de “infinito” funciona fora da matemática, e sob quais aspectos qualquer comparação entre os usos desse conceito é possível, novamente o professor de matemática não se sentirá contratualmente comprometido em responder. 122 O mesmo raciocínio vale para o complicado conceito de “causalidade”, um dos mais intrigantes de nosso aparato de pensamento. Em que regiões da realidade este conceito pode ser validamente aplicado? Nas aulas de Ciências, o aluno aprende e passa a dominar – de forma implícita, por certo! - um padrão de perguntas causais: a saber, ele aprende que as perguntas causais estão baseadas em duas condições que as tornam possíveis: em primeiro lugar, podemos supor a existência de alguma outra coisa (processo, evento, etc) diferente daquilo que está em questão; essa segunda coisa será causalmente relacionada à primeira; e, em segundo lugar, podemos supor que a coisa em questão poderia não ter existido; assim, isso vale para a pergunta sobre o surgimento dos bebês, tanto no sentido de saber como eles vão parar lá no ventre da mãe, como no sentido de que ela deveria (ou não) ter tomado tais e tais providências, para provocar ou não esse fato! As perguntas causais são intra-mundanas, no sentido em que elas visam dar conta das contingências do mundo. O que acontece quando tentamos aplicar esse conceito para o comportamento humano? O que acontece quando aplicamos esse conceito para o “mundo como um todo” (argumento cosmológico)?13 Bem, novamente, o professor de Ciências não tem nenhum compromisso profissional de dar conta dessas curiosidades. Aqui certamente surge a objeção que diz que até hoje não dispomos de respostas simples e unívocas para esse tipo de pergunta que desemboca em conceitos como infinito, número, causa, efeito, motivo, razão, e toda a interminável lista de conceitos fundamentais que igualmente brota de outras disciplinas da escola: corpo e alma, seja em 13 Sobre esse tópico, ver, por exemplo, o livro de Stephen Mulhall, Faith and Reason, Duckworth, 1994. 123 Psicologia ou Educação Física, poder, política, ética, dominação, justiça, legalidade, nas Ciências Sociais, e assim por diante. A pergunta que uma criança faz na aula de ciências pode, com habilidade, ser perfeitamente respondida, no sentido em que sua curiosidade é temporariamente satisfeita, tamponada. Com o passar do tempo e dos estudos, aumenta o tamanho e a qualidade do tampão. Isso acontece na pergunta sobre se a cobra verde que há no jardim é venenosa. (A criança, um dia, poderá vir a ser uma bióloga, especialista em serpentes, por exemplo.) A resposta para esse tipo de pergunta (tratase de uma pergunta causal, circunscrita a um âmbito bem definido da realidade) é ou sim ou não.14 Quanto às perguntas à que venho me referindo, poderíamos dizer que, em certo sentido, elas sobram das outras disciplinas; elas podem se originar nas atividades de cada uma das demais disciplinas escolares, e nelas não encontram respostas; elas podem ir se acumulando, sobrantes, na prateleira das curiosidades colecionadas pelo aluno, que ficam sem respostas satisfatórias. O fato delas se originarem nas disciplinas particulares e não terem sido respondidas nesse âmbito, não prejudica o aprendizado dessas disciplinas. Como já disse, o jovem não se sai melhor nos cálculos por ter esta ou aquela concepção da natureza dos números. 14 A criança, ao aprender, simultaneamente, a sua língua natural, o esquema conceitual subjacente a ela e o mundo em que vive, aprendeu – sem que nenhuma disciplina em particular tenha lhe ensinado isso - que não pode dizer, sem provocar espanto: “Esta é uma cobra verde, as cobras verdes não tem veneno, mas talvez esta cobra verde tenha.” A filosofia é uma disciplina especial, na medida em que se ocupa com a investigação da forma, dos limites, das condições de nosso aparato cognitivo e de ação. Essa dimensão da filosofia não a esgota, como procurarei mostrar a seguir. O que quero destacar aqui é a imensa massa de formação e informação que aprendemos ao aprender a língua natural; esse aprendizado não se confunde com as formações e informações proporcionadas pelas disciplinas particulares, e nenhuma delas tem como objetivo examiná-lo. Isso é tarefa para a filosofia. 124 No campo do ensino-aprendizagem de cada uma das disciplinas particulares, há muitos tipos de respostas insatisfatórias. Não é razoável tentar elaborar uma lista dos tipos de respostas insatisfatórias que oferecemos. Nossa resposta pode ser insatisfatória por não trazer os dados adequados para a compreensão, por subestimar ou superestimar a capacidade de entendimento de quem pergunta, por uma escuta desatenta, por ser equivocada, por mudar de assunto; podemos apenas não ter a resposta, seja porque não conhecemos bem o tópico ou porque o tópico não comporta, ainda, uma resposta clara (Há vida em Marte? Por quanto tempo durarão nossas reservas de água?) Esta lista não tem fim. Nos resta perceber que, em um sentido muito abrangente, podemos colocar, em um grupo, aquelas perguntas que podem, em tese, ser respondidas, se tivermos o tempo, o cuidado, e a informação adequada. Para elas pode haver o que chamei de respostas tamponadoras. Quanto às respostas da filosofia para aqueles temas que listei acima – poder, justiça, política, corpo, alma, causalidade, infinito, etc – como devemos julgar sua satisfatoriedade? Esse tipo de pergunta – “até onde posso ir com o conceito de causalidade?” “Porque comemos esses animais tão bonitos?” “Porque uns tem tão pouco e outros tem tanto?” “Porque uns podem mandar nos outros?” raramente depende de novos dados empíricos. Fazer essas perguntas é trazer nosso mundo, como um todo, à avaliação. A satisfatoriedade dessa tarefa é, com sorte, sempre precária. As respostas da filosofia comportam sempre uma abertura, pois dizem respeito à como lidamos com nossas mais profundas convenções. Essas respostas, em nenhum sentido razoável, são subjetivas. Na verdade, eu quero evitar aqui falar em respostas empíricas ou objetivas, por causa da inevitável e extraviadora busca de antônimos para essas expressões: empírico por contraposição ao quê? Objetivo por contraste com 125 subjetivo? A vantagem de se abandonar esse tipo de vocabulário – ou, ao menos, de tentar enriquecê-lo –reside nos ganhos que podemos ter quando enfrentamos a tarefa de caracterizar a natureza da filosofia. Na maior parte das vezes estamos presos a um esquema conceitual constrangedor, pois, com alguma naturalidade, convivemos com a idéia que a filosofia não é uma disciplina empírica; mas ela não é uma disciplina formal, ao molde da lógica; por outro lado, não podemos dizer que ela é uma disciplina subjetiva, pois isso seria condená-la ao achismo da terra de ninguém. De que se trata, afinal? À qual dimensão da realidade humana a filosofia corresponde? Uma visão deflacionária da “consciência crítica” Como vamos caracterizar a natureza das perguntas filosóficas? Eu disse que a filosofia não pode, sem grande polêmica, ser vista como uma disciplina empírica. Por mais que possa haver simpatia para com os programas de naturalização ou de redução da filosofia, creio que devemos admitir que esses programas são pouco mais do que boas provocações ao debate, já que, de uma ou de outra forma, ainda trabalhamos sob o manto de Atenas: quer a filosofia seja vista como uma “investigação racional mediante conceitos” (Kant, Lógica), quer como uma atividade socrática de questionamento das nossas convenções e imaturidades, ela ocupa um espaço de investigação que não se confunde com nenhuma área de saber positivo sobre as diversas e particulares dimensões da realidade. Apesar desse tipo de consenso, a caracterização em detalhes do espaço peculiar da filosofia – e da aula de filosofia para jovens - é uma discussão que parece ser interminável. 126 A resposta mais popular entre nós é a da caracterização da filosofia como pensamento “crítico”. Essa expressão, com o passar do tempo, guarda apenas um empobrecido valor de jargão. É apenas e evidentemente ridículo que um professor de filosofia não pode, diante dos demais colegas de escola, sustentar que a sua disciplina é a guardiã preferencial da consciência crítica dos estudantes; se eu fosse um professor de História ou Artes ou Educação Física ou Física ou Química ou Geografia ou Português ou Biologia ou outro, eu poderia considerar isso uma arrogância. Ou melhor, eu pediria para que o professor traduzisse em trocados e miúdos o que é que ele entende por essa “consciência crítica”, da qual se considera o suposto formador privilegiado? Eu gostaria de saber como ele vê o trabalho dos cientistas, físicos, químicos, biólogos, os historiadores, os sociólogos, os geógrafos, os artistas? Essa turma toda nada tem a ver com a formação da consciência crítica? São apenas atores coadjuvantes? Por acaso, saber mais e melhor sobre a “realidade empírica” nada tem a ver com a calibragem de nossos juízos valorativos? As relações entre crenças fatuais e juízos morais são bem mais complexas do que sonham certas filosofias. Insistamos na questão: como entender essa “criticidade”? A resposta na ponta língua é essa: trata-se de uma habilidade, de uma capacidade, de um exercício de distanciamento, de suspensão de juízo, de mensuração de conseqüências, de melhor exame; como que nos retiramos, por algum tempo, do comércio da vida comum, para submetêla a um escrutínio circunstanciado. A descrição deve soar familiar. Mas se olhamos para essa mesma descrição com algum distanciamento, veremos que ela se aplica, sem nenhum retoque, ao trabalho dos 127 cientistas, físicos, químicos, biólogos, historiadores, sociólogos, geógrafos, artistas, escritores. Até aqui, a tal criticidade é apenas uma característica interna intrínseca de nosso aparato cognitivo, que pode ou não ser acionada, em graus e proporções diferenciadas. Eu chamo isso de uma visão deflacionista da “consciência crítica”. A “criticidade” é uma característica – uma habilidade a ser praticada - disponível e comum aos seres humanos, que se mostra no fato que o ser humano precisa – é essencialmente dependente de - de informação cada vez mais numerosa para regular sua vida. O nosso processo de administração de informações exige a presença de uma espécie de mecanismo ou filtro, que usamos para controlar o processo de creditação das informações. Duas tentações são mortais: não podemos acreditar em tudo, não podemos duvidar de tudo. A racionalidade, como diria Aristóteles, é uma virtude, é uma habilidade que conquistamos às duras penas, e não uma entidade pronta.15 O que defendo aqui é a posição - de resto trivial, visto que se trata apenas de uma caracterização de uma das conseqüências da diferença entre a operação de compreensão e a operação de 15 Não posso desenvolver aqui mais esse tema. Em especial, deveria tratar do caso das sociedades tradicionais, que parecem criar mecanismos que dificultam o distanciamento e a discussão daquelas afirmações que dizem respeito à sua identidade de base, regras e normas sociais fundamentais. Nelas, as normas sociais são justificadas de forma vertical ou autoritária. Mesmo as justificações autoritárias, na medida em que devem justificar as condutas moralmente boas, parecem ter uma porta aberta para a dúvida e para a crítica, pois pode-se perguntar se as normas são boas porque Deus as promulgou ou se Deus as promulgou porque são boas. Trata-se do problema do Eutífron, como bem lembra Ernst Tugendhat, no livro Não Somos de Arame Rígido (Ulbra, 2002). Para uma fundamentação do que chamo de concepção deflacionista da criticidade, recomendaria o derradeiro livro de Bernard Williams, Truth and Truthfulness, Princepton University Press, 2002, em especial o capítulo 2, e ainda Peter Geach, Faith and Reason, Columbia University Press, 1983, capítulos 1 e 2. Não menos relevante para meu argumento é o trabalho de Arthur Danto, Mysticism and Morality. Columbia University Press, NY, 1988, em especial o capítulo 1. 128 conhecimento - que há uma relação interna entre conhecimento e criticidade. A estrutura noética do ser humano é tal que dependemos da posse de conhecimentos (crenças acompanhadas por justificações adequada), e não apenas de crenças; e isso supõe o funcionamento de capacidades e mecanismos cognitivos que colocamos em operação para ocorrer o movimento entre a crença e o conhecimento. A “criticidade” (entendida, como sugeri acima, como uma capacidade de distanciamento, de suspensão de juízo) é um dos componentes da nossa estrutura noética. Nesse sentido, o fato de alguém se declarar “crítico”, tem uma relação externa e acidental com a adesão a um conjunto determinado de visões de mundo ou pontos de vista ou conhecimentos determinados. A Tabela Periódica pode ser uma fonte de liberdade.16 Uma vez apresentada, de forma muito resumida, essa visão deflacionista da criticidade, podemos voltar à discussão sobre semelhanças e diferenças da filosofia com as demais disciplinas escolares. Não sendo a filosofia uma disciplina empírica, como a Física e a Geografia, nem uma disciplina formal, como a Matemática, nem apenas uma troca de opiniões pessoais, subjetivas, de que se trata, afinal? Eu disse que podíamos ter como ponto de inspiração ao menos duas tradições. De um lado, aquela fixada pelo eixo Aristóteles-Kant, segundo o qual se pode entender uma das dimensões da filosofia como sendo o de uma “investigação racional mediante conceitos” (Kant, Lógica). A outra tradição, socrático-platônica, que não conflita com a primeira, é aquela que entende que essa atividade de investigação que se ocupa com nossos conceitos fundamentais implica um exame, um questionamento de nosso conhecimento e de nossas ações, de nossas 16 Penso aqui no capítulo “Ferro”, do livro de Primo Levi, A Tabela Periódica. Tradução de Luiz Sérgio Henriques, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001. 129 imaturidades (crítica da cultura, se você quiser). Esse tipo de saber – essa atividade - não se confunde, obviamente, com nenhuma área do saber positivo sobre as diversas e particulares dimensões da realidade. As perguntas da filosofia são aquelas que constroem o cenário no qual nossa vida – nossos pensamentos e ações - são, como diria Cavell, submetidos à nossa imaginação: o que eu exijo é um exame dos critérios de minha cultura, de forma a poder confrontá-los com minhas palavras e minha vida, da forma como a levo e da forma como posso imaginá-la; e ao mesmo tempo confrontar minhas palavras e vida, na forma como as levo, com a vida que as palavras de minha cultura podem imaginar para mim: confrontar a cultura consigo mesma, ao longo das linhas nas quais ela se encontra em mim (1979, p. 125). Eu disse atrás que penso que temos entre nós um consenso mínimo sobre essa identidade da filosofia, mas, mesmo assim, a caracterização do espaço peculiar da filosofia e da aula de filosofia para jovens, - é uma discussão polêmica, em aberto. Os temas apresentados pelos professores, no ensino de filosofia realmente existente, compõem um grande leque de assuntos e atividades – desde o eixo sexo, drogas & videoteipe, até a crítica política do cotidiano, passando, por certo, por tudo o que está incluído nas dezenas de manuais disponíveis. Essa amplitude de temas e abordagens é, freqüentemente, uma fonte de enfraquecimento da posição da disciplina na Escola. A aula de Filosofia costuma ser alvo da tentativa de predação do colega, digamos, da Química, que, com certo ar de superioridade, pede para si esse horário, dizendo que sua carga horária está pequena para dar conta dos 130 “conteúdos”. A Filosofia, pensa o professor de Química, não tem conteúdos assim tão definidos, não? Ainda o espaço curricular da Filosofia Voltamos, assim, à pergunta pela natureza da filosofia. Lembre que a discussão sobre esse tema está sendo feita dentro de um cenário particular, a sala de reuniões da escola. O professor de Filosofia está sentado ao lado do professor de Química, e deve explicar sua disciplina de uma forma que seus colegas entendam em que sentido ela se integra – ou como ela convive – com as demais. O aluno, diz o colega, é um só, e a filosofia deve dizer a que vem, deve explicitar qual o espaço conceitual que vai ocupar na formação do estudante. O colega da química não se deixa iludir pela conversa de consciência crítica (lembrese que se trata de um leitor de Primo Levi). Há outro componente importante nesse cenário aterrisado. A discussão sobre ensino de filosofia, a bem da verdade, pertence ao maltratado campo de estudos da Didática. Assim, trata-se de uma investigação na qual se faz necessária a contribuição das disciplinas empíricas que dizem respeito à mesma: psicologia, sociologia, antropologia, lingüística, etc. Aqui, o professor de filosofia deve mostrar que entende um pouco da empiria, sob pena de ser visto como o filantropo do conceito. O professor deve explicitar também sua concepção sobre a filosofia, pois não pode haver avanço nas discussões sobre a didática de um campo que não conseguimos caracterizar a contento. Assim, ele 131 deve apresentar armas. Se o gume do “pensamento crítico” está cego, é preciso tentar de novo.17 Eu disse que o ensino de filosofia nos remete para uma discussão empírica, no campo da didática. Sendo assim, parece incontornável que o interessado no assunto se pergunte sobre quais são os instrumentos teóricos que dispõe para tratar o tema. O que é que sabemos sobre desenvolvimento humano, de crianças, adolescentes e sobre adultos, o que sabemos de teorias de aprendizagem para cada um desses grupos, o que sabemos, enfim, de conteúdos de psicologia, antropologia, sociologia, lingüística, que são relevantes para a situação de ensino-aprendizagem? Cada um que pretende discutir o ensino de filosofia deve ajustar suas contas com esses saberes, pois são eles que, explícitos ou não, determinam nossas atitudes e posições nessa área. Não é preciso dizer que aquilo que sabemos de filosofia não é menos relevante. Com o entendimento que uma dimensão importante da filosofia é o de ser uma investigação sobre temas e conceitos fundamentais (criteriais), é possível dizer que as crianças começar a estar às voltas com filosofia desde o momento em que elas se transformam em pequenos adultos lingüísticos, coisa que ocorre por volta de 5 a 6 anos. As histórias que elas contam e as perguntas que elas dirigem aos adultos, muitas vezes abordam esses temas e conceitos fundamentais: vida, 17 Como já dei a entender, estou assumindo um ponto de vista sobre a natureza da filosofia cujo ponto de partida é, por exemplo o escrito de Ernst Tugendhat, “O que é filosofia”. Eu digo “por exemplo” porque considero essa caracterização ampla demais para que seja considerada como típica desse ou daquele filósofo. Tugendhat ali define a filosofia como uma investigação sobre conceitos fundamentais, tendo uma dupla dimensão: sistemática (a dimensão “escolástica) e dialética (a dimensão “cosmopolita”). Isso nos remete para a distinção apresentada por Kant na Lógica e ao escrito de Tugendhat. Minha outra referência são os escritos de Stanley Cavell, em especial The Claim of Reason. 132 morte, Deus, origens, etc. Essas perguntas são bons indicadores que elas estão explorando o modo de funcionamento desses conceitos fundamentais, dos quais o mais notório é o funcionamento do conceito de causalidade. Creio que podemos dizer que a criança está, em um sentido relevante, examinando o modo de funcionamento do aparato (rede, esquema, campo) conceitual de que ela está se apropriando nessa fase da vida, e que é, em certos sentidos, indissociável da linguagem e do mundo.18 Nesse sentido, o professor de filosofia, nas atividades com crianças, não tem, propriamente, conteúdos para ensinar, como se fosse uma aula de ciências, de história ou língua portuguesa. Se fosse inevitável fazer uma comparação, as atividades na aula de artes, na medida em que desafiam o aluno a explorar suas habilidades nesse campo, seriam as atividades mais próximas da aula de filosofia. O professor de filosofia “com crianças” cuida desse espaço de diálogos especiais no qual as crianças por vezes se metem naturalmente. Trata-se de filosofia com crianças; isso quer dizer que não se trata de ensinar filosofia para crianças.19 O mesmo não ocorre com os jovens, que, entre seus direitos formacionais, podem incluir o debater, com sistematicidade, problemas clássicos da filosofia, conhecer e interpretar textos clássicos, etc. Mas, no caso da aula de filosofia com jovens, fixam-se algumas convicções sobre a natureza da filosofia, enquanto um espaço didático, que precisam ser melhor reconhecidas. Mencionarei 18 Não há sentido na idéia de que um ser humano possa apropriar-se de sua língua natural em completa desconexão com a realidade; tampouco há sentido na idéia que um ser humano possa apropriar-se de sua língua natural sem o domínio implícito de conceitos formais: objeto, causa, etc. 19 Eu disse “diálogos especiais”, porque aquilo que a criança pode estar precisando é de um espaço de escuta para hipóteses, dúvidas, e questionamentos sobre uma área da experiência humana que não é coberta pelas demais disciplinas escolares, como já vimos. 133 aqui apenas a idéia que a filosofia (no seu conceito no mundo) tem o seu campo de questionamentos balizado pelas perguntas fundamentais sobre o que podemos saber, o que devemos fazer, o que nos é permitido esperar, e, afinal, o que somos? Uma forma de se elaborar as conseqüências didáticas dessas questões é dizer-se que, como professores de filosofia, não podemos dogmatizar sobre essas questões, isto é, propor respostas determinadas, particulares. Essa atitude revela uma leitura e um entendimento parcial de Kant. Há direções de respostas em Kant para essas perguntas, que não se confundem com as soluções oferecidas por esta ou aquela visão de mundo, por essa ou aquela religião ou escola política. As respostas de Kant indicam o que se pode dizer, sobre essas questões, de um ponto de vista exclusivamente racional. Mas mesmo que assim entendamos as coisas, persistirá a afirmação que a filosofia tem uma dimensão idiossincrática, uma dimensão de criação pessoalíssima, de invenção originária, que precisa ser reconhecida e admitida: os jovens, afinal, elaboram formas de situarse e compreender a realidade e a si mesmos, criam seus pequenos sistemas, defendem com paixão suas convicções e valores; diante disso, a aula de filosofia não pode ser o ensino de conteúdos, pois isso deixaria sem espaço essa dimensão de compreensão da filosofia, que, em última instância, teria a ver com o sentido da filosofia no mundo, no esquema de Kant. Se você conceder um “apenas” no meio da última afirmação, podemos ir em frente: a aula de filosofia não pode ser apenas o ensino de conteúdos. Ela precisa reconhecer e acolher essa dimensão de criação pessoal. Mas é muito difícil caracterizar em que consiste essa dimensão. Ela tem sido confundida com o “subjetivo”, com literatura, e tem sido invocada pelos “processistas” para atacar os “conteudistas”. 134 Subjetivo, objetivo, “isso não pode ser tudo” Para encerrar, volto ao tema da natureza da filosofia e do espaço que ela ocupa no currículo escolar, mas também na vida cultural. Vou indicar, muito resumidamente, algumas idéias de David Winnicott que podem ajudar em nossa compreensão desse tópico. Creio que esse argumento de Winnicott contribui com a linha de argumentação que estou tentando desenvolver aqui. Em alguns artigos – por exemplo, em “Objetos Transicionais e Fenômenos Transicionais”20, Winnicot apresenta a hipótese que todo ser humano defronta-se com o que ele chama de “área intermediária de experimentação”, entre a realidade externa e interna. Para o funcionamento dessa área intermediária, são necessárias as contribuições das outras duas. Ligada a essa área estão os chamados fenômenos transicionais: a bola de lã, a fraldinha, o paninho, o cobertor, mas também palavras, maneirismos, tiques (1975, p. 17). Os objetos transicionais seguem um padrão, e podem surgir dos quatro e seis aos oito e doze meses de idade. Essa área da experiência humana inicia “todos os seres humanos com o que sempre será importante para eles, isto é, uma área neutra de experiência que não será contestada” (Id. ibid., p. 28). Essa área é considerada fundamental para todos os seres humanos porque nunca terminamos a tarefa de aceitar a realidade: O trecho relevante para o que estou querendo examinar aqui surge na seguinte passagem: 20 Publicado no volume Winnicott, D. W. O Brincar & a Realidade. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1975. 135 Presume-se aqui que a tarefa de aceitação da realidade nunca é completada, que nenhum ser humano está livre da tensão de relacionar a realidade interna e externa, e que o alívio dessa tensão é proporcionado por uma área intermediária de experiência (cf. Riviere, 1936) que não é contestada (artes, religião, etc). Essa área intermediária está em continuidade direta com a área do brincar da criança pequena que se “perde” no brincar.” (...) Se um adulto nos reivindicar a aceitação da objetividade de seus fenômenos subjetivos, discerniremos ou diagnosticaremos nele loucura. Se, contudo, o adulto consegue extrair prazer da área pessoal intermediária sem fazer reinvindicações, podemos então reconhecer nossas próprias e correspondentes áreas intermediárias, sendo que nos apraz descobrir certo grau de sobreposição, isto é, de experiência comum entre membros de um grupo na arte, na religião, ou na filosofia (Id. ibid., p. 29). Não posso explorar aqui as conseqüências dessas idéias no âmbito de uma didática da filosofia. Destaco apenas que elas me parecem apontar para uma das dimensões da filosofia enquanto um espaço de exploração de nossos esquemas conceituais, que inclui, mais adiante, a reflexão sobre o “sentido da vida” e temas afins.21 Por outro lado, essa abordagem de Winnicott pode ajudar a compreender melhor um certo tipo de afirmação usual, para a qual nem sempre temos uma boa elucidação. Eu me refiro aos lugares-comuns que dizem que “religião não se discute”, “arte é uma questão de gosto”, e “filosofia cada um tem a sua”. Minha sugestão é que esses ditados populares dizem respeito a uma dimensão muito especial da experiência humana, examinada por Winnicot. Em escritos como “A localização da 21 Tratei de alguns aspectos desse tema no artigo “Crianças não cuidam de si”. 136 experiência cultural” e “O lugar em que vivemos” (Winnicott, 1983) ele lembra o quanto fazemos uso de uma distinção de dois tipos de experiências humanas básicas: as de um mundo interior, subjetivo, e as do mundo exterior, objetivo. Em acréscimo a esses conceitos de experiências interiores (o subjetivo, o “dentro”, o interno) e experiências com a realidade exterior (o fora de nós, a realidade externa), Winnicott aponta uma terceira área, pois, segundo ele, “isso não pode ser tudo”. É preciso notar uma zona intermediária, na qual estamos (o artigo se chama “O lugar onde vivemos”) em muitas das coisas que fazemos. Ele pergunta: O que estamos fazendo quando ouvimos uma sinfonia de Beethoven, ao visitar uma galeria de pintura, lendo Troilo e Cressida na cama, ou jogando tênis? Que está fazendo uma criança, quando fica sentada no chão e brinca sob a guarda de sua mãe? Que está fazendo um grupo de adolescentes, quando participa de uma reunião de música popular? Não é apenas: o que estamos fazendo? É necessário também formular a pergunta: onde estamos (se é que estamos em algum lugar)? Já utilizamos os conceitos de interno e externo e desejamos um terceiro conceito. Onde estamos, quando fazemos o que, na verdade, fazemos grande parte de nosso tempo, a saber, divertindo-nos? O conceito de sublimação abrange realmente todo o padrão? Podemos auferir algum proveito do exame desse tempo que se refere à possível existência de um lugar para viver, e que não pode ser apropriadamente descrito quer pelo termo ‘interno’ quer pelo termo ‘externo’? (...) Observe-se que estou examinando a fruição altamente apurada do viver, da beleza, ou da capacidade inventiva abstrata humana, quando me refiro ao indivíduo adulto, e, ao mesmo tempo, o gesto criador do bebê que estende 137 a mão para a boca da mãe, tateia-lhe os dentes e, simultaneamente, fita-lhe os olhos, vendo-a criativamente. Para mim, o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constitui seu fundamento. Se meus argumentos possuem força convincente, temos três, ao invés de dois estados humanos, para serem comparados mutuamente. Quando examinamos esses três conjuntos do estado humano, podemos perceber a existência de uma característica especial a distinguir aquilo que chamo de experiência cultural (ou brincar) dos outros dois estados (Id. ibid., p. 1478).22 Essa área, que ele chama, alternativamente, de “área disponível de manobra”, “zona intermediária”, “espaço potencial”, “terceira área”, é a área da cultura enquanto uma tradição herdada, na qual discutimos sobre o que, afinal, versa a vida enquanto algo que é digno de ser vivido. Ali se inserem, como ele nos dizia na passagem que citei no início, a experiência comum “na arte, na religião, ou na filosofia”. De que modo essas idéias de Winnicott podem ser estimulantes para uma discussão sobre o ensino de filosofia? Creio que essa abordagem nos permite reconhecer e acolher algumas ambigüidades da filosofia; pode nos permitir lidar melhor – isto é, sem rir e com menos preconceitos - com as pessoas que procuram o professor de filosofia com seus pequenos sistemas especulativos. 22 No livro Natureza Humana (Rio de Janeiro: Imago, 2000, p. 134), Winnicott escreve: “Os filósofos sempre se preocuparam com o significado da palavra ‘real’, e houve diversas escolas de pensamento fundadas sobre a crença de que ‘pedra, árvore, ou o que quer que mais seja, só terão existência se houver quem as veja...’, com a alternativa ‘a pedra, a árvore seja lá o que for, estarão bem aí mesmo sem espectador...’ Nem todos os filósofos percebem que este problema, que aflige todo ser humano, constitui uma descrição do relacionamento inicial com a realidade externa no momento da primeira mamada teórica; ou, melhor ainda, no momento de qualquer primeiro contato teórico”. 138 Eu disse que podemos adotar a definição de filosofia que Kant nos oferece, por exemplo, na Lógica e na CRP: trata-se de uma investigação racional mediante conceitos, de um esclarecimento de nossos conceitos. Kant nos lembra, porém, que este é o conceito de filosofia na escola (Schulbegriff). Mas, segundo seu conceito no mundo (Weltbegriffe), ela é a ciência dos fins últimos da razão humana. A primeira dimensão da filosofia nos aponta para o domínio de um conjunto de habilidades especulativas; à segunda dimensão, que Kant chama de “doutrina da sabedoria”, corresponde ao campo de discussões sobre o sentido da vida: nossos fins supremos. Creio que essa dimensão da filosofia tem uma de suas raízes nessa terceira área à que se refere Winnicot. Para encerrar, gostaria de dizer que meu esforço em comprimir o que gostaria de dizer sobre esses temas acabou prejudicando a clareza daquilo que originalmente pensei em ter como tese central: o reconhecimento da ambigüidade das aulas de filosofia: há algo, na natureza de nossa disciplina, que deve ser melhor caracterizado. O reconhecimento desse aspecto, no entanto, não prejudica nosso compromisso em oferecer, para as novas gerações, um conjunto de atividades e conteúdos genuinamente filosóficos, no duplo sentido em que esses conteúdos não são tratados por nenhuma outra disciplina escolar, e, de outro lado, pertencem à mais legítima tradição dos estudos de filosofia. Bibliografia KANT, Immanuel. Manual dos Cursos de Lógica Geral. Tradução de Fausto Castilho. Ed. Unicamp/Edufu, São Paulo/Uberlândia, 2003. 139 WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1975. _____. Natureza Humana. Rio de Janeiro, Imago Editora, 2000. CAVELL, Stanley. The Claim of Reason. Wittgenstein, Skepticism, Morality and Tragedy. Harvard University Press, 1979. MULHALL, Stephen. Faith and Reason, Duckworth, 1994. TUGENDHAT, Ernst. Não Somos de Arame Rígido. Canoas, Ed. Ulbra, 2002. WILLIAMS, Bernard. Truth and Truthfulness. Princepton University Press, 2002 GEACH, Peter. Faith and Reason. Columbia University Press, 1983 ARTHUR Danto. Mysticism and Morality. Columbia University Press, NY, 1988, em especial o capítulo 1. LEVI, Primo. A Tabela Periódica. Tradução de Luiz Sérgio Henriques, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001. 140 ULA – UM DIÁLOGO FILOSÓFICO ENTRE ADULTOS E CRIANÇAS∗ Sérgio Augusto Sardi ∗ “O meu olhar é nítido como um girassol, Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do mundo...” (Fernando Pessoa, 1997) Introdução O artigo pretende fazer uma apresentação das histórias para filosofar com crianças de minha autoria, nas quais Ula é a personagem central, estabelecendo relações entre as mesmas e a concepção Texto publicado em CANDIDO, Celso; CARBONARA, Vanderlei (orgs). Filosofia e Ensino: um diálogo transdisciplinar. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2004, p. 63-88. ∗ Professor de Filosofia na PUCRS e doutorando em Filosofia pela Unicamp/SP. Endereço eletrônico: [email protected] 141 metodológica a que estão associadas. As histórias buscam suscitar a compreensão de base do sentido de um problema filosófico, sua atitude originante, na medida em que a leitura possa estimular as crianças (e também os professores) a buscarem as suas próprias vivências e questões filosóficas. É nesse sentido que, nesse trabalho, o conceito de vivência (erlebnis) e a admiração (thaumátzein) platônico-aristotélica são expressos relativamente à determinação da atitude originante do filosofar. No mesmo contexto, desenvolvem-se algumas sugestões de atividades e de procedimentos dialógicos, bem como considerações acerca da relações entre Filosofia e linguagem no âmbito do filosofar com crianças. As histórias de Ula23 são narrativas das suas vivências, dos momentos que marcaram a construção de seu modo de ver o mundo, os outros e a si mesma. E assim como Ula busca, através de suas perguntas, construir para si mesma o sentido de sua vida, cada um é convidado também a filosofar com ela. Isso ocorre na medida em que a leitura possa fazer surgir, de nossa própria experiência e de nossas próprias vivências, motivos para pensar sobre como nós mesmos pensamos e inventamos a nossa maneira de ser. São histórias produzidas ao longo dos anos de convivência com elas, e remontam à minha própria infância. Pretendem estimular uma reflexão que não se limita ao momento da leitura, mas percorre o cotidiano, de modo a ultrapassar o próprio texto, que é pretexto para pensar. Julgo ser necessário vivenciar o sentido destas questões com o prazer de quem brinca e aprende, desse modo, a pensar. Pois filosofar 23 Ula é o nome da personagem central das histórias para filosofar com crianças de minha autoria. Há uma edição da WSeditor, lançada em 2000, praticamente esgotada, e uma nova edição, a ser lançada este ano, pela Editora Vozes, intitulada Ula - Brincando de pensar. 142 surge assim: como um modo de brincar com as idéias e com o próprio pensamento. O Filosofar de Ula Quando se ouve falar em Filosofia, o que geralmente nos vem à mente é que iremos encontrar, sob esse rótulo, um universo de idéias complexas que dificilmente compreenderemos. Isso até pode ser verdade quando nos deparamos com a leitura de livros como Crítica da Razão Pura, de E. Kant, filósofo que viveu no século XVIII, ou a Ciência da Lógica, de Hegel, no século seguinte. A História da Filosofia está repleta de exemplos de idéias que, para serem expressas por seus autores, termos como “ontologia”, “epistemologia” e “fenomenologia” tiveram que criados e recriados. Se não bastasse, cada autor-filósofo conferiu a esses termos um significado distinto, só compreensível, muitas vezes, a partir da leitura da totalidade de suas obras. Mas poderíamos nos perguntar: não haveria, por detrás de tantas e tão variadas idéias, algo que tivesse levado estes filósofos a escreverem? Qual a sua motivação básica? A resposta mais aceita para essa questão é a de que certas questões como “Qual o sentido da vida? Por que tudo existe e, não antes, nada? De onde e como tudo surgiu? O que é a liberdade? E o que é o ser humano?”, dentre tantas outras, os levaram a pensar. E também nos levam a pensar, pois têm a ver com aquilo que há de mais fundamental em nossa condição humana. Mas isso nos conduz a buscar algo ainda anterior: O que está por trás do surgimento destas questões? Como elas se tornam significativas para nós? E qual a sua importância? 143 Aristóteles e Platão, filósofos que viveram nos séculos IV e V a.C., sustentaram que haveria uma atitude originária da postura filosófica: a admiração. Poderíamos também chamar de estranhamento esta atitude de quem vivencia o próprio não-saber e se depara com algo como se fosse a primeira vez; de quem modifica o modo de ver o mundo e começa a buscar o sentido subjacente das coisas. Henri Bergson, filósofo francês do século passado, sustentou, por outro lado, que a intuição (e, mais precisamente, em seus termos, a intuição da duração) seria a base da reflexão filosófica, o que a distinguiria da ciência. No entanto, como a Filosofia não cessa de interrogar e inventar a si mesma, essas caracterizações da postura originante do filosofar constituem em uma possibilidade de interpretação, dentre outras. Mas vamos parar por aqui, pois o nosso propósito é o de registrar que, por detrás de toda a complexidade do pensamento filosófico, há algo que participa de nossa condição humana e que nos cumpre ainda compreender melhor, e que é acessível a todos, adultos, jovens e crianças. Pois somos, antes, “humanos”, e partilhamos juntos o mistério de nossas existências, o enigma da realidade. O que as histórias de Ula buscam provocar é exatamente esta compreensão de base do sentido de um problema filosófico, sua atitude originante, a correlação entre a vida e a vivência24, ou a admiração, como diria Platão. Podemos dizer, então, que Ula expressa, na narrativa do seu cotidiano, uma postura na qual as questões filosóficas se tornam 24 Para uma compreensão do conceito de vivência na História da Filosofia, vide Gadamer: “a reflexão autobiográfica, ou biográfica, em que se determina seu conteúdo significante, fica fundida no todo do movimento da vida e continua acompanhando-a ininterruptamente [...] o que denominamos enfaticamente de vivência significa, pois, algo inesquecível e insubstituível, que é basicamente inesgotável para uma determinação compreensível de seu significado” (1999, p. 127). 144 significativas. A leitura do livro possibilita, portanto, uma leitura de nossas próprias vidas. Mas por que filosofar? Ora, desde que sejamos humanos, é possível que, algum dia, mais cedo ou mais tarde, alguma destas questões se torne decisiva quanto aos rumos de nossas vidas. Se pensamos no sentido de nossas ações, no que é ou não é justo fazer em determinada situação, se perguntamos pela nossa liberdade e seu sentido, por exemplo, é porque necessitamos nos situar frente à nossa própria existência. A Filosofia e o filosofar participam, mesmo sem sabermos, do nosso cotidiano, e estão presentes no processo da construção do sentido de nossas vidas e em nossas atitudes, desde o enfrentamento que torna possível a superação de nossas crises, a demarcação dos nossos objetivos e a reinvenção do nosso ser. Pensar Sobre o Pensar Devo dizer para aquela pessoa o que estou pensando? Qual o meu projeto de vida? Em certas circunstâncias, devo tentar fazer algo diferente, mesmo correndo o risco de errar? É justo que eu faça tudo o que desejo fazer? Quais serão as conseqüências de minhas ações? Devo ser amigo desta ou daquela pessoa? Mas o que é ser amigo? É realmente necessário me importar com o que os outros vão dizer? E devo sempre guardar um segredo de alguém que confiou contá-lo a mim? Todos nós, adultos ou crianças, nos deparamos com questões semelhantes a essas. Em nossas vidas devemos fazer escolhas e tomar decisões. Mesmo que ninguém mais saiba disso, a decisão nunca é neutra, pois poderá ter uma maior ou menor repercussão no rumo de 145 nossas vidas, ou no modo como iremos vivê-la. Talvez, por isso, chamemos essas situações de decisivas. É preciso escolher e decidir. A vida nos exige isso, e nós mesmos requeremos da vida esse gesto que tão bem caracteriza a nossa liberdade. E, para escolher e decidir, é preciso avaliar a situação, ponderar as conseqüências, observar e julgar os nossos próprios gestos... Mais ainda, é preciso saber o que desejamos para nós mesmos e para os outros, é preciso saber quais são os valores, as idéias que nos orientam, é preciso ouvir e aprender com os nossos próprios erros, é preciso aprender a aprender e a criar... para escolher e decidir, para construir para nós mesmos o sentido daquilo que chamamos viver, é preciso pensar. Talvez devêssemos, então, refletir sobre como vemos o mundo, e também sobre como pensamos... já que é o nosso próprio viver que está aqui envolvido. Porém não pensamos às vezes de modo confuso e repetitivo? Sabemos inventar o nosso próprio pensar? Retornemos, pois, ao princípio, para percebermos quando e como se torna significativo para cada um de nós, adultos e crianças, pensar em nossas próprias vidas, e pensar sobre o nosso pensar. Vivenciar as Questões Quem nunca parou para pensar em função das perguntas que um dia alguma criança lhe fez? E até que ponto nós mesmos, quando crianças, não paramos para observar o céu, o mar, um pequeno inseto? Quantas vezes nos admiramos com um fenômeno qualquer, achando-o estranho, chegando ao ponto de formularmos teorias a respeito, por mais 146 disparatadas que pudessem ser, a partir das perguntas que pudemos fazer na ocasião? Questionar é criar condições de avançar. Para fazer uma pergunta, precisamos pensar que há algo no qual ainda não pensamos, precisamos saber que não sabemos algo. E isso nos põe em condições de aprender. Para fazer uma pergunta filosófica, precisamos nos deixar mover por aquilo que há de mais profundo em nosso viver, para o qual sempre precisamos ter alguma posição em função das escolhas que fazemos, mesmo que essa posição possa e deva ser ultrapassada por nossa própria reflexão futura. Faz perguntas quem questiona a pretensa obviedade das coisas. Pois o “óbvio” é só aquilo em que paramos de pensar, ou repetimos sem pensar. Descobrimos assim a novidade em nosso próprio ser. Mas, para que se possa pensar com o prazer de quem realmente deseja saber, é preciso que essas questões nos toquem profundamente. A significação e a importância que damos a uma questão filosófica não se resume naquilo que é dito: elas devem ser vivenciadas. A Pergunta de Ula Consideremos uma questão: “Quem sou eu?” Será essa uma genuína questão filosófica? Em caso afirmativo, o que a faz ser filosófica? Será a mera formulação da pergunta? Ora, uma tal questão pode estar requerendo uma resposta do tipo: sou José, ou Sharon. E, mesmo que a intenção da pergunta fosse mais ampla, ela poderia ser assim compreendida. Aqui, a resposta 147 encerra a questão, elimina-a, enquanto questão, e não necessitamos pensar além daquilo que já sabemos ou da informação que receberemos. Poderíamos, no entanto, estar formulando a mesma pergunta – Quem sou eu? – e requerermos uma resposta mais ampla, assim como: sou professor de..., nasci em..., ou outra semelhante. Essa resposta, embora mais abrangente que a anterior, permanece, ainda, fechada. No entanto pudemos observar, nesse breve percurso, como a mesma questão – Quem sou eu? – adquiriu significações distintas. Seria um interessante caminho a trilhar, até mesmo para podermos observar, ao fim, que a mesma pergunta pode nos conduzir a algo mais... Consideremos, assim, a atitude de quem se olha em um espelho, de quem contempla e reflete o fundo de seu próprio olhar; consideremos o gesto que o faz reconhecer (e desconhecer!), com uma certa inquietude, a sua própria face. É possível que esse gesto, pela força de o envolver em uma relação profunda consigo mesmo, possa suscitar, provocar a questão acima prefigurada, ou outra semelhante. Nesse caso, embora pudéssemos formular a mesma questão, não será outra a sua significação? Mas o que a faz ser outra? O sentido da questão repercute, agora, na interioridade, e contém um certo silêncio de fundo e uma amplitude muito maior. Não me refiro a que olhar no espelho seja o único ponto de partida para o estabelecimento de uma dimensão filosófica à questão que nos serviu de exemplo; mas que esse gesto indica uma atitude, desde a qual se abrem múltiplos caminhos. E já que uma vivência ocorre na interioridade de cada um, não é possível “aplicá-la”, mas apenas sugeri-la. E não há como fazer isso se 148 você também não estiver buscando as suas próprias vivências. Entretanto, muitas vezes são as crianças, e não nós, professores, que sugerimos as vivências. Por isso mesmo, trata-se de filosofar com elas, e não de ensinar História da Filosofia para elas, embora o exercício do filosofar potencialize as condições de acesso à mesma. Vamos descobrindo o filosofar conforme exercitamos essa atitude, e isso se torna ainda mais dinâmico se, nesse gesto, descobrimos e inventamos o prazer de pensar. Filosofar é algo como brincar por dentro, com as próprias idéias. E brincar é realmente algo muito “sério”, as crianças bem o sabem, e também poderemos aprender isso com elas. Mas não basta vivenciar, é preciso expressar a vivência, pois é através da linguagem que conferimos sentido ao viver. E se a pergunta é uma forma primordial de expressão, e abre um caminho para pensar, por que não pensarmos juntos sobre as nossas perguntas fundamentais? Das perguntas passaremos, então, às idéias que nos movem. E, se são perguntas fundamentais, poderemos construir idéias também fundamentais. A partir disso, talvez se compreenda por que Ula faz tantas perguntas. Quem pergunta descobre algo em que ainda não pensou, e deseja saber. E o filósofo é aquele que é amigo do saber, que aspira a ele, embora nunca o tenha completamente, pois é humano, e nesse gesto se reconhece em sua própria humanidade. Observe como as múltiplas perguntas de Ula e de seus amigos partem e conduzem a vivências, e convidam a pensar, a se admirar e desconstruir o “óbvio” em nosso olhar. É preciso, portanto, ler as entrelinhas do texto e das imagens, onde Ula apresenta um caminho em que muitas leituras são possíveis. Você poderá partilhar desse caminho para descobrir o seu, assim como cada criança. 149 Brincando de Pensar Utilizar Ula em sala de aula, ou mesmo em sua própria casa, pode ser muito prazeroso se você permitir que as crianças possam também lhe ensinar, e se você puder ler as histórias interagindo com experiências que possam despertar, nas crianças, assim como em você mesmo, a admiração frente aos acontecimentos do cotidiano, admiração que faz da experiência do pensar o sempre possível encontro com o inusitado, com a novidade do próprio pensar. Por isso, “brincar de pensar” é algo que tem a ver com o prazer, com a curiosidade, com a invenção, com a infância das crianças e com a infância que guardamos em nós mesmos, com o nascimento sempre renovado do nosso próprio pensar. As vivências e as perguntas de Ula pretendem estimular as crianças a elaborarem as suas próprias questões. Pois não se trata aqui de perguntar apenas por perguntar, mas sim de fazer com que cada um possa sentir, intimamente, a profundidade e a permanente novidade dos problemas que sempre provocaram os seres humanos a pensar e a dar uma direção às suas próprias vidas. E, se podemos ler o texto com as crianças, criando e recriando situações concretas em que as vivências possam se produzir como, por exemplo, olhando no fundo dos olhos dos colegas, ou observando a natureza, então já temos um ótimo ponto de partida, pois as vivências geram questionamentos significativos. Claro que algumas experiências poderão ser significativas para algumas crianças ou adultos, e para outros não. É preciso então 150 multiplicar caminhos, inventar alternativas, pôr-se a si mesmo em busca e em pesquisa de situações que possam provocar o pensamento a ir além de si mesmo, fazendo-se, então, novas questões, ou dando um sentido mais abrangente a questões que já havíamos antes formulado. Mas também o nosso dia-a-dia, assim como o das crianças, sobre o qual podemos saber em suas narrativas, são repletos de situações para pensar. Ouvindo as crianças, poderemos saber de vivências que ocorreram espontaneamente, e partir delas. No entanto é importante que os outros também possam partilhar destas vivências, cada um ao seu modo, e isso pode requerer uma atividade específica. A memória de nossas infâncias, assim como uma postura assumida frente ao viver, poderá nos auxiliar nisso. Depende apenas da disposição do nosso olhar, isto é, da sensibilidade de nossa escuta, de todo o nosso ser, para que possamos captar aquilo que, mesmo em sua simplicidade, dá a pensar. Aquilo em que geralmente não prestamos atenção, uma pequena planta que cresce em meio às pedras, a chuva que chega de repente, o céu azulado ou nebuloso, nosso corpo, nossas mãos, pedras de formatos e cores variadas, formigas que traçam um caminho, o mar que se perde no horizonte, aquilo que julgamos ser simples e corriqueiro, pode nos conduzir a possibilidades não imaginadas. É preciso ser “curioso” junto com as crianças para encontrar o silêncio das coisas. E o silêncio começa quando, por fim, rompemos a repetição mecânica e sondamos os limites do nosso conhecer e do nosso dizer. As possibilidades são infinitas, e são tão diversas e inusitadas quanto as próprias pessoas, cada uma única e insubstituível. Mas, se nos dispomos a aprender o prazer de pensar por podermos nos admirar com nossas próprias existências, se nos dispomos 151 a criar situações vivenciais para nós mesmos para que possamos propôlas aos outros, então já assumimos, de algum modo, ou melhor, do nosso próprio modo, uma postura filosófica frente ao nosso viver. E é essa postura que nos cumpre assumir. E o que somos, o que fazemos, o como pensamos e agimos é sempre o princípio do “deixar o outro aprender”. Pois, mais que ensinar, trata-se sempre de convidar o outro a aprender, e a aprender a aprender, do seu próprio modo, na sua diferença, fazendo o papel daquele que estimula e requer do outro que ele possa ultrapassar a si mesmo. Talvez possamos compreender, neste gesto, que novas relações entre nós, professores, e as crianças, e entre elas, deverão surgir, desde que elas possam se sentir livres para pensar. E deveremos então aprender a lidar com o fato de que nos surpreenderemos com as crianças. Isso poderá exigir que ultrapassemos a nós mesmos, pois nesse movimento é bem provável que venhamos a nos surpreender com nossos próprios pensamentos. Dessa forma, poderemos dialogar com elas e, para tanto, precisamos aprender a escutar, pois são as questões das crianças (assim como as nossas, mas as delas preferencialmente) o ponto de partida de uma relação na qual importa estimular o gesto de pensar sobre o próprio pensar, e de construir assim a diferença e a criatividade do pensar. Das Histórias à Vida Em geral, as próprias histórias sugerem atividades a serem realizadas, como é o caso, por exemplo, do teatro de sombras, em A caverna, ou do relato daquilo que se acha “estranho” no mundo, em Estranho e curioso, ou do olhar no fundo dos próprios olhos, em A 152 pergunta de Ula. Algumas vezes as atividades são sugeridas no próprio texto. No entanto os professores têm criado diversas alternativas nas escolas. Por exemplo, relativamente à primeira história, foi utilizada a técnica da “caixa de sapato” – que consiste em colocar um espelho no fundo de uma caixa de sapatos para, então, anunciar que ali há algo muito importante –, dentre muitas outras, como desenhar-se na frente de um espelho. Outra proposta foi a brincadeira das crianças se verem nas pupilas dos olhos do colega até que pudessem, inclusive por indicação do professor, perceber que eram vistos pelo outro e que pudessem contemplar profundamente o olhar (e não apenas os olhos) do outro. Também foi proposto brincar na frente de um espelho grande, perguntando o que a criança estaria vendo e onde é que ela estaria: “É você quem vê o espelho ou é o espelho que vê você? Qual é você, o que está na frente ou o que está ‘dentro’ do espelho?” Múltiplas possibilidades de atividades foram e podem ser criadas, e isso considerando apenas a primeira história, a qual nos serviu de exemplo. Reproduzir teatralmente as histórias, ou alguma delas, é sempre uma outra opção interessante. Nesses casos, é fundamental dar o tempo suficiente para que um olhar mais profundo possa se produzir, visto que a vivência é um evento interior que demanda um envolvimento e uma mudança de olhar sobre a situação apresentada. Por isso, a própria atividade, a técnica utilizada não é a vivência, mas a propõe. De uma única história, poderão se produzir atividades distintas, com relação a diferentes passagens, seja com relação ao texto ou à imagem, ou entre ambos, o que poderá dar lugar a diversos debates. Isso poderá depender das diferentes leituras que as crianças, ou nós mesmos, pudermos realizar. Recordo do relato de uma professora a qual disse 153 que, a partir da leitura da história A pergunta de Ula as crianças se interessaram em saber o que é o “silêncio” (pois Ula estava em silêncio ao retornar para casa, e não sabia como dizer o que pensava). Após uma breve atividade, que consistia em todos ficarem em silêncio para poderem, então, pensar sobre o silêncio, uma criança disse: “não dá pra ficar em silêncio porque os nossos pensamentos ainda estão “falando”. Questionadas sobre se era possível silenciar o pensamento, as crianças, então, após tentarem realizar este gesto (sendo também estimuladas para tanto), resolveram que não. Nesse momento, uma criança estabeleceu uma nova idéia: “o silêncio era como uma folha de árvore parada, caída no chão”. E a metáfora indicava que o silêncio poderia existir apenas fora de nós mesmos. Havia aqui algo muito profundo e intrigante para pensar. Mas a experiência foi significativa para pensar não só em algo que ainda não havia sido pensado, mas também por exercitar um modo de pensar que ainda não havia sido experimentado. Se, frente ao problema de saber o que é o “silêncio” ninguém soube dar uma resposta conclusiva, pôde-se avançar na compreensão do próprio problema enquanto problema filosófico. Mas ao se darem conta do que não sabiam e não podiam dizer, quem sabe não estaria aí mesma criada a situação em que as crianças poderiam encontrar o silêncio? A essa conclusão talvez pudessem chegar mais tarde, após retomarem o tema em outro contexto, ou ainda criar novas alternativas. Os problemas e as idéias filosóficas exigem um processo e um tempo de maturação. Mais que técnicas, é preciso compreender o caminho que estamos trilhando, pois, assim como na vida, educar é um gesto que requer uma permanente invenção. Em cada criança, a cada dia, em nós 154 mesmos, em tudo o que nos cerca, em nosso viver, há sempre novidade. E é a novidade que nos dá motivos para prosseguir. Provocar o Pensamento Quanto a uma modalidade de atividade relacionada aos sentidos, ofereço aqui algumas sugestões: 1) Quanto à audição: ouvir música de diferentes épocas e estilos: popular, instrumental, etc., e relacioná-las entre si, assim como com o tempo e contexto em que foram criadas, dentre outras possibilidades; distinguir notas, timbres e efeitos musicais dentro de uma composição (o que pode derivar para diversos caminhos como, por exemplo, pensar sobre a função de cada parte em um conjunto, ou sobre o conceito de harmonia, ou complexidade, dentre outros); ouvir sons da natureza, distinguir sons em um ambiente, escutar músicas e relacionar estes sons entre si; inventar músicas que falem de algum acontecimento sobre o qual se deseje refletir; criar instrumentos musicais testando diversas possibilidades acústicas; falar sobre as músicas e sons que se gosta ou não de ouvir; exercitar a memória auditiva brincando de identificar as vozes dos amigos, com os olhos fechados, ou dirigindo a atenção à “voz” do seu pensamento, ou recordando músicas e sons com o pensamento, para pensar sobre o que se ouve, ou sobre o como se ouve, ou o que é ouvir, etc. 155 2) Quanto ao tato: brincar de identificar de quem são um determinado rosto ou mãos, de olhos fechados, ou brincar de identificar, apenas com as mãos, objetos escondidos em uma sacola pensando, por exemplo, em como podemos nos enganar ou o que fazemos para acertar. Ou, ainda, sobre o que podemos saber pelo tato e o que podemos saber de outros modos, e até mesmo se temos sentidos para podermos sentir tudo o que existe, dentre tantas outras possibilidades; identificar texturas, relacionando-as com características dos objetos; dar as mãos, sentindo-as intensa e carinhosamente; abraçar o colega e derivar, talvez, para a problematização da amizade, ou ainda outra, como a de pensar sobre se podemos saber o que o outro sentiu; massagear os ombros do colega e perguntar o que ele sentiu, se gostou ou não, dentre outras possibilidades; tocar, com carinho, nas plantas e nos animais; brincar com argila, criando e recriando formas; pisar na grama, na terra, na areia, com os pés no chão, e sentir o próprio corpo ao sentir o que se toca; falar sobre o que gosta e o que não gosta de tocar, etc. 3) Quanto ao paladar: diferenciar nuanças de sabores, degustar novos sabores e comer lentamente, buscando pensar na relação entre o que somos e o que comemos, ou entre saúde e alimentação, etc.; relacionar odores e sabores, conversar sobre o que se gosta e o que não se gosta de comer e procurar saber se alguém aprendeu a gostar de algo que não gostava antes, ou por que alguns gostam de certos alimentos e outros não, dentre outras alternativas; contar 156 histórias sobre algum dia em que comeu algo diferente, e buscar saber de alimentos diferentes de outros povos e do que outras pessoas gostam de comer, procurando pensar, por exemplo, nas diferenças entre as pessoas; recordar um determinado sabor, buscando saber, talvez, o que pode e o que não pode o nosso pensamento, etc. 4) Quanto ao olfato: diferenciar perfumes, sentir o cheiro da terra após a chuva, ou o cheiro do mato, ou mesmo odores desagradáveis, e descrever o que se sente com isso, ou pensar nas relações entre o que se sente cheirando e o que se vê, ou se toca, etc.; sentir novos odores e buscar saber, por exemplo, se há alguns que nunca poderemos saber, ou por que temos preferências distintas, etc.; recordar cheiros e relacioná-los com acontecimentos: “O que esse cheiro faz lembrar?”; relacioná-los com o meio ambiente, etc. 5) Quanto à visão: observar e descrever detalhes em objetos, cenas ou situações; criar jogos de observação; contar histórias que estimulem a visualização mental de cenas, objetos ou situações; narrar acontecimentos diversos que tenham sido significativos; imaginar acontecimentos e narrá-los; chamar a atenção para coisas pequenas; despertar a atenção para a complexidade de coisas aparentemente simples; observar a unidade de coisas aparentemente complexas; observar e descrever paisagens, objetos, plantas, animais, relações, acontecimentos, pessoas, lugares, obras de arte, estimulando a percepção estética, etc.; contemplar as flores, as sementes, os frutos, as plantas, os animais, etc., e estabelecer relações; observar os 157 animais e seu comportamento e relacioná-los, por exemplo, com o comportamento dos seres humanos, ou, por outro caminho, buscar saber como eles vivem e se relacionam em um ecossistema, etc.; contemplar, pintar e desenhar paisagens; observar a natureza; observar e descrever objetos complexos; desenhar o próprio rosto em um espelho, ou o rosto de um colega; observar e registrar as diferenças entre as pessoas, bem como as suas semelhanças; observar as expressões faciais de adultos e de crianças e relacioná-las a emoções e pensamentos, por exemplo; observar formas e padrões, buscando criar outros, diversos; exercitar a “visão do pensamento” e desenhar, pintar, modelar ou esculpir o que se vê com o pensamento, etc. Relacionadas ao exercício da criatividade e da concentração, na medida em que possibilitam ampliar a potência do pensar, eis as sugestões: estimular a atenção em processos com certa duração no tempo; proporcionar estímulos sucessivos, a partir de um ato de atenção, possibilitando estabelecer relações entre eventos que se sucedem; unir observação e descrição; estimular a utilização de brinquedos e a realização de brincadeiras que ofereçam desafios e que exercitem a imaginação criativa (o brincar conjuga a concentração e a imaginação, uma atividade pré-simbólica e um envolvimento determinado com a temporalidade); inventar símbolos; estimular a atividade artística; propor brincadeiras que envolvam uma certa seqüência de eventos: teatro, jogos, qualquer brincadeira que envolva uma história; inventar histórias e propor que inventem histórias (seja por escrito, seja oralmente – o que 158 pode ser feito, por exemplo, pedindo que fiquem de olhos fechados e contem o que está acontecendo em seus pensamentos, ou narrando uma história real, ou modificando uma já contada, ou criando-as a partir de um tema determinado, etc.); exercitar o relaxamento do corpo, buscando conhecer outros movimentos de seu corpo; exercitar a postura corporal; oportunizar conversas, mais ou menos longas, sobre um mesmo assunto, ou sobre assuntos que vão se sucedendo em uma ordem criada no próprio diálogo, fazendo e pedindo referências a temas que já foram abordados; solicitar a síntese ou resumo de uma história, acontecimento ou diálogo; solicitar ajuda em tarefas que envolvam um certo cuidado ou uma seqüência ordenada de ações; participar, juntos, professores e crianças, de brincadeiras, de desenhos, de jogos, de ações que envolvam delicadeza, observação, sutileza; propor jogos (ou problemas) que contenham desafios lógicos; demonstrar uma atitude, um exemplo de atenção e concentração, em contextos propícios, etc. Ao desenvolver estas atividades podem surgir, no entanto, questões de outra ordem, as quais podem também ser trabalhadas. Ao brincarmos juntos com a criança, podemos pedir e propor situações novas, alternativas para a própria brincadeira, ou, então, a invenção de novas formas de brincar, inclusive com um brinquedo (ou jogo) no qual já venha prescrito como brincar. Durante a brincadeira, poderemos criar situações que façam pensar, que oportunizem ver algo de um novo ponto de vista, ou propor desafios e a busca de soluções criativas. Podemos diversificar as formas de brincar e as próprias brincadeiras; diversificar os ambientes em que o brincar ocorre, etc. O envolvimento do adulto com o brincar da criança (por isso, brincar junto com ela) é condição para que uma relação de proximidade empática se produza para, a partir disso, transitar das proposições que fazemos de 159 novas brincadeira e novos modos de brincar a pedi-las à criança, sempre no momento e do modo oportuno. Este momento é aquele em que não se interrompe um prazer, mas se propõe um outro no final de um período de brincadeira. Acima foram apresentadas algumas sugestões, que podem ou não ser aplicadas. Nesses casos, a atividade é um ponto de partida, e é preciso que seja desenvolvida com a intenção de provocar o pensamento. Mas, como cada grupo é diferente e cada contexto exige novas soluções, poderemos, então, passar a criar as nossas próprias atividades. Deveremos ouvir e selecionar, junto com as crianças, as perguntas geradas para pensar com elas. Também poderemos, nós mesmos, ter algumas boas perguntas previamente preparadas para contribuir com o grupo, mas sempre dando prioridade às perguntas das crianças. Seus interesses poderão nos indicar um caminho, um programa de investigação. Ouvindo as crianças, cada um poderá criar o seu próprio estilo, o seu próprio modo de trabalhar em seu cotidiano e de dialogar com elas. Seja qual for a atividade proposta, deverão ser preparadas as condições para a criação de um clima propício à reflexão. O importante é que as atividades busquem dar a pensar, no sentido em que devam suscitar a possibilidade de um olhar de estranhamento ou admiração, isto é, o perceber que há algo mais que não se sabia, e que há algo em que ainda não pensamos, ou que podia ser pensado de modo diferente. Este ponto de partida é importante não só por estabelecer um significado ao problema em questão, (significado interiormente vivenciado e, deste modo, ligado às suas próprias vidas, motivando o interesse) gerando, desse modo, envolvimento com o mesmo, mas também por possibilitar a geração de perguntas reflexivas, criativas e abrangentes. 160 Para Filosofar Com Crianças Uma condição preliminar ao diálogo, conforme foi expresso acima, consiste na possibilidade de nós, professores, exercitarmos a nossa própria vivência com relação ao tema proposto. Poderemos, desta forma, propor novas situações para pensar. A partir disso, a elaboração escrita, o desenho, a leitura de textos relacionados ao tema (incluindo histórias, filmes, peças teatrais, músicas e outras possibilidades) poderão potencializar as condições de realização de uma investigação que se proponha a respeitar pontos de vista divergentes enquanto, ao mesmo tempo, busca alguns pontos de concordância a partir de onde todos possam prosseguir, mesmo que venham a reconsiderar estas idéias mais tarde. É, ainda, sempre interessante sugerirmos às crianças que dialoguem com outros adultos ou outras crianças fora do grupo em que atuam. A elaboração individual e a elaboração coletiva devem ser estabelecidas em momentos próprios, até mesmo porque, a partir da possibilidade de elaborarmos individualmente uma idéia poderemos contribuir mais efetivamente no trabalho de grupo (o trabalho em duplas, o que pode ser feito com crianças maiores, é também muito importante, pois há, nesse caso, a possibilidade de uma maior interação) e, por sua vez, a partir do momento em que o grupo problematize as idéias de cada um, todos terão idéias novas para refletir, possibilitando uma maior complexificação e coerência do próprio pensamento. Tendo a vivência como princípio, isso não significa que ela sirva apenas de um acessório para estimular a reflexão que se seguirá. Do mesmo modo, a atividade que pretende provocar a vivência não é 161 simplesmente um momento lúdico de preparação psicológica e não se limita, por outro lado, à estimulação exclusivamente lógico-racional. A atividade não se confunde com a própria vivência, mas pretenderá suscitá-la. Considera-se, com isso, o aprendizado a partir da integralidade de cada um e de suas diferenças. A vivência requer sensibilidade. E ela sustenta todo o processo na medida em que possibilita a internalização do problema em sua dimensão filosófica, preparando as condições de sua significação, dando motivos para pensar que remontam às nossas próprias vidas, à nossa existência concreta. E é sobre o nosso viver que cumpre sempre de novo pensar. Por isso, poderemos, em determinado momento da elaboração individual, ou do diálogo em grupo, retomar este movimento, propondo novas vivências, ou estando atentos ao que as crianças poderão sugerir, a partir de seus relatos e intervenções, como situações potencialmente vivenciais. O retorno aos motivos expressos na vivência inicial poderá, também, ser importante para que se possa manter uma unidade, no debate, através da referência a este ponto comum. Nesse processo podemos sempre intervir com questões, observações, comentários que levem as crianças a estabelecer novas relações, esclarecer aquilo que estão dizendo (ao esclarecer para os outros estarão esclarecendo para si mesmas), buscar novos pontos de vista, escutar e interpretar as falas uns dos outros, tirar conseqüências do que é dito, reconstruir e organizar idéias, exercitar a criatividade e a capacidade de argumentação lógica, utilizar o bom senso e chegar a algumas conclusões, mesmo que provisórias. O “objetivo” a atingir está além do “conteúdo” tratado, e é o próprio ato de pensar sobre o pensar, e de pensar o novo, que deve ser considerado. Por outro lado, qualquer conteúdo só será “aprendido” se 162 for significativo. Sendo assim, podemos ter, no nosso programa de trabalho, ou currículo, uma abertura que poderá e deverá se somar às nossas intenções prévias. Os resultados a serem atingidos não estão nunca no papel ou no diário de classe, mas nas próprias crianças e em nós mesmos. Um tema ou problema que foi debatido pode se esgotar momentaneamente, e poderá dar lugar a um novo debate de idéias. Mas ele sempre poderá ser retomado em outro momento, após o enriquecimento ocorrido com o debate de outros temas, nos quais relações poderão ser estabelecidas. Assim, vai se formando uma rede, nas quais as idéias vão se tornando mais complexas, inclusive no modo como se ligam entre si; mais criativas, pois uma idéia vai exigindo uma nova idéia até surgir uma idéia diferente ainda não pensada; e mais coerentes. Obviamente, neste caso, as perguntas das crianças devem ser registradas. E as suas perguntas, como foi dito anteriormente, são o ponto de partida: ou para uma primeira expressão do vivenciado, o que pode ser feito por meio de imagens (desenhos, colagens, etc.), ou para um diálogo que deverá buscar, pela problematização, uma visão mais cuidadosa e crítica do problema considerado. Nesse caso, não se trata de problematizar apenas por problematizar, mas para que novas relações possam ser estabelecidas, para que se verifique os pressupostos das falas, para que a própria formulação das perguntas se tornem mais claras e para que se busque uma maior coerência entre as diversas falas que se vão produzindo. Uma técnica interessante, neste último caso, é o de pôr as crianças em relação umas com as outras, a fim de que troquem idéias, ficando o professor atento para intervir quando julgar que possa contribuir para uma maior consistência da argumentação, ou para 163 apresentar outros aspectos da questão que até então não haviam sido considerados. Pedir exemplos e exemplos contrários, que possam tornar o tema mais complexo e abrangente, também pode ser produtivo. A disposição em círculo pode facilitar o diálogo. Gravar as falas das crianças poderá tanto ser útil para podermos retomar com elas a discussão quanto para registro pessoal. Registrar os encontros após a sua ocorrência também poderá nos ajudar a pensar sobre como prosseguir, ou nos fazer observar acontecimentos nos quais não havíamos prestado atenção e que podem ser significativos. Quando um assunto não é concluído em uma aula, retomaremos o mesmo, para que não se perca, no primeiro encontro que ocorrer, quando poderemos destacar, então, os pontos principais que ficaram para o debate. Uma técnica que pode ser útil ao lidarmos com tantas idéias que vão surgindo é a de construirmos uma “rede de idéias”, seja no quadro-negro, seja em papel pardo ou em outro lugar, mas de modo a ficar bem visível a todos. Podemos registrar ao centro a idéia que é o nosso ponto de partida para irmos traçando ligações entre esta idéia e outras que vão surgindo (podem ser palavras, frases, expressões ou até mesmo desenhos), e destas novas idéias com outras ainda, e assim sucessivamente. É importante, no entanto, nesse caso em que o professor registra as idéias na “rede”, que o debate não seja interrompido para que ela seja construída. Também podemos ir elaborando a rede em nosso caderno de apontamentos para, mais tarde, ou no encontro seguinte, apresentá-lo à turma. A vantagem de construir a “rede” enquanto o diálogo está ocorrendo é que todos poderão perceber a evolução do pensamento e como as idéias de uns vão se relacionando com as idéias dos outros. Podemos também pedir que as próprias crianças construam a “rede” em pequenos grupos, ou mesmo no grande grupo quando o 164 número de crianças presentes assim o permitir. Procede-se do mesmo modo: partindo de uma idéia, vão se estabelecendo relações com outras, surgindo novas relações, e assim por diante. A “rede” é, por si só, uma espécie de texto. Com crianças menores, ou mesmo com as maiores, poderemos construir a “rede” utilizando imagens, e elas poderão ou recortar e colar figuras, ou desenhar, estabelecendo as conexões que vão tornando mais abrangente e complexa a idéia inicial, fazendo surgir ainda novas idéias para o debate. O desenvolvimento de habilidades lógico-cognitivas, mesmo não consistindo em um objetivo exclusivo, é fundamental e está associado ao processo. E, embora lógica e sensibilidade estejam sempre interligados, pois podemos ir de um a outro momento conforme o desenvolvimento dos trabalhos, momentos específicos podem e devem dar conta também deste aspecto. Nesse sentido, a seleção de jogos e de brincadeiras é muito importante, sendo que cada jogo ou brincadeira selecionados deverão estar relacionados ao desenvolvimento de habilidades cognitivas específicas como comparar, classificar, resumir, construir seqüências lógicas, verificar a aplicação de regras a situações específicas, criar analogias (transpor relações complexas ou abstratas para relações mais simples ou concretas), formular hipóteses, observar pressupostos, dar as razões e/ou estabelecer as conseqüências de uma idéia, chegar a conclusões a respeito de um tema, construir idéias gerais a partir de exemplos particulares, dentre outros. Por outro lado, é sempre muito importante que se busque uma maior precisão, uma maior clareza naquilo que se está dizendo (sendo que, desse modo, se passará também a exigir dos outros a mesma precisão e clareza). O professor poderá sempre intervir nesse sentido. Nesse caso, é muito importante partir da própria fala da criança, e não 165 exigir clareza total (até porque, no limite, isso não é possível), mas observar um processo gradativo no qual a relação de cada um com a linguagem vai se desenvolvendo. Pensar, falar e escrever estão diretamente relacionados, e a linguagem não é apenas um instrumento, mas a própria condição de nosso pensar. No limite, talvez possamos criar palavras (metáforas, metonímias, neologismos, etc.) e expressões para podermos dizer aquilo que nenhuma outra palavra ou expressão pôde dar conta suficientemente. Nesse caso, trata-se de as criarmos para podermos dizer algo realmente importante para nós mesmos. Mas, então, é preciso que argumentemos em torno do que criamos para que os outros também nos possam compreender. Acabamos assim esclarecendo a nós mesmos. Nesse movimento, pode ser que, por aprendermos a escutar profundamente o outro, desde o silêncio de sua vivência refletida em nossa própria vivência, possamos nos surpreender com as suas e com as nossas próprias idéias. A construção do sentido de nossas próprias vidas exige um esforço. E é sempre no enfrentamento e na superação dos nossos limites que reconhecemos a nossa própria potência de ser. Aumentar nossas potências para conquistar a alegria e o sentido do viver requer que nos habilitemos a tanto. E o prazer de inventar e reinventar o nosso próprio prazer, o trabalho interior continuado que nos diz, a cada dia, que há um sentido a ser produzido por nós mesmos, a escuta profunda do outro, a invenção de nossas próprias diferenças e o retorno sempre renovado ao silêncio de nosso viver são objetivos que alcançamos gradativamente a partir da leitura reflexiva do mundo e de nossas próprias existências. E se os encontros se tornam, assim, oficinas de criação de idéias, e se as idéias que surgem coletivamente podem contribuir para 166 que cada um possa construir as suas, logo, não se trata de construir um caminho para que, ao final, prevaleça a posição do professor. Trata-se de estimular que cada um possa criar as suas idéias e exigir de si mesmo a coerência das suas próprias concepções, que saiba dar as razões das mesmas e aprenda a reconstrui-las quando julgar necessário, e, além disso, que saiba também buscar novos pontos de vista e novas questões que o façam avançar. Em Ula, e a partir de Ula, é a leitura de nossas próprias vidas que se põe em questão, é a possibilidade de repensarmos as nossas próprias existências assumindo a possibilidade de continuamente reinventarmos o nosso próprio prazer. A Prática do Diálogo Filosófico Com Crianças Talvez, então, nos perguntemos se há alguma “técnica” para que possamos realizar um diálogo filosófico. Ora, não podemos uniformizar procedimentos, pois há um modo específico como cada um de nós aprende a se situar em um diálogo. Em termos gerais, um diálogo se processa pela interação entre perguntas e respostas, visando ainda comunicar pontos de vista distintos. Mas há muitos modos de perguntar e de responder. Assim sendo, como responder, perguntar ou expressar um ponto de vista de modo a alimentar a discussão? Como responder de modo a suscitar uma postura reflexiva e criativa? 1) Quando respondemos com afirmações, devemos deixar claro de que se trata de nosso ponto de vista parcial, 167 observando novas questões que se colocam a partir desse posicionamento. Podemos, também, apresentar conjuntamente pontos de vista distintos dos nossos, possibilitando uma comparação de idéias; 2) Quando respondemos com informações, podemos lançar também questionamentos sobre pontos ainda não pensados; ou ainda mostrar como se chegou àquela idéia, e que há ainda mais para saber; 3) Quando respondemos com novas perguntas, poderemos alargar o horizonte do problema; 4) Quando respondemos de modo a fazermos com que aquele que pergunta compreenda melhor o sentido da sua própria pergunta, propondo que lhe dê outra formulação ou comente a respeito da sua compreensão dos termos envolvidos, então, estaremos propondo que organize a sua própria fala ou que volte a pensar na e a partir da própria vivência na qual se funda a questão; 5) Quando respondemos com um exemplo, ou analogia, propomos a retomada do próprio problema ao buscar tornálo mais compreensível; 6) Quando respondemos observando que há um subproblema a ser considerado, abrimos a possibilidade de uma digressão, caso em que é preciso ter cuidado para que se possa retornar ao tema anterior da discussão. Nesse caso, é interessante retornar, passo a passo, ao ponto de partida da própria digressão para que se oberve não só os motivos que 168 conduziram à mesma, mas também a ordem na qual as idéias foram desenvolvidas; 7) Quando respondemos com um exemplo contrário, então propiciamos que o problema possa (talvez) ser considerado sobre um novo ponto de vista; 8) Quando respondemos estabelecendo novas relações, possibilitamos ampliar e complexificar o problema; 9) Quando respondemos dizendo que também não sabemos e que podemos investigar juntos, então, deixamos algo para pensar; 10) Quando criamos o nosso próprio modo de responder, aprendemos a pensar. E quando perguntamos? O importante é que a pergunta ajude a pensar. Devemos, pois, formular a questão a partir da compreensão do outro, do seu vocabulário, das suas experiências, do seu modo de falar se possível. Para tanto, podemos previamente sondar a sua compreensão do problema. Mas, ao fazer isso, acabamos por aprender, porque, ao elaborarmos a pergunta buscando o ponto de vista do outro, pode ser que deixemos mais claro para nós mesmos o problema. Assim, quando fazemos uma pergunta, exercitamos a nossa própria reflexão. Podemos, então, perguntar: 1) Propondo novos aspectos do problema; 2) Observando dificuldades ou insuficiências na argumentação, os limites e as contradições internas de certas idéias, ou a incompatibilidade entre idéias distintas; 169 3) Pedindo esclarecimento das idéias; 4) Solicitando a justificação de determinadas afirmações; 5) Requerendo a observação das conseqüências de certas idéias; 6) Considerando a relação do problema tratado com outros problemas; 7) Pedindo exemplos e exemplos contrários; 8) Requerendo que uma criança interprete a fala de uma outra quando isso se fizer necessário; 9) Solicitando novas perguntas sobre aspectos ainda não considerados do problema, o que pode ser feito a partir de uma das falas das crianças; 10) Criando novas funções às perguntas que fazemos. Nesse processo, a ampliação do vocabulário, dos recursos de expressão e a criação linguística são importantes ao próprio exercício da reflexão filosófica. O ponto de partida para isso é sempre o universo já conhecido, o vocabulário em uso, e a forma de falar corrente. Aquele que aprende a língua com a qual se expressa deve sentir necessidade disso para melhor poder expressar o seu pensamento ao ser convidado, no diálogo, a fazê-lo, ou por uma motivação interior. Propiciamos uma motivação interna ao aprendizado da língua ao estimular na criança a vontade de expressar as suas próprias idéias. Assim, o fato de “aprender uma língua” deve ser acompanhado da possibilidade de utilizá-la de modo criativo. Nesse sentido, a auto-estima, refletida na valorização dos próprios pensamentos, é fundamental. Talvez devêssemos nós, adultos, refletir sobre como e o quanto valorizamos as idéias e questões das 170 crianças, bem como sobre o quanto isso as afeta no modo como elas percebem a si mesmas. Na criação linguística, não aprendemos apenas a lidar com a própria língua, mas a modificá-la e a ampliá-la. Isso poderá ser estimulado por meio da poesia, ou da arte em geral, ou pelo retorno reflexivo à vivência, dentre outras possibilidades. Uma criação lingüística pode tanto ser a invenção de um termo ou de uma metáfora, como, ainda, a “ressignificação” de um termo ou expressão já em voga. Um exemplo disso pode ser dado se nos dispusermos a dar o nome ao sentimento que temos quando não sabemos como dizer o que pensamos (podemos nos “aproximar” deste sentimento com muitas expressões correntes, e, quem sabe, nenhuma delas diga adequadamente o que sentimos em sua especificidade), ou ainda o nome para aquele olhar no fundo dos olhos de outrem, sabendo-se visto por ele. Observe-se, ainda, como no campo do conhecimento científico sempre surge a necessidade de criação de novos termos e expressões que objetivam dar conta de novos conhecimentos e da formulação de novas teorias. No limite, a criação lingüística ocorre quando tentamos dizer algo novo de um novo modo e quando criamos o nosso próprio estilo de expressão. Gostaria de citar mais um exemplo para poder elucidar a questão aqui tratada: a partir de atividades que objetivavam suscitar uma reflexão sobre o ato de pensar, Rúbia (9 anos) elaborou a metáfora “pensamento intocável”. Quando solicitada para que tornasse mais claro seu pensamento, ela se referiu ao significado do mesmo a partir do seguinte problema: “se penso em uma palavra como, por exemplo, Guaíba (o nome de uma cidade do RS), penso em ‘doce’; se penso em outra como, por exemplo, Sapucaia (outra cidade), penso em ‘salgado’. Mas, por que eu ligo estas palavras entre si? Eu as ligo em meu 171 pensamento, mas não sei o porquê... chamo, então, de ‘pensamento intocável’ este meu modo de pensar que eu mesma não sei”. Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas penso que o exemplo mais importante será aquele que cada professor puder observar, em seu cotidiano, junto às crianças. Observemos, portanto, a importância e a complexidade do gesto, pois a construção de conceitos conjuga a vivência, a metáfora, a imagem, a ação, a emoção, o diálogo e a argumentação, dentre outros processos cognitivos. Criar linguagem e criar pensamento é também criar ação. Somos o que fazemos e o que pensamos. Desse modo, ética, política e educação estão sempre associadas. Pensando Com Ula O livro Ula – Brincando de pensar principia pelo autoconhecimento e percorre muitos outros temas, como a liberdade, o tempo, a linguagem, a amizade, e tantos outros. A cada leitura pode ser que novos motivos possam ser de novo descobertos, sejam eles relativos ao texto ou às imagens, pois em cada história há sempre múltiplas sugestões, explícitas e implícitas, para pensar. O prazer de ler as histórias está também na observação destes motivos, e não pode ser substituído por nenhum comentário que possa ser feito sobre cada história. Convido-lhe, assim, a brincar de pensar junto com as crianças. Talvez, no exercício do filosofar com elas, possamos exercitar nosso olhar de admiração frente à realidade. Pois filosofar é um modo de viver e de considerar, em nossos pensamentos e ações, o sentido do humano 172 que há em cada um e em todos nós. Filosofar é construir, desconstruir e reconstruir sentidos. E como brincar de pensar sem que nos deixemos envolver com o desafio de, a cada dia, conquistar de novo o sentido de nossas vidas? Bibliografia GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Volume I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. PESSOA, Fernando. Guardador de Rebanhos. In: Poemas Escolhidos. SP: Klick, 1997. 173 PROLEGÔMENOS AO TEMA ENSINO DE FILOSOFIA NA EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL NO BRASIL Leoni Maria Padilha Henning∗ Introdução Como contribuição ao desenvolvimento deste tema enfrentado aqui pelos demais colegas, gostaria de apresentar o que chamei de “prolegômenos” ao tema em discussão, uma vez que passo a discutir idéias introdutórias ao “ensino de filosofia na educação fundamental no Brasil”, as quais poderão resultar numa abordagem complementar mas, penso, necessária à compreensão do que tem sido falado a respeito de “filosofia para crianças” em nosso país. Iniciarei a exposição deste tema anunciando um dos recursos que a filosofia oferece como contribuição à educação - dentre as suas demais tarefas analíticas, compreensivas e explicativas da realidade, quais sejam, aquelas relativas à análise, interpretação, à reflexão e à crítica - que é, no caso específico, o seu trabalho de análise da linguagem educacional. Assim, com respeito ao tema em discussão, percebemos que se trata de “ensino de”. E como tal, verificamos a importância que a Professora da Universidade Estadual de Londrina. Endereço eletrônico: [email protected] 174 partícula “de” ocupa, nos esclarecendo que o ensino aqui, se configura como uma atividade específica de algo e realizada por um agente. Nesse caso, se trata então de ações de alguém que intenciona ensinar “filosofia”. Vemos pois, que se trata de uma atividade intencional de ensinar “algo” a alguém. Trata-se ainda, de uma ação transitiva cujo remetente de uma mensagem específica aponta para um destinatário sem o qual a interlocução não se sustenta e a atividade como tal pode deixar de existir. Não há, pois, ensino, se não há aquele que se coloca como “receptor” dos enunciados enviados por um agente que enuncia algo, havendo, no entanto, bem e mal sucedidas investidas ao se ensinar este algo a alguém. Vimos já que no caso em discussão, trata-se de enunciados filosóficos. Ou, de maneira mais progressiva, poderemos questionar o uso corrente que se faz da palavra “ensinar” podendo então, se tratar de um diálogo filosófico entre duas pessoas, minimamente. Mesmo assim, quando falamos de ensino, parece-nos que se fortalece, no caso, a intencionalidade daquele que toma a iniciativa de encetar quer seja o diálogo, quer seja o exercício estimulador do desejo ou do interesse de aprender em alguém. E nesse caso, de um lado encontramos um agente que se decide por professar temas ou assuntos que versam sobre filosofia ou, simplesmente, desencadear uma ambientação de conversação dialogal ou de investigação, possibilitando as condições necessárias a um tipo de trabalho intelectual cujas especificidades correspondem ao que se chama de filosofia. Trata-se, pois, do professor de filosofia. Do outro lado, há a(s) outra(s) pessoa(s) que se envolve(m) num processo de aprendizagem, o(s) aluno(s). Este elemento da relação, por se sentir atraído pela perspectiva filosófica, acorda quanto à sua 175 participação e quanto ao desenvolvimento das atividades que estarão em curso no trabalho da disciplina. Até aqui percebemos que, “ensino de filosofia” refere-se a uma atividade intencional de um professor que pretende atingir o seu interlocutor possibilitando-lhe a aprendizagem sobre assuntos que versam sobre a disciplina de filosofia. Ao nos referirmos ainda, à “educação fundamental no Brasil”, verificamos que se trata de uma atividade formal de ensino que, sendo intencional, estaria circunscrita às atividades de formação humana numa sociedade que se utiliza de todo um arsenal educativo nas instalações de suas instituições – formais de ensino, como também aquelas de caráter informal e não formal – planejando, mais especificamente nas do primeiro caso, as atividades e elaborando as condições para o seu funcionamento e concretização de seus objetivos, na tentativa de preservar as suas realizações e projetar-se na trilha da continuidade de suas experiências. Ao nos referirmos ao “ensino de filosofia na educação fundamental no Brasil”, estamos nos reportando ao ensino de uma disciplina intencionalmente determinada a garantir alguns ensinamentos específicos a alguém cujas ações seriam encetadas por um profissional minimamente habilitado ao exercício de sua profissão de professor de filosofia. Mas, até aqui temos o agente da ação de ensinar – o professor -; o conteúdo de ensino – filosofia; e o lado visado pela ação intencional comunicativa do professor – o aluno, o ouvinte, ou o co-participante ou estudante interessado em filosofia. De modo que, sempre se ensina algo a alguém, cuja relação triádica deve garantir aos fatores constituintes, os quais nem sempre estão claramente explicitados, uma igual participação, importância e respeito, resguardadas as suas especificidades. De 176 qualquer maneira, os três elementos devem estar presentes com seus papéis e propósitos determinados a fim de que não acabemos por misturar papéis de modo a confundirmos responsabilidades, e por não atribuirmos a designação de filosofia à atividades descomprometidas com as reais características e funções que esta disciplina vem assumindo para si. O ensino, presente nas instituições educativas que intencionalmente se põem a ensinar algo na busca da realização de um fim, deve ser entendido como uma atividade que requer um grau de profissionalismo inquestionável. O professor, nesse sentido, seria o agente responsável instaurador do processo educativo, apresentando-se comprometido inteiramente com tais intenções, objetivos e finalidades, justamente por ter sido preparado para o exercício desta profissão. Aqui já constatamos algumas dificuldades: O professor tem sempre consciência dessas intencionalidades que em princípio seriam guiadas pelas suas crenças e convicções, pelos objetivos traçados pela instituição da qual faz parte e que por sua vez, se alimenta da cosmovisão da sociedade no seu conjunto? Quais os controles que o professor teria sobre tudo isso? Qual a sua compreensão acerca de seu papel educativo? Vemos então que a educação formalizada, sendo uma prática social, intencionalmente organiza respostas ao contexto onde se insere, formula ações, dita regras propondo um rol de atividades e conhecimentos para tornar viável a solução dos problemas encontrados, a superação do que é misterioso e incompreensível e a progressão de iniciativas em prol do funcionamento vital da cultura e da sociedade. Enquanto não-intencional a educação apresenta-se a nível da pragmática humana mas enquanto intencional, ela precisa de uma pedagogia. São as 177 diretrizes pedagógicas emanadas do conjunto das mais diversas ciências – humanas, biológicas e sociais – e da filosofia, como também das artes, que indicarão ao profissional da educação o quê fazer, o como fazer, para onde seguir. É evidente que as áreas de conhecimentos que possibilitam à pedagogia a elaboração da síntese sobre a educação ou a teoria educacional, saem deste arcabouço teórico pedagógico para se nutrir dos conhecimentos necessários em sua fonte original científica, filosófica ou artística para voltar à pedagogia, trazendo as suas contribuições e insights a respeito dos fenômenos educacionais, num diálogo perene. É nesse arcabouço teórico que encontramos a presença da filosofia da educação, junto com suas demais parceiras como a psicologia da educação, a sociologia da educação, a biologia educacional, etc. Sem tais áreas acreditamos não ser possível uma pedagogia como também não seria possível uma efetiva ação educativa e intencional sem a mesma. Por outro lado, a independência das áreas, as quais permitem a síntese pedagógica, só deve existir segundo a exigência do compromisso constante e processual do entrar-sair no campo educacional como condição necessária para poder arrolar-se na esfera da educação com presteza e rigor. Desse modo, sabemos que ensinar, em si mesmo, não se constitui no todo da educação pois, educação implica também aprender, investigar, fazer, solucionar, criar e tantas outras possibilidades humanas muitas das quais nem sempre exigem as iniciativas de ensino de um professor como condição necessária e indispensável. Além disso, sabemos também, que há muitas ações que podem confundir-se com o “ensinar” como por exemplo, o domesticar, o dominar, o bestializar, o infantilizar, as quais poderiam ter, em tese, um mesmo ponto em 178 comum, a saber, a intencionalidade daquele que pratica tais ações destinando-as a alguém. Do mesmo modo, a “educação” pode nem sempre libertar ou formar consciência com autonomia de pensamento, mas paulatinamente pode implicar na instauração de erros e confusões nas mentes, fato já apontado por vários filósofos a exemplo de Bacon (1561-1626), Descartes (1596-1649) ou Hume (1711-1776). Ensinar, portanto, redunda tão somente numa intencionalidade de realização de propósitos que embora sejam planejados em vista de um fim, dependem em certa medida da contrapartida do outro elemento que ocupa uma posição altamente decisiva no sucesso ou não daquele que tenta ensinar-lhe algo. Este conteúdo e o modo de tratá-lo também, implicará na qualidade da experiência educativa. No caso do tema proposto, trata-se do “conteúdo filosófico” ensinado à “crianças e adolescentes” por um professor habilitado a exercer tais atividades. Desse modo, em se tratando de “ensino de filosofia” já entendemos que o êxito da empresa educativa nem sempre ocorre, pois há os que não aprendem ou não se interessam devido os mais variados motivos. A realização da efetiva aprendizagem é um importante fator denotativo, mesmo que não seja o único, sobre os traços característicos do contexto em discussão e a qualidade do ensino ministrado. Mas o quê o professor ensina sob o pretexto de estar ensinando um conteúdo específico, no caso um conteúdo de filosofia às crianças e adolescentes? Não seria este um outro aspecto a ser considerado para que se possa aferir se o ensino foi ou não foi de qualidade desejável e, portanto, bem sucedido? Quais os fins da ação de ensinar conteúdos específicos que ao comporem um conjunto de saberes direcionam para a realização de um fim último? Tal questão envolve também, a valoração e os valores em sua relação com a educação, a compreensão, os sentidos e as 179 significações das experiências cuja atenção por parte da filosofia resulta em extraordinária contribuição à pedagogia. Na proposição apresentada no presente trabalho, “ensino de filosofia”, somos levados a entender que se trata de uma disciplina que, pelos seus traços distintivos enquanto tais, tenha sido também elencada a configurar o currículo formador da criança, do adolescente, do jovem ou do adulto. Ela goza de alguma distinção diante das outras disciplinas por se tratar de uma área de conhecimento que difere das outras disciplinas, possuindo igualmente os seus princípios lógicos, a sua estrutura epistemológica e a suas idiossincrasias que conferem às explicações ou às suas teorias uma validade indiscutível e as razões satisfatórias para referendarem o seu alcance formador com respeito àqueles a que se dirige. Surge então, outras dificuldade com os seus desdobramentos: O que estaríamos entendendo por filosofia ao ensiná-la? De que ela trata? Quais as suas reais contribuições como disciplina educativa? Como e em que ela poderá ajudar na educação das pessoas? Além disso, e de uma forma mais evidente, podemos perguntar: De que filosofia estamos falando? Vimos pela breve discussão que a relação possível e historicamente estreita entre filosofia e educação nos desafia para a busca de argumentos e clareza no que diz respeito ao compromisso humano e social que os saberes resultantes de ambas as atividades nos infligem. Nem a filosofia se dá no vazio ou resulta de uma vertigem metodológica cujos postulados ao se chocarem indecisos ou irresolutos despencam-se no precipício da insolubilidade! Nem a educação se faz num que-fazer rotineiro, sem o domínio da sua destinação, cujos instantes educativos, de fato e surpreendentemente, se revelam 180 impregnados de possibilidades e de fertilidade! Talvez uma das saídas para tais impasses seria aproximá-las novamente, como nos velhos tempos. A filosofia no Brasil À parte aos complicadores teóricos decorrentes desses questionamentos, temos que considerar o contexto a que nos referimos ao tratar da filosofia, quer se dê nos países de Primeiro Mundo e dentre eles, quais seriam as diferentes tradições e origens do seu pensamento; quer se dê em países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. Pois a filosofia, embora considerada um saber universalista por excelência, produz o seu conteúdo em grande parte, como resultado do trabalho reflexivo realizado em estreita relação com as questões e problemas que emergem do contexto onde se encontra, se envolvendo em grande medida, nas características das ações e pensamentos realizados pelos atores sociais que fazem e refazem a sua trajetória de humanos, problematizando a sua existência na tentativa de tomada de consciência acerca de si mesmos e do mundo onde vivem. Na tentativa de deslindar acerca da filosofia brasileira, Antonio Joaquim Severino (1999) levanta um provável culpado sobre a frágil autonomia do pensar no Brasil – quadro esse, em favorável mudança nas últimas décadas. Tal suspeita é elaborada pelo autor, após elencar e analisar algumas questões altamente importantes para o entendimento da reflexão filosófica entre nós, como por exemplo, a nossa insistente opção em seguirmos um modelo filosófico já constituído, quase sempre estrangeiro, não o tomando posteriormente como ferramenta para se pensar o novo, o nosso, o contextualizado, o 181 fecundo e imediato. E diz: “Sem dúvida, isto tem a ver com a própria tradição acadêmico-pedagógica de aprendizagem da filosofia, atravessada que sempre foi historicamente pelos complicadores oriundos de nossa situação de dependência cultural, muito acentuada nesse plano da filosofia” (Severino, 1999, p. 24). Esta passagem nos sugere um questionamento acerca do “ensino de filosofia” que tem acontecido no Brasil e que tem sido caracterizado por Severino como uma escolastização do pensar, o que é apontado por outros autores, como a marca do academicismo, do ensino livresco, por vezes do europeísmo e da erudição formalizante entre nós. A fidedignidade quanto à repetição desses modelos e a retomada dos critérios dos mesmos como padrão a ser seguido pelo pensamento em construção, é que tem se tornado o trabalho filosófico das academias no Brasil. Uma das conseqüências desse fato é que o filosofar neste país tem sido uma atividade realizada segundo um modelo que se traduz na obediência à sua temática, à sua teoria do filosofar e à metodologia do filosofar que este mesmo modelo adota. Desse modo, o autor brasileiro não tem buscado qualquer originalidade ou autenticidade em sua proposição sobre o que é o seu entendimento sobre a tarefa do seu próprio filosofar. Paralelamente ao academicismo brasileiro podemos transitar com certa facilidade às questões do elitismo que marca a nossa sociedade, com especial atenção no período compreendido da Colônia à República, em que a obtenção de graus de estudo se aproximava à idéia de títulos honoríficos, privilégios de classe e status social. Houaiss e Amaral (1995) ao elaborarem sua análise a partir de dados coletados sobre as características da sociedade brasileira no processo de sua formação, nos fornecem alguns indicadores sobre o que 182 Severino, quem sabe, concordaria com respeito à nossa “dependência cultural”: “Civilização cartorária desde as origens lusitanas, apegada ao papel e ao documento escrito... E crescemos como país de bacharéis sem nenhuma aptidão para as coisas da terra, entre as quais se incluiria o trabalho. Herdamos uma história feita por poucos letrados em uma humanidade de analfabetos ... população alienada da riqueza e dos bens da cultura, em sociedade que só reconhecia o branco, o branco europeu e proprietário (Houaiss e Amaral, 1995, p. 16). A partir destas declarações torna-se fácil relacionarmos estas idéias com o luxo de alguns ricos e ilustrados que se constituía a atividade filosófica no Brasil colonial. Pois além do prestígio de classe dominante e de pertencimento à aristocracia explicitavam os seus poderes com os hábitos da metrópole e com a detenção dos bens culturais importados da Europa. Como nos lembra Cartolano: “Essa educação humanística era, juntamente com a posse de terra e de escravos, um sinal de classe” (1985, p. 20), diga-se de passagem, uma educação imbuída dos princípios da escolástica, do ensino à luz do tomismo-aristotélico sob a insígnia da doutrina católica, com claros objetivos de formar a elite intelectual com uma rigidez de pensamento e de interpretação do mundo já delineada nos seus direcionamentos e orientações. É, pois, no contexto da Ratio Studiorum (1599) que vemos nascer o ensino de filosofia no Brasil destinado aos interessados no ensino secundário, a saber, os filhos dos colonos brancos e os futuros sacerdotes. Uma viagem à Europa completava estes estudos, em especial, propiciava o contato do jovem com o centro cultural da época, a Universidade de Coimbra. Com a derrocada dos jesuítas no século XVIII e as iniciativas do Marquês de Pombal, os contatos com a Europa 183 possibilitaram a entrada mormente da influência francesa em nossa cultura, como o iluminismo e o enciclopedismo, e também, as idéias empiristas e deístas inglesas vistas, por vezes, aos olhares assustadores da tradição pelos seus traços subversivos. Com isso, atenuaram-se as marcas do escolasticismo inicial, mas, na verdade isso não significou uma completa desintegração da tradição humanística, livresca e academicista, uma vez que os professores que adotaram o novo sistema pombalino haviam sido educados e formados pelos jesuítas. Com os franciscanos no Rio, em 1776, ainda encontramos o ensino de filosofia conservando a sua posição anterior estando entre a Retórica, o Grego, a Teologia Dogmática dentre outras disciplinas. No século XVIII assistimos a um significativo impulso no Brasil com a vinda da família real para cá, possibilitando maiores alternativas de enriquecimento cultural à já não tão jovem sociedade, não notadamente à população em geral, uma vez que ainda carecíamos de bens culturais necessários a um real desenvolvimento da nação como um todo, a saber, uma escola pública real que atendesse as reivindicações das classes populares, universidade, imprensa e bibliotecas dentre as enormes alternativas já possíveis àquela época. Porém, fazendo parte do panorama geral, podemos compreender que as progressivas reivindicações por escolarização por parte da população, tornaram-se uma realidade no Brasil oitocentista, já que educação significa cada vez mais um instrumento poderoso resultando em destaque social. O dualismo entre o trabalho intelectual e prático ainda persiste, sendo este marcado pelas atividades realizadas pelos índios, os descendentes dos escravos, os mais humildes, e aquele efetivado por elaboração teórica daquelas pessoas ilustres e poderosas. 184 Mas, aos poucos vai ocorrendo um desligamento progressivo da cultura e mentalidade colonial e um enfraquecimento da hegemonia filosófica portuguesa. Porém, em termos de ensino de filosofia, no século XVIII ainda persiste o espírito humanístico e universalista da disciplina, agora ensinada com grande importância aos futuros “bacharéis” das faculdades de Direito, desde 1827, em São Paulo e no Recife. Enquanto no currículo do ensino secundário oitocentista – liceus e ginásios das províncias - , com especial destaque ao Colégio D Pedro II porque o único mantido pelo governo central, dentre as disciplinas obrigatórias encontramos a filosofia que é ensinada aos futuros candidatos aos cursos superiores, principalmente os de Direito, Medicina ou Engenharia. Trata-se, portanto, de um ensino propedêutico em que a filosofia é professada através dos compêndios clássicos aristotélico-tomista, ainda nossa forte tradição de pensamento. Na segunda metade do século XIX, vemos assistir uma melhoria nas condições sócio-econômicas com o desenvolvimento da cultura cafeeira e da derrocada da agricultura tradicional, o que provoca maior qualidade de vida aos brasileiros e a abertura às idéias que vêm da Europa e dos Estados Unidos. Os ideais da Revolução Francesa e das idéias de liberdade defendidas por Rousseau (1712-1778) continuam a causar impacto nas discussões sobre as reformas no ensino. A obrigatoriedade do ensino religioso começa a ser questionada, mas, a filosofia tende a permanecer soberana no currículo das escolas secundárias, tornando-se inclusa também nas escolas normais25. No bojo das novas idéias instaura-se efervescente discussão sobre, por exemplo, o princípio de liberdade de ensino, de estudo e de 25 Reforma liberal de Carlos Leôncio de Carvalho (Ministro de Educação de 1878-1879) de 1879. 185 freqüência, dentre outras questões alarmantes de conteúdo filosóficoeducacional. A idéia de progresso característica deste “novo tempo” em constante mudança - cuja dinamicidade é cada vez mais acentuada, é projetada num programa cultural amplo que pretende superar os estágios religiosos ou fantasiosos e aqueles racionais ou metafísicos, segundo a égide da doutrina positivista. A filosofia passa então a ser questionada. A obrigatoriedade da disciplina motiva debates cada vez mais inflamados dado o universo de idéias que se ampliam numa sociedade que se industrializa e muda o perfil de sua organização política, econômica, social e por que não dizer, educacional26. Começamos a assistir um progressivo interesse pelo ensino primário, aliás, muito defendido pelos positivistas muitos dos quais entendem ser a Academia um lugar de embrutecimento do espírito e corrupção dos costumes 27. Mas, entra em cena temáticas inusitadas na tradição brasileira: críticas acirradas à aristocracia e aos privilégios, à exploração humana, à ingerência da Igreja nas questões públicas, e em contrapartida, propostas de moralização da sociedade, defesa da mulher e assim por diante. Se, com efeito, tentarmos elaborar uma revisão da filosofia no Brasil verificamos que foi a partir do Século XVIII/XIX que observamos um impulso intelectual entre os nossos pensadores, cujas marcas e esforços esbarram em alguma originalidade e crescente incorporação de um pensamento efetivamente mais reflexivo que se mostra na releitura dos autores, na adaptação das idéias que entram no 26 Na reforma educacional de Benjamin Constant (1836-1891/Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos de 1890-1891) de 1889, a Filosofia não aparece jamais como disciplina curricular em nenhum dos graus de ensino, sendo a proposta embasada nas idéias positivistas em que cada nível de ensino tem caráter formador e não propedêutico. Apesar disso, ainda persiste na proposta de Constant um espírito enciclopédico embora marcadamente científico. 27 Como por exemplo, Luiz Pereira Barreto (1840-1923) em sua obra As três filosofias” de 1874. 186 ideário brasileiro como o ecletismo francês, nas reações teóricas que realizam, diante da investida positivista e cientificista, na reorganização das idéias como é o caso do neo-tomismo e na proposta progressiva de aplicação teórica aos fatos inusitados característicos de nossa cultura e de nossa sociedade. Mas mesmo assim, os pensadores brasileiros que começam a se projetar como tal, não conseguem dispensar as críticas dos seus comentadores, como o exemplo a seguir: “Embora reconhecido pelo espírito inquieto, Tobias Barreto [1839-1889] parece não ter se diferenciado dos seus antecessores no tocante ao seu registro e comentário das escolas e correntes estrangeiras” (Cartolano, 1985, p. 37). Passamos a encontrar assim, a indicação de uma preocupação com a originalidade e com a autenticidade do pensamento desenvolvido em terras brasileiras. Desse modo, Farias Brito (1862-1917) em sua obra Finalidade do Mundo, queixa-se de o Brasil não ter ainda produzido um filósofo! Fazendo parte do espírito de renovação característico das décadas de 20/30 no Brasil, vamos encontrar nos mais variados âmbitos da cultura, esforços conjuntos de reconstrução da sociedade e de modernização, num clima de eufórico nacionalismo e de esperanças das possibilidades e realizações do Pós-Guerra. Na educação, não é diferente. E programas para uma educação nova de longo alcance são propostos como uma saída aos problemas nacionais e como um grande investimento que muito valerá a pena. O problema maior na educação brasileira indicado pelos Pioneiros no Manifesto de 32 era aquele que aponta à uma importante falha presente nos diversos planos (de reformas), a saber, a carência de “uma filosofia da educação e, mais, 187 uma visão científica dos problemas educacionais” (Ghiraldelli, 2003, p. 33). Propósitos estes que os Pioneiros procuram realizar, sendo indubitável no caso da “filosofia da educação”, o significativo trabalho e a contribuição expressiva de Anísio Teixeira (1900-1971). Percebemos assim que, com a República, surge um processo de oscilação entre o humanismo clássico e as tendências cientificistas na educação, ora tornando a disciplina de filosofia como parte essencial do currículo do ensino secundário, ora retirando-a do currículo por se mostrar desnecessária à compreensão da realidade e dos fatos, cabendo este papel somente às ciências. A filosofia também aparece ora, em propostas de ensino secundário propedêutico ora, como componente de um currículo formador do nosso jovem. Esta indecisão quanto a função da filosofia na educação, diga-se de passagem, parece persistir ainda como um importante tema de debate da atualidade, uma vez que em algumas situações, tem sido os exames vestibulares o simples motivo do entusiasmo pelo seu ensino e aprendizagem, não se concebendo, com clareza, o seu específico papel formador e as suas peculiaridades como disciplina. Além disso, até o presente momento em que se analisa o ensino de filosofia no Brasil, percebe-se à sua destinação à escolaridade média ou colegial, não se constituindo em ensino para crianças ou com crianças propriamente dito. Do mesmo modo, não tem sido um ensino que até o momento , segundo o exposto, tenha exigido uma reflexão mais intensa sobre os seus propósitos educativos, já que se mostra destituído de franca articulação formativa do jovem, servindo em muitas situações, tão-somente como propedêutico aos ensinamentos posteriores ou à sua ilustração. Segundo esta segunda possibilidade, vale lembrar, que o atual movimento para o retorno da disciplina de filosofia tem merecido críticas por se fazer um campo de conhecimento ilustrativo e 188 enciclopédico à formação do nosso jovem, sendo quando muito, importante, porém desnecessário, e no mínimo, inútil! Uma observação geral de todo este processo nos indica que, a grosso modo, a filosofia vai sendo encurralada por iniciativas que a espremem nas barreiras dos interesses e dos eventos das mais variadas ordens. Constatamos que, à medida que a validade da disciplina de filosofia vai sendo questionada por setores da sociedade e da educação, ao retornar ao currículo por iniciativas posteriores, quase sempre vem traduzida pela Lógica entendida como disciplina fundamental no contexto de valorização das ciências. Desse modo, passa-se a solicitar da filosofia através da Lógica, uma relevante contribuição, especialmente, quanto ao uso da razão. Pois, esta disciplina pode oferecer as condições necessárias à garantia da coerência do pensamento consigo mesmo e com os objetos a ser conhecidos pelas diversas ciências; determina as regras e os métodos de pensamento; auxilia no entendimento das leis presentes nas relações de investigação e de conhecimento. Assim, na reforma de Francisco Campos (1891-1968), em 1932, a Lógica passa a ser uma importante disciplina preparatória aos cursos de Medicina, Odontologia, Farmácia, Engenharia, Arquitetura, Direito, Cursos Jurídicos ao qual também se exige os conhecimentos de História da Filosofia. As subseqüentes reformas do ensino, embora enfatizando o caráter enciclopédico e a cultura geral, tenderam a ir, aos poucos, excluindo a filosofia como disciplina formadora da nossa juventude. O caráter humanístico da educação a partir do final da última metade do século XX, dizia mais respeito à consciência patriótica e a inculcação de uma concepção de mundo, para quais objetivos muito bem servia a disciplina de Educação Moral e Cívica e as suas congêneres, tendo como 189 pressuposto em relação à Lógica o entendimento de que se constituía numa disciplina de inegável contribuição à formação intelectual e científica do adolescente. O processo de retirada da filosofia como uma disciplina obrigatória do ensino secundário iniciado de fato, com a diminuição gradativa da sua carga horária, nas décadas de 40/50, e efetivada na Lei 4024/61 pelo Conselho Federal de Educação em que ela poderia aparecer num dos pares possíveis entre as disciplinas complementares ditadas pelos Conselhos Estaduais de Educação para o Clássico e o Científico, ou como disciplina optativa. Mas o processo em evolução vai afastando a filosofia do seu lócus formativo da nossa juventude e de seu trabalho de ensejar o novo, a curiosidade intelectual e a criação humana. Com a Resolução N o 36 de 1968, a filosofia torna-se definitivamente uma disciplina optativa para ser posteriormente, em 1971, com a Lei 5.692, suprimida de vez do currículo das escolas de ensino médio, onde sempre realizou de alguma forma, as suas atividades de caráter educativo. A filosofia pois, ao não se configurar como uma disciplina profissionalizante e com conteúdos práticos, torna-se dispensável e substituível por outra mais consentânea com o novo humanismo que é voltado à tecnologia e à ideologia empresarial e produtiva. Não vejo a partir daqui, qualquer necessidade de prosseguirmos com nossa análise, uma vez que poucos avanços foram efetivados para a reversão deste quadro. Talvez seria emblemático o desabafo que Cartolano (1985) exprime na seguinte frase: “Este é o ensino de filosofia que em geral tivemos no transcorrer de toda nossa história da educação: um ensino centrado em conteúdos acadêmicos e enciclopédicos que primavam por cindir a teoria da prática social” (Cartolano, p. 74). Mais tarde, a mesma autora, queixando-se ainda da falta que 190 temos de uma sólida tradição filosófica que possa garantir o sucesso na defesa da filosofia, justifica todo o imbróglio que percebemos em torno desta disciplina: ”Enquanto serviu à transmissão de valores aceitos por uma elite clerical e pelos católicos no poder, teve livre acesso aos horários escolares. À medida que passou a refutar as idéias desse ‘humanismo’ conservador e a elaborar uma teoria crítica a partir dessa realidade concreta, foi relegada a segundo plano e impedida de continuar o seu empreendimento” (Cartolano, p. 80). Com esta breve exposição podemos caracterizar exatamente o contexto educacional brasileiro em cuja época surgia nos Estados Unidos da América (fins da década de 60) um personagem que vai aos poucos se projetando internacionalmente e, conseqüentemente com isso, vai penetrando nas discussões filosófico-educacionais de nosso país, a partir dos anos 80, defendendo a disciplina de filosofia nas escolas de ensino fundamental o que vai se constituir, de fato, no estarrecedor programa de ensino de “filosofia para crianças” - desde a pré-escola até os jovens do ensino médio. Trata-se do filósofo norte-americano Matthew Lipman que com os seus 80 anos e com uma saúde fragilizada, continua ativamente dedicando-se ao seu trabalho de estudioso e propagador de idéias em defesa dos ensinamentos filosóficos na escola. O ensino de filosofia e a proposta de uma educação filosófica às crianças O tema “ensino de filosofia” nos diferentes níveis de escolaridade não se constituiu, em si mesmo, a grosso modo, um problema educacional de atenção especial ao longo dos tempos, com 191 exceção, como vimos brevemente, aos interesses políticos, ideológicos ou religiosos em que as propostas filosóficas de ensino poderiam estar envolvidas. Uma abordagem sistemática sobre o ensino de filosofia e as questões decorrentes desta discussão relativas à adequação às idades dos educandos, à pertinência dos conteúdos filosóficos aos interesses dos alunos, ou ainda, à defesa da importância da filosofia para a formação da criança desde o início de sua vida escolar, nos parece um problema recente. Desde o final da década de sessenta e início da seguinte, o ensino de filosofia para crianças ainda em escolaridade fundamental, passou a chamar a atenção, principalmente, dos filósofos, educadores, psicólogos e pais interessados com a formação equilibrada e saudável da criança diante dos rumores e turbilhão dos movimentos políticos e sociais que agitavam o mundo da época. Para muitos deles, ensinar filosofia desde a educação infantil, poderia se constituir numa saída eficaz. E, sem exageros, podemos adiantar que a concretização desta alternativa esbarra em questões de caráter político-ideológicos e filosófico-pedagógicos, uma vez que tal discussão força os limites em que a educação tem sido adstrita segundo os cânones conceituais estabelecidos e consolidados no contexto científico e curricular da escolaridade formal. Daí poder resultar uma expansão das relações da sala de aula com a instituição como um todo, e desta com a sociedade, através da fomentação da criticidade, do espírito lógico e analítico que se pretende semear no caráter infantil. Busca-se um incentivo a um estilo mais ativo de pensamento possibilitando a integração da criança com uma sociedade possivelmente mais democrática. Além disso, 192 pretende-se recuperar a curiosidade e a imaginação banida pela imposição de uma educação marcadamente domesticadora e autoritária, quando menos, descompromissada com a excelência de sua tarefa. Especula-se, portanto, a respeito do aperfeiçoamento da democracia onde todos possam ser igualmente preparados à luz da investigação não somente científica, mas filosófica, ampliando o espectro de ação criativa, crítica e razoável a todos, incluindo a criança. Esta, não mais deixada à espera de uma idade ideal para poder então, aprender filosofia, ou à mercê de mecanismos cautelosos pela preparação a um futuro distante. Contrariamente, evoca-se o espírito infantil na vivência mesma de suas próprias experiências e capacidades. Surge a partir daí a necessidade da problematização e compreensão da infância diferentemente de outrora, e, em conseqüência disso, amplia-se o entendimento do próprio homem, de suas representações e relações com a sociedade em seu conjunto. Nota-se assim, que tal perspectiva abala os conceitos acerca da educação filosófica e suas relações com as demais áreas que se dedicam à formação humana, os quais participam, sem maiores dificuldades, de um paradigma pedagógico que vem acomodando as mais diversas inovações teóricas nesses últimos anos. O racionalismo, constituído como uma linha mestra do pensamento ocidental desde os gregos, não eximiu a pedagogia do poder dos seus tentáculos envolventes que têm aquietado os ânimos imperscrutáveis da alma humana, somente revelados na sensibilidade emocional e nas paixões as quais, por vezes, têm sido apontadas como reveladoras dos delírios e fantasias humanas. Com respeito a isto, Demo (2000) adverte: “Aparece aí algo que o racionalismo detesta: perder o controle da razão” (p. 33). Com tais preocupações, Lipman (1994) chama a atenção para os excessos de uma 193 educação expressamente racionalista e científica que, segundo a visão do autor, poderá insensibilizar o homem e estagnar a sua mente numa inapetência pelo novo e pelo inusitado. E, então, assinala que, “... aos poucos uma crosta ou armadura vai se formando sobre suas mentes e elas começam a aceitar essas coisas como fatos, até que deixam de se maravilhar com tudo e passam a não se maravilhar com mais nada” (Lipman, p. 56). Com tudo isso, resta-nos resgatar as nossas reflexões iniciais, chamando a atenção para a necessidade de aprofundamento das questões que emergem da locução ensino de filosofia - na educação fundamental ou, se quisermos, ensino de filosofia para crianças. De que ensino estamos falando? Qual filosofia seria esta? Quem seria o professor e como seria formado? Quais as representações que temos sobre a infância? Enfim, quais seriam as nossas concepções sobre as quais se sustenta tal ensino de filosofia. Bibliografia ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. CARTOLANO, Maria Teresa Penteado. Filosofia no Ensino de 2o Grau. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1985. DEMO, Pedro. Educação e Conhecimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. GHIRALDELI Jr, Paulo. Filosofia e História da Educação Brasileira. Barueri, SP: Manole, 2003. HENNING, Leoni M. P. A Pedagogia do Pensar: trabalhando a narrativa mítica na sala de aula. Fragmentos de Cultura, vl. 1, n. 1, 1991, Goiânia. 194 _____. Lipman Filósofo. 2003. p. 190. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Estadual Paulista, Marília, SP. HOUAISS, Antonio e AMARAL, Roberto. Modernidade no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. LIPMAN, Matthew et al. A Filosofia na Sala de Aula. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. SEVERINO, Antonio Joaquim. A Filosofia Contemporânea no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. VYGOSTSKY, Lev. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 195 FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O ENSINO DE FILOSOFIA 196 FORMAÇÃO INICIAL DO PROFESSOR DE FILOSOFIA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Elisete M. Tomazetti∗ Introduzindo a problemática Ao procurar compreender a formação inicial do professor de Filosofia situo a temática da formação de professores em geral no âmbito das instituições de ensino superior e das políticas públicas de educação. Além disso, indago acerca do desprestígio para com o pedagógico em favor da formação para a pesquisa, como se pesquisa e ensino fossem inconciliáveis. Ao contrário, argumento em favor da idéia de que o ensinar a filosofar não exclui a própria Filosofia em sua tradição legitimada ao longo da civilização ocidental. O professor de Filosofia deve receber uma formação de alto nível no aspecto da história da Filosofia e de suas temáticas e do aprender a filosofar, assim como Professora e Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação do CE/UFSM. Endereço eletrônico: [email protected] 197 uma formação própria para constituir-se como professor do ensino médio, na Escola Básica brasileira. Estamos ainda construindo reflexão e pesquisa na área do ensino de Filosofia e da formação do professor de Filosofia, há muito a se fazer. O título deste seminário, Filosofia e Educação: Confluências, sugere a idéia de dois campos de conhecimento que podem encontrar-se, como dois rios podem desembocar na mesma foz, ou seja produzir uma reflexão significativa para ambas as áreas. Muitos pensadores, filósofos, ao longo da tradição filosófica ocidental tomaram a educação como objeto de suas reflexões. Neste caso, a educação era sempre compreendida em seu aspecto geral e raramente em seu aspecto mais específico, enquanto ensino. A filosofia, então, apresentou-se como um discurso generalista sobre a educação, um saber fundamental na constituição dos estudos pedagógicos. Havia, de certa forma, uma indissociação entre Filosofia e Pedagogia. Ao final do século XIX a Pedagogia foi sendo proposta como um conhecimento de ordem científica, pelos aportes da Psicologia e da Sociologia. A constituição de um campo pedagógico, mesmo que sem a efetividade de um estatuto científico conduziu à separação da Pedagogia da Filosofia. Com isso, passaríamos a compreendê-las como dois campos de conhecimento que raramente se encontram, exceto pelo esforço de sustentação produzido no espaço da Filosofia da Educação. Mais ainda, o campo pedagógico passaria gradativamente a ser considerado de relativa relevância para os estudos em Filosofia. Por isso, a imagem propiciada pela expressão confluência anuncia que, em algum momento, há ou poderá haver o encontro, o diálogo, a interação. 198 Ao se transferirem as preocupações também para o campo do ensino e, desta forma, para a escola tal confluência parece ser ainda um espaço a ser construído. Quem sabe pudéssemos falar não apenas da Filosofia que propõe uma reflexão sobre a educação, mas também sobre o ensino, uma Filosofia do ensino? O tema da formação do professor de Filosofia é relativamente ausente nos seminários e congressos sobre Ensino de Filosofia, bem como dos artigos e livros publicados na área. As questões do que ensinar e do como ensinar em uma aula de Filosofia no Ensino Médio, são um pouco mais presentes. Sobre a Formação do Professor de Filosofia, seja ela inicial ou continuada, eu constato pouca discussão e produção. Isso poderia ser explicado pelo fato de que as produções e reflexões nascidas no contexto da área Formação de Professores, mesmo tendo se tornado forte no Brasil a partir da segunda metade dos anos 90 do século XX, ainda não encontrou maior receptividade por parte daqueles envolvidos com a formação do professor de Filosofia. Colocar a questão da formação do professor de Filosofia no grande debate travado pela área de pesquisa denominada de Formação de Professores significa produzir conhecimento acerca de: - Como foi e como está sendo realizada a formação inicial do professor de Filosofia? - Como os formadores de professores nas universidades concebem a formação do futuro professor de Filosofia do Ensino Médio? - Como e quem faz formação continuada do professor de Filosofia? 199 - Que conhecimentos temos produzido sobre a escola e o aluno de Ensino Médio, para que o futuro professor de Filosofia possa se preparar para sua prática profissional ? - Como formar um “bom professor” de Filosofia? O que se entende por um “bom professor” nos dias atuais, sustentados na literatura disponível? É exatamente sobre estas questões que ainda há pouca pesquisa e debate. Arrisco-me a afirmar que isso se deve ao fato de que o dualismo e, portanto, a não confluência, entre o Filosófico e o Pedagógico permanece vivo no campo acadêmico. Pensando o curso de licenciatura em Filosofia no Brasil No Brasil os professores de filosofia são formados em cursos de licenciatura plena, o que implica um perfil próprio para a atuação na docência em escolas de nível médio. No entanto, a forma de organização de tais cursos variou ao longo do século XX. Primeiramente tínhamos o modelo intitulado 3+1, que se apresentava pelo dualismo entre conhecimentos conceituais (específicos) em três anos e conhecimentos pedagógicos ministrados em um ano, no denominado Curso de Didática. A partir da Reforma Universitária e da criação da Faculdade de Educação, em 1970, a formação pedagógica misturava-se aos conhecimentos conceituais ao longo dos quatro anos de curso. Tais conhecimentos pedagógicos estruturavam-se nos Currículos Mínimos, que fixaram as disciplinas de Psicologia da Educação, Estrutura e Funcionamento da Escola, Didática Geral, Didática Especial e Prática de Ensino. 200 A título de exemplo lembro o caso da Argentina, citado por Guillermo Obiols (2002, p.52-53) que tem organização semelhante ao Brasil. O mesmo curso forma os licenciados e os professores de Filosofia. Há um tronco comum, que posteriormente divide-se e o futuro professor “terá um ciclo de formação pedagógica que incluirá, segundo as diferentes universidades, entre duas e cinco disciplinas, enquanto que o licenciado aprofundará seus estudos em seminários de pesquisa filosófica e deverá realizar uma tese” O modelo europeu exige primeiramente um curso de graduação em Filosofia para que posteriormente o bacharel que desejar tornar-se um professor tenha acesso a uma formação pedagógico-filosófica para o exercício da prática docente. Com algumas exceções, os cursos de Filosofia e demais licenciaturas estruturaram-se assim até a promulgação da LDB 9394/96. Como decorrência da referida lei, as políticas públicas de educação começaram a acionar mudanças nos cursos para extinção do referido modelo. Ao mesmo tempo em que o MEC solicitava o estabelecimento de novas Diretrizes Curriculares para os cursos, era constituído um grupo tarefa para a elaboração de Diretrizes Curriculares para os cursos de formação de professores. O primeiro documento produzido por este grupo se tornou público em maio de 2000 e foi denominado “Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica, em Curso de Nível Superior”. Com as Resoluções CNE/CP 01 e 02/2002 os cursos de licenciatura foram impelidos a fazer uma reflexão sobre sua tarefa de formar professores e começar a alinhavar algumas mudanças. As Diretrizes curriculares da formação de professores e as respectivas Resoluções tornaram inevitável um re-direcionamento dos cursos de licenciatura, o 201 qual deverá pautar-se numa concepção que vincule ensino e pesquisa e, ao mesmo tempo, dê um novo sentido às questões relativas à relação teoria e prática, à prática de ensino e ao estágio supervisionado. É importante destacar que todo o movimento para o estabelecimento de um perfil claro dos cursos de licenciaturas implica o exercício de rompimento com concepções e práticas que se fizeram tradição ao longo do tempo. Portanto, as mudanças não ocorrem da noite para o dia e, além disso, implicam política institucional clara acerca dos cursos de licenciatura. As disputas no campo acadêmico implicam poder e prestígio e neste ponto a área da educação, da pedagogia, historicamente tem sido relegada a um apêndice, a um “mal necessário” diante de uma formação voltada para o profissional bacharel e pesquisador. A já célebre relação conflituosa entre Filosofia e ensino nas obras de grandes pensadores estende-se ainda hoje nos discursos e nas práticas daqueles envolvidos com cursos de Filosofia. Estranha ironia! Muitas vezes aqueles que manifestam tal posição são, eles mesmos, professores, ensinantes de Filosofia no terceiro grau, na universidade. O ofício de professor universitário nem sempre foi aceito e reconhecido pelos próprios filósofos que o tomavam como um ofício indigno Ensinar Filosofia ou Ser Filósofo? Abelardo, no século XII em sua História de minhas desventuras, conforme Obiols (2002, p. 89) afirma: “a intolerável pobreza foi o que nesta ocasião me levou ao regime escolar. Arar a terra não podia e mendigar me envergonhava. Assim que, incapaz de trabalhar com as 202 mãos, me senti levado a me servir de minha língua, voltando ao ofício que conhecia”. Da mesma forma, no século XIX, Schopenhauer escrevia: Desde sempre, muito poucos têm sido os filósofos que foram também professores de filosofia e, proporcionalmente, todavia menos os professores de filosofia que foram filósofos. Poderíamos dizer, em conseqüência, que, assim como os corpos idioelétricos não são condutores de eletricidade, os filósofos não são professores de filosofia. Em verdade, para aquele que pensa por si mesmo esta tarefa o estorva mais que qualquer outra. Pois a cátedra de filosofia é de certo modo um confessionário público, onde alguém faz sua profissão de fé coram populo .... (Obiols, 2002, p. 80-90). Se o desprestígio com o ensino de Filosofia na universidade já se colocava presente nas obras de alguns filósofos, eleva-se ainda mais quando o lugar de ensinar é a escola básica, ou mais especificamente o Ensino Médio, porque a ele somam-se a desvalorização da profissão de professor da escola básica, as condições de trabalho, o salário e a carreira. Os cursos de licenciatura, no interior das universidades sempre foram considerados cursos de “segunda categoria”. Para fugir a este estigma tais cursos encontram na formação do futuro pesquisador, aluno de curso de mestrado a sua marca. Os argumentos para justificar tal opção dizem respeito à idéia de que aquele aluno que dominar de forma competente a tradição filosófica será um bom professor, independente da formação pedagógica que tiver, pois esta é concebida apenas como um ornamento, um apêndice. Formar um professor de Filosofia seria o mesmo que formar um pesquisador em Filosofia? Formar um professor 203 de Química seria o mesmo que formar um pesquisador em Química, por exemplo? Ser licenciado em, receber licença para a docência tem qual sentido? Ser pesquisador em Filosofia, no meu entendimento tem significado o acesso à tradição filosófica e suas grandes temáticas, procurando destacar conflitos entre os pensadores, esclarecimento de seus conceitos, enfim, o envolvimento com esta tradição de forma rigorosa e metódica. Ser professor de Filosofia, para mim tem o sentido de tomar esta mesma tradição com suas grandes temáticas e apresenta-las aos alunos de forma significativa, fazendo com que eles mesmos assumam-se como potencialmente capazes de fazer tais perguntas, de problematizar os conceitos e de perceber que as questões já suscitadas pelos filósofos podem vir a tornarem-se as suas questões. Ou seja, transformar o saber disciplinar da Filosofia em um saber escolar, que adentra as questões, o tempo e a vida dos alunos, jovens/adolescentes alunos do Ensino Médio. Este me parece ser o grande desafio daqueles que se lançam na profissão de professor. Por outro lado, cabe a seguinte pergunta: Por que não construímos uma tradição acerca do ensino de Filosofia no Brasil, como, por exemplo, se produziu na área do ensino de ciências? Porque, como diz Edson Antonio da Silva (2001, p.10) “em se tratando da comunidade filosófica brasileira esse medo (da interação com o educacional/pedagógico) assume em alguns momentos o significado emblemático de uma fobia”. É considerado filósofo profissional “isto é, filósofo propriamente dito, quem cuida de filosofia, e isto de um ponto de vista lógico, lógico-transcendental. (...)”. Tratar do ensino da Filosofia, da formação do professor de filosofia “não garante o privilégio de integrar a categoria dos ‘filósofos profissionais’“. Da 204 mesma forma, aquele aluno do curso de Filosofia que se decide pela profissão de professor e conseqüentemente pelos estudos e pesquisas na área do ensino e da educação é, muitas vezes, considerado como menos competente para os estudos filosóficos, menos competente para integrarse ao grupo dos filósofos profissionais. Será que a Filosofia basta-se a si mesma, recusando qualquer interface com o campo pedagógico? A concepção de formação pedagógica dos formadores de professores dos cursos de licenciatura em filosofia não será a de apenas uma técnica, um instrumental para ensinar conteúdos e provocar a aprendizagem nos alunos? Um conjunto de regras a serem conhecidas e aplicadas no contexto da aula de filosofia? Se assim for, constitui-se uma concepção estreita de professor, ou seja, de um técnico, de um aplicador de teoria na prática. Se é esta a concepção que vigora, certamente a formação pedagógica faz-se desnecessária. O livro didático tem servido como o suporte do professor, pois ele traz pronto aquilo que o professor teria muita dificuldade para fazer, em condições de trabalho que, muitas vezes, nas escolas são impeditivas. O livro didático tem sido considerado, então, a salvação do professor. Entretanto, o professor de Filosofia não é apenas professor em sua sala de aula, ele é membro de uma comunidade escolar, com suas características, com suas regras, seus projetos, seus dilemas. Enfim, ele trabalha em uma escola em contato com outros professores e, portanto, faz muito mais que entrar em uma sala de aula para transmitir conhecimentos, o saber filosófico, aos seus alunos. E, no caso da disciplina Filosofia, ao apresentar o saber filosófico, o professor exercita simultaneamente o filosofar, ele ensina a filosofar. Penso que ensinar 205 Filosofia e ensinar a filosofar não podem estar separados, sob pena de reduzirmos a Filosofia a apenas mais um saber a preencher o currículo escolar. Profissão Professor de Filosofia A profissão, o “ofício” de professor é muitas vezes considerado como não tendo necessidade de saberes próprios, pois são comuns os clichês de que para ensinar bastaria conhecer o conteúdo, ter talento, ter bom senso, seguir a intuição, ter experiência ou ter cultura, como propõe Gauthier (1998). No entanto, a ação docente, a prática do ensinar é considerada como um ofício feito de saberes, os quais devem ser desenvolvidos em parte na formação inicial do professor. Tais saberes são os seguintes: - Saber disciplinar, produzido pelos pesquisadores e cientistas nas diversas disciplinas científicas. No caso da Filosofia seria a própria tradição filosófica. - Saber curricular, que é o resultado da seleção produzida pela escola e transformado em currículo. - Saber das ciências da educação; da História da Educação, da Sociologia da Educação, da Psicologia da Educação, por exemplo. - Saber da tradição pedagógica, manifestado nas representações de docência, de escola, de sala de aula. - Saber experiencial, acumulado ao longo da carreira e que muitas vezes não é explicitado pelo professor, porque se tornou uma rotina. 206 - Saber da ação pedagógica, é o saber experiencial enquanto analisado e problematizado pelos pesquisadores e posteriormente tornado público. Entendo como necessário que o aluno de um curso de licenciatura em Filosofia se perceba como futuro professor, a partir do conhecimento da escola básica, com seus desafios, seus problemas e perspectivas que lhe são próprias. O que importa é tornar-se sabedor dos saberes pedagógicos, das políticas educacionais, das práticas escolares, enfim, daquilo que compõe o campo educacional. Estes conhecimentos não apenas são de responsabilidade dos professores vinculados aos departamentos didáticos dos centros ou faculdades de educação, mas também dos professores responsáveis pelo saber disciplinar, a Filosofia. Por isso a insistência na definição da identidade do curso como curso de licenciatura, curso de formação de professores. Outra questão que se coloca diz respeito à compreensão que se consolida sobre os saberes educacionais/pedagógicos como um saber menor, como já afirmei anteriormente, um apêndice, um mal necessário. Ora, como afirma Azanha (1995, p. 51), as disciplinas pedagógicas são vistas comumente sob um prisma eminentemente didático, isto é, tecnológico. Tudo se passa como se a formação do professor devesse instrumentá-lo com métodos e técnicas, quando talvez fosse muito mais interessante preparar o professor a partir da discussão de questões substantivas de educação nos seus aspectos filosóficos, históricos, sociais e políticos. 207 Ensinar é uma das atividades para as quais não é possível estabelecer regras garantidoras do êxito, isto é, regras tais que, quando exaustivamente aplicadas assegurem a aprendizagem. Eis uma tarefa nos cursos de formação do professor de Filosofia, possibilitar a compreensão por parte do aluno de que a sala de aula é um espaço complexo, no qual o professor deve deliberar sobre sua ação e exercer sua capacidade reflexiva. Por que e quando alguém decide que será professor? E professor de Filosofia? Tenho feito esta pergunta a mim mesma. E tomando também a resposta de muitos colegas, penso que dificilmente alguém decide prestar vestibular para Filosofia porque quer ser professor de Filosofia, mas porque primeiramente quer tentar entender e elucidar suas questões existenciais, metafísicas e culturais, enfim. Então, chega-se a um curso de licenciatura em Filosofia e a questão do ser professor fica, não raras vezes, completamente esquecida até o momento em que aparecem as chamadas “disciplinas pedagógicas”, que passam então, a introduzir um novo vocabulário, como escola, aula, professor, didática, metodologia, currículo, avaliação, dizendo de outra forma, um outro mundo para o aluno. Na verdade, não deveria ser um outro mundo, mas o mundo de quem quer adquirir uma licença e uma formação para ser professor. Neste contexto, alguns alunos reagem e decidem que jamais entrarão em uma escola e encaminham-se para estudos e pesquisas que os conduzirão ao pós-graduação, que os devolvem mais tarde à docência no ensino superior para continuar a forma os professores para a escola básica. Outros, na dúvida entre o que efetivamente desejam e de como poderão sobreviver assumem o ser professor, mas sem muita convicção 208 – fazer o que? Enquanto não se tem nada melhor, ser professor é o possível – a isso denominamos em linguagem popular – Bico - . Outros, talvez muito poucos, tomam a docência como sua profissão e a ela se dedicam e acabam adentrando o campo educacional de forma responsável e crítica. Para Finalizar Penso que os cursos de licenciatura em Filosofia poderiam ajudar em muito a todos estes alunos, porque ao definirem-se como formadores de professores desencorajariam desde o início do curso aqueles que decidiram que a docência no Ensino Médio não é seu objetivo. Ajudaria a encaminhar aqueles que se definiram pela profissão de professor, porque durante quatro anos as questões de ensino, de sala de aula e de escola estariam presentes, constituindo-os como professores de Filosofia aptos a enfrentar os desafios impostos pela profissão. E quando falo “presentes” refere-se as questões aparecerem no conjunto das disciplinas na formação inicial, tanto quanto a presença do aluno durante o curso de forma mais enfática na escola. Se no Brasil, ser professor da escola básica fosse considerada uma profissão importante a ponto de ser tão ou mais remunerada que a de professor do ensino superior teríamos jovens entendendo que trabalhar na escola básica não lhes tira a possibilidade de fazer um curso de mestrado e doutorado, mas ao contrário, pode tornar-se seu desafio e seu incentivo. É preciso re-afirmar que ser professor de Filosofia e ser filósofo não se excluem, embora muitos assim o tenham entendido. Estas são as inversões que precisamos desconstruir com políticas e ações 209 sérias, que extrapolam nosso âmbito de ação, mas que nos dizem respeito e pelas quais também nos sentimos responsáveis. Penso que o atual momento de mudanças pelo qual passam muitos cursos de licenciatura no Brasil, em especial os cursos de Filosofia, é um momento precioso para que se produza uma reflexão sobre o que se espera do professor de Filosofia no Ensino Médio nas atuais condições da escola básica brasileira. Para além de produzirmos uma reflexão importante a partir da Filosofia sobre a educação, penso que temos que assumir mais enfaticamente o ensino, a formação do professor para ensinar Filosofia. – quem sabe uma Filosofia do Ensino. Bibliografia AZANHA, José Mário Pires. Educação: temas polêmicos. São Paulo, Marins Fontes, 1995. OBIOLS, Guillermo. Uma introdução ao ensino da Filosofia. Ijuí, UNIJUÍ, 2002. GAUTHIER, Clermonth. et. al. Por uma teoria da Pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. Ijuí, UNIJUÍ, 1998. SILVA, Edson Antonio da. A formação da disciplina Filosofia no Ensino Médio brasileiro (1980-2000): uma contribuição à história das disciplinas escolares. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2001. BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena. Resolução CNE/CP 1/2002. Disponível na internet: http:/www.mec.gov.br BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. A duração e a carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena, de formação de professores da 210 Educação Básica em nível superior. Resolução CNE/CP 2/2002. Disponível na internet: http:/www.mec.gov.br 211 FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE FILOSOFIA E “AS TRÊS METAMORFOSES” DE NIETZSCHE∗ Sílvio Gallo∗ O texto dedica-se a pensar a formação do professor nos cursos de Licenciatura em Filosofia. Discute-se aqui a figura do professor como “transmissor de um saber” e, nesse aspecto, como reprodutor de conteúdos e não um criador; em outras palavras, o professor de filosofia como alguém distinto do filósofo. Nessa imagem, um professor que sempre retorna ao mesmo, como um vetor de transmissão de saberes filosóficos, mas não como um vetor de produção de atividade filosófica. Através da noção de filosofia como “atividade de criação de conceitos”, discute-se uma outra imagem do professor de filosofia: aquela na qual ele próprio é filósofo (isto é, criador de conceitos) e faz da aula de filosofia uma atividade criativa. O professor de filosofia como aquele que produz as condições para que ele seja desnecessário; para um cenário no qual os estudantes, na relação com os filósofos, criem seus próprios conceitos. Uma versão mais extensa deste texto foi submetida para apresentação no XII Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, com o título Professor de filosofia: do eterno retorno ao mesmo e do desembaraço da superação. ∗ Professor da Universidade Estadual de Campinas, da Universidade Metodista de Piracicaba e Universidade do Sagrado Coração. Endereço eletrônico: [email protected] 212 A problemática do ensino da filosofia na educação básica tem sido debatida no Brasil como nunca o foi outrora. A meu ver, os avanços são bastante significativos. Entretanto, ainda nos debruçamos muito pouco sobre a questão da formação do professor de filosofia. Como nossos cursos de licenciatura estão procedendo? Como as atividades de “Prática de Ensino em Filosofia” estão sendo desenvolvidas? Como tem sido pensado e praticado o “Estágio Supervisionado em Filosofia”? Como as disciplinas de “Didática Específica em Filosofia” têm colocado a questão do ensino e o papel do professor de filosofia nessa atividade? Quando da definição das Diretrizes Curriculares para Cursos de Graduação, a comissão do Ministério da Educação responsável por definir os parâmetros da formação do profissional da filosofia fez poucas alterações em relação ao que já estava posto como referência para a área. Mas houve um certo avanço, na medida em que, se debruçando sobre as áreas essenciais para a formação do bacharel, a comissão indicou que, no caso dos cursos que oferecessem também a licenciatura, essa formação deveria ser complementada com os conteúdos necessários à formação do professor de filosofia. Porém, a comissão de especialistas não se ocupou de definir que conteúdos seriam estes, deixando a questão em aberto. 28 Sabemos todos que na definição desses mecanismos de política educacional, o Ministério, através do Conselho Nacional de Educação, acabou definindo Diretrizes Curriculares para os Cursos de Licenciatura que, por sua vez, optaram por colocar parâmetros gerais para todas as 28 As Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação em Filosofia foram aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação e publicadas oficialmente em 2002. Conferir: CNE. Resolução CNE/CES 12/2002. Diário Oficial da União, Brasília, 9 de abril de 2002. Seção 1, p. 33. O texto completo está disponível no sítio do MEC na Internet (www.mec.gov.br). 213 áreas, determinando as quatrocentas horas de Práticas Pedagógicas e as quatrocentas horas de Estágio Supervisionado. Tal empreendimento, se tem o caráter positivo de preocupar-se com uma formação sólida do futuro professor, buscando articular, ao longo de todo o curso de graduação, teoria e prática, por outro lado tem o caráter negativo de considerar que os professores são formados mais ou menos da mesma maneira, independente da área de saber em que atuarão. É uma posição que me parece complicada, por definir que há uma especificidade no “ser professor” que independe da área de atuação quando, ao contrário, penso que cada área tem suas especificidades, que implicam num “ser professor” diferenciado. Coerente com o movimento que temos feito de pensar o ensino da filosofia com as ferramentas da própria filosofia, este texto pretende explorar filosoficamente a figura do professor de filosofia. Que personagem será este? Sabemos que, mitologicamente, a figura de Sócrates é evocada como a figura paradigmática do professor (em qualquer área do saber e, em especial em filosofia). Seremos nós, professores de filosofia, os Sócrates de nossos tempos? Ou estaremos mais próximos dos sofistas, tão criticados pelo mesmo Sócrates? Como a formação da licenciatura nos prepara para uma ou outra coisa, ou mesmo para ambas ou para nenhuma? Professor de Filosofia: Reprodutor do Mesmo O modelo de formação do professor de filosofia que temos implantado tem levado, em larga medida, a que ele seja um “reprodutor do mesmo”. Com isso quero dizer que a tendência do professor de filosofia recém-formado, ao ver-se numa sala de aula frente a um grupo 214 de estudantes, sozinho consigo mesmo na tarefa de agir como professor e não apenas como aluno, é reproduzir as experiências que ele mesmo, na condição de estudante, vivenciou em sala de aula. Em geral, o professor de filosofia busca modelos para balizar sua ação. Modelos positivos, que ele tende a imitar, dos bons professores que teve e que lhe proporcionaram um aprendizado significativo. Mas também modelos negativos, que ele tende a não imitar, de professores que ele não julgou bons, cuja experiência não contribuiu significativamente com o aprendizado. E nesse movimento de rechaço do ruim e imitação do bom, o professor de filosofia constrói sua prática, sua própria imagem de professor de filosofia, seu próprio personagem. De certa forma, portanto, tendemos a retornar ao mesmo: às mesmas práticas que julgamos condizentes com um bom ensino da filosofia, na mesma medida em que recusamos as práticas que julgamos ruins. Não é de se desprezar o impacto negativo da situação já colocada de dicotomia entre a formação do bacharel e do professor. Conhecemos quais são as práticas dominantes no ensino da filosofia em nossos cursos de graduação: a análise e o comentário de textos, sem maior empenho na filosofia como atividade criativa, por exemplo, como produção conceitual. Não cabe ao estudante de graduação criar seus conceitos mas, quando muito, ter contato com os conceitos produzidos pelos filósofos e materializados em seus textos. Uma atividade meramente reprodutora, portanto. E, claro, a tendência desse estudante futuramente, quando professor, será a de reproduzir essa prática 215 reprodutora no ensino da filosofia na educação básica. Reprodução da reprodução; aonde isso pode nos levar? Um agravante: se há argumentos a sustentar a prática da leitura e comentário de textos filosóficos como fundamentais na formação do estudioso da filosofia, isso pode ser desastroso, quando reproduzido na educação básica, quando não se trata de formar estudiosos profissionais de filosofia mas, quando muito, pessoas que possam ter na filosofia mais um instrumento da produção/gestão de suas vidas. O retorno ao mesmo que percebemos nas práticas docentes em filosofia desdobra-se também na questão dos conteúdos disciplinares. Quais os conteúdos de filosofia a serem trabalhados num currículo de ensino médio? A única diretriz legal que temos, o inciso III do parágrafo 1º do Artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, determina que os conteúdos de filosofia a serem trabalhados no ensino médio são aqueles necessários ao exercício da cidadania. Mas que conteúdos são estes? E poderíamos ainda emendar: o que é mesmo cidadania? Os conteúdos de filosofia (que não são poucos, se levarmos em conta os dois milênios e meio de produção, e, sobretudo, porque os saberes filosóficos não eliminam os anteriores, mas dobram-se e desdobram-se sobre eles) a serem trabalhados no ensino médio, portanto, poderiam ser, virtualmente, quaisquer. Na medida em que não temos um currículo definido para o ensino da filosofia, seria de se esperar, pois, que os conteúdos trabalhados fossem os mais diversos possíveis; porém, nas mais distintas pesquisas, realizadas nos diferentes estados, o que vemos é uma curiosa repetição. Os temas, assuntos, problemas, filósofos trabalhados nas aulas do ensino médio são espantosamente parecidos. 216 E isso tende a agravar-se. Já temos experiências de algumas importantes universidades que implantaram provas de filosofia em seus exames vestibulares; várias outras já anunciaram para os próximos anos a inclusão de provas de filosofia em seus concursos de ingresso de estudantes. Nos casos já em execução, o que temos assistido? Uma inversão tão curiosa quanto – ao meu ver – desastrosa: como não há um “currículo oficial” de filosofia no qual as universidades possam basear suas provas, é a universidade que define um programa para a prova que, em curto espaço de tempo, acaba se constituindo como o “currículo oficial” de filosofia, ao menos na região de abrangência daquela instituição. A tendência, portanto, é que aos poucos se vá cristalizando um “currículo” de filosofia para o ensino médio, na medida em que as universidades vão incluindo provas de filosofia em seus concursos vestibulares e na medida em que o programa destas provas vão sendo assimilados pelas escolas como aquilo que deve ser ensinado em filosofia. E o que temos visto é que as universidades, ao definirem os programas de filosofia para suas provas nos vestibulares, tendem a apresentar um panorama geral da história da filosofia, privilegiando temas voltados para a filosofia política e a ética (num louvável esforço para definir aqueles “conteúdos necessários ao exercício da cidadania”), adotando alguns autores referenciais que, em geral, são os clássicos antigos e modernos e, dentre os contemporâneos, aqueles filósofos que são objeto de estudo dos professores daquela instituição. Podemos dizer, pois, que estes conteúdos acabam se constituindo como que num “compêndio de história da filosofia”. Impossível não nos lembrarmos, aqui, da crítica que Nietzsche empreendeu ao ensino da filosofia na Alemanha de seu tempo, tanto na 217 educação média quanto nas universidades: na medida em que o Estado já não necessitava da filosofia para legitimar-se, tratava-se, a seu ver, de manter as disciplinas filosóficas negligentemente, apenas como aparência, sem maior compromisso. E mais: essa negligência em relação ao ensino da filosofia não significaria, segundo o filósofo alemão, mais do que uma forma velada, mas efetiva, de promover o desprezo pela filosofia. E como isso se dava? Pela reprodução! Segundo Nietzsche, um ensino de filosofia que não tratava da vida, mas de um pensamento deslocado da vida; um ensino de filosofia voltado a fazer com que os alunos decorassem sistemas de filosofia para responder a uma prova (qualquer semelhança como nossos vestibulares pode não ser mera coincidência!), esquecendo-se de tudo em seguida... Destaco apenas um pequeno trecho de uma interessante passagem de Schopenhauer Educador: “/.../ Devem eles [nossos jovens] por ventura aprender a odiar e desprezar a filosofia? E se ficaria quase tentado a pensar nessa alternativa, quando se sabe como, por ocasião de seus exames de filosofia, os estudantes têm de se martirizar, para imprimir nos seus pobres cérebros as idéias mais loucas e mais impertinentes do espírito humano junto com as mais grandiosas e as mais difíceis de captar /.../ E agora, que se imagine uma mente juvenil, sem muita experiência de vida, em que são encerrados confusamente cinqüenta sistemas reduzidos a fórmulas e cinqüenta críticas destes sistemas – que desordem, que barbárie, que escárnio quando se trata da educação para a filosofia!” (Nietzsche, 2003, p. 212-213). Penso que as críticas de Nietzsche ao seu tempo falam por si só. A nós, cabe-nos pensar nosso próprio tempo e, quem sabe, encontrar 218 hoje e aqui os ecos da crítica nietzschiana. A meu ver, penso que ela nos diga algo, que ela nos alerta para uma armadilha que, talvez, estejamos prestes a cair. Afirmar certo ensino de filosofia pode ser o manto com o qual se recobre um verdadeiro desprezo pela filosofia. Assim, em nosso caso, mesmo uma profícua abertura para a diversidade, possibilitada pela ausência de um “currículo oficial” para a filosofia no ensino médio, e por uma definição excessivamente geral da LDBEN, que acabou não se manifestando, tende a reduzir-se cada vez mais, em torno de uma repetição de assuntos e de autores. Precisamente aquilo que venho denominando, aqui, de um retorno ao mesmo, que facilita e promove a repetição, tirando a potencialidade criativa da filosofia e de seu ensino. Professor de Filosofia: um mestre ignorante? Em que pese a imagem do professor de filosofia como reprodutor, como promotor de um eterno retorno ao mesmo, que repete e se repete, levando-nos a um contexto social de desprezo pela filosofia, teríamos possibilidades de quebrar esse ciclo de repetição? Stéphane Douaillier fez, numa conferência proferida em novembro de 2000, como abertura a um congresso de professores de filosofia, um interessante exercício de pensar o processo filosófico – e também seu ensino –como sendo sempre um começo. Nessa perspectiva, quebra-se o eterno retorno ao mesmo, na medida em que a atividade filosófica constitui-se, sempre e necessariamente, num começar, num recomeçar. Não importa se revisitamos um filósofo, essa visita é mais um começo, na medida em que é nossa visita, na medida em que seu pensamento se renova como nosso pensamento. 219 Vejamos como Douaillier coloca a questão: “1. O ensino da filosofia, mais que um prolongamento sapiencial específico, é um poder de começo. É o que se pode, entre outras coisas, decifrar do prólogo do Fédon: diante da questão de um continuar depois de Sócrates, a reafirmação, para efetuar a continuação, de um começo de Platão. A descontinuidade física da filosofia (mortes de homens, perdas de manuscritos, destruição de escolas, esquecimento dos contextos etc.) não se supera somente pela renovação das disciplinas, o arquivamento dos escritos, a defesa das instituições, o aperfeiçoamento dos paradigmas explicativos, mas ainda por uma série descontínua de recomeços que o ato de ensinar produz em particular no dia-adia” (Douaillier, 2003, p. 28). Para que tal começo seja possível, o professor de filosofia não pode ser o “sabe-tudo”, o comentador de sistemas, o preservador de conceitos. Ao contrário, deve ser, ele próprio, um “mestre ignorante”. Continua o autor já citado: “7. O mestre de filosofia deve ser duplamente ignorante. Deve, em primeiro lugar, ignorar como a esfera privada, na qual sua ação faz irrupção e efração, pode se desdobrar e tornar-se diferente de si mesma, isto é, começar por sua própria conta a operação de um segundo nascimento. “8. O mestre de filosofia, para efetuar essa operação, deve, por isso, ignorar, ele mesmo, algumas coisas, isto é, dar o exemplo – o seu e o de todos os filósofos que estiveram às voltas com uma grande ignorância – de uma ausência de saber que possui a força de pôr fora do mundo no qual se está 220 para se pôr a começar alguma coisa.” (Douaillier, 2003, p. 29-30). Assim, no reino da sabedoria, ficamos condenados a reproduzir, a repetir os conceitos já pensados, como “papagaios de pirata”, sem conseguirmos fazer o movimento da criação, o movimento do pensamento. E se não fazemos o movimento do pensamento, tampouco fazemos o movimento do ensino. Quando muito, expomos sistemas que, como afirmou Nietzsche, serão a duras penas decorados pelos estudantes para serem esquecidos em seguida, logo após o exame. É preciso que descubramos em nós mesmos a ignorância, pois ela é a condição desse começo para nós – na condição de professores de filosofia – e, em conseqüência, é também a condição de que possa haver um começo para os estudantes. Apenas na ignorância, mergulhando nela para poder superá-la, temos condições de romper com o círculo vicioso do eterno retorno ao mesmo, no ensino de filosofia. A noção de “mestre ignorante” Douaillier buscou num belo livro de Jacques Rancière, que tem esse mesmo título: O Mestre Ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual, no qual apresenta a tese de que a emancipação daquele que aprende só é possível a partir da ignorância daquele que ensina. Filósofo da política e esteta, Rancière está preocupado com uma “pedagogização da sociedade”, com um modelo de educação baseado na explicação, no qual aquele que ensina explica algo que sabe, domina, para alguém que não sabe, mas virá a saber. É justamente aí que reside o problema: o modelo explicativo gera a dependência absoluta do estudante em relação ao professor, do discípulo em relação ao mestre, na medida em que é necessário que sempre haja alguém que explique para 221 que um outro aprenda. O mestre é visto como um mediador necessário, sem o qual o estudante jamais aprenderá. E Rancière evidencia os efeitos sociais de um tal modelo: “Com efeito, sabemos que a explicação não é apenas o instrumento embrutecedor dos pedagogos, mas o próprio laço da ordem social. Quem diz ordem, diz hierarquização. A hierarquização supõe explicação, ficção distributiva, justificadora, de uma desigualdade que não tem outra explicação, senão sua própria existência. O quotidiano do trabalho explicador não é mais do que a menor expressão de uma explicação dominante, que caracteriza uma sociedade. Modificando a forma e os limites dos impérios, guerras e revoluções mudam a natureza das explicações dominantes” (Rancière, 2002, p. 162-163). E, mais adiante, continua: “Somente o acaso é forte o suficiente para derrubar a crença instituída, encarnada, na desigualdade /.../ A tarefa à qual as capacidades e os corações republicanos se consagram é construir uma sociedade igual com homens desiguais, reduzir indefinidamente a desigualdade. Porém, quem tomou esse partido só tem um meio de levá-lo a termo: a pedagogização integral da sociedade, isto é, a infantilização generalizada dos indivíduos que a compõem. Mais tarde, chamar-se-á a isso formação contínua – co-extensividade entre a instituição explicadora e a sociedade. A sociedade dos inferiores superiores será igual, ela reduzirá suas desigualdades, quando se houver transformado inteiramente em uma sociedade de explicadores explicados” (Rancière, 2002, p. 182-183). 222 A alternativa a tal pedagogização que, queiramos ou não, assistimos de forma cada vez mais intensa, só pode ser a da emancipação. E a emancipação ocorre quando o estudante consegue, dominando suas próprias ferramentas, aprender para além do mestre, apesar do mestre. Nos termos que temos usado neste artigo, o modelo da explicação corresponde ao retorno ao mesmo: a repetição ad infinitum das mesmas formas, dos mesmos conceitos, que são explicados, aprendidos, sem que nada de novo se produza, sem que, de fato, mestre e aluno possam tornar-se iguais, pois um permanecerá sendo o que explica e outro o que assimila a explicação. Quando o estudante de filosofia torna-se professor de filosofia, o que ele faz é mudar de lugar: passa para o lado dos explicadores, para continuar a saga de explicar, repetir, explicar, repetir... Mas se o professor de filosofia entra na pele no “mestre ignorante”, como sugeriu Douaillier, então já não se trata de explicar, repetir. Trata-se de fazer o movimento, de promover um novo começo, de instaurar a filosofia como processo, como construção. Nesse contexto, o professor de filosofia é um emancipador, alguém que, como Prometeu, leva o fogo aos homens tornando-os criativos, em lugar de mantê-los refém dos deuses. Mas, para isso, é preciso que o professor de filosofia possa fazer o exercício do “esquecimento de si mesmo”. O professor de filosofia, então, é aquele que faz a mediação de uma primeira relação com a filosofia, que instaura um novo começo, para então sair de cena e deixar que o(s) aluno(s) siga(m) suas próprias trilhas. Sem Sócrates, Platão não teria se iniciado em filosofia; mas sem o desaparecimento (a morte) de Sócrates, Platão não teria feito o movimento de um novo começo, produzindo, ele mesmo, filosofia. O 223 professor de filosofia é aquele personagem que, a um só tempo, sabe e ignora; com isso, não explica, mas media a relação dos alunos com os conceitos, saindo de cena em seguida para que a relação com os conceitos seja feita por cada um e por todos. Professor de Filosofia: As Metamorfoses de Nietzsche A pergunta que permanece, pois, é: como fazer esse movimento de um (re)começo? Como formar o futuro professor de filosofia, senão pela explicação? E, nesse caso, como lhe possibilitar as armas para libertar-se do jugo/jogo da explicação/repetição? Em outras palavras, como fazer-nos a nós, professores de filosofia, mestres ignorantes? E como fazer dos futuros professores de filosofia também mestres ignorantes, dispostos a promover novos começos? Uma vez mais recorro a Nietzsche. É bastante conhecida a parábola das três metamorfoses do espírito, que ele apresenta logo no início de Assim Falava Zaratustra: o espírito transforma-se em camelo, aquele disposto a carregar todo o peso do dever; mas o camelo transforma-se em leão, que tem a coragem de dizer não ao dever e instaurar sua própria liberdade; por fim, o leão precisa transformar-se em criança, o único ser que, do interior de sua inocência e esquecimento (poderíamos dizer ignorância?) é capaz de dizer sim. Precisamos, assim, investir no devir-criança do professor de filosofia. Em seu processo de formação, em princípio o professor de filosofia é visto como o camelo: aquele capaz de tudo carregar, de aceitar o peso do dever, de aceitar o “peso da sabedoria”. O professorcamelo é aquele que tudo sabe, que tudo explica, que a ninguém emancipa, nem a si mesmo. Mas ele pode ir para o deserto, enfrentar seu 224 próprio deserto, e fazer-se leão. O professor-leão é aquele que tem a coragem para dizer não, para negar o instituído e as instituições, para afirmar sua própria liberdade. Mas aonde isso leva? A potência do leão só faz sentido se a negação levá-lo ao devir-criança. O professor-criança é o mestre ignorante, aquele que pode instaurar um sempre novo começo, fazendo da filosofia uma experiência viva, criativa. Escreveu Nietzsche: “A criança é inocência e esquecimento, um começar de novo, um jogo, uma roda que gira por si própria, um primeiro movimento, um sagrado dizer que sim. “Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso um sagrado dizer que sim; agora o espírito quer o seu próprio querer, aquele que se perdera para o mundo conquista o seu próprio mundo” (1998, p. 30). Penso ser esse um dos principais desafios que se colocam hoje para as atividades de Prática de Ensino de Filosofia, para a produção em torno de didáticas da filosofia. Precisamos escapar das malhas do método da explicação, que nos leva a sermos reprodutores, na mesma medida em que nos leva a formar professores de filosofia também reprodutores do mesmo, mantendo esse círculo vicioso que nada transforma, que apenas ensina, quem sabe, aquilo que o mesmo Nietzsche chamou de “desprezo pela filosofia”. De camelos que somos, de explicadores que somos, precisamos da coragem do leão para negar isso tudo, para dizer: Não! Basta! Chega de explicação! Mas, mais ainda do que isso, precisamos na inocência e do esquecimento da criança. Precisamos tornarmo-nos crianças, se queremos ser vetores de um novo começo. 225 Mestres ignorantes, a nos emanciparmos e emancipando nossos alunos, estaremos formando novos mestres ignorantes, que por sua vez sejam também vetores de novos começos. Mestres ignorantes, precisamos ter a coragem de abrir-nos à superação e ao esquecimento, para além de todo e qualquer jogo narcísico. Só a esse preço podemos jogar o jogo da emancipação, o único jogo que torna a filosofia possível. O único jogo que pode, de novo, fazer a filosofia possível entre nós. Bibliografia CERLETTI, Alejandro; KOHAN, Walter. A Filosofia no Ensino Médio. Brasília: Ed. UnB, 1999. DOUAILLIER, Stéphane. A Filosofia que começa: desafios para o ensino da filosofia no próximo milênio, em GALLO, Sílvio; CORNELLI, Gabriele; DANELON, Márcio (orgs.). Filosofia do Ensino de Filosofia. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 17-30. GALLO, Sílvio; CORNELLI, Gabriele; DANELON, Márcio (orgs.). Filosofia do Ensino de Filosofia. Petrópolis: Vozes, 2003. MEC-CNE. Parecer CNE/CES 492/2001- Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Filosofia, História, Geografia, Serviço Social, Comunicação Social, Ciências Sociais, Letras, Biblioteconomia, Arquivologia e Museologia (disponível em www.mec.gov.br). NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Ed. Relógio D’Água, 1998. _____ . Escritos sobre Educação. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. PUCRio/Ed. Loyola, 2003. RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2002. 226 FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O ENSINO DE FILOSOFIA José Pedro Boufleuer∗ O tema proposto para esta mesa redonda remete a quatro questões para as quais certamente não temos respostas simples, muito menos consensuais: — O que podemos entender por filosofia ou pelo exercício de filosofar? — Como visualizamos o campo da ação pedagógica em que o ensino da filosofia se inseriria? — Como é possível cumprir objetivos educacionais ensinando filosofia? — Como podemos formar os professores a quem atribuímos a tarefa de ensinar filosofia? De minha parte me proponho a ensaiar respostas a estas questões a partir do que a experiência pessoal e a auto-reflexão me fizeram compreender acerca do ensinar e do aprender filosofia, inspirado, evidentemente, em referenciais e autores com os quais tenho trabalhado ao longo de minha trajetória acadêmica. Professor do Departamento de Pedagogia da UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Endereço eletrônico: [email protected] 227 O exercício do filosofar: uma possível percepção Uma das primeiras lições de filosofia que tive, senão a primeira, foi aquela em que o professor explicou que o exercício do filosofar teria iniciado exatamente no momento em que o homem começou a se questionar sobre si, sobre sua origem e sobre o seu destino. Em se perguntando “quem sou eu?”, “de onde vim?”, “para onde vou?”, o homem teria se revelado um ser em busca do saber, na verdade, um “amigo do saber”, que, por sua vez, corresponderia ao sentido etimológico da palavra “filosofia” (filos = amigo + sofia = saber). Penso que esse não foi um mau começo. Parto, inclusive, dessa noção inicial para encetar a reflexão que aqui pretendo fazer acerca do exercício do filosofar. Assim, me parece razoável afirmar que o ato de filosofar nasce de um impulso que leva o ser humano a buscar um saber mais profundo. E isso nos lembra Platão, que afirmava que a origem do filosofar está no espanto, na capacidade de admirar-se. Mas que experiência seria esta? Na interpretação de Manuel Garcia Morente isso significa “colocar-se ante o universo e o próprio ser humano com um sentimento de estupefação, de admiração, de curiosidade insaciável, como uma criança que não entende nada e para quem tudo é problema” (1976, p. 36). Encontrar problemas e mistérios em todas as coisas e, com isso, encher-se de perguntas pode, portanto, ser percebido como uma disposição filosófica ou como o início do próprio filosofar. Certamente a vida humana apresenta motivos em suficiência para nos espantarmos e nos intrigarmos. A título de ilustração, podemos dizer que no mundo em que vivemos estamos como que jogados entre dois infinitos: por um lado temos a incomensurabilidade do espaço 228 sideral com seus astros; e, por outro, o universo incontável de moléculas e átomos que compõem o menor dos objetos que está à nossa mão. Se considerarmos o tempo da existência do cosmos, veremos a insignificância da duração de uma vida humana. Pensando bem, estamos como que perdidos no espaço e no tempo. Somos nada diante do infinito e do eterno. Tudo isso nos convida para uma profunda reflexão. Embora desconhecendo nosso princípio e nosso fim, temos a capacidade de pensarmos sobre nós mesmos e sobre o momento da nossa existência. Refletir sobre a vida, sobre o mundo e sobre o sentido da história que vamos fazendo na companhia de outros homens é fazer jus a uma natureza humana que permite a autoconsciência. Filosofar então, podemos dizer, é não abrir mão desse exercício refletivo. Apesar dos limites da apreensão da consciência humana, sempre é possível nos situarmos diante da experiência do passado, historicamente conhecido, e na perspectiva de um futuro para o qual nos encaminhamos. Em assim o fazendo, estamos em pleno exercício do filosofar. E por mais óbvio que seja, sempre é bom lembrar que a tarefa de filosofar não pode ser vista como reservada a grandes sábios e pensadores. Ela compete a toda pessoa que queira fazer jus à sua capacidade de refletir acerca da existência, acerca do que faz e para quê faz. Sabe-se que os gregos passaram para a história como “inventores” da filosofia. Isso ocorreu porque eles se deixaram desafiar por perguntas para as quais não dispunham de respostas à mão. O esforço em compreender os princípios dirigentes da ordem universal significava, na verdade, a busca de um melhor situar-se e aperceber-se no mundo. O avanço para explicações racionais em detrimento das explicações míticas iria contribuir para uma visão menos atemorizante e mais responsável do homem em relação a seu entorno. A pressuposição 229 já não mais de uma ordem imperscrutável no que se refere ao dinamismo da sociedade, e sim de uma ordem historicamente construída e racionalmente compreensível, permitiram a criação da democracia helênica enquanto forma co-responsável de organização e de condução dos destinos da vida coletiva. Assim, a busca do conhecimento, mesmo que sempre limitado e passível de redefinições e ajustes, passa a significar algo próprio do filosofar. Aquele a quem tudo parece tranqüilo, sem mistérios e sem perguntas, não se apresentam razões para buscar o conhecimento, ou um maior conhecimento. Já aquele que se deixa levar pelo impulso do filosofar, este nunca encontrará um ponto final nas suas buscas. Diante de respostas obtidas, muitas outras perguntas vão aparecendo e exigindo novas respostas. Podemos entender a atitude filosófica, portanto, como a disposição de sempre estar aberto ao novo, de nunca se acomodar, de nunca se satisfazer plenamente com uma resposta dada. Trata-se de uma atitude que percebe a realidade em sua complexidade, como impossível de ser explicitada de forma cabal por esta ou aquela teoria, por este ou aquele ponto de vista. Aliás, entender que “cada ponto de vista não passa da vista de um ponto...” parece ser uma máxima que caracteriza o filósofo. Diferentemente do que à primeira vista possa parecer, a filosofia não trata de questões distantes, alheias à nossa vida. Ao contrário, ela tematiza o que de mais próximo tem a nós: a vida, as relações com os outros e com a realidade, os pressupostos do pensar e do agir, enfim, o que nos constitui como seres humanos. Por isso ela é entendida fundamentalmente como um exercício de reflexão. Mas mais do que de um “voltar-se sobre si mesmo”, de um reflexionar-se solitariamente, é um refletir-se em algo, ao modo de um “ver-se no 230 espelho”. Figurativamente aqui tomado, o espelho representa a perspectiva dos outros, consubstanciada nos elementos da tradição social e cultural. Por isso o “espelhar-se”, enquanto exercício reflexivo, não pode ser entendido como algo que o sujeito pudesse realizar autonomamente, já que se trata de uma percepção necessariamente mediada por uma vasta teia de interações simbólicas. O campo das ações pedagógicas: um esforço de configuração O ensino da filosofia certamente deve ser entendido como uma possível ação educativa realizada com o recurso do filosofar. Isso faz com que ele deva ser visto no bojo das muitas ou desejadas ações pedagógicas que a sociedade humana implementa junto às novas gerações. E antes de pensar nas potencialidades desse recurso pedagógico que seria o filosofar, façamos algumas considerações acerca do próprio educar, de suas possíveis finalidades e condições de realização. A educação, poderíamos começar dizendo, constitui uma prática social que pode ser diferenciada de outras tantas práticas existentes. Identificar essa prática social e aperceber-se das atribuições que a ela são conferidas no âmbito da sociedade humana certamente nos dará elementos para a visualização do sentido pedagógico do próprio filosofar. Para esse exercício de identificação do “campo da educação” sempre temos considerado sugestivo o conceito filosófico-antropológico da “pedagógica” de Enrique Dussel. Para esse autor latino-americano há três níveis de proximidade entre os homens e que têm sua origem na estrutura básica da família: a relação entre um homem (varão) e uma 231 mulher, que constitui a relação erótica; a relação entre pai e filho e, por extensão, a de mestre-discípulo, que configura a pedagógica; e, por último, a relação irmão-irmão, a partir da qual se constitui a relação que chamamos de política. Dussel se vale desses níveis de proximidade humana para caracterizar os processos de alienação e de libertação latino-americana (Dussel, 1977). Já para os objetivos deste debate interessa a possibilidade de visualizar a partir desse esboço teórico o caráter específico da educação enquanto dimensão fundamental da vida humana em sociedade. Para Dussel a pedagógica é, essencialmente, toda bipolaridade em que há anterioridade de um dos pólos sobre o outro, e onde há legado tradicional ou cultural a ser transmitido. Ela compreende o conjunto das interações sociais e culturais que permitem a continuidade histórica de uma geração para a outra. Trata-se, portanto, de um campo de atuação que transcende o espaço de atuação profissional da escola e da sala de aula para abarcar também as muitas outras instituições e espaços de atuação em que se realizam atividades educativas ou que demandam um sentido pedagógico em seu fazer (Boufleuer, 1991, p.77). A pedagogia adquire, nesta perspectiva teórico-conceitual, uma identidade similar ao campo de estudos da política. Mas enquanto a pedagogia se coloca sob a dimensão bipolar da anterioridadeposterioridade, do mestre e do discípulo, a política se coloca na dimensão da relação de igualdade, dos irmãos, dos colegas, dos cidadãos. Sob o ponto de vista da ética, a pedagogia cumpre a sua tarefa quando, na responsabilidade para com as novas gerações, mostra o caminho já percorrido pelas gerações adultas, para que possa servir de referência a quem tem tudo por andar. Em transmitindo o legado 232 histórico e cultural às novas gerações, a pedagogia prepara para a política, para a inserção no debate acerca dos destinos da sociedade. As ações educativas que são desenvolvidas pela sociedade objetivam, portanto, a inserção dos sujeitos, especialmente os das novas gerações, no mundo cultural vigente. Este mundo é sempre a expressão do estágio de desenvolvimento das ciências, das formas de organização e de convivência social e dos modos de conduta e expressão individual. Em outros termos, a educação sempre busca ser a expressão do estágio de desenvolvimento da razão do homem no que concerne às relações que ele estabelece com a natureza, com os outros e consigo mesmo. Assim, pode-se dizer, que a educação é sempre a expressão (racional) do entendimento que determinada sociedade tem em relação ao que constitui propriamente o “humano”. Assim considerada, a pedagogia passa a ser percebida como uma dimensão fundamental da vida. Inclusive nossa condição de “humanos” devemos à pedagógica relação que estabelecemos com a geração mais velha e com nossos coetâneos. Desde a mais tenra idade, outras pessoas, nossos pais e educadores, irmãos e companheiros, vêm interagindo conosco com vistas ao estabelecimento de entendimentos sobre aspectos do mundo. É esse o processo de educação e de socialização que propriamente nos constitui. (Boufleuer, 1997, p. 21). A pedagogia se realiza no âmbito da educação das novas gerações, seja na família, seja na escola, seja nos espaços sociais ampliados, incluindo aí instituições diversas e, particularmente, os meios de comunicação. Nesse sentido, todos nós somos frutos de ações pedagógicas, de ações de pedagogos e pedagogas. Mas também, de uma forma ou de outra, atuamos pedagogicamente junto a outros, os nossos 233 filhos, os nossos alunos, os nossos irmãos mais novos e, inclusive, junto àqueles com quem interagimos no exercício de nossas profissões. A pedagogia constitui, portanto, essa atividade interativa mediante a qual “homens produzem outros homens em homens”, para nos valermos da linguagem do filósofo Kant. E a questão crucial da pedagogia é que para essa “produção de homens” não existe uma orientação previamente definida, um modelo a ser seguido. Cada geração educa a subseqüente a partir do seu entendimento do “humano”. É essa a situação dialética fundamental que constitui a pedagogia. É essa também a sua condicionalidade histórica, já que a cada época e, num certo sentido, a cada geração se implementa uma pedagogia com base no que em seu contexto se elabora como ideal de formação humana. A pedagogia, à luz desse entendimento, tem como sua tarefa precípua a tematização do sentido do humano, reconstruído em cada contexto histórico, e das condições que permitem a sua produção através de processos educativos intencionalmente estabelecidos. Enfim, podemos entender por pedagogia o campo de estudos que se ocupa dos fundamentos e das condições de possibilidade do encontro de educadores e educandos, em dialético confronto de anterioridade e posterioridade pedagógica. Encontro esse que ocorre em função de um saber a ser comunicado, de uma percepção de mundo a ser transmitida e que, de uma forma ou de outra, se refere ao estabelecido nos âmbitos da cultura científica, dos regramentos da vida social e das condições de produção das personalidades. 234 A possível contribuição da filosofia para a educação Após a caracterização dessa prática social que chamamos de educação, configurada na dimensão pedagógica da vida humana, voltemos novamente à questão do ensino da filosofia. De imediato, e por óbvio, se coloca a expectativa de que a filosofia ou o exercício do filosofar possa oferecer uma contribuição ao processo de humanização dos educandos. Mas em que termos essa contribuição poderia ser vista a ponto de justificar a sua inserção no currículo de formação escolar? Como poderíamos visualizar a possibilidade de “educar filosofando” a partir do que acima identificamos como o modus operandi da filosofia? Gostaríamos de ensaiar uma resposta a essa questão não a partir de considerações acerca da validade intrínseca dos conteúdos ou reflexões que poderiam ser propostos para o ensino da filosofia, mas a partir do que poderíamos sinalizar como efeito desejável a ser produzido junto aos educandos. Recordemos, para isso, o que foi dito acima acerca do filosofar: a busca de um saber em maior profundidade acerca do que há de mais próximo a nós, isto é, a vida, as relações com os outros e com a realidade, os pressupostos do pensar e agir, enfim, um esforço de aperceber-se mediante a explicitação e compreensão de elementos que compõem o nosso mundo simbolicamente constituído. O efeito de uma tematização do mundo vivido assim conduzida só pode ser um: o espanto, a admiração. Na verdade, espera-se do filosofar um efeito de percepção da realidade capaz de levar à exclamação: — Ah, então é isso! Como nunca havia pensado nisso antes! Pela tematização e explicitação do mundo vivido a filosofia se orienta para a identificação daquilo que nos governa de modo inconsciente, num sentido que poderíamos chamar de “desalienação”. 235 Trata-se, na verdade, de um exercício que parte do pressuposto de que a vida, os pensamentos, as convicções, as atitudes, os valores, enfim, o que consideramos ser o real e o seu significado é resultante de uma história que se condensa no tempo atual. Para esse exercício, que chamamos de hermenêutica, o presente é o ponto de partida para uma determinada tematização. O filosofar, nessa perspectiva, consiste no esforço em trazer elementos da cultura, como conceitos, interpretações, referências etc., que possam contribuir para o “dar-se conta” do que é a nossa vida e o seu entorno. Assim, a obtenção de um efeito de admiração ou de estupefação é o que confirma a pertinência existencial do exercício reflexivo realizado, ou seja, o sucesso do filosofar. A filosofia enquanto exercício hermenêutico busca desvendar a historicidade da vida humana, esforçando-se em compreender os saberes e as práticas existentes a partir das intencionalidades que os produziram. Em outros termos, trata-se do esforço em compreender como os modos de pensar, de ser e de agir se sedimentaram ao longo dos tempos, percebendo como os sentidos se colocam, se mantêm ou se modificam. Nesse sentido a hermenêutica se coloca na perspectiva da concriatividade histórica, em que o passado e o presente se encontram em constante mediação. Por isso as respostas dadas em outros contextos históricos precisam ser reavaliadas a partir das circunstâncias do presente. Assim sendo, a hermenêutica constitui, por um lado, um trabalho permanente de re-interpretação do passado à luz do presente e, de outro, uma contínua re-interpretação do presente à luz do legado do passado. A hermenêutica, enquanto modo do exercício da filosofia no âmbito da educação, deve oportunizar a leitura do mundo da sala de aula, a fim de que sejam desvelados os muitos sentidos que aí se fazem 236 presentes e interagem. Requer-se, para essa leitura, um ambiente de liberdade em que professores e alunos se relacionam e se intercomunicam, tomando como ponto de partida a experiência que cada um tem com a realidade. Ensinar filosofia, ou educar mediante o exercício do filosofar, é oportunizar aos educandos uma melhor percepção de si pela tematização e explicitação de componentes da tradição filosófica, via de regra teórico-conceituais, que de modo decisivo contribuem na articulação da teia de interações simbólicas em que se funda a vida humana em sociedade. Como formar o professor de filosofia? Para responder a essa questão é preciso começar a pensar sobre as competências que se esperam de um professor de filosofia. Na sua condição de anterioridade pedagógica ele necessita ter um preparo que o habilite a tematizar o sentido do humano historicamente produzido, especialmente sob o ponto de vista das elaborações mais diretamente vinculadas ao campo de estudos da filosofia. Isso exigirá, por óbvio, uma boa inserção na história do pensamento humano e um conseqüente domínio dos conceitos fundamentais que a atravessam. A possibilidade de assumir o ensino de filosofia como um exercício hermenêutico requer uma capacidade de identificação em meio aos sentidos postos no âmbito de uma sala de aula, por exemplo, as concepções que os atravessam. Concepções estas que se articulam, via de regra, a conceitos e referenciais implicitamente assumidos e que, por isso, necessitam de tematização. Oferecer elementos que ajudem na explicitação de conceitos e propor reflexões a partir do significado das 237 palavras que utilizamos certamente é um bom começo para o exercício do filosofar. Se assumirmos e pressuposto de que a realidade é simbolicamente construída, o esforço assim orientado contribuirá, sem dúvida, para uma melhor apreensão do mundo e da vida. Isto porque, afinal, conceitos são palavras que utilizamos para designar coisas, fatos, situações, percepções. O diálogo hermenêutico, aqui proposto como uma espécie de método pedagógico para o exercício do filosofar, pressupõe uma intencional orientação para o que acima chamamos de espanto, isto é, uma orientação no sentido da explicitação dos pressupostos do pensar e do agir. Não se trata, portanto, de uma simples troca de opiniões, nem de uma conversa que se coloca em sentido simétrico entre educador e educando. Há aqui uma anterioridade pedagógica a ser observada e que necessita estar devidamente qualificada. O professor deve estar habilitado para trazer, de modo pertinente, os elementos da tradição filosófica capazes de contribuir na compreensão das temáticas propostas ou dos problemas suscitados.29 Dadas essas exigências, poder-se-ia dizer que o professor de filosofia deve se habilitar mediante um bom curso de filosofia em que ele tenha se ocupado com temas de grande abrangência, como o da racionalidade, das possibilidades do conhecimento, das condições da crítica, e que, pelo menos em sentido amplo, tenha apreendido o “espírito” das épocas que marcaram o pensamento filosófico ao longo dos tempos, consubstanciado nos grandes paradigmas de racionalidade e de conhecimento. 29 Desidério Murcho, em artigo acerca da natureza da filosofia e o seu ensino, alerta para as duas formas de acabar com a filosofia, ou seja, transformando-a “numa espécie de conversa de café, vaga e sem qualquer contato com a tradição filosófica”, ou, então, numa história dos grandes problemas filosóficos, contada sem qualquer envolvimento nessa discussão. (Murcho, 2002, p. 15). 238 Mas para além do domínio dos conteúdos das disciplinas que compõem o currículo desse curso é necessário que o candidato a professor de filosofia tenha aprendido a filosofar, no sentido de ter percebido a pertinência dos conhecimentos filosóficos para a compreensão da vida humana, especialmente sob o ponto de vista de sua histórica constituição. Em outros termos, é necessário que o candidato a professor de filosofia tenha também se constituído em filósofo e que, como tal, seja capaz de perceber a dimensão filosófica implicada na educação. Além disso, como educador filósofo, deve esforçar-se em tornar reflexiva e coerente a sua prática, auxiliando-se, para isso, com o que a filosofia tem dito sobre temas que, de alguma forma, tocam à educação. Bibliografia BOUFLEUER, José Pedro. Pedagogia latino-americana: Freire e Dussel. Ijuí: UNIJUÍ, 1991. ___. Pedagogia da ação comunicativa: uma leitura de Habermas. Ijuí: UNIJUÍ, 1997. DUSSEL, Enrique D. Para uma ética da libertação latino-americana III: erótica e pedagógica. São Paulo: Loyola, 1977. MORENTE, M. G. Fundamentos de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1976. MURCHO, Desidério. A natureza da filosofia e o ensino. Educação. Santa Maria (RS), UFSM, Vol. 27, nº 2, 2002, p. 13-17. 239 CURRÍCULOS E FILOSOFIA 240 ALGUMAS QUESTÕES SOBRE CURRÍCULO E FILOSOFIA Henrique Garcia Sobreira∗ Introdução Embora pareça cabotino, foi impossível redigir essa tentativa de contribuição sem recordar aquele jovem estudante de química que há vinte anos atrás, usando meu nome, percorreu pela primeira vez os desconhecidos corredores da Faculdade de Educação da UFRJ procurando pela sala onde receberia as aulas de Filosofia da Educação, Sociologia da Educação. Aquele outro Henrique, já professor de química no segundo grau privado, acreditava que ali poderia encontrar respostas para os dramas que encontrava em suas salas de aula. Bom, a licenciatura foi pouco, muito pouco para resolver aquela ansiedade. Entrei no Mestrado em Educação para ver se melhorava como professor. O resultado foi que em pouco menos de quatro anos impôs-se a idéia (que hoje considero discutível) que os problemas da aula de química não seriam resolvidos sem que antes outros problemas mais gerais da educação fossem ao menos debatidos com mais radicalidade. Aos poucos, esse sedutor debate educacional, que nos exige um pouco de filosofia, um pouco de história, um pouco de sociologia, um pouco de psicologia, um pouco de antropologia etc., passou a ocupar o centro de minhas atenções. Alguns podem criticar os pedagogos apontando essa característica como insuficiência. Outros podem sofrer Doutor em Educação (UFRJ/FACED), Professor-Adjunto (UERJ/FEBF). Endereço eletrônico: [email protected] 241 por tentarem atender, desde cedo e com competência, as demandas que cada uma dessas áreas exige. Eu prefiro os pacientes, os que percebem que a educação, talvez, seja a mais humana das ciências humanas. Aqueles que entendem que esse início de carreira do professor é confuso porque a própria educação também o é e aí, aguardam que cada um de nós vá mergulhando nesses autores sempre novos e fantásticos até que, um dia, resolva voltar à superfície para pagar os débitos intelectuais adquiridos nesse período de deslumbramento. É exatamente quando nos acreditamos estar nessa fase que os colegas em início de carreira começam achar que nós estamos complicando muito ao utilizar Deleuse e Guatari para tentar explicar porque as criança têm dificuldade com a conta de “vai um”. O problema é que tanto eles como nós estamos certos: os dois franceses podem ajudar nessa questão e buscar o seu auxílio pode ser um exagero. Encontros como esse aqui de Santa Maria são um momento privilegiado em que essas questões podem ser postas em aberto e essa polaridade assumir o seu aspecto mais produtivo. Em especial quando nos deparamos com o necessário reconhecimento de que, ao contrário do que acreditávamos, ainda estamos no início de nossas carreiras. Isto posto, devo adiantar que não me considero nem filósofo, nem professor de filosofia. Mais adiante vou socializar com vocês minha atual tentativa de pagar minhas dívidas com Hegel. Por outro lado, embora essa área tenha sido importante na minha carreira, não sou especialista em currículos. Mas também me atreverei a apresentar minhas idéias sobre campo a partir dos autores que me são mais familiares: Adorno e Horkheimer. Antes de alinhavar algumas questões que tenho estudado e das 242 quais espero que surjam perguntas que me façam aprender mais, gostaria de socializar a metáfora pela qual hoje eu entendo tanto a educação como a filosofia e o currículo: o navegante Colombo. Ele sabia onde queria chegar (às Índias); possuía seu guia (a estrela Polar), mas veio dar nas Américas. Considero essa aparente contradição com o “navegar é preciso” a melhor forma de encararmos os problemas que encontramos na educação, formal ou não. Escola e Indústria Cultural no Brasil Há uma prática publicitária cada vez mais utilizada: oferta de “bens culturais-científicos”, como brinde, que incorporariam valor tanto ao produto quanto ao consumidor. O fundamento/resultado dessa estratégia é uma sofisticada transformação dos mais variados produtos do intelecto e da prática humano-social em mercadorias, as quais todos, de uma forma mais rápida ou mais lenta, mais completa ou mais fragmentada, à vista ou a prazo, estariam em condições de adquirir e usufruir. Os frankfurteanos Adorno & Horkheimer talvez não se espantassem com esses fatos, afinal de contas consideravam que: Ao longo dos séculos, a sociedade se preparou para Victor Mature e Mickey Rooney (1994, p. 146). Isso exige reflexões sobre os motivos pelos quais tanto os publicitários se autorizam a apostar despudoradamente no sucesso dessas campanhas como os colecionadores de selos30 possuem uma crença irrestrita no benefício que recebem. Estão em tela: a organização racional da sociedade; a sociedade do conhecimento e do aprendizado; a 30 Deve ser lembrado que os selos cumprem uma importante função disfarçando a presença da moeda sonante no processo de troca. 243 organização propedêutico-conteudista do aparato educativo e, principalmente, a onipresença da forma-mercadoria como essência das relações humanas em geral e, a despeito da redundância, da educação escolar. Essa situação é fruto de três séculos de investimento na idéia de que há uma Razão positiva, mobilizadora da emancipação dos homens. Desta, por reprodução assexuada, vieram à luz tanto a ciência (onipotente e onipresente) como o conhecimento (entendido como inevitável progresso). Em outras palavras, é o resultado imanente dos modos pelos quais essa se instalou como categoria organizadora do progresso da modernidade iluminista, libertando a humanidade das explicações míticas. O esclarecimento, porém, reconheceu as antigas potências no legado platônico e aristotélico da metafísica e instaurou um processo contra a pretensão de verdade dos universais, acusando-a de superstição. (...) Doravante, a matéria deve ser dominada sem o recurso ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a ilusão de qualidades ocultas. (...) (...) A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas. Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim ao uno, passa a ser ilusão (...) Mas os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram o produto do próprio esclarecimento. No cálculo científico dos acontecimentos anula-se a conta que outrora o pensamento dera, nos mitos, dos acontecimentos. O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar. (...) Do mesmo modo que os mitos já levam a cabo o esclarecimento, assim também o esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo que dá na mitologia. Todo conteúdo, ele o recebe dos mitos, 244 para destruí-los, e ao julgá-los, ele cai na órbita do mito. (Adorno & Horkheimer, 1994, p. 23-26). O esclarecimento subestimou o papel dos mitos, da natureza encantada, na auto-retirada do homem da barbárie (homo homini lupus). Assim, vale recorrer a um resgate da Razão como alternativa à Barbárie (e não aos mitos) submetida à exigência de ser negativa e, ao menos, duplamente crítica. De um lado, crítica por apresentar-se metodologicamente como negação radical de qualquer perspectiva gerenciadora do devir; de outro, por estar em permanente crise, não se oferecendo como ancoradouro seguro nas tempestades sociais. Ora, o que se espera da escola e dos professores é exatamente o oposto. Todos os discursos sobre educação, presentes no atual espectro ideológico da sociedade, por mais divergentes ou nuançados que sejam, projetam na educação uma expectativa exagerada em relação à garantia de um futuro para a sociedade e para os indivíduos (estes, por sua vez permanecem em uma posição de menoridade ampliada perante o avanço quantitativo do aparelho científico-tecnológico). Aqui vale lembrar a conceituação de Adorno (1995) sobre ideologia: uma verdade posta a serviço de uma mentira. Em outras palavras, possivelmente é verdadeiro que a educação, a escola e o professor não são inutilidades nesta ou em futuras formas de organização social. Mas a ênfase dada a essa verdade cumpre função de velar a mentira sobre as promessas que, desde suas primeiras formulações no campo das práticas sociais, se dispensa de cumprir. Isso implicaria, talvez, que investir nos aspectos míticos da escola e da educação seja mais importante para relocalizar a escola no processo de desbarbarização do que organizá-la como meio eficaz de introduzir seus destinatários na sociedade de mercado. Exatamente por isso é que o conceito de indústria cultural pode 245 ter sua validade hermenêutica estendida para o sofisticado aparato escolar/educativo moderno. Adorno & Horkheimer (1994) o desenvolveram estudando o cinema, o rádio e o livros de bolso norteamericanos da década de 1940. Não conheceram a televisão31, muito menos a informática/internet. A questão que move o corpo de reflexões desses autores, principalmente Adorno, é o imbricamento objetivo, disfarçado e cada vez mais intenso entre progresso e barbárie. No caso da escola e de seus currículos é sempre bom lembrar uma de suas lapidares frases: O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural (Adorno & Horkheimer, 1994, p. 118). A indústria cultural oferece a fuga do quotidiano como forma exclusiva de satisfação (A diversão favorece a resignação, que nela quer se esquecer, Adorno & Horkheimer, 1994, p. 133), obscurecendo a possibilidade de resistência individual. As lágrimas simpáticas catalisadas pelo amor impossível da heroína operam no esquecimento do conjunto de renúncias afetivas exigidas pelo quotidiano da sociedade de mercado. Tanto o horror provocado pela pornográfica exibição de um massacre como a hilaridade provocada pela sova do personagem da comédia pastelão anestesiam a percepção da crueldade organizada para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem. Enganam-se os que entendem que os frankfurteanos se referiam apenas aos produtos da Semicultura oferecidos às massas exploradas: 31 Embora a tenham antecipado: Os próprios meios técnicos tendem a se uniformizar. A televisão visa a síntese do rádio e do cinema, que é retardada enquanto os interessados não se põem de acordo, mas cujas possibilidades ilimitadas prometem aumentar o empobrecimento dos materiais estéticos a tal ponto que a identidade mal disfarçada dos produtos da indústria cultural pode vir a triunfar já amanhã – numa realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte total (Adorno & Horkheimer, 1994, p. 116). 246 A unidade implacável da indústria cultural atesta a unidade em formação da política. As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou entre histórias publicadas em revistas de diferentes preços, tem menos a ver com o seu conteúdo do que sua utilidade para a classificação, organização e computação estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades servem apenas para uma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com seu level, previamente caracterizado por certos sinais, escolher a categoria dos produtos de massa fabricada para seu tipo. Reduzidos a simples material estatístico, os consumidores são distribuídos nos mapas de pesquisa (em grupos de rendimentos assinalados por zonas vermelhas, verdes e azuis. (...) Em seu lazer, as pessoas devem se orientar por essa unidade que caracteriza a produção (...) o esquematismo é o primeiro serviço prestado ao cliente. (...) Para o consumidor, não há mais nada a classificar que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção (...) (Adorno & Horkheimer, 1994, p. 116-18). 247 Assim, poder e conhecimento transformam-se em sinônimos e substitui-se a satisfação embutida nas questões que dizem respeito ao que se chama “verdade” pelas operações eficazes. Aquela, por também colonizar o usufruto do tempo livre dos homens a partir da lógica da acumulação privada, apresentando como novidade a confirmação do desde sempre estabelecido: o esquematismo da produção otimizada. Na maior parte das vezes, a demanda por currículos se instala como elemento pacificador, almeja-se um esquema organizador que devolva a paz às nossas salas de aula. Qualquer uso dos conceitos que transcenda a sumarização técnica e auxiliar dos dados factuais foi eliminado como um último vestígio de superstição. Os conceitos foram “aerodinamizados”, racionalizados, tornaram-se instrumentos da economia de mão-de-obra. É como se o próprio pensamento tivesse se reduzido ao nível do processo Industrial (...) Quanto mais as idéias se tornam automáticas, instrumentalizadas, menos alguém vê nelas pensamentos com um significado próprio (Horkheimer, s.d.: 29-30). Voltando à educação e à escola, vale destacar que a relação das duas com o Esclarecimento foi inaugurada pela assertiva kantiana de que O homem somente pode vir a ser homem através da educação. Ele não é outra coisa senão o produto de sua educação (Kant in Freitag, 1994, p. 22). Por sua vez, como só o homem é educador do homem, Kant limitase a condenar aquelas pessoas sem disciplina e instrução (em outras palavras, afastados da Razão) como maus educadores. O debate posterior concentra-se nas formas e nos conteúdos de preparar esse bom educador, pedra de toque para um novo homem e uma nova sociedade. É Marx (1987), em sua Tese Terceira contra Feuerbach quem vai recolocar esse 248 problema em termos não-metafísicos, a mudança da educação e das circunstâncias não deve esquecer o papel ativo do homem sobre as circunstâncias e muito menos que o próprio educador deve ser educado. Dessa forma, as idealizações da burguesia ascendente a respeito da educação cederam, pouco a pouco, espaço para um conceito de escola como item na agenda da luta operária contra a extração da mais-valia. A quantidade de tempo que, inicialmente as crianças, mais tarde jovens e adolescentes e, nos dias atuais até mesmo adultos dispensam à permanência nos bancos escolares, decorre de uma variável redução do tempo em que a força de trabalho permanece submetida à lógica da espoliação capitalista. Meu principal argumento a favor da aplicabilidade da categoria indústria cultural na compreensão da escola moderna considera que tanto os conteúdos culturais que foram deixados a seu cargo como a sua organização interna passaram por esse filtro. Ainda mais levando-se em conta que mesmo um ligeiro olhar sobre as práticas de escolarização nesse “mundo globalizado” evidencia que o universalismo burguês, presente no projeto kantiano, foi substituído pela oferta de educações A e B (e, estendendo a metáfora cinematográfica, postulo a existência de uma educação noir: aquela oferecida à noite nas redes pública e privada que atendem aos excluídos dessas duas) que produzem com insuspeita coerência tanto esbanjadores de semicultura como os operadores acríticos do desenvolvimento científico. Em outras palavras, a escola contemporânea se tornou um aparato da indústria cultural exatamente por ser locus privilegiado da disseminação de semicultura. Obviamente as conquistas operárias em relação à quantidade de tempo em que estão obrigadas a vender sua força de trabalho não se resumem ao tempo utilizado na escolarização. Muito menos deve ser 249 entendido que a escolarização dos filhos dos operários é um bem em si. A imposição, nos últimos cento e cinqüenta anos, da educação para o trabalho (ou seja, a incorporação de novas habilidades e códigos disciplinares a serem postos a serviço da reprodução ampliada do capital) dispensa maiores comentários. Apenas destaco um aspecto, dentre uma infinidade de outros, de uma formação social plena de antagonismos. A escola e sua história podem ser apreendidas como marcadas por essa dualidade: espaço de investimento na produção do homem desejado pelo esclarecimento (mito?) e lugar de utilização de parte do tempo livre conquistado na luta de classes (outro mito?). A oferta de educação universalizada a partir do reconhecimento dessa polaridade irreconciliável não é um processo redutível com facilidade a uma operação eficaz, embora grandes esforços sejam dirigidos para essa meta. Aponto aqui, três aspectos que dificultam o sucesso da educação escolar como operação eficaz. Primeiro, em sendo a escola uma demanda relacionada à Razão, sua organização depende do seu afastamento das paixões. O resultado dessa premissa exigiu sua operacionalização como uma sinopse de faticidades. Para tal, o conhecimento humano que ela prometia transmitir teve de ser adaptado à forma-mercadoria, quer dizer, apenas o que se prestava a participar da troca de equivalentes tornou-se objeto da cultura escolar. Esse processo foi radicalizado com a introdução da avaliação racional de resultados dos processos de interação entre as gerações mais jovens e as gerações mais velhas por meio de testes padronizados a partir do final do século XIX. Isso obrigou os destinatários da escola a comportarem-se como consumidores compulsivos dos conteúdos curriculares, também padronizáveis/padronizantes, caso estivessem de acordo com a idéia de uma escola que funcionasse como socializadora das experiências acumuladas histórica e socialmente. 250 Dessa forma, há uma tripla restrição das experiências transmissíveis: na primeira, privilegiam-se aquelas imediatamente vinculadas à produção de equivalentes (por exemplo: a matemática das contas e das fórmulas, as regras gramaticais isoladas de textos com sentido, a história dos heróis isolados e das datas comemorativas, a geografia dos lugares e das coisas etc.); na segunda, adicionam-se ao currículo aquelas que podem ser reduzidas à equivalentes (por exemplo: certos exercícios de interpretação de texto, a filosofia a literatura e as artes como seqüências lineares de pensadores, escritores e artistas etc., e tudo isso apresentado como enriquecimento curricular) e na terceira, excluem-se todas experiências intelectuais que têm como solução um novo problema e não uma resposta unívoca (haja vista quase meio século de vicissitudes do conceito freiriano de leitura do mundo e o constrangimento a que se vê submetida boa parte dos docentes e dos discentes quando resolve experimentar os desvios que o pensamento sugere em suas aulas). No clima da semiformação, os conteúdos objetivos, coisificados e com caráter de mercadoria da formação cultural perduram à custa de seu conteúdo de verdade e de suas relações vivas com o sujeito vivo (...) (Adorno, 1996, p. 396). Um segundo aspecto é que, fora da escola, o tempo livre conquistado pela luta política da força de trabalho foi, progressivamente, objeto da intervenção da Indústria cultural. Dessa forma, a disseminação de produtos de uma falsa cultura, apresentada como de massas, plena de encantamento mágico, opera de forma manipulatória, oferecendo mercadorias culturais, objetos de identificação compulsiva. Esse processo opera uma redução no que passa a ser considerado conhecimento humano. Ao invés da fruição e ressignificação das conquistas do processo histórico 251 da autoprodução do homem estabelece-se a competição individual pela acumulação quantitativa de conteúdos semiculturais. Assim, as reduções descritas como características do primeiro aspecto são duplicadas em seus efeitos. Como terceiro aspecto, o conceito de qualidade de formação, presente tanto no primitivo ideário burguês quanto no antigo desejo operário, é substituído pelo de rendimento. Enfim, completa-se o processo que permite a escola se organizar como operação eficaz. Nesse movimento, obliterados os aspectos totalitários da Razão e da Indústria cultural, a escola convive com uma Barbárie cada vez mais ampliada, na qual se sente cada vez menos implicada e perante a qual se considera cada vez mais impotente. Os professores além de participarem como agentes e destinatários desse conjunto de situações intraescolares também são sujeitos e objetos do conjunto de conflitos mais amplos da forma atual de organização social. Cada um ao seu modo solicita dos órgãos do sistema educacional e das agências formadoras fundamentos racionais e científicos para que confirmem ou corrijam suas práticas pedagógicas. De certo modo, nossos estudos, pesquisas e aulas visam responder a essa demanda, tentando oferecer-lhes instrumentos racionais (científicos) que dirijam suas práticas pedagógicas quotidianas. Aparentemente o resultado objetivo dessas ações tem servido pouco para produzir uma consciência social capaz de resistir ao convite para esbanjar cultura (maravilha do mundo) sem esbanjar dinheiro. . Mas, então, o que é a nossa educação? Aparentemente algo que realizamos porque outros também a realizam. Isso não significa que ela não exista ou não cumpra funções claramente determinadas e/ou importantes. Mas que a ressignificação nacional de sua existência é mais 252 fonte de problemas do que virtudes, principalmente devido ao atendimento à demanda por educação via duas ramificações principais, as redes pública e privada. Vinculação administrativa que, por sua vez, tem pouco poder explicativo, pois sob essas denominações reúne-se uma multiplicidade de modelos, todos eles com tantas distinções internas, que seria ocioso relacioná-las aqui. Entretanto, merece destaque, em nível macro, a categoria especializada “escola particular” que atua como poderoso fetiche em nossa sociedade, radicalizando ainda mais a interpretação de nossa aparelhagem educacional como absolutamente colonizada pela indústria cultural. Frente à polaridade constitutiva da escola moderna, sua viabilização exigiu sua conformação à Razão onipotente da troca de equivalentes. Esse processo não se deu de forma homogênea, muito menos sem oposição, tanto que ainda não se completou, embora seja hegemônico. No caso brasileiro, a polarização entre universalismo burguês e reivindicação operária não ocupou o centro do debate a respeito da escolarização universal dos brasileiros. Aqui, esse campo de contradições e lutas foi obscurecido pela total negligência dos dominantes em relação à escolarização. O foco foi, e ainda hoje é, a luta pela escola negada. Dessa forma, a transformação reificada, sob o princípio da troca de equivalentes, dos conteúdos culturais passíveis de estarem presentes como objeto das práticas pedagógicas ocorreu sem qualquer oposição significativa. Na maior parte dos estabelecimentos e níveis de ensino, a sinopse de faticidades reina soberana; algo autoproclamado como teorização crítica está reservado a nichos especiais, inclusive dentro de uma mesma instituição. Além do mais, a existência de escola passou a ser considerada um bem em si, o que deixa seus destinatários obrigados 253 à uma constante e eterna gratidão. Por outro lado, a organização pedagógico-curricular a partir de uma lógica de mercado (oferta e procura, acumulação e reprodução ampliada) contribuiu para o desenvolvimento de uma complacência ilimitada com as evidências de seu mau funcionamento. Busca-se obsessivamente a elevação do rendimento sem qualquer reflexão a respeito dos objetos inseridos no quotidiano da sala de aula. A construção social e solidária da qualidade na assimilação e na reprodução do processo histórico de autoprodução humana emerge aqui e ali, sufocada pela pressão dirigida ao aceleramento da acumulação individual da cada vez maior quantidade de elementos semiculturais inseridos como requisitos mínimos de seleção. Nessa otimização do processo de transmissão, a escola termina sendo um lugar em que a, digamos assim, “produção de capacidades” depende mais da possibilidade de resistência física e econômica do que do tão caro conceito ideológico de “capacidades imanentes”. Um professor brasileiro do século passado cunhou a expressão “educação bancária”32. No entanto, o que deveria ser a categoria inaugural de um amplo projeto de pesquisas e práticas pedagógicas, com honrosas exceções, foi superado pela sua transformação em slogan e pela estrutura que a introduziu no ciclo infindável de commodities pedagógicas nas práticas de escolarização. Felizmente a escola não ocupa, no interior da formação econômico-social, o lugar e a importância que “ela” acredita representar. Muito menos, a reunião de jovens (das mais variadas idades) que “ela” promove não se encerra no enclausuramento da sala de aula. Mas se os 32 Evidentemente Paulo Freire não era obrigado a reconhecer os nexos de coerência entre sua metáfora e as categorias indústria cultural e semicultura. 254 seus danos não são expressão completa do que potencialmente anuncia, isso não significa que deva ser deixada de lado. Um caminho necessário passa pela inversão do foco da luta política em relação à educação: sem abandonar as, ainda necessárias, trincheiras educacionais antiestatais deve-se investir na luta político-pedagógica interna contra a lógica de mercado que regula a convivência escolar. Um obstáculo que se interpõe é o fato de que nós, professores, somos um sujeito especial nesse processo. Somos aqueles que ficamos nesse espaço social que para a grande maioria é temporário: a escola. O senso comum admite que professores são aqueles e aquelas que “gostam” da escola. Alguns de nós exageram esse “gostar” a ponto de teorizá-lo como “vocação”. Essa palavra/conceito, embora esteja fora de moda nos círculos acadêmicos e sindicais (temos quase duas décadas em que esses dois campos discursivos investem na “profissionalização do magistério”) me parece cada vez mais assumir a forma daquilo que os antropólogos chamam de “categoria nativa” nesse grupo/espaço cultural. De alguma forma, parece que somos capturados, desde as mais antigas experiências escolares para essa profissão. O conceito de auto-reflexão foi desenvolvido a partir do debate de Adorno (2000) a respeito dos tabus que envolvem a profissão de ensinar. Esses tabus, no caso dos professores, podem ser “filtros”, adquiridos ao longo das experiências escolares, que organizam o aprendizado de teorias pedagógicas e terminam influenciando na opção de estratégias adotadas em seu conturbado cotidiano de vida e trabalho. A auto-reflexão consiste na elaboração dessas experiências primitivas e é proposta como processo de esclarecimento interno dos possíveis pontos de contato ontogenéticos (admitindo-se a utilização dessa categoria ao indivíduo professor) com os filogenéticos (idem para a 255 profissão). Busco, por meio desse conceito, desenvolver novas formas e conteúdos de um currículo alternativo para a formação do professor que possa nos colocar em posição de autonomia em relação a esse passado. O percurso da pesquisa que desenvolvo atualmente aponta como um tabu adicional, no caso do professor brasileiro, a questão da morte. No caso dos professores esse tabu é distinto se tratamos dos sujeitos ou das instituições de formação. Se para os primeiros a categoria pode ser abordada a partir da sua presença real, para as instituições há um aspecto (semi) metafórico que carece de maiores estudos. Apresento, em seguida, algumas questões que tento aprender a respeito desse ponto. A morte: implicações no aprender e ensinar A morte é uma das questões mais recalcada nas sociedades contemporâneas cristãs ocidentais. No campo da educação ela surgiu em minhas pesquisas de duas formas principais: no plano geral, a angústia dos professores dos Cursos Normais Médios antes da homologação do Parecer 01/2003 do CNE; no seu aspecto micro, nas fortes imagens dos professores que duram, se perenizam para seus estudantes, pelos mais variados motivos. Minha abordagem foi inspirada pelo interlúdio filosófico de Marcuse (s.d.) em Eros e Civilização. A essa leitura emancipatória de Hegel adicionamos a, também libertária, leitura de Kojève (2002). Entender o lugar da morte na filosofia de Hegel é entender como o homem (modelo abstrato, conceitual) abandona, na relação de discurso, o seu estado animal (ser-em-si), para atingir a consciência (serpara-si). A consciência supõe um desejo que exige uma ação para satisfazê-lo (essa só se faz pela negação, destruição ou transformação do objeto desejado). O desejo especificamente antropogênico é o de reconhecimento, desejo que se dirige a um outro. Quando esse outro é 256 outro homem, se está diante de duas consciências que desejam se impor uma a outra, uma luta de puro prestígio travada em vista do reconhecimento. Ora, essa luta exige consciência dos riscos que se corre. Quando esses seres abstratos tentam mutuamente impor seus desejos, o que pode acontecer, se ambos se arriscarem completamente, é a vitoria de um aniquilando o outro, ou ambos perecem. Nos dois casos não há mais agente do reconhecimento. É uma luta na qual a vitória é a derrota. Para que a realidade humana possa constituir-se como realidade reconhecida, é preciso que ambos adversários continuem vivos após a luta. Ora, isso só é possível se eles se comportarem de modo diverso durante a luta. Por atos de liberdade irredutíveis, até imprevisíveis ou indeduzíveis, devem se constituir como desiguais nessa e após essa luta. Um, sem ter sido a isso predestinado, deve ter medo do outro, deve ceder, deve recusar-se a arriscar a vida em nome de seu desejo de reconhecimento. Deve abandonar seu desejo e satisfazer o desejo do outro: deve reconhecê-lo sem ser reconhecido por ele. Ora, reconhecê-lo assim é reconhecê-lo como senhor e reconhecer-se (e fazer-se reconhecer) como escravo do senhor (Kojève, 2002, p. 15). Esse é o fundamento da dialética senhor-escravo de Hegel, ato inaugural (abstrato, simbólico) da história da humanidade. Um abandona a luta e se constitui humano na condição de desigual. Por outro lado, o senhor não suprime completamente o escravo, não pode eliminá-lo, poupa a vida e a consciência do outro mas destrói a sua autonomia. Esse cadáver vivo, o escravo, é o adversário vencido por não ter adotado o princípio do senhor, vencer ou morrer, e aceitado a vida concedida. 257 Porém, o processo da história vai revelar a insuficiência e o caráter trágico da situação de senhor. A relação desigual não é um reconhecimento propriamente dito. Ao assumir o trabalho para satisfazer o desejo do senhor, o escravo substitui a morte pela angústia da morte. Na sujeição pelo trabalho está a fonte de progresso humano e a história da humanidade é a história do escravo trabalhador, onde a angústia de morte o impulsiona à liberdade. O senhor, por não poder reconhecer o outro que o reconhece, acha-se num impasse. O escravo, ao contrário, reconhece desde o início o outro (o senhor). Basta-lhe pois impor-se a ele, fazer-se reconhecer por ele, para que estabeleça o reconhecimento mútuo e recíproco, o único que pode realizar e satisfazer plenamente o homem. É certo que, para isso aconteça, o escravo deve deixar de ser escravo: ele tem de transcender-se, de suprimir-se como escravo (Kojève, 2002, p. 24). O senhor, fixado na dominação, para ele supremo valor, não pode superá-la. Está numa condição dada, fixa e imutável que não esgota a existência humana. Ao escravo, não basta ter sentido medo ou se sentir percebendo ter medo da morte. Vivendo em função desse estado inicial de angústia, servindo alguém que se teme, exterioriza-se (pelo trabalho formador), transforma o mundo objetivo real e pode libertar-se do terror escravizante. Para Kojève, Hegel compreendia o homem como indivíduo livre e histórico apenas como mortal no sentido próprio e forte do termo. ... é ao aceitar voluntariamente o risco de morte numa luta por puro prestígio que o homem aparece pela primeira vez no mundo natural; é ao resignar-se 258 à morte, ao revelá-la pelo discurso, que o homem chega finalmente ao Saber absoluto ou à sabedoria, concluindo assim a história. Pois é partindo da idéia da morte que Hegel elabora sua ciência (...) [capaz de explicar existência] de um ser finito consciente de sua finitude e dela dispondo a seu bel-prazer (2002, p. 504). É a morte que engendra o homem na natureza e o faz progredir. Essa “morte antropogênica” só adquire sentido no contexto da ação negadora. O ato de negar o real, e manter a negação sob a forma de obra criada por essa negação ativa, é o conceito hegeliano de liberdade. ... se de um lado a liberdade é negatividade, e se de outro lado a negatividade é nada e morte, não há liberdade sem morte, e só o ser mortal pode ser livre. É possível até dizer que a morte é a manifestação última e autêntica da liberdade (Kojève, 2002, p. 518). A contribuição que essa abordagem oferece ao processo de auto-reflexão diz respeito às relações professor-aluno. Nela pode haver algo dessa luta em busca do reconhecimento. Estruturalmente o professor já se encontra na posição de senhor e os estudantes na de escravo. Há casos em que o professor excede na exigência de reconhecimento. Assim, esse contato pode se transformar em uma luta em busca do prestígio sem qualquer possibilidade do estudante lançar mão da astúcia do escravo. O problema é que a criança pode perceber que nós somos falsos senhores: aquele que é fisicamente mais forte e castiga o mais fraco (Adorno, 2000, p. 105). Nesse processo, a submissão do mais fraco para “continuar vivo” na escola opera em sentido diverso da emancipação. A autoreflexão busca o entendimento de estruturas da profissão docente que 259 exigem cuidado e arrojo. Muito cuidado, pois a elaboração dessa farsa exige muito arrojo em enfrentar a criança que fomos, naqueles dias em que passamos por professores desse tipo. Sem auto-reflexão, podemos, diante das crianças, exorbitar em relação ao recuo que lhes é natural e não lhes permitir ocupar o lugar necessário para que se percebam na tarefa de nos superar. A vinculação antropogênica entre morte e liberdade poderia reduzir nossa angústia. Afinal de contas, resolver a angústia da morte por meio do seu recalque (negação) nem suprime a angústia, nem afasta a morte. Elaborá-la discursivamente, suportá-la, enfrentá-la voluntariamente pode ser o caminho para legislações e educação em que o devir incerto e incontrolável seja mais importante do que a permanência conhecida e pacificadora. É dessa forma que os estudos pioneiros de Ariès (2003) o comportamento do homem, nas sociedades cristãs ocidentais, diante da morte pode nos auxiliar. Não é fácil lidar com ela, por mais que recalquemos sua presença, não a evitamos. Conquistas da medicina (desde os exames de colesterol e o anti-tabagismo até os ressucitamentos celebrizados pelo seriado televisivo Plantão Médico (ER), passando pela vida por meio de aparelhos) podem até criar a ilusão de seu adiamento. Nas conferências reunidas em sua obra (no original em 1975) o historiador analisa o processo pelo qual a morte é inicialmente esperada no leito pelo enfermo, depois transformada em cerimônia pública e organizada tranqüilamente pelo próprio moribundo (moralmente obrigado nem a blefar, muito menos se vangloriar) até se chegar à morte domada, higienizada, em que as tradicionais separações rituais entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos foi substituída por velórios assépticos em cemitérios extra-urbanos. 260 Mas, se no fim do século XVII começa-se a perceber sinais de intolerância, é preciso admitir que durante mais de um milênio estava-se perfeitamente acomodado a esta promiscuidade entre os vivos e os mortos. O espetáculo dos mortos, cujos ossos afloravam à superfície dos cemitérios, como o crânio de Hamlet, não impressionava mais os vivos que a idéia da própria morte. Estavam tão familiarizados com os mortos quanto com sua própria morte (Ariés, 2003, p. 45). Ao analisar os túmulos Ariès conclui que, no espelho de sua própria morte, cada homem redescobria o segredo de sua própria individualidade (2003, p. 63). Esse reconhecer-se a si próprio em sua morte sofre, a partir de meados do século XIX uma inversão: ela tornase um vergonhoso objeto de interdição, ao ponto de se estabelecer, como prática social, ocultar do moribundo a gravidade do seu estado. Ela sai de casa mas, morre-se no hospital porque os médicos não conseguiram curar (2003, p. 85), passa a ser um fenômeno técnico decorrente da interrupção dos cuidados, declarada por médicos com a precisão de segundos, com o moribundo inconsciente. A morte foi dividida, parcelada numa série de pequenas etapas dentre as quais, definitivamente, não se sabe qual foi a verdadeira morte, aquela em que se perdeu a consciência ou aquela em que se perdeu a respiração... Todas essas pequenas mortes silenciosas substituíram e apagaram a grande ação dramática da morte, e ninguém mais tem forças ou paciência de esperar durante semanas um momento que perdeu parte do seu sentido (2003, p. 86) Kovács adverte que, frente a impossibilidade de matar a morte, há grande espaço para que a ilusão da busca da vida eterna seja apenas o 261 ocultamento do desejo pela juventude eterna e que as defesas contra o medo da morte assumam forma de restrições. Há momentos em que o sujeito fica tão acuado que parece não viver. E esse não-viver, pode ser equivalente a morrer. Então surge uma situação paradoxal, em que a pessoa “está” morta, mas “esqueceu” de morrer; temos a chamada morte em vida (2002, p. 3). Inicialmente, protegemo-nos dela por meio da crença que só ocorre com os outros. Na adolescência, momento de experimentar novos prazeres e sentir o limite do possível, a morte é representada como resultado de inabilidade (p. ex. overdose, excesso de velocidade etc.) e que, o verdadeiro herói não vai morrer. Mais tarde, no pico da vida, nos espreita como acidente ou busca. Mas quando se chega ao topo da montanha e se admira a paisagem à volta, a descida parece obrigatória (Kovács, 2002, p. 7) isso traz novos significados à vida. O tempo não pode ser estancado e temos que decidir, sem chance de fuga, onde deve ser colocada a ênfase que dirige nossas ações: na vida ou na morte. A morte como limite nos ajuda a crescer, mas a mote vivenciada como limite, também é dor, perda de função, das carnes, do afeto. É também solidão, tristeza, pobreza. Uma das imagens mais fortes da morte é a da velhice, representada por uma velha encarquilhada, magra, ossuda, sem dentes, feia e fedida. É uma visão que nos causa repulsa e terror (2002, p. 9). Mesmo na situação atual em que se morre de uma morte escondida, em que cabe ao médico estabelecer a morte total, após uma sucessão de pequenas mortes clínicas, Kovács, antes de concluir que o homem é responsável pela sua vida e pela sua morte, considera: 262 Na verdade, o ser humano possui dois grandes medos: o medo da vida e o medo da morte. O medo da vida se vincula ao medo da realização, da individualização e, portanto, está propenso à destruição (2002, p. 25). Para Serres (2003) tornamo-nos homens porque aprendemos que iríamos morrer (mesmo que jamais soubéssemos como; p. 10) e do mesmo modo que os indivíduos, as civilizações também morrem de maneira certa e imprevisível (p. 11). Duas formas de morte, portanto, acompanham o estabelecimento de nossa civilização: a pessoal a cultural. Mas, novas perspectivas sobre a morte estabelecem sua presença: a global, seja pelo holocausto nuclear ou pela repetição de cataclismos, recentemente descobertos, que já extinguiram a vida na face da Terra por mais de uma vez e uma outra morte, a direta e local, conhecida como apoptose, o sinal codificado que, a partir do DNA, dispara o suicídio celular. Serres tenta compreender como é que a partir das mudanças de nosso corpo (que sugerem a exclusão da morte de nossos pensamentos, costumes, condutas pessoais e ritos coletivos) às duas formas antigas de imortalidade (vida e espírito) se agrega um novo tipo, o da duração por meio do qual o novo (antes derivado das aleatórias mutação, adaptação e seleção) emerge, primeiro e apenas, a partir dos Organismos Fenotipicamente Modificados e, hoje também, pelos Organismos Geneticamente Modificados. Podemos assumir que os atuais conteúdos e estratégias de ensino, bem como a organização da educação que lhes é necessária chegou ao estágio atual por meio da mutação, adaptação e seleção que, como nos processos biológicos, não seguiu um caminho natural. A 263 Educação Fenotipicamente Modificada desde as relações modelares mestre-discípulo da tradição grega até os atuais exames vestibulares, passando por Comênio, Rousseau, Paulo Freire e outros parece ter esgotado seu potencial de desenvolvimento. Embora essa metáfora seja arriscada, creio que devemos começar a pensar em uma Educação Geneticamente Modificada. Passando a palavra adiante Recapitulando alguns pontos para a nossa discussão, comecei tratando as relações entre currículo e filosofia apresentando como os conceitos frankfurteanos de indústria cultural e semicultura podem ser úteis na compreensão do processo pelo qual a educação, esperança iluminista de emancipação, se instalou como conflituoso mecanismo de alienação: a escola organizada como forma eficaz de transferir os conhecimentos mais passíveis de assumir forma-mercadoria. Apontei que, na maior parte das vezes, a demanda por currículo (tanto no seu aspecto de coisa em si, como nos mais extensos e intensos debates sobre o que ele é ou deveria ser) é tradução da demanda por uma tranqüilidade e uma certeza que são praticamente impossíveis se o eixo da educação abandonar a perspectiva de garantir um devir. Isso significa que precisamos desenvolver outras formas de viabilizar a necessária submissão dos estudantes para que a escola resulte em sujeitos emancipados. A auto-reflexão foi proposta como uma possibilidade alternativa de forma e de conteúdos da educação. No caso dos professores que, em última instância, serão os encarregados ocupar a linha de frente de novas formas de ensinar e aprender, sugeri que esse 264 processo carece da elaboração, pelos professores em formação e exercício, das mais antigas experiências escolares desses sujeitos. Sem elaborar a pré-história escolar daqueles que se dirigem a essa profissão, corremos o risco do eterno atrelamento à modelos de aula e currículo que não nos permitem a percepção dos motivos pelos quais eles funcionam com alguns e fracassam com outros. Para terminar, há a questão da elaboração do papel da morte em seus aspectos reais e simbólicos nas nossas atividades. Ao longo da história de nossa profissão, os professores, e mais tarde as professoras, emergem como uma espécie de Eros desexualizado. Versões mais antigas de insurgência contra essa determinação levam à condenação ao suicídio de Sócrates e .à castração de Abelardo. As teorias da vocação, aparentemente superadas mas com grande disseminação no chão-deescola possuem como fundamento o reinado dessa espécie de amor desinteressado. Talvez uma educação emancipatória dependa da autoesclarecida regência de Tânatos. Quer dizer, um dia nossas aulas, nossos cursos, nossas palestras, independente da nossa vontade de continuar, precisam ser encerradas... Bibliografia ADORNO, T. W. Teoria da semicultura. Educação e Sociedade. XVII, (56). Campinas: Papirus & CEDES, (388-411), 1996. __________. Prismas. Crítica cultural e sociedade. Trad.: Augustin Wernet & Jorge Matos Brito de Almeida. São Paulo: Ática, 1998. __________. Educação e emancipação. Trad: Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 2000. ADORNO, T. W. & HORKEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Trad: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. 265 ARIÉS, P. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações S. A. 2002. FREITAG, B. O Indivíduo em Formação. São Paulo: Cortez Editora, 1994. HORKHEIMER, M. O Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, s.d. KOJÈVE, A. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002. KOVÁCS, M. J. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo Livraria e Editora: 2002. MARCUSE, H. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. São Paulo: Editora Guanabara, s.d. (8ª ed.) OLIVEIRA, J. H. B. de. Viver a Morte: abordagem antropológica e psicológica. Coimbra: Livraria Almeida, 1998. SERRES, M. Hominescências. O começo de uma outra humanidade? Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil Ltda., 2001. 266 CURRÍCULO: UMA QUESTÃO SOMENTE TÉCNICA? Roberto Luiz Machado∗ Introdução Antes de iniciar minhas reflexões sobre a questão curricular, gostaria de esclarecer, em primeiro lugar, minha postura de trabalho, na qual venho acreditando cada vez mais, principalmente quando este envolve a ação humana. O trabalho só tem sucesso quando elaborado a partir de uma construção coletiva, respeitando as contradições, os conflitos e a diversidade. Para que isso ocorra é necessário buscar a mediação na solução de problemas e esta, por sua vez, deverá ultrapassar o paradigma do ganhar-perder. O que estou explicitando é a postura colaborativa que devemos ter no tratamento de toda e qualquer questão que envolva mudança, buscando dessa forma, soluções consensuais e a construção de “lugares” sociais legítimos para os participantes (Schnitman, 1999, p. 18). Portanto, sendo o currículo uma ação humana ele só pode ser efetivado a partir de uma construção coletiva embasada por esse princípio. Professor do Departamento de Metodologia do Ensino do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria. Endereço eletrônico: [email protected] 267 Proponho, então, nesse texto, apontar algumas reflexões sobre currículo, contemplando os seguintes itens: concepções de currículo, sua história e alguns encaminhamentos para sua elaboração. Mudando a concepção curricular Quanto mais adentramos o século XXI, mais intensas se tornam as discussões em torno da questão educacional. Tais discussões invadem os diferentes setores de nossa sociedade que, direta ou indiretamente, elegem o setor educacional como o responsável na adaptação da sociedade às reformas econômicas, políticas, sociais e tecnológicas que se efetivam. Por esses motivos, assistimos ao longo desse tempo, sobretudo a partir da década de 90, a inúmeros debates e produções acadêmicas dirigindo à educação diferentes avaliações, ora defendendo-a, ora acusando-a, principalmente, no que se refere ao modo como ela vem efetivando suas práticas. Minha preocupação localiza-se no fato de que é importante que uma análise profunda se efetive no âmbito educacional, pois não podemos deixar de perceber que a sociedade se encontra em plena efetivação de um novo arranjo social. Estamos vivendo, segundo Silva (1999, p. 7), no meio de uma época em que praticamente se torna realidade a junção entre ser humano e máquina. Vivemos num mundo social onde as identidades culturais e sociais emergem, se afirmam, apagando fronteiras, transgredindo proibições e tabus identitários. Entretanto, ainda vivemos num mundo em que a fome, a falta de 268 emprego, as diferenças sociais e culturais, os preconceitos, as exclusões étnicas e sexuais ainda se fazem presentes. É nesse paradoxo que, hoje, nos encontramos. E é nessa perspectiva antagônica e contraditória que o setor educacional procura estabelecer algumas direções em suas atividades. Todavia, tal procura se estabelece ainda na semi-escuridão do porvir, pois não sabemos quase nada do tão propalado século XXI. Nesse viés de discussão, Santos (2000, p. 42) nos informa que há um desassossego no ar e que temos a sensação de estarmos na orla do tempo, entre um presente quase a terminar e um futuro que ainda não nasceu. Quanto à questão curricular, esta pode ser pensada de diversas maneiras: como plano de estudos, como um elenco de disciplinas, como uma postura filosófica, como um guia de experiências de aprendizagens, dentre tantas outras representações. No entanto, meu entendimento sobre o currículo se efetiva na sua interligação com a prática e, portanto sua reflexão está diretamente ligada à práxis, sendo essa, numa concepção freireana, entendida como a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá -lo. Essa postura se justifica pelo fato de perceber, nos dias atuais, um movimento em busca de novas configurações curriculares no meio educacional, visto que a estrutura que geralmente o embasa parece não querer mais se adaptar às necessidades e aos problemas que enfrentamos nos dias atuais. Pode-se afirmar, numa primeira análise, que o currículo se assenta em duas grandes questões: Que tipo de homens e de mulheres queremos? E que tipo de sociedade almejamos? Desse modo é que compreendo a reflexão sobre o currículo como um entendimento da práxis, pois para responder a essas questões, é preciso uma reflexão profunda, cautelosa e, sobretudo, amparada por 269 outros campos do conhecimento, pois o currículo envolve conteúdo, este, por sua vez, engloba conhecimentos e, portanto, valores, crenças, hábitos, e, por causa disso, entrecruzado de poder e conflitos. Por essa razão, a questão curricular é, hoje, tão discutida e tão debatida. E qual seria a causa dessa centralidade? Através da história da educação podemos pontuar as inúmeras vezes em que o sistema educacional foi requisitado para a implantação de reformas políticas, econômicas e sociais. A justificativa dessa recorrência é que, inteligentemente, o pilar da regulação social descobriu, muito cedo, que a instituição de ensino é o campo primeiro a estabelecer a direção, a finalidade e a vontade da sociedade (Popkewitz, 1997, p. 21). Portanto, debruçar-se sobre a questão curricular, a priori significa, por um lado, tratar de intenções e práticas envolvendo conhecimentos, mas por outro não podemos esquecer que sendo um artefato histórico e social o currículo é responsável pela formação profissional, mas acima de tudo pela construção de identidades e subjetividades. Nessa linha de pensamento, pode-se inferir que o tratamento da questão curricular deve ultrapassar os limites de seus componentes estruturais, os quais ainda acomodam-se em uma estrutura racionalizada, fechada e disciplinar. Nas reflexões anteriores, fica muito clara a articulação do currículo com diversas outras questões. Dentre elas, as questões epistemológicas, sociais e identitárias. Minha questão, nesse momento, é a seguinte: e na prática, a questão curricular leva em conta essas preocupações? Numa postura bastante pessimista, eu diria que não, e acrescentaria que ainda levaremos muito tempo para chegar a esse patamar de entendimento. Mas, por que? Poderiam me perguntar? 270 Respondo da seguinte maneira: temos, ainda, muito cristalizados, em nós, a concepção técnica racional do que seja currículo. A história curricular nos mostra, claramente, essa realidade. Currículo: um pouco de história Na era contemporânea de nossa história, podemos constatar que inúmeras e diferentes reformas foram propostas para o setor educacional, sempre no papel de torná-lo funcional para a sociedade, comprovando, assim, sua centralidade tanto na implantação de reformas, quanto na conservação de construtos sociais. Essa centralidade nada mais é do que o sintoma de uma das grandes características dessa época: o “mito da educação”. Nessa mitificação, a educação era a substituta da política e, portanto, vista como a única via possível de operar na construção do homem e da mulher modernos e na realização de uma sociedade orgânica mediante a livre colaboração de todos (Cambi, 1999, p. 390). Mesmo passando por inúmeras reflexões contrárias a esse modo de perceber a Educação, esse mito, ainda hoje, encontra-se muito cristalizado em nosso contexto. Nesse sentido, as preocupações em encontrar uma nova maneira de fazer educação centralizavam-se em grandes questões e dilemas, tais como: formar o trabalhador especializado ou proporcionar uma educação geral? O que deveria ser ensinado? Que habilidades básicas deveriam ser desenvolvidas? Preparar para se ajustar à sociedade ou transformá-la? Preparar para a economia ou para a democracia? No que concerne às teorias curriculares, saliento duas fortes perspectivas: a que centralizou seus estudos nos componentes 271 curriculares, sem a preocupação em relacioná-los com a estrutura mais ampla da sociedade e a que priorizou, em suas análises, a estreita relação entre currículo e sociedade. No entanto, uma questão aflora nesse momento. Se as teorias curriculares, até então realizadas, movimentavam-se dentro de uma estrutura societal marcadamente moderna, ora compartilhando, ora criticando, em que medida tais teorias, ou ainda, tais categorias de análise podem explicar a complexidade e os dilemas no entendimento da questão curricular quando, em nossos dias atuais, percebemos fortes indícios de uma transição do paradigma social? Estamos conscientes que um novo diálogo entre a questão curricular e a estrutura mais ampla da sociedade atual deverá ser pautado na complementaridade de duas posturas: a primeira, embasada pela vontade de encontrar novos caminhos que possam embasar um currículo mais adequado às mudanças vertiginosas pela qual passa a sociedade e, a segunda, pelo embasamento dessa vontade numa postura de cautela, pois segundo Santos (2000, p. 15), a morte de um paradigma traz dentro de si o paradigma que lhe há de suceder, todavia, essa passagem da morte para a vida não dispõe de pilares firmes para ser percorrida em segurança, pois a transição paradigmática é semi-cega e semi invisível. No final dos anos sessenta, década caracterizada por turbulentas transformações, tanto no plano político quanto no social, vimos o aparecimento de publicações que questionavam o enfoque tradicional de educação, bem como o questionamento das teorias que fundamentavam a questão curricular até então. 272 Nesse ínterim, surge, então, uma nova maneira de olhar a questão curricular, colocando em xeque os arranjos educacionais existentes, sobretudo, as formas dominantes do conhecimento, abalando, dessa maneira, a teoria educacional tradicional. A publicação de Michael Young (1971) “destacava o caráter socialmente construído das formas de consciência e de conhecimento, bem como suas estreitas relações com estruturas sociais, institucionais e econômicas” (Silva, 1999, p. 66). Foi nesse movimento que os estudos curriculares encontraram uma oxigenação para suas análises, aproveitando os insights provindos dos novos aportes da Teoria Crítica, propondo-se a desenvolver novos estudos sobre a questão curricular, levando em conta os contextos mais amplos. A preocupação principal de tais estudos gravita, basicamente, na tentativa de desvelar os interesses e os jogos de força implicados no currículo através de seus tão “inocentes” elementos técnicos: os objetivos, os conteúdos e a avaliação. Nas décadas de 80 e 90, a postura crítica curricular recorre a outras categorias de análise, trazendo à discussão curricular, as questões do multiculturalismo, do gênero, da sexualidade e dos estudos culturais, dentre outros. O esforço impetrado pelos teóricos pertencentes a esse enfoque vem sendo na tentativa de redimensionar cada vez mais as categorias de análise da relação entre o currículo e sociedade. Entendemos que quando a teoria crítica curricular recorre à sociedade mais ampla para compor sua teorização sobre os efeitos dessa 273 na estrutura curricular, o processo que se instaura é o da interlocução. Sendo assim, o que está em jogo neste processo é o diálogo, compreendendo como tal, sua acepção mais simples que aponta para o entendimento com vistas à solução de problemas comuns, ou seja, a partir de uma comunicação chegar-se a um entendimento, mediando, cuidadosamente, as perdas e os ganhos. Dialogando com o novo arranjo social Colocar-se em diálogo com a reconfiguração social, significa adotar uma postura de abertura, no sentido de reconhecer no núcleo dos problemas, fontes de novas possibilidades e perspectivas. Desse modo, como ponto de partida, podemos refletir sobre quatro noções que se apresentam conflitantes na relação currículo e sociedade, mesmo levando em conta que o novo contexto social se apresenta ainda, segundo Santos (2000, p. 39), como uma sociedade intervalar, conotada, sobretudo pela insegurança de apontar novos direcionamentos em relação às referidas noções. 1. Noção do saber Na ânsia da ordem e do controle, a perspectiva social moderna busca elaborar teorias e explicações que sejam as mais abrangentes possíveis, que reúnam, num único sistema, a compreensão total da estrutura e do funcionamento do universo e do mundo social. Essa noção exemplifica as grandes narrativas. Já o novo arranjo social se coloca numa posição de profunda desconfiança em relação às pretensões totalizantes desse saber. 274 2. Noções de razão e de racionalidade Para o paradigma moderno essas duas noções eram os alicerces na busca da emancipação, e implicava, por um lado, no desencantamento, na crítica da religião, da tradição, dos valores herdados, sedimentados pela história e por outro, acreditava na fé, na razão (em sua capacidade de fundar uma ordem racional) e na ciência (como instância competente a transgredir o jugo do obscurantismo no sentido de transformar a natureza para satisfazer às necessidades materiais do homem e da mulher. Para o novo arranjo, essas noções, ao invés de levar ao estabelecimento da sociedade perfeita, leva ao pesadelo de uma sociedade totalitária e burocraticamente organizada. 3. Noção de progresso A rejeição à noção de progresso presente no novo arranjo social baseia-se, sobretudo, na sensação de insegurança que hoje vivemos e pode ser explicada pela grande assimetria entre a capacidade de agir e a capacidade de prever. Essa assimetria se explica pela absorção do pilar da emancipação pelo pilar da regulação, sobretudo no que se refere ao mercado, neutralizando, dessa forma, a possibilidade de uma transformação social. Paralelo a isso, no que diz respeito ao pilar da emancipação o que assistimos foi sua ênfase na ciência e na técnica, tornando-as hiper-cientificizadas. 275 4. Noção de sujeito Outro ataque à sociedade moderna é a questão do sujeito que se apresenta livre, autônomo, centrado e soberano; ele é guiado unicamente por sua razão e por sua racionalidade. Sua existência coincide com seu pensamento. Na crítica dessa centralidade e autonomia, o novo arranjo social coloca em dúvida essa perspectiva, considerando que o sujeito é fragmentado e dividido, pois ele não pensa e nem fala; ele é pensado, falado e produzido. 5. Noção de objetividade Outra noção contestada pelo novo arranjo é o objetivismo, noção dominante da sociedade moderna. Para o novo arranjo, baseado na incerteza e no repúdio às afirmações categóricas, ele acena positivamente para o subjetivismo das interpretações parciais e localizadas. Tais reflexões, ainda que incipientes, já se mostram capazes de apontar a existência de uma crise na questão curricular. Se anteriormente tal crise se efetivou pelo esgotamento em suas análises através dos componentes puramente técnicos, hoje a crise se caracteriza em outros patamares de discussão, tais como: fragmentação e totalidade, dicotomia entre teoria e prática, noções de espaço e de tempo, organização do conhecimento escolar, conhecimento científico e conhecimento empírico, criatividade e intuição, propriedade disciplinar, arbitrariedade em relação ao recorte do conhecimento, conhecimento universal e contextual, as noções de harmonia e conflito, flexibilidade estrutural do currículo, a não hegemonia do contexto formal de formação etc... 276 Para finalizar minhas reflexões sobre a questão curricular, parece-me que tratar dessa questão significa, acima de tudo, refletir sobre a práxis. Além disso, para entendê-la de forma mais abrangente, ampliando sua noção racionalizada e tecnocrata e desenlaçá-la de análises puramente teóricas, é preciso adotar uma postura “relacional” em sua análise, que segundo Apple (1982, p. 21), significa ver a atividade do currículo como uma atividade social, ou seja, constituída e entrecruzada de inúmeros fatores condicionantes. Em outras palavras significa analisar a questão curricular de uma forma menos imediata e menos naturalizante, recorrendo a fatos menos visíveis para a compreensão dos condicionamentos que o constituem, como por exemplo: qual é a nossa concepção de currículo? Em que alicerces sociais ele se estrutura? Se o currículo constrói identidades e subjetividades, que tipo de ser humano, queremos ter nos próximos anos? Ou, quem é o beneficiado do currículo que nos propomos efetivar? E por fim, o que o currículo legitima e o que ele exclui? Bibliografia APPLE, Michael. Ideologia e Currículo. Trad. Carlos Eduardo F Carvalho. São Paulo: Brasiliense, 1982. CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Uneso, 1999. POPKEWITZ, Thomas S. Reforma Educacional: uma política sociológica – poder e conhecimento em Educação. Trad. Beatriz Affonso Neves. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade terminais. São Paulo: Vozes,1996. 277 ___. Documentos de Identidade: uma introdução àsx teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 278 EPISTEMOLOGIA E EDUCAÇÃO 279 ENTRE EPISTEMOLOGIA E HERMENÊUTICA - A QUESTÃO DA RACIONALIDADE E DA HISTORICIDADE DO CONHECIMENTO E O DEBATE SOBRE A TESE DA COMPLEMENTARIDADE Luiz Carlos Bombassaro∗ Esse texto apresenta uma reconstrução das principais linhas do recente debate filosófico sobre a relação entre epistemologia e hermenêutica, enfocando especialmente a questão da racionalidade e da historicidade do conhecimento e suas implicações para o pensamento filosófico atual. Professor de Filosofia da Educação no Departamento de Estudos Básicos da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande Sul (UFRGS), Porto Alegre, Brasil. Endereço eletrônico: [email protected] 280 A racionalidade e a historicidade do conhecimento Uma das tarefas básicas da filosofia atual consiste em perseguir a meta de esclarecer as diferenças conceituais entre os pressupostos universal e necessariamente válidos e os pressupostos históricos e contingencialmente condicionados da reflexão e da crítica. De acordo com essa perspectiva, busca-se neste texto apresentar um esboço do modo como é possível tratar o conhecimento enquanto questão filosófica que necessita considerar tanto aspectos universais, lógicos e epistemológicos, quanto aspectos factuais e históricos. As reflexões sobre o problema da validade universal e da facticidade do conhecimento, especialmente daquele produzido no âmbito da atividade científica, passam a constituir assim o objetivo primeiro desta análise, que visa especialmente contribuir para o debate em torno da questão da racionalidade e da historicidade do processo cognoscitivo e de suas implicações filosóficas, inclusive no âmbito da filosofia da educação. O debate filosófico atual sobre o problema do conhecimento está firmemente alicerçado nas pressuposições em torno da racionalidade e da historicidade inerentes ao ato humano de conhecer.33 33 Neste contexto temos em mente as decisivas e influentes reflexões filosóficas realizadas por autores diversos, tais como Ludwik Fleck, Entstehung und Entwicklung einer wissenschaftlichen Tatsache (1935), Karl R. Popper, Die Logik der Forschung (1935), Hans-Georg Gadamer, Wahrheit und Methode (1960), Jürgen Habermas, Erkenntnis und Interesse (1968), Michel Foucault, L’Archéologie du Savoir (1969), Stephen Toulmin, Human Understanding (1972), Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions (1972), The essential Tension (1977), Paul K. Feyerabend, Against Method: Outline of an Anarchistic Theory of Knowledge, (1975), Imre Lakatos, Philosophical papers (1978), Richard Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature (1979), Hilary Putnam, Reason, Truth and History (1981), Richard Bernstein, Beyond Objetivism and Relativism: Science, Hermeneutics and Praxis (1983), Charles Taylor, Philosophical Arguments (1995), entre muitos outros. Sobre o tema, remeto também aos meus livros As fronteiras da epistemologia (Petrópolis: Vozes, 3. ed., 1997) e Ciência e mudança conceitual: notas sobre epistemologia e história da ciência (Porto Alegre: Edipucrs, 1995). 281 Esse debate conecta-se diretamente pelo menos com duas importantes tradições filosóficas, que podem a grosso modo ser identificadas como a tradição analítica e a tradição histórica, numa perspectiva que foi defendida também por G. H. von Wright (1971). Mesmo se a identificação dessas duas tradições não pode ser entendida de modo rigoroso, foi seguindo os debates que se realizaram entre ambas que a questão da racionalidade e da historicidade do conhecimento chegou a conquistar uma importância sem precedentes na epistemologia das últimas décadas do século XX. Se assumimos a idéia de que uma das questões filosóficas mais marcantes da história do pensamento a partir da Renascença é o conhecimento, como muito bem mostrou Ernst Cassirer (1906), devemos reconhecer que a concepção filosófica que teve maior êxito na Modernidade e foi assumida tanto pela tradição analítica quanto pela tradição histórica é aquela de uma filosofia epistemologicamente centrada. Essa idéia foi apresentada e defendida de modo muito convincente por Richard Rorty (1979). No entender de Rorty, a epistemologia constitui o centro da filosofia moderna. Considerada uma disciplina própria para o tratamento reflexivo das questões relativas ao conhecimento, a epistemologia chegou mesmo a dominar o discurso filosófico da modernidade. Desse modo, as tradições filosóficas que mencionamos deveriam a nosso ver ser consideradas tão somente tradições epistemológicas. E isto pelo simples fato de terem assumido o papel de dizer o que é, como se produz, qual a possibilidade, qual a validade e qual o limite para o conhecimento. Desde logo, a pergunta pela racionalidade e pela historicidade do conhecimento parece, portanto, ter se tornado um privilégio da epistemologia. Em seu amplo 282 conjunto de temas, após a Renascença, a filosofia foi sendo paulatinamente transformada numa ‘ancilla epistemologiae’. No entanto, se de um lado a filosofia epistemologicamente centrada conseguiu, mesmo que parcialmente, dizer em que consiste a racionalidade, por outro ela não teve o mesmo êxito ao tratar da questão da historicidade do conhecimento. Talvez porque esta não tenha sido uma questão corretamente formulada ou, quem sabe, ela nem tenha sido tratada como uma autêntica questão filosófica para os epistemólogos. Para esclarecer o que pretendemos neste texto, convém recordar o ponto chave dos debates desenvolvidos pelos epistemólogos e filósofos da ciência especialmente a partir da segunda metade do século passado. Esse ponto consistia na distinção sugerida por Hans Reichenbach entre o ‘contexto de descoberta’ e o ‘contexto de validação’ (1938). Para esse mesmo fim, também pode servir de exemplo a discussão sobre o critério de demarcação entre ciência e não-ciência apresentado pelo positivismo lógico e radicalmente transformado por Karl Popper (1935; 1963). Em ambos os casos, as concepções de racionalidade e historicidade do conhecimento se mantém como o pano de fundo, o bastidor de legitimidade, sobre o qual de desenvolveram as reflexões em torno do problema do conhecimento. Seguindo a idéia de Reichenbach, por exemplo, a filosofia analítica da ciência levantava fortes suspeitas quanto ao significado dos elementos do assim chamado ‘contexto de descoberta’, chegando mesmo a considerá-los irrelevantes para as discussões epistemológicas. O ‘contexto de descoberta’ compreenderia especialmente os aspectos psicológicos, sociológicos e históricos, que em nosso entender constituem uma das condições de possibilidade do conhecimento. Mas, para a tradição analítica da filosofia da ciência 283 somente o ‘contexto de validação’ deveria ser tema da epistemologia. O ‘contexto de descoberta’ não seria nada mais nada menos do que um mundo enigmático, sobre o qual as nossas afirmações não estariam garantidas. Frente a essa situação, o que fazer? Aceitar a idéia de que o tratamento filosófico do problema do conhecimento envolve somente a questão de sua racionalidade, ficando assim de lado a questão da sua historicidade? Ou aceitar a idéia de que a historicidade do conhecimento também se constitui num problema filosófico ao qual deve ser dada a devida importância e, como conseqüência, adotar também a idéia de que a epistemologia é insuficiente para podermos tratar adequadamente da questão? Mas, caso respondessemos positivamente a esta última pergunta, qual seria a conseqüência para a filosofia? Não estaríamos com isso colocando a filosofia mesma num beco sem saída, já que a insuficiência da epistemologia acabaria por trazer consigo o próprio questionamento do núcleo duro da filosofia epistemologicamente centrada? Como podemos ver, o relativismo e o anarquismo metodológicos seriam uma espécie de último recurso para quem quisesse assumir o risco de estar em desacordo com a ortodoxia da filosofia analítica (1975; 1983). As investigações de Popper sobre a lógica da pesquisa desenvolveram-se dentro dos parâmetros estabelecidos pela orientação de Reichenbach. Assim, de acordo com Popper, seria difícil buscar critérios lógicos capazes de garantir a racionalidade dos enunciados do conhecimento científico sem permanecer restritos ao ‘contexto de validação’. Desse modo, ele encontrou fortes argumentos para reforçar a tese de que somente o ‘contexto de validação’ deveria ser considerado 284 como relevante para a epistemologia. Mas, por outro lado, Popper (1972) não menosprezou a importância dos elementos atinentes ao ‘contexto da descoberta’, que foram assumindo um papel cada vez mais importante não somente na discussão interna realizada pela tradição analítica, mas também serviram para balizar as discussões entre as diferentes tradições epistemológicas. Com isso, a questão da historicidade do conhecimento foi se tornando cada vez mais presente e significativa nos debates filosóficos até passar a constituir o centro mesmo das discussões, como o demonstram os estudos de Thomas Kuhn, Imre Lakatos, Stephen Toulmin, entre outros.34 A descrição da mudança conceitual feita por Kuhn, a descrição das relações entre a filosofia e a história da ciência feita por Lakatos e a descrição do uso coletivo dos conceitos feitas por Toulmin, sem contar os resultados das investigações ‘arqueológicas’ de Michel Foucault e a imensa contribuição oferecida pelas investigações da epistemologia genética de Jean Piaget, passaram a constituir o amplo espectro sobre o qual foi sendo elaborada a mais rigorosa argumentação em torno da questão da historicidade do conhecimento. Especialmente quando consideramos o caso de Kuhn, podemos dizer que a questão da historicidade pressupõe uma análise dos fatos históricos da ciência e especialmente o modo de funcionamento das comunidades de investigação. Mas isso, por sua vez, pode nos dar a impressão de estarmos nos afastando cada vez mais dos propósitos da epistemologia e nos aproximando de modo inquestionável da psicologia, da sociologia e 34 Thomas Kuhn, The essential Tension: Selected Studies in Scientific. Tradition and Change, Chicago, 1970; Imre Lakatos e Alan Musgrave (eds.) Criticism and the Growth of Knowledge, Cambridge, 1970; Stephen Toulmin, Human Understanding, Princeton, 1972, Richard Bernstein, Beyond Objectivism and Relativism: Science, Hermeneutics and Praxis, Oxford, 1983. 285 da história. Ou seja, a análise da questão da historicidade do conhecimento parece nos levar cada vez mais longe dos ideais filosóficos sonhados pela tradição analítica, do positivismo lógico, do neopositivismo, e do criticismo popperiano para nos acercarmos sempre mais das perspectivas culturalistas, estruturalistas e pós-estruturalistas, que passaram a dar o tom da discussão intelectual das últimas décadas também no tocante à questão do conhecimento. Se deixamos de argumentar com a perspectiva filosófica das diferentes tradições da epistemologia atual, poderemos encontrar na hermenêutica uma outra fonte de indagações sobre a questão da racionalidade e da historicidade do conhecimento (Palmer, 1969). O aparecimento da obra Wahrheit und Methode, de Hans-Georg Gadamer, e os frutíferos debates que se seguiram, vieram a contribuir de modo significativo para a reformulação das concepções da racionalidade e da historicidade do conhecimento e da ciência defendidas pela filosofia epistemologicamente centrada.35 Com isso, a instauração da perspectiva da hermenêutica filosófica gadameriana alterou completamente o conceito de método, um dos pilares da filosofia moderna. Inspirado na filosofia de Dilthey, Husserl e Heidegger, Gadamer mostrou como é possível estender o horizonte histórico no qual se produz a própria filosofia. O resultados desses debates levou a ampliação dos horizontes do pensamento filosófico e estabeleceu novas relações entre as disciplinas filosóficas, entre a epistemologia e a hermenêutica. 36 Nesse 35 Hans-Georg Gadamer, Wahrheit und Methode, Tübingen, 1960. Sobre a questão da influência da tradição humanista na educação, ver especialmente a análise hermenêutica do conceito de Bildung (Formação), ver cap. 1, 2a. 36 Hans-Georg Gadamer, Vernunft im Zeitalter der Wissenschaft, Frankfurt am Main, 1976; Hans-Georg Gadamer & Gottfried Boehme, Seminar: Die Hermeneutik und die Wissenschaften, Frankfurt am Main, 1978. 286 sentido, a hermenêutica filosófica de Gadamer não pode ser considerada uma mera reflexão sobre os critérios metodológicos capazes de garantir a validade do conhecimento. Noutras palavras: a proposta gadameriana não pode ser confundida com uma metodologia científica. No tocante a essa questão, Gadamer assim se expressou já no parágrafo de abertura de seu livro: So drängt das Problem der Hermeneutik schon von seinem geschichtlichen Ursprung her über die Grenze hinaus, die durch den Methodenbegriff der modernen Wissenschaft gesetzt sind. Verstehen und Auslegen von Texten ist nicht nur ein Anliegen der Wissenschaft, sondern gehört offenbar zur menschlichen Welterfahrung insgesamt. Das hermeneutische Phänomen ist ursprünglich überhaupt kein Methodenproblem. Es geht in ihm nicht um eine Methode des Verstehens, durch die Texte einer wissenschaftlichen Erkenntnis so unterworfen werden, wie alle sonstige Erfahrungsgegenstände. Es geht in ihm überhaupt nicht in erster Linie um den Aufbau einer gesicherten Erkenntnis, die dem Methodenideal der Wissenschaft genüngt – und doch geht es um Erkenntnis und um Wahrheit auch hier. Im Verstehen der Überlieferung werden nicht nur Texte verstanden, sondern Einsichten erworben und Wahrheiten erkannt (1960, p. XIII). Levar a sério essas palavras de Gadamer é suficiente para que não tenhamos ilusões de encontrar na hermenêutica uma nova epistemologia, já que o que caracteriza a hermenêutica não é uma questão metodológica. Mas isso também não significa que não existam fortes ligações entre a posição gadameriana e as posições sustentadas por epistemólogos contemporâneos no tocante à questão da 287 racionalidade e da historicidade do conhecimento. Como se explica isso? Quando tomamos a epistemologia num sentido amplo, isto é, quando não a reduzimos ao tratamento tão somente do ‘contexto de validação’ dos enunciados produzidos pela ciência, então podemos facilmente identificar suas ligações com a hermenêutica, porque tanto para a epistemologia quanto para a hermenêutica o conhecimento se torna uma questão filosófica fundamental. Mas é preciso deixar claro que Gadamer rechaça a idéia da pretensão de universalidade da metodologia científica imposta à filosofia pela sobrevalorização da ciência moderna. Para dizê-lo de outro modo, Gadamer não concorda com o reducionismo cientificista produzido pelo pensamento filosófico moderno devido ao assombroso êxito da ciência, reducionismo sobre o qual a própria epistemologia encontrou a sua auto-justificação. Numa breve avaliação sobre essa posição do autor de Wahrheit und Methode, podemos afirmar que Gadamer pertence àquele grupo de filósofos, cuja prática filosófica permanece consoante com a sua própria teoria do filosofar, isto porque para ele a filosofia é uma espécie metateoria. É claro que muitos dos temas por ele tratados são muito bem conhecidos pela tradição filosófica, mas sua síntese e seu desdobramento em uma hermenêutica filosófica representou uma conquista valiosa, que veio enriquecer teórica e praticamente as mais variadas perspectivas de diferentes áreas do conhecimento. Nesse sentido, vale destacar uma característica especial de suas reflexões, qual seja, a ênfase nos fatores pré-compreensivos do conhecimento, que servem e comandam o processo cognoscitivo. Através de seu concretismo epistemológico, a reflexão da hermenêutica filosófica gadameriana deixou claro qual a importância da consideração das condições fáticas para uma análise do conhecimento e, ao mesmo tempo, com isso, mostrou a necessidade de 288 uma ampliação da problemática clássica da epistemologia. Essa passagem apresenta indícios claros dos elementos que vinculam a epistemologia à hermenêutica. Para mostrar a validade do discurso filosófico, a posição de Gadamer funda-se na atitude reflexiva e crítica, que dá por pressuposto o caráter pré-predicativo da compreensão. Assim, e somente assim, o programa da hermenêutica filosófica pode ir mais além da simples consideração dos dogmas do empirismo presentes nas concepções cientificistas e possibilita a inserção dos resultados das investigações realizadas no âmbito da fenomenologia. Nesse sentido, a atitude crítica de Gadamer representa, ao nosso ver, o ponto mais forte de rechaço da perspectiva filosófica epistemologicamente centrada. Esse rechaço foi muito bem descrito pelo estudioso da obra de Gadamer, quando afirma: Também é evidente a ligação da hermenêutica filosófica com o assim chamado movimento fenomenológico, com seu anti-cientificismo, antinaturalismo e anti-positivismo. Uma marca do anticientificismo é a imputação à ciência e à técnica de que elas teriam produzido a crise contemporânea da cultura européia, por ter aceito a sugestão quanto à sua capacidade de resolver, de modo monopolizante e definitivo, todos os problemas da humanidade. Um traço característico do anti-naturalismo é a manutenção de um mundo da vida diferente e autônomo em relação ao mundo científico, um mundo da vida entendido de maneira antipsicológica como um a priori originário e universal de todo o conhecimento, o fundamento da filosofia e, por fim, o sentido da ação humana. As categorias de historicidade e lingüísticidade acentuam a estrutura formal e de conteúdo desse mundo vital. Um sinal do anti-positivismo é o destaque das 289 funções práticas da hermenêutica filosófica. A filosofia não é uma ciência teorética como as ciências empíricas. Ela tem a tarefa de auxiliar o homem a encontrar uma resposta à pergunta fundamental sobre o sentido da vida (Bronk, 1988, p. 403). Se consideramos a pergunta pelo conhecimento como uma questão filosoficamente significativa, então podemos dizer que depois da contribuição de Gadamer a discussão sobre a racionalidade e a historicidade deve trilhar outros caminhos. Quando aceitamos a perspectiva gadameriana, estamos assumindo também as conseqüências das reflexões da fenomenologia de Husserl e Heidegger sobre o conhecimento e a ciência. Por isso, podemos dizer que, desde a perspectiva instaurada pela hermenêutica gadameriana, estudar as questões da racionalidade e da historicidade do conhecimento nos leva para além das fronteiras da epistemologia.37 O debate sobre a tese da complementaridade A partir da segunda metade do século XX, especialmente após a publicação de Wahrheit und Methode, de Gadamer, a hermenêutica passou a ocupar um lugar central no cenário das discussões filosóficas. Além disso, as discussões mais recentes sobre a racionalidade e a historicidade do conhecimento contam com o aporte não somente de filósofos, mas também de cientistas das mais diversas áreas de conhecimento, tais como a biologia, a psicologia, a etnologia, etc. 37 Para uma análise mais detalhada dessa questão, ver especialmente L. C. Bombassaro, As fronteiras da epistemologia – Como se produz o conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1992; Charles Taylor, Philosophical Arguments. Harvard University Press, Cambridge, 1995. 290 Nessas discussões, os filósofos vinculados à hermenêutica filosófica não têm um lugar privilegiado, como era o caso dos epistemólogos na filosofia moderna, mas eles também são convidados a participar de um processo de conversação no qual se entrelaçam a ciência e a hermenêutica.38 Além disso, ainda mais produtivos têm sido os debates em torno da possibilidade de vinculação entre a hermenêutica e os estudos da história da ciência. Nesse aspecto, as contribuições dadas por diferentes pensadores mostram como é possível estudar, por exemplo, a questão da mudança conceitual na história da ciência a partir da perspectiva sugerida pela hermenêutica filosófica. Como veremos, esse é sem dúvida um ponto essencial para compreender em que medida o aporte reflexivo trazido pela hermenêutica faz avançar a compreensão no tocante ao desenvolvimento do conhecimento. As análises das contribuições teóricas e também metodológicas que a hermenêutica proporciona ao tema em questão foram amplamente analisadas por Karl-Otto Apel (1973) e Richard Rorty (1979), entre outros. Apel em seu Transformation der Philosophie e Rorty em seu amplamente difundido livro Philosophy and the Mirror of Nature propuseram, cada um ao seu modo, o que nos últimos anos passou a se chamar tese da complementaridade entre epistemologia e hermenêutica. Apesar das diferenças a partir das quais cada um deles estrutura a sua argumentação, diferenças que não cabe analisar aqui, tanto Apel quanto Rorty estão plenamente de acordo com uma afirmação básica: a epistemologia somente pode tratar dos elementos inerentes aos aspectos 38 Sobre as relações entre ciência e hermenêutica a bibliografia é vasta. Como referência permitimo-nos citar Gadamer, Hans-Georg & Boehme, Gottfried (Orgs.), Seminar: Die Hermeneutik und die Wissenschaften, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1978; Bubner, Rüdiger, Cramer, Konrad & Wiehl, Rainer (Orgs.), Hermeneutik und Dialetik, Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1970. 291 metodológicos e normativos do conhecimento, em especial do conhecimento científico. Isto significa que, uma vez mais, o vínculo da epistemologia com as questões da racionalidade permanece evidente. Mas, o que fazer se os aspectos relativos à historicidade do conhecimento não podem ser o tema da epistemologia? Tomar o caminho da filosofia analítica da ciência seria uma das saídas possíveis. No entanto, ainda que não os devêssemos descartar, os aspectos relativos à historicidade não poderiam ser sobrepassados pela consideração dos aspectos normativos e metodológicos. Por isso, uma boa alternativa para tratar da questão da historicidade do conhecimento consistiria em assumir a posição que aceita a tese da complementaridade proposta por Apel e Rorty. Mas em que exatamente consiste a tese da complementaridade? Não seria absurdo falar de complementaridade entre duas áreas tão distintas, entre dois âmbitos tão diferentes da atividade filosófica como a epistemologia e a hermenêutica? Apel e Rorty não desconhecem o sentido profundo dessas perguntas, pois quando falam da tese da complementaridade eles reconhecem que muito freqüentemente a epistemologia e a hermenêutica têm sido efetivamente consideradas âmbitos filosóficos distintos, às vezes até antagônicos, com seus problemas e métodos específicos. Essa situação foi muito bem descrita por Rorty, quando em seu livro afirma: The usual way of treating the relation between hermeneutics and epistemology is to suggest that they should divide up culture them – with epistemology taking care of the serious and important ‘cognitive’ part (the part in wich we meet our obligations to rationality) and hermeneutics charged with everything else (Rorty, 1979, p. 319). 292 Em nosso entender, os restos da cultura não tratados pela epistemologia se caracterizariam como os elementos constitutivos da historocidade do conhecimento. Embora possa ser considerada um tanto caricatural, a descrição das funções da epistemologia e da hermenêutica que Rorty nos apresenta expõe de modo muito claro o problema que enfocamos a partir da distinção entre racionalidade e historicidade. Nesse sentido, o esforço teórico do autor de Philosophy and the Mirror of Nature consiste em denunciar precisamente a atitude dualista que está na base da filosofia do conhecimento e que separa a hermenêutica da epistemologia. Quando examina as contribuições de Wittgenstein, Heidegger e Gadamer para a filosofia do século XX, também Apel concorda que a epistemologia e a hermenêutica foram entendidas como dois modos distintos de tratar as questões relativas ao conhecimento.39 Mas, no entender de Apel, a raiz dessa dicotomia tem uma origem histórica bem determinada, pois pode ser encontrada na tematização da diferença metodológica entre as ciências da natureza (Naturwissenschaften) e as ciências do espírito (Geisteswissenschaften) produzida pelas reflexões realizadas no contexto da Escola Histórica alemã no final século XIX e assumida, mesmo que parcialmente, pelo neopositivismo na primeira metade do século XX. De acordo com a argumentação de Apel, na perspectiva da Escola Histórica, foi Dilthey quem afirmou que deveria existir uma diferença metodológica fundamental entre as ciências. Enquanto a explicação causal constituiria o padrão metodológico das 39 Ver especialmente Karl-Otto Apel, ‘Szientistik, Hermeneutik, Ideologiekritik. Entwurf einer Wissenschaftslehre in erkenntnisanthropologischer Sicht’, in Transformation der Philosophie, II, pp. 96-127. 293 ciências da natureza, a compreensão deveria caracterizar o método próprio para a investigação para as ciências do espírito. A diferença entre as ciências se resumiria, portanto, a uma diferença entre métodos, que por sua vez, assumia como elemento fundante a distinção entre explicar (erklären) e compreender (verstehen). Desse modo, a separação entre epistemologia e hermenêutica acompanhava a diferença metodológica entre a explicação das ciências empírico-formais e a compreensão das ciências humanas. Apel, entretanto, afirma que essa distinção metodológica entre a explicação causal e a compreensão não pode ser mantida, uma vez que a compreensão, como bem mostrou Gadamer, não pode ser reduzida a uma questão de método. Por conseguinte, seguindo o argumento de Apel, poderíamos afirmar que a distinção entre as ciências naturais e as ciências humanas também estava fundada em bases duvidosas. Na verdade, todo o problema residia no fato de que Dilthey, no âmbito da Escola Histórica, associou a hermenêutica com uma metodologia científica. Diante disso, Apel procurou elaborar um novo projeto de investigação filosófica no qual as questões da racionalidade e da historicidade do conhecimento poderiam ser melhor tratadas. Segundo o autor de Transformation der Philosophie, o tratamento adequado da racionalidade e da historicidade somente seria possível mediante o assumir de uma perspectiva gnoseo-antropológica, a partir da qual se poderia reunir a epistemologia, a hermenêutica e a crítica das ideologias (Apel, 1979, p. 97). Além disso, Apel sugere que a complementaridade entre as diferentes perspectivas filosóficas estaria garantida por uma mediação dialética. Nesse sentido, ao se falar da conjunção entre explicação e compreensão se estaria superando a separação entre as 294 ciências explicativas da natureza e as ciências compreensivas do espírito. No projeto apeliano não se trata de afirmar a prioridade da explicação frente à compreensão, como ocorrera em toda a história do pensamento filosófico epistemologicamente centrado da modernidade. Tampouco trata-se de considerar a compreensão prioritária frente à explicação. Trata-se simplesmente de aceitar que entre explicar e compreender existe uma relação de auto-constituição, como se ambas as perspectivas fossem dois lados de uma mesma moeda, dois modos cognoscitivos diferentes mas inseparáveis. Assim, mesmo quando Apel enfatiza a manifestação da compreensão como uma condição de possibilidade da explicação, não se deve esquecer de acrescentar que, pelo menos quando se trata da análise da questão do conhecimento que se manifesta em nossas proposições e nos enunciados científicos, a compreensão somente se mostra quando a explicação se efetiva. Noutras palavras, não somente a explicação pressupõe a compreensão, mas também a compreensão não pode prescindir da explicação. O problema da mediação entre explicar e compreender também foi tratado intensivamente por Paul Ricoeur (1970). De acordo com o hermeneuta francês, a superação do dualismo metodológico exposto acima torna-se possível com a introdução do conceito de texto. Ao responder à pergunta, o que é um texto?, Ricouer (1970, p. 181) afirma que um texto nada mais é que o conjunto de todos os discursos escritos. E quando perguntado sobre o que está escrito no texto, Ricouer dirá somente que no texto estão inscritos todos os discursos. Para ele, é somente quando somos confrontados com a leitura do texto que surgem as diferentes atitudes metodológicas às quais havia se referido Dilthey. Recordemos, nesse ponto, que também Dilthey teve em mente a idéia de 295 um mundo histórico como um texto a ser lido, decifrado e interpretado. E mesmo que não possamos discordar das afirmações de Ricouer, uma questão parece permanecer sem solução: será possível considerar a natureza como um texto? No sentido em que Ricoeur entende o conceito de texto, seguramente não é possível incluir a natureza e seus fenômenos. É evidente que a primeira preocupação de Ricoeur não é a estratégia metodológica que permite a investigação da natureza, mas para nós a busca de um novo conceito de interpretação, em seu sentido mais amplo, também deveria incluir o que especialmente no pensamento filosófico da Renascença e na era moderna se tem chamado ‘interpretatio naturae’. Isso demandaria um exame não somente do uso lingüístico dessa expressão no seu contexto histórico, mas também uma análise do sentido que ela assumiria neste mesmo contexto, analisando assim seus aspectos pragmáticos e semânticos. Nesse sentido, vale a pena recordar, por exemplo, que a investigação da natureza foi considerada uma leitura. O objetivo da investigação consistia em interpretar o ‘livro da natureza’, um livro que no entender de Galileu Galilei estava escrito em caracteres matemáticos e em figuras geométricas. Mediante uma perspectiva de complementaridade metodológica, a expressão metafórica de Galileu talvez mostrasse mais que um simples recurso estilístico e retórico. Como podemos perceber, a pergunta sobre a possibilidade de mediação entre explicar e compreender pode nos levar a reexaminar as raízes do pensamento filosófico moderno. Nesse sentido, a discussão sobre a tese da complementaridade metodológica reflete a produtividade da reflexão filosófica levada a cabo no último século, chegando mesmo a ultrapassar as fronteiras da filosofia. Se pensarmos somente no 296 desenvolvimento teórico da sociologia, devemos reconhecer com Max Webber (1956) que o uso dos conceitos de explicação e compreensão não podem ficar restritos à filosofia. Em seu esforço intelectual, Webber apresentou a idéia de que seria possível uma mediação entre as duas perspectivas metodológicas através da introdução da categoria ‘explicação compreensiva’, inaugurando assim toda uma tradição de investigação, que viria a ser conhecida como ‘sociologia compreensiva’. No entanto, a tentativa weberiana de estabelecer uma tal metodologia parece carecer de uma validade mais ampla, uma vez que acaba por se reduzir unicamente ao âmbito das ciências sociais. Assim, outra vez, a pergunta pela possibilidade de uma interpretação hermenêutica das ciências naturais torna-se ineficaz, mesmo se a distinção introduzida por Dilthey permaneça reverberando nas mentes dos filósofos do século XX ocupados com a questão do método. Dentre as tentativas de estabelecer uma relação de complementaridade entre explicação e compreensão e, por conseguinte, de estabelecer e esclarecer os vínculos entre hermenêutica e epistemologia, cabe ressaltar ainda aquela realizada por Thomas Haussmann (1991). Em seus estudos sobre os fundamentos das ciências históricas, Haussmann faz um levantamento exaustivo e aprofundado da história do uso dos conceitos explicar e compreender, discutindo as contribuições, as implicações e as diferenças de concepção sustentadas tanto pelos epistemólogos quanto pelos hermenêutas. De acordo com o autor de Erklären und Verstehen, a possibilidade de mediação entre os métodos da explicação causal e da compreensão somente pode ser efetivada através da pragmática. Nesse aspecto, ele alinha-se à argumentação também assumida por Apel e Rorty. 297 Nesse sentido, a defesa da tese da complementaridade entre epistemologia e hermenêutica tem se mantido até hoje como uma questão filosófica em aberto. Embora não se possa negar as diferentes tentativas de sua efetivação no âmbito da prática da investigação, fato é que os maiores avanços quanto ao entendimento da tese permanecem restritos a um nível teorético. As contribuições de Apel, Rorty, Haussmann e outros estiveram concentradas em formular e esclarecer os pressupostos gerais da aplicação da complementaridade metodológica. Por isso, a partir das reflexões sobre a tese da complementaridade, ainda mais recentemente uma outra dupla de conceitos ganhou importância: conversação e entendimento. Para Apel, por exemplo, a complementaridade metodológica deixa o âmbito da pura possibilidade para se tornar efetiva quando se considera e se reconhece, como o fez Thomas Kuhn, que toda ciência é produzida por uma comunidade de investigação desde sempre ancorada na interpretação. No entender de Apel, nessas comunidades de investigação tem lugar uma interação que visa a um acordo intersubjetivo resultante de um processo de conversação que se realiza entre os participantes do discurso.40 Por outro lado, também Rorty havia afirmado que a busca de um acordo entre os participantes de um discurso é a pré-condição para a realização da tese da complementaridade. Porém, no entender de Rorty, o acordo pressupõe que a epistemologia seja superada pela hermenêutica.41 Na verdade, Rorty distingue dois níveis de acordo. Num 40 Sobre o tema, além do já citado livro de Apel, tornou-se refrência a obra de Jürgen Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1981. 41 Cfe. Richard Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton: Princeton University Press, 1979. Mais recentemente, a mesma linha de argumentação foi levada ainda mais adiante por Charles Taylor, ‘Overcoming Epistemology’ in Kenneth Baynes, James Bohmann, and Thomas McCarthy, eds., After Philosphy, MIT Press., Cambridge, 298 primeiro nível, o acordo realiza-se dentro do âmbito de cada uma das perspectivas metodológicas. Somente num segundo nível, o acordo pode envolver participantes das diferentes perspectivas. No primeiro nível, os investigadores encontram especificidades que não podem ignorar. Para o autor de Philosophy and the Mirror of Nature, o acordo produzido no âmbito da epistemologia, por exemplo, dá por pressuposto um terreno comum a todos os participantes do processo de conversação, terreno comum que está garantido mediante a comensuração dos pontos de vista, da partilha das teorias. De modo inverso, na hermenêutica o acordo é o resultado da conversação e da argumentação entre os participantes do discurso, como se ela não pressupusesse um conjunto de elementos comuns aos participantes do discurso. Nesse sentido, o processo de constituição do acordo na epistemologia é diferente daquele que se realiza na hermenêutica. Rorty chega mesmo a afirmar que na epistemologia o acordo é sempre necessário, enquanto na hermenêutica, mesmo que seja sempre desejado, nem sempre é alcançado. Na epistemologia, importante é o resultado ao qual se chega depois da comensuração dos pontos de vista; na hermenêutica o que importa não é tanto o resultado, mas antes o próprio processo no qual se realiza a conversação. Aqui a conversação é o que interessa, independentemente do fato de ela levar ou não ao acordo. Como diz Rorty, na hermenêutica trata-se muito mais de saber como se processa a conversação do que de saber o que ela produz. Na epistemologia, onde o acordo deve ser a conquista a qualquer preço, não está em primeiro lugar o modo como se realiza a conversação, mas sim o resultado que se conseguiu com ela. Assim, a polêmica diferença entre epistemologia e hermenêutica 1987. [Reimpresso em Richard Taylor, Philosophical Arguments, Harvard University Press, Cambridge, 1995, pp. 1-19]. 299 somente poderia ser superada num segundo nível, quando propriamente se daria a interação entre comunidades de investigação que partilhassem perspectivas metodológicas diferentes. Mas quando fala desse segundo nível Rorty não traz nenhuma contribuição valiosa para provar a tese da complementaridade, afirmando que a possibilidade da conversação e do acordo entre hermeneutas e epistemólogos não passam de uma esperança. Nesse sentido, Rorty não indica, como o faz Apel, uma via de realização efetiva da complementaridade entre as duas perspectivas metodológicas. Desse modo, das reflexões de Apel e Rorty em torno da tese da complementaridade, que aqui somente esboçamos, podemos concluir que existem pelo menos duas possibilidades de entender a relação entre epistemologia e hermenêutica. Na primeira, como argumentou Rorty, a epistemologia deveria ser ultrapassada pela hermenêutica e a complementaridade ganharia um sentido de superação. Em outras palavras, a epistemologia seria incorporada pela hermenêutica. Na segunda, seguindo a argumentação de Apel, a epistemologia e a hermenêutica poderiam complementar-se através de um processo de mediação realizado em base pragmática. Em nosso modo de ver, uma tal mediação pode ser demonstrada quando se procede a uma investigação da mudança conceitual que se realiza na história da ciência. Se pensamos na história da ciência não somente como uma coleção de informações sobre o fáctico, mas também como o lugar no qual se realiza a interpretação, então nos parece muito plausível que as idéias da conversação e do acordo possam ser melhor esclarecidas, porque somente então poderíamos verificar como racionalidade e historicidade operam conjuntamente. Nesse sentido, a investigação dos casos de 300 mudança conceitual constituem o campo no qual podemos mostrar o ponto de intersecção entre epistemologia e hermenêutica. E este é, sem dúvida, um ponto essencial, pois somente assim a tese da complementaridade pode ser assumida como uma questão filosófica. Bibliografia APEL, Karl-Otto. Transformation der Philosophie, Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1973. _____. Die Erklären-Verstehen-Kontroverse, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1979. BRONK, Andrzej. Rozumienie, dzieje, jezyk: filozoficzna hermeneutyka H.-G. Gadamera. Lublin: Red. Wydawnictw KUL, 1988. CASSIRER, Ernst. Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der Neueren Zeit. Berlin, 1906. GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode, Tübingen, 1960. HAUSSMANN, Thomas. Erklären und Verstehen: Zur Theorie und Pragmatik der Geschichtswissenschaften. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1991. PALMER, Richard. Hemeneutics: Interpretation Schleiermacher, Dilthey e Heidegger, Evanston, 1969. Theory in POPPER, Karl R. Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge, London, 1963. _____. Die Logik der Forschung. Wien, 1935. _____. Objective Knowledge: An Evolutionary Approach, Oxford, 1972. REICHENBACH, Hans. Experience and Prediction. Chicago, 1938. RICOEUR, Paul. Qu'est-ce qu'un texte? In: Hermeneutik und Dialektik II, Tübingen: J.C.B. Mohr, 1970. RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton, 1979. 301 WEBBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft. Tübingen: J.C.B. Mohr, 1956. WRIGHT, Georg Henrik von. Explanation and Understanding. New York, 1971. 302 A RELAÇÃO ENTRE EPISTEMOLOGIA À HERMENÊUTICA: UMA ANÁLISE A PARTIR DA FILOSOFIA DE RICHARD RORTY∗ Altair Alberto Fávero∗ Introdução A epistemologia foi considerada, na filosofia moderna, uma espécie de centro da própria filosofia: a epistemologia como a principal contribuição da filosofia a uma cultura científica. Enquanto a ciência teria por função obter conhecimento a partir da investigação e do domínio da natureza, cabia a filosofia, enquanto epistemologia, validar tais conhecimentos. Entretanto, esse papel central da epistemologia entre em crise a partir de uma crítica endereçada a idéia de filosofia enquanto fundamento de todo e qualquer conhecimento. Não são poucos os Texto publicado em CANDIDO, Celso; CARBONARA, Vanderlei (orgs). Filosofia e Ensino: um diálogo transdisciplinar. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2004, p. 245-256. ∗ Doutorando da UFRGS, professor e pesquisador do Curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo e assessor do Núcleo de Educação para o Pensar (NUEP). Endereço eletrônico: fá[email protected] 303 autores que passam a constituir suas críticas a idéia de uma filosofia epistemologicamente centrada. É nesse cenário que se localiza a discussão em torno da relação entre epistemologia e hermenêutica. A relação entre Epistemologia e Hermenêutica situa-se no contexto contemporâneo, na tentativa de estabelecer possíveis pontes que possam superar determinados limites encontrados pela epistemologia no século XX. Tais limites poderiam ser identificados no contexto do pensamento atual naquilo que poderíamos chamar “crise da modernidade”. Esta “crise” é em primeiro lugar uma crise de sentido e conseqüentemente do valor de todas as coisas. É todo o sentido do mundo do passado, sobretudo, de sua forma moderna que está sendo posto em questão. A crise cultural em que vivemos, é a crise contra a razão, contra a ilustração, contra um modelo de racionalidade que se auto-frustrou na tentativa de dizer o mundo. No dizer de Oliveira “a crítica da razão instrumental desenvolvida pela modernidade desemboca numa crítica à modernidade entanto tal, e, em última análise, numa crítica à própria razão, que é vista como instrumento de repressão” (1995, p. 7). Sergio Paulo Rouanet identifica esta crise a partir de três facetas que, segundo ele, estão interligadas. Trata-se da crise da razão, da modernidade e da ilustração. A crise da razão se manifesta a partir do irracionalismo que, a partir de uma certa leitura de Foucault, Deleuze e Lyotard, e sob a influência de um neonietzscheanismo que vê relações de poder em toda parte, “considera a razão o principal agente da repressão, e não o órgão da liberdade” (Rouanet, 1987, p.12). Não são poucos os pensadores que poderiam ser indicados na tentativa de diagnosticar a crise da modernidade. Nietzsche, Lukács, 304 Adorno, Horkheimer, Foucault, Marcuse, Derrida, Deleuze, Habermas são apenas alguns autores que poderiam ser listados na longa nominata que compõe os críticos da modernidade. Entretanto, com a finalidade de delimitar nossa investigação tomaremos Richard Rorty como referencial de análise para situar tal problemática. Nos propomos, no presente texto, abordar a análise que Rorty faz da filosofia contemporânea a partir da relação entre a epistemologia e a hermenêutica. No primeiro tópico de nossa análise partimos da concepção de filosofia epistemologicamente centrada que se desenvolveu na modernidade a partir do cogito cartesiano e do sensualismo de Locke e que encontrou em Kant a sua maturidade enquanto disciplina fundamental. No segundo tópico, analisamos a aproximação e distinção entre epistemologia e hermenêutica feita por Rorty de maneira sistemática no VII capítulo do livro Filosofia e o espelho da natureza42. No último tópico analisaremos a distinção feita por Rorty entre filosofia sistemática e filosofia edificante e o papel da filosofia e dos filósofos a partir dessa perspectiva. A filosofia epistemologicamente centrada Em seu livro Filosofia e o espelho da natureza, escrito em 1979 e considerado um clássico no pensamento contemporâneo, Rorty introduz uma importante discussão filosófica em torno do conhecimento que acabou repercutindo em diversas áreas do saber, além dos limites da academia. Tal discussão resultou como conseqüência a indicação de 42 RORTY, Richard. Filosofia e o espelho da natureza. Trad. Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. A partir daqui utilizaremos a sigla FEN para abreviar a referida obra. 305 caminhos que apontam para a superação de alguns dos impasses em que o pensamento contemporâneo se encontra do ponto de vista epistemológico e metodológico. A tese central de Rorty consiste em mostrar como a filosofia moderna foi em grande parte dominada por uma idéia básica: o pressuposto de que a mente se caracteriza por espelhar a natureza, o que garantiria a possibilidade do conhecimento, da representação correta da realidade. Sendo assim, a epistemologia é adotada como área central da filosofia. a tarefa primordial da filosofia consistiria, neste contexto, na fundamentação e na legitimação do conhecimento e das teorias científicas. “Conhecer é representar acuradamente o que está fora da mente; assim, compreender a possibilidade e natureza do conhecimento é compreender o modo pelo qual a mente é capaz de construir tais representações” (FEN, p.19). O ponto central, desenvolvido por Rorty em Filosofia e o espelho da natureza, é a desconstrução sistemática dos conceitos chaves tanto dos filósofos modernos (ligados a idéia de filosofia da consciência) quanto da filosofia analítica. Neste sentido Rorty não só critica os filósofos da tradição racionalista continental, quanto, igualmente critica os filósofos devedores da tradição inglesa. Segundo ele, ambas as tradições centralizaram a idéia de filosofia na epistemologia, ou seja, igualmente desenvolveram uma concepção filosófica centrada no conhecimento como representação ou reprodução, no espelho mental, do mundo exterior à mente. Para Rorty, o representacionismo é o núcleo central no qual se desenvolveu a filosofia moderna. Rorty quer superar as metáforas dominantes relativas à mente e ao conhecimento por julgar estarem vinculadas a uma idéia equivocada da filosofia, própria de toda a tradição moderna. O alvo de sua crítica 306 dirige-se à filosofia da representação, fundacionista ou essencialista, que pensam o conhecimento como correspondência à realidade e restauram, sucessivamente, ao longo dos séculos, a metafísica dos dualismos (universalismo-relativismo; objetivismo-subjetivismo; racionalismo- irracionalismo). Para ele, não existe um ponto de Arquimedes, superior e exterior ao diálogo humano, a partir do qual poderíamos deduzir os critérios indiscutíveis e finais de verdade, justiça e beleza. A verdade, assim como os juízos éticos e estéticos, são produtos precários e provisórios dos debates e embates densos, agonísticos e incessantes, de atores históricos concretos, em contextos sociais determinados. É nesse contexto que ele propõe um exercício filosófico que poderíamos intitular “da epistemologia à hermenêutica”. Rorty fundamenta sua tese a partir do paradigma da “virada epistemológica” iniciada no século XVII e que tem em Kant seu principal expoente. Tal “virada” representa “a demarcação da filosofia em relação à ciência e foi tornada possível pela noção de que o cerne da filosofia era a teoria do conhecimento, uma teoria distinta das ciências porque era seu fundamento” (FEN, p.140). A metafísica teria sido desbancada pela física se Kant não tivesse transformado-a em teoria do conhecimento (uma disciplina fundamental). “A filosofia tornou-se ‘primária’ não mais no sentido de ‘mais elevada’, mas no sentido de ‘subjacente’” (FEN, p. 140). Na visão de Rorty, foi isso que salvou a filosofia na era da Ciência, uma vez que ela deixa de ser a “rainha das ciências” (antiga noção metafísica de filosofia) e passa a ser uma disciplina “mais básica”, uma disciplina responsável pelos fundamentos, uma disciplina “fundamental”. Nesta perspectiva kantiana, a filosofia passa a trilhar um novo projeto: “Esse projeto de aprender mais sobre o 307 que podíamos conhecer, e como podíamos conhecê-lo melhor estudando como nossa mente funciona, iria ao final ser batizado de epistemologia” (FEN, p.145). Entretanto, segundo Rorty, a expressão teoria do conhecimento (epistemologia) só se tornou corrente e ganhou respeitabilidade depois que Hegel deixou de dominar o cenário intelectual da Alemanha. Para o hegelianismo a relação da filosofia com as outras disciplinas era de que a primeira, “de algum modo tanto completava como engolia as outras disciplinas em vez de as basear” (FEN, p.143). Rorty (FEN, pp. 144-146) descreve o processo que possibilitou a filosofia, enquanto epistemologia, atingir a autocerteza no período moderno, dessa maneira: A invenção da mente feita por Descartes, deu aos filósofos um novo terreno onde pisar, pois proporcionou um campo de inquirição que parecia ‘prévio’ aos temas sobre os quais os filósofos antigos haviam tido opiniões. Nesse campo interior a certeza, enquanto oposta à mera opinião, era possível. Em Locke, a mente tornou-se assunto-tema de uma ‘ciência do homem’, ou seja, a epistemologia enquanto estudo de como nossa mente funciona. Com Locke ocorre a criação de uma disciplina preocupada em descobrir a natureza, a origem e os limites do conhecimento humano. Entretanto Locke comete uma confusão entre explicação e justificação, uma confusão fundamental entre os elementos do conhecimento e as condições do organismo (fisiologia) para o conhecimento. O ‘sensualismo’ de Locke acabou não sendo o candidato talhado para ocupar a vaga de “rainha das ciências” da velha metafísica. Somente com Kant a filosofia é posta ‘na trilha segura de uma ciência’ uma vez que este reconciliou a afirmação cartesiana de que apenas podemos ter certeza sobre nossas idéias com o 308 fato de que tínhamos certeza (conhecimento a priori) sobre o que parecia não serem idéias. É através da revolução copernicana feita com Kant, ou seja, com a noção de que apenas podemos saber a priori sobre objetos se os constituímos, que a ‘epistemologia’ como disciplina atinge a maioridade. Com isso, a filosofia enquanto epistemologia, torna-se autoconsciente e autoconfiante. A epistemologia torna-se assim uma disciplina suporte capaz de descobrir características ‘formais’ de qualquer área da vida humana e os professores de filosofia capacitados a se verem presidindo um tribunal da razão pura, capaz de determinar se outras disciplinas estavam se mantendo dentro dos limites legais estabelecidos pela estrutura do espírito do conhecimento. A distinção e aproximação entre epistemologia e hermenêutica Rorty inicia o VII capítulo de A filosofia e o espelho da natureza esclarecendo que sua intenção não é apresentar a hermenêutica como substituta da epistemologia, mas sim demonstrar que a hermenêutica poderá constituir-se numa expressão de esperança na ampliação do horizonte no qual se concebe a produção e validação do conhecimento. Nas palavras do próprio Rorty: quero deixar claro desde o início que não estou colocando a hermenêutica como um ‘objeto sucessor’ da epistemologia, como uma atividade que preenche a vaga cultural outrora preenchida pela filosofia epistemologicamente centrada. Na interpretação que estarei oferecendo, ‘hermenêutica’ não é o nome de uma disciplina, nem de um método para alcançar o tipo de resultados que a epistemologia não conseguiu alcançar, nem de um 309 programa de pesquisa. Pelo contrário, hermenêutica é uma expressão de esperança em que o espaço cultural deixado pela extinção da epistemologia não seja preenchido – de que a nossa cultura se tornasse tal que a exigência de restrição e confrontação não mais seja sentida (FEN, p. 311-312). Na seqüência da argumentação, Rorty vai apresentando as distinções e possíveis aproximações entre epistemologia e hermenêutica. A epistemologia parte do pressuposto de que “para sermos racionais, para sermos plenamente humanos, para fazermos o que deveríamos, precisamos ser capazes de encontrar a concordância com outros seres humanos. Construir uma epistemologia é encontrar a quantidade máxima de terreno comum com os outros” (FEN, p. 312). Nesse sentido, a epistemologia deposita sua esperança na possibilidade de uma racionalidade comum onde os participantes de um determinado discurso são unidos por interesses mútuos para alcançar um fim comum. Em tal concepção, ser racional “é encontrar um conjunto apropriado de termos para os quais todas as contribuições deveriam ser traduzidas, se for necessário que a concordância se torne possível” (FEN, p. 314). A hermenêutica, diferentemente da epistemologia, não pressupõe um terreno comum entre interlocutores de uma conversação, mas deposita sua esperança na concordância ou discordância interessante e frutífera que poderá resultar de uma interlocução. Para a hermenêutica, “ser racional é estar disposto antes a assimilar o jorgão do interlocutor que traduzi-lo para o próprio” (FEN, p. 314). Sendo assim, os interlocutores são unidos, não por uma meta comum, nem por estabelecer um terreno comum, mas pela civilidade. 310 Epistemologia e hermenêutica têm sido tratadas de modo usual como sendo duas maneiras de dividir a cultura: a epistemologia tomaria conta da parte séria e cognitiva da cultura e a hermenêutica se encarregaria do restante. Para Rorty, tal divisão parte do pressuposto que o conhecimento, no sentido estrito, deve ter um logos e que este só pode ser dado pela descoberta de um método de comensuração. Sendo assim, tudo aquilo que pode ser comensurado requer “os cuidados da epistemologia e, inversamente, o que a epistemologia não consegue tornar comensurável é estigmatizado como meramente subjetivo” (FEN, p. 316). Os conceitos de ciência normal e ciência revolucionária, utilizados por Thomas Kuhn, em sua obra A estrutura das revoluções científicas, são elucidativos para compreender a crítica que Rorty faz ao modo usual de tratar a relação entre epistemologia e hermenêutica. O discurso normal “é aquele que é conduzido dentro de um conjunto combinado de convenções sobre o que conta como uma contribuição relevante. (...) O discurso anormal é aquele que acontece quando se ajunta ao discurso, alguém que seja ignorante a respeito dessas convenções ou as coloque de lado” (FEN, p. 316). A epistemologia é o produto do discurso normal sobre o qual se pode concordar que é verdadeiro ou falso para todos os participantes considerados “racionais”. A hermenêutica é o estudo de um discurso anormal desde o ponto de vista de algum discurso normal. A partir dessa perspectiva, conclui Rorty, “a linha entre os respectivos domínios da epistemologia e da hermenêutica não é uma questão de diferença entre as “ciências da natureza” e as “ciências do homem”, nem entre fato e valor, o teórico e o prático, nem entre “conhecimento objetivo” e algo escorregadio e mais dúbio. A diferença é puramente de familiaridade”(FEN, p. 317). Sendo assim, seremos epistemológicos onde compreendemos perfeitamente 311 bem o que está acontecendo e hermenêuticos onde não compreendemos o que está acontecendo. O entendimento se dá não porque tínhamos descoberto algo sobre a natureza do conhecimento humano, mas por nos “acostumarmos” a uma determinada prática que perdurou por um tempo necessário para constituirmos determinadas convenções. Um novo papel para a filosofia e para os filósofos Compreender a relação entre epistemologia e hermenêutica tem profundas implicações na tarefa de definir a identidade e o papel do filósofo e da filosofia no mundo atual. Para Rorty as noções atuais do que é ser filósofo e por conseqüência, seu papel e o papel da filosofia, estão intimamente ligados à tentativa kantiana de tornar comensuráveis todas as afirmações de conhecimento. Nessa tentativa, seria “difícil imaginar o que seria a filosofia sem a epistemologia, ou seja, seria difícil imaginar que qualquer atividade tivesse direito de levar o nome de ‘filosofia’ se nada tivesse a ver com conhecimento – se não fosse em algum sentido uma teoria do conhecimento, ou um método de obter conhecimento, ou ao menos uma pista sobre onde alguma espécie supremamente importante de conhecimento poderia ser encontrada” (FEN, p. 351). Tal concepção exige do ser humano a tarefa de espelhar com precisão o universo que está ao nosso redor. Para Rorty esse retrato clássico de ser humano precisa ser colocado de lado “antes que a filosofia epistemologicamente centrada possa ser colocada de lado” (FEN, p. 351). É nesse contexto que entra a hermenêutica, como tentativa de deixar de lado esta concepção de filosofia epistemologicamente centrada. Rorty busca em Verdade e 312 Método de Gadamer “a redescrição do homem que tenta colocar o retrato clássico dentro de um maior e, assim, antes de distanciar a problemática filosófica padrão do que oferecer um conjunto de soluções às mesmas” (FEN, p. 352). Gadamer consegue separar a noção romântica de homem como auto-criativo substituindo a noção de conhecimento por autoformação (Bildung) onde “o modo como as coisas são ditas é mais importante do que a posse de verdades” (FEN, p. 353). Rorty utiliza o conceito de “edificação” para representar o projeto de encontrar modos novos, melhores, mais interessantes, mais fecundos de falar. “A tentativa de edificar (a nós mesmos e os outros) pode consistir na atividade hermenêutica de estabelecer conexões entre a nossa própria cultura e alguma cultura ou período histórico exóticos, ou entre nossa própria disciplina e outra disciplina que pareça perseguir alvos incomensuráveis num vocabulário incumensurável” (FEN, p. 354). Trata-se, portanto, da tentativa de criar um discurso anormal que nos tire para fora de nosso velhos eus pelo poder da estranheza, para ajudar-nos a nos tornar novos seres. Nesse sentido, a busca da verdade ou do conhecimento objetivo, é apenas um projeto humano entre muitos outros. Com a finalidade de expor com mais clareza a possível conexão entre epistemologia e hermenêutica, quase no final de A filosofia e o espelho da natureza, Rorty faz uma distinção detalhada entre filosofia sistemática e filosofia edificante: a primeira encontra-se centrada na epistemologia; a segunda abre amplos espaços para a hermenêutica; na primeira o trabalho é essencilamente construtivo; na segunda o trabalho é essencilamente reativo e só tem sentido em oposição à tradição. A filosofia sistemática encontra-se na corrente principal da tradição 313 filosófica ocidental que Rorty denomina de paradigma do conhecer. A filosofia edificante localiza-se na periferia da história da filosofia moderna e tem como principal característica, a desconfiança da noção de que a essência do homem é ser um conhecedor de essências. Os autores que postulam tal filosofia “freqüentemente são acusados de relativismo ou cinismo. Freqüentemente são dúbios em relação ao progresso, e especialmente em relação à última afirmação de que tal-e-tal disciplina finalmente tornou a natureza do conhecimento humano tão clara que a razão irá agora alastrar-se através do resto da atividade humana” (FEN, p. 361). Assim como Rorty caracteriza distintamente filosofia sistemática e filosofia edificante, também faz uma distinção entre filósofos sistemáticos e filósofos edificantes. Os grandes filósofos sistemáticos são constitutivos e oferecem argumentos. Como os grandes cientistas, constroem para a eternidade e desejam colocar seu tema na trilha segura de uma ciência. De outro lado, os filósofos edificantes “são reativos e oferecem sátiras, paródias, aforismas. Sabem que seu trabalho perde o propósito quando o período contra o qual estão reagindo já terminou. São intencionalmente periféricos e destroem em benefício de sua própria geração. Desejam manter o espaço aberto para o sentido de admiração que os poetas podem causar as vezes” (FEN, p. 363). Os filósofos edificantes podem ser vistos como parceiros da conversação em que a sabedoria é pensada não como argumentação, mas como amor, e cuja realização não consiste em encontrar o vocabulário correto para apresentar a essência, mas postular uma sabedoria prática necessára para participar numa conversação. Trata-se de ver a filosofia “como a tentativa de prevenir a conversação que 314 degenera em inquirição, em um programa de pesquisa” (FEN, p. 366). É por isso que os filósofos edificantes nunca podem erigir a filosofia como sistema, pois ela nunca termina e deve ser retida para que não alcance a trilha segura da ciência. Nesse sentido, “a hermenêutica é sempre parasítica em relação à possibilidade (e talvez em relação à efetividade) da epistemologia (...). Insistir em ser hermenêuticos onde bastaria a epistemologia (...) não é loucura, mas mostra uma carência de educação” (FEN, p.359-360). Nessa linha de argumentação, Rorty propõe uma Filosofia sem espelhos onde o conhecer não deve ser buscado como tendo uma essência a ser descrita por cientistas ou filósofos, mas antes um direito, pelos padrões correntes, de acreditar na possibilidade da conversação como contexto último dentro do qual deve ser compreendido. Uma vez encetado esse processo, muda nosso foco de relação entre seres humanos e os objetos de inquirição para a relação entre padrões alternativos de justificação que compõe a história intelectual. A hermenêutica, neste contexto, “não é outro modo de conhecer – compreender enquanto oposto à explicação (preditiva). É vista melhor como outra maneira de lidar” (FEN, p. 349). No texto A filosofia e o Futuro43, Rorty compartilha com a concepção de Dewey de que “teremos de dispensar todas as tentativas de tornar a filosofia uma atividade tão autônoma quanto ela havia sido antes dos filósofos começarem a levar o tempo a sério” (FF, p. 134). O filósofo, diante desse novo papel da filosofia, tornar-se-ia então uma 43 RORTY, Richard. A filosofia e o futuro. IN Pragmatismo: A filosofia da criação e da Mudança. (Organizadores) Cristina Magro e Antonio Marcos Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, pp.125-142. A partir daqui utilizaremos a sigla FF para abreviar o referido texto. 315 espécie de trabalhador braçal e de profeta, ou seja, alguém capaz de mesclar a tarefa de limpar “certos resíduos” do passado e anunciar propostas futuras. Tal papel é semelhante o que foi descrito por Bacon e Descartes, quando associavam o desejo de livrar-se de resíduos aristotélicos e incorporavam visões utópicas do futuro. Para Rorty, “parar de se preocupar com a autonomia da filosofia significa, entre outras coisas, parar de querer estabelecer linhas muito claras para distinguir questões filosóficas de questões políticas, religiosas, estéticas ou econômicas” (FF, p.135). Com isso a preocupação não pode mais se localizar na idéia de manter a filosofia num estado de pureza, ou de trata-la como se fosse uma disciplina no topo da hierarquia das disciplinas, mas o de construir pontes entre as nações e de tomar iniciativas cosmopolitas. Para que isso ocorra, diz Rorty, os professores de filosofia precisam encontrar uma maneira de evitar três grandes tentações: “o anseio revolucionário de ver a filosofia como um agente de mudança, ao invés de vê-la como um agente de reconciliação; o anseio escolástico de confinar-se às fronteiras disciplinares; e o anseio chauvenista44” (FF, p.138). Para Rorty, tais tentações serão evitadas se adotarmos a concepção que Dewey tinha do papel e da função dos filósofos, a saber “um trabalho de reconciliação do velho com o novo, e de nossa função profissional como sendo a de servir de intermediários honestos entre gerações, entre áreas de atividade cultural e entre tradições” (FF, p.138). Trata-se de uma espécie de cosmopolitismo multicultural e heterogêneo que não se corporifica em status de corporações, ou de organismos internacionais como a ONU ou a 44 Por chauvenismo, entende Rorty, é o risco da filosofia restringir-se a particularidades ou nacionalidades. Diz Rorty: “Ocasionalmente, vemos filósofos dizendo que o seu país, ou a sua região, requer uma filosofia particular: que cada nação precisa de uma filosofia própria, para expressar sua própria e única experiência, do mesmo modo que precisa de uma bandeira e de um hino nacional”. 316 UNESCO. O cosmopolitismo pensado por Rorty se associa “a imagem de uma democracia planetária, uma sociedade na qual a tortura ou o fechamento de uma universidade ou um jornal nos causarão tanta revolta se acontecerem do outro lado do mundo quanto se acontecerem em nosso país” (FF, p.139). Os filósofos para Rorty não estarão na vanguarda dessa utopia, mas ocuparão um papel periférico, menor, porém útil na sua criação. Farão o papel de mediação entre a linguagem igualitária e as linguagens explicitamente descriminatórias de muitas tradições culturais diferentes. Trata-se, enfim, de uma função de persuadir homens e mulheres para que se tornem livres. Sendo assim, a grande função dos filósofos, segundo Rorty, é serem servos da democracia. Bibliografia OLIVEIRA, Manfredo A. Filosofia na crise da modernidade. São Paulo: Loyola, 1995. RORTY, Richard. Filosofia e espelho da natureza. Trad. Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. _______. A filosofia e o futuro. IN: Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança. (Organizadores) Cristina Magro e Antonio Marcos Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, pp.125-142. ROUANET, Sergio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 317 EDUCAÇÃO SEM EPISTEMOLOGIA: A FILOSOFIA EDIFICANTE DE RICHARD RORTY Vitor Hugo Mendes∗ Este trabalho propõe-se a uma aproximação ao pensamento de Richard Rorty, um dos mais eminentes representantes do neopragmatismo americano, considerando, particularmente, sua obra A filosofia e o espelho da natureza e, colocando em destaque, as proposições que se referem ao debate sobre a filosofia e a educação, temas cuja importância, continuam a provocar interesse, tensões e polêmicas. Introdução A conversação teórica contemporânea tem sido submetida à difícil tarefa de tematizar o sentido plural de todas as coisas, fenômeno que alcançou, ao longo do último século, do milênio passado, as mais diversas instâncias do pensar e do agir humano. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Doutorando do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Bolsista da CAPES. Instituição: UNIFEBE – Centro Universitário de Brusque – SC. Endereço eletrônico: [email protected] 318 Ao que parece, no bojo do movimento crítico que impugnou uma idéia de razão monológica e solipsista, alicerçada sob a marca de uma filosofia da consciência, na modernidade ocidental, emergiram múltiplas racionalidades e, desde aí, uma variedade de novas abordagens teóricas e metodológicas ensaiando interlocuções diferençadas com as tensões e problemas do nosso tempo. Essa flexibilização da razão e o abandono de convenções epistemológicas e metafísicas de conceitos tais como conhecimento, verdade, objetividade, etc., terminaram por fazer ruir a arquitetônica dos fundamentos e princípios que davam sustentação e legitimidade aos empreendimentos normativos e teleológicos da cultura ocidental. No enfrentamento de questões antigas e novas, a pretensão de verdade cedeu lugar a acordos compulsórios e consensos mitigados ad hoc em um caleidoscópio social cujas possibilidades são de múltiplas variáveis em uma aventura cheia de surpresas. A busca por compreender este contexto de uma babel polifônica e fragmentária, tem movimentado o mercado editorial e a produção teórica de muitos autores/as. Se de um lado, inscrevem-se nesta trajetória, entre outras, posições revisionistas, ao estilo de Jürgen Habermas e sua teoria da ação comunicativa, que embora reconhecendo os percalços e contradições da razão ocidental, compreende a modernidade como um projeto inacabado e prosseguindo na tradição de Kant, Hegel e Marx, não sem considerar as contribuições advindas da filosofia da linguagem, tem buscado reconstruir uma racionalidade possível em nossos dias como fundamento da sociedade; de outro, proliferam posicionamentos que buscando romper com as tradições e o corolário de suas conquistas, ao estilo de Richard Rorty, em tons 319 pragmáticos assumem o contextualismo e a redescrição na esperança de um futuro melhor para a humanidade. Querendo adentrar na complexidade destas muitas questões, neste trabalho interessa-nos aprofundar o pensamento de Richard Rorty, certamente o maior expoente do neo-pragmatismo americano. Autor de vasta e fecunda produção teórica, muitos são as possibilidades de inserir-se no contexto de sua obra. Neste sentido, buscando acompanhar o desenvolvimento de seu pensamento em A filosofia e o espelho da natureza, sob nossa atenção subscrevemos a filosofia e a educação, questões de grande relevância na discussão do filósofo americano. Ademais disso, filosofia e educação são temas de primeira grandeza no debate atual, cuja freqüência, sob as mais diversas formas, obrigatória em qualquer agenda ou fórum de discussão social, não obstante os sismos porque tem passado, continuam a provocar interesse, tensões e polêmicas. A posição de Rorty e os seus encaminhamentos não se mostram menos controvertidos. Filosofia Americana: do pragmatismo ao neo-pragmatismo Por muitos anos, o movimento expansionista e colonialista do velho mundo circunscreveu, modelou e administrou, de modo planificado e hegemônico, o cenário econômico, político e cultural do novo mundo. Mesmo a partir das disputas e guerras que delinearam a emancipação, a independência e a organização autônoma de antigas colônias, a satelização destas, parecia uma condição prévia a ser preservada e a dependência sócio-cultural uma hipoteca impagável. 320 Somente sob sôfregos esforços e outras tantas manobras, ao longo dos últimos séculos, a América tem conseguido angariar algum saldo de reconhecimento, autonomia e expressar, além fronteiras, suas possibilidades. Este panorama, mesmo sem individuar as descontinuidades e as muitas faces de um problema, outrora, comum e compartilhado, permite-nos, ao menos, chamar a atenção em entrever os seus diferentes encaminhamentos no percurso da história, suas atuais configurações na sociedade globalizada e os seus desdobramentos sob o registro de um neo-colonialismo. Por sua vez, em se tratando de particularizar o presente estudo, muito embora as peculiaridades do caso, esta breve retrospectiva pode ajudar-nos a perceber o tipo de dificuldades e o significado do florescimento da filosofia norte-americana, na segunda metade do século XIX, de modo a compor, com particular solidez, um corpus teórico para o pragmatismo e projetá-lo como corrente de pensamento cuja tradição, embora recente, no contexto da história das idéias, passou a freqüentar o âmbito da filosofia com a mesma envergadura de ancestrais tendências européias. Considerado a contribuição mais significativa dos Estados Unidos à filosofia ocidental, o pragmatismo teve forte incidência nas duas primeiras décadas do século XX. Entre os seus principais expoentes encontramos Charles Sanders Peirce (1839-1914), considerado o fundador e Willian James (1842-1919), a quem se atribui o exigente trabalho de sistematização. Em continuidade está John Dewey (1859-1952), conhecido pensador, cuja a influência nas práticas pedagógicas no final do século XIX, dado a sua militância e 321 engajamento político, não deixou de afetar a intelectuais e a opinião pública. Embora a sua pujança, neste período, nas décadas seguintes, após a morte de Dewey, em um movimento que já se iniciara nos anos 30, com a chegada à América de muitos intelectuais europeus, fugitivos da diáspora e perseguição nazista, o pragmatismo foi perdendo a sua importância. Instaurava-se um positivismo lógico monopolizador e, posteriormente, o desenvolvimento e o influxo sobressaliente da filosofia analítica, nas universidades americanas, relegou definitivamente a nova tendência de pensamento a uma posição periférica, senão obsoleta. Não obstante o teor crítico das reações de Willard van Orman Quine (1908), Wilfrid Selars (1912-1989) e Donald Davidson (1917) à situação que se havia imposta, somente nos anos 70 o pragmatismo foi reabilitado, em grande parte, mediante o empreendimento teórico de Richard Rorty, considerado o mais eminente representante do neopragmatismo americano e um dos pensadores mais polêmicos do nosso tempo. Richard McKay Rorty, nasceu nos Estados Unidos, em 1931. Filho único, sua família manteve proximidade com as idéias socialistas trotskistas, mesmo tendo rompido os laços com o Partido Comunista Americano, em 1932. Em sua formação acadêmica Rorty estudou filosofia em Chicago e Yale tendo alcançado um particular domínio teórico-metodológico seja das correntes filosóficas seja dos seus vocabulários técnicos. Por sua vez, em sua trajetória profissional, o filósofo americano tem mantido um diálogo muito estreito com a área 322 pedagógica e, em seus escritos, tem buscado tematizar a educação a partir de sua filosofia “edificante”. Perseguindo uma justificativa que pudesse dar unidade entre realidade e justiça, Rorty fez-se, desde muito cedo, um leitor assíduo da filosofia em moldes platônicos. Embora um certo desconforto porém, inábil para estabelecer um contra-argumento àqueles fundamentos, por um certo tempo foi impossível passar incólume a crença e a reverência. Por sua vez, tendo avançado em seus estudos, a constância de inquietações e incertezas quanto à filosofia que, sem encontrar acomodação, tensionavam com as certezas e a eternidade das idéias, foram sendo processadas em um afastamento teórico que, ancorados em um amplo e erudito diálogo com diferentes concepções de pensamento, permitiram a Rorty um salto qualitativo em suas investigações. Segundo relata o próprio autor, em Trotsky e as orquídeas selvagens, Cerca de vinte anos depois de ter decidido que o desejo do jovem Hegel, de parar de se esforçar pela eternidade e ser apenas um filho do seu tempo, era a resposta mais adequada para minhas desilusões com Platão, eu me vi retornando a Dewey. Nessa época Dewey me parecia ser um filósofo que havia aprendido tudo o que Hegel tinha para ensinar sobre como evitar a certeza e a eternidade e que, ao mesmo tempo, havia me imunizado contra o panteísmo ao levar Darwin a sério. Essa redescoberta de Dewey coincidiu com meu primeiro encontro com Derrida, que devo a Jonathan Arac, meu colega de Princeton. Derrida me fez retomar Heidegger, e fiquei surpreso com as semelhanças entre as críticas ao cartesianismo feitas por Dewey, Heidegger e Wittegenstein. E, de repente, as coisas começaram a se 323 ajustar. Eu acreditava ter descoberto um modo de misturar uma crítica ao cartesianismo com um tipo de historicismo quase-hegeliano de Michel Foucault, Ian Hacking MacIntyre. Eu pensava que podia combinar tudo isso numa narrativa-heideggeriana sobre as tensões internas do platonismo (Rorty, 2000, p.160). Este exercício de distanciamento-ruptura que caraterizou o percurso acadêmico de Rorty, não apenas pavimentou o caminho na direção de retorno ao pragmatismo deweyano, ponto de partida em sua auto-recriação mas, sobretudo, demarcou e cunhou o esboço de sua ousada e irreverente perspectiva teórica, trajetória sistematizada em A filosofia e o espelho da natureza, obra publicada em 1979, e traduzida, no Brasil, em 1994. Os efeitos produzidos pela publicação de sua filosofia, nos final dos anos 70, alcançou a Rorty o reconhecimento de sua performance como intelectual e, na mesma medida, o protagonismo em desestabilizar a monotonia no âmbito da reflexão norte americana, até então, subjugada pelo predomínio e isolamento com que reinava a perspectiva analítica, cuja pretensão de superioridade e ademais estreitamento de visão, havia perdido o contato com as questões emergentes que fecundavam o pensamento filosófico no continente europeu. Neste contexto, cabe dizer, a obra de Rorty mostrou-se não apenas a crítica de uma situação circunscrita, em seu país, tampouco, podia significar a mera disputa por um espaço no grande debate em nível intercontinental; mas, ao transgredir tais limites não sem considerá-los, em termos propositivos e iconoclastas, antecipou-se em apresentar suas proposições resolutivas para os impasses em questão. Segundo parece, ao resgatar o pragmatismo, o filósofo americano, a seu 324 modo, redescreveu uma tradição a partir da qual pode passar em revista, entre outros, não menos que a história do pensamento ocidental, que devidamente sanitarizado, em toda a sua extensão, finalmente pode ser oferecido com fins terapêuticos antiplatônicos e anti qualquer ortodoxia cujo apelo representacional e fundacionista pudesse ser dirigido. Não sem motivos Rorty, em sua posição intelectual, tem procurado manter-se eqüidistante da esquerda e da direita, embora tenha o merecimento de atrair contra si os desafetos destes e daqueles. Neste embate, reconhece: “eu sou sempre citado por guerreiros da cultura conservadora como um desses intelectuais relativistas, irracionalistas, desconstrutores, escarnecedores e sarcásticos, cujos escritos estão enfraquecendo a fibra moral da juventude” (Rorty, 2000, p. 145). Se a hostilidade da esquerda advém de o neopragmatismo rortyano parecer complacente com a convicção proselitista americana de que seus horizontes democráticos são, indiscutivelmente, o melhor tipo de sociedade já inventada; o revés da direita arma-se em atacá-lo pela sua desconsideração de que a sociedade democrática está edificada sobre princípios e fundamentos que encarnam a verdade e a razão. Buscando contornar tais apologias que pouco diferenciam, segundo Rorty, esquerda e direita, sua posição compartilha dos ideais democráticos e da esperança de um futuro melhor para a humanidade. Entretanto, o seu abandono de qualquer pretensão em ver o presente como recurso heurístico que permita objetivação e prescrição de verdades essenciais do passado, faz romper possíveis cristalizações e tendências universalizantes. 325 A filosofia e o espelho da natureza Como já indicamos, o longo processo de pesquisa, amadurecimento e publicação das teses defendidas por Rorty em A filosofia e o espelho da natureza (1979), representou uma acurada inserção no mundo da filosofia45. Nestas circunstâncias, o filósofo americano, em sua obra, estabelece um diálogo com inúmeros autores, distintos períodos históricos e outras tantas vertentes do pensamento filosófico. Crítico e irreverente, sua ortodoxia, aqui entendida como rigor metodológico, imprime-se unicamente em conduzir sua forma redescritiva de uma filosofia que se pretende como terapêutica. Tal como propõe o título do livro, sua intenção é confrontar a filosofia e a concepção de espelho da natureza, metáfora que, segundo Rorty, impregnou a história do pensamento ocidental, cadenciada que foi, na configuração da modernidade, pelo compasso de uma epistemologia centrada na noção de “mente”. Os equívocos desta epopéia, temas recorrentes na tessitura argumentativa de Rorty, se orientam em esclarecer as condições em que se constituiu um tipo linear, progressivo e cumulativo no tratamento de problemas filosóficos, cujo encaminhamento e resolução de suas variantes, tornou-se a meta predominante até nossos dias. Segundo Rorty, 45 Em busca de uma “filosofia sem espelhos”, aspecto de onde surge o caráter “terapêutico” de sua proposta, o autor organiza sua obra, um complexo temático organizado didaticamente em três grandes partes, – a saber, Nossa essência especular, Espelhamento, Filosofia –, subdivididas em oito capítulos, perfazendo um total de 386 páginas. 326 A imagem que mantém cativa a filosofia tradicional é a da mente como um grande espelho, contendo variadas representações – algumas exatas, outras não – e capaz de ser estudado por meio de métodos puros, não empíricos. Sem a noção de mente como espelho, a noção de conhecimento como exatidão de representação não teria sido sugerido. Sem esta última noção, a estratégia comum a Descartes e Kant – obter representações mais exatas ao inspecionar, reparar e polir o espelho, por assim dizer – não teria feito sentido. Sem essa estratégia em mente, afirmações recentes de que a filosofia poderia consistir em “análise conceitual”, ou “análise fenomenológica”, ou “explicação de significados”, ou exame da “lógica de nossa linguagem” ou da “estrutura da atividade constitutiva da “consciência” não teriam feito sentido (Rorty, 1994, p. 27). A redescrição de Rorty não deixa de reconhecer a importância das questões suscitadas pela filosofia em seus distintos contextos, porém, querer estabelecer qualquer tipo de conexão necessária entre elas é, para o autor, uma ambição desmedida e absurda, tal como aconteceu com o nivelamento que vem de Platão a Kant, subssumidos pela metáfora da visão, o “olho da mente”. Segundo o filósofo, esta imagem, mais do que o argumento, a fantasia mais do que as evidências, estão presentes nos deslocamentos que possibilitaram a “invenção da mente”, por Descartes, e a noção de “teoria do conhecimento”, prefaciada por Locke, magistralmente realinhados no transcendental “tribunal da razão pura”, do qual Kant, no século XVIII, tornou-se o grande artífice. É no alcance destes feitos, minunciosamente garimpados entre os seus muitos elementos, que a redescrição de Rorty converge, para o 327 que podemos chamar de um divisor de águas decisivo no âmbito da filosofia. Segundo o autor, na época de Kant, portanto, parecia como se existissem dois fundamentos alternativos para o conhecimento – era preciso escolher entre a versão interiorizada das Formas, idéias claras e distintas cartesianas, por um lado, e “impressões” humeanas por outro. Em ambos os casos estava-se escolhendo objetos pelos quais ser compelido. Kant, ao rejeitar a ambos esses objetos putativos como essencialmente incompletos e impotentes para compelir, a não ser combinados entre si em “síntese”, foi o primeiro a pensar sobre os fundamentos do conhecimento mais como proposições que como objetos. Antes de Kant, uma inquirição sobre “a natureza e origem do conhecimento” havia sido uma busca por representações privilegiadas. Com Kant, tornou-se uma busca pelas regras que a mente havia colocado para si mesma [os “Princípios do Entendimento Puro”] (Rorty, 1994, p. 166). Tal procedimento, ao definir as condições e possibilidades da razão, e assim, lançar as bases do conhecimento objetivo, permitiu a Kant pôr “a filosofia ‘na trilha segura de uma ciência’ colocando o espaço externo dentro do espaço interno (o espaço da atividade constituinte do ego transcendental) e, então, afirmando a certeza cartesiana sobre o interno para as leis do que previamente se pensava ser o externo” (Rorty, 1994, p. 145). Constitui-se dessa maneira, a versão “modelar” de uma teoria do conhecimento, posteriormente alinhavada como uma epistemologia, cuja função principal tornar-se-ia, entre outras, distinguir filosofia e ciência. 328 Neste particular, deve-se ter presente que embora filosofia e ciência tenham conquistado uma efetiva independência da razão em relação à religião, mediante a “virada transcendental” kantiana, a partir desse momento, o progressivo avanço e autonomia da racionalidade científica, sobretudo no século XIX, passou a representar uma ameaça ao lugar ocupado pela filosofia como “rainha” das ciências, cada vez mais, desafiada a uma constante reformulação de seus pressupostos, em se tratando de precisar a objetividade epistemológica. Neste percurso, segundo Rorty, O modo de ter representações exatas é encontrar, dentro do Espelho, uma classe privilegiada especial de representações tão compulsivas que sua exatidão não possa ser posta em dúvida. Esses fundamentos privilegiados serão os fundamentos do conhecimento e a disciplina que nos dirige para elas – a teoria do conhecimento – será o fundamento da cultura. A teoria do conhecimento será a busca por aquilo que compele a mente a crer tão logo algo é desvelado. Filosofia-enquanto-epistemologia será a busca pelas estruturas imutáveis dentro das quais conhecimento, vida e cultura devem ser contidos – estruturas colocadas pelas representações privilegiadas que estuda (Rorty, 1994, p. 169). Nestas condições, não obstante os percalços e a emergência de protestos ocasionais, a filosofia seguiu o seu curso no século XX. Em busca de tornar-se cada vez mais “científica” e “rigorosa”, a filosofia sistemática, seguindo a tradição, cunhou para si um vocabulário de tal forma hermético, permanente e “profissional” incorrendo em uma inevitável perda de contato com o resto da cultura. Segundo Rorty, até mesmo as tentativas revisionistas e críticas, tanto dos filósofos analíticos 329 como de fenomenólogos, terminaram por ser absorvidas pelo influxo epistemológico de restaurar a “filosofia na posição que Kant desejava que ocupasse – a de julgar outras áreas da cultura com base em seu conhecimento especial dos ‘fundamentos’ dessas áreas” (Rorty, 1994, p. 23). Essa noção de um terreno comum para a racionalidade fundado na representação, e que tem sido responsável pela tentativa de encontrar, na filosofia e também em disciplinas não-filosóficas, temas sucessores para a epistemologia, segue entretendo-se, na visão de Rorty, em encontrar o “infundado” de uma faculdade humana capaz de conhecer “essências”, especificando dessa maneira, a própria “essência” do ser humano. Convencido da inexistência desta arena detentora da verdade pelo acesso interno da mente, e portanto, a impossibilidade do registro de uma natureza intrínseca de todas as coisas, Rorty procura desenvolver, a seu favor, o que parece-lhe uma presença periférica na filosofia moderna, um tipo de movimento, cuja perspectiva contrastante em relação à corrente principal sistemática, sem conformar uma “tradição”, propriamente dita, protagonizou a ruptura e o abandono da concepção kantiana de uma teoria geral da representação. Nesta perspectiva, referindo-se aos trabalhos de Ludwig Wittegenstein (1889-1951), Martin Heidegger (1889-1976), John Dewey (1859-1952), os três filósofos que considera os mais importantes do século XX, não sem considerar-se devedor de Willard van Orman Quine (1908), Wilfrid Sellars (1912-1989), o anti-representacionalismo de Rorty orienta-se em configurar a sua “filosofia edificativa”, ou seja, a proposta de uma “filosofia sem espelhos”. 330 Este aspecto propositivo, é interessante observar no pensamento de Rorty, ainda que sempre presente em seu caráter “terapêutico” e perpasse o todo da obra, só atinge a sua devida importância e, em certo sentido, originalidade, na parte III de A filosofia e o espelho da natureza, quando o autor põe-se a tematizar a Filosofia como tal. Embora sendo esta a sua intenção principal, um longo caminho foi preciso trilhar. Adentrando no emaranhado temático de uma filosofia centrada na epistemologia, com precisão cirúrgica e, demoradamente, Rorty redescreveu o enredo de Nossa essência especular (Parte I) e a idéia de Espelhamento (Parte II), tarefa que, por si só, já realça o seu trabalho investigativo. Por sua vez, para além dessa compilação dos elementos históricos e o resgate das críticas contra a “imagética especular tradicional”, Rorty entrevia que, para levar a termo o seu intento de “perfurar aquela crosta da convenção filosófica que em vão Dewey esperou abalar” (Rorty, 1979, p. 28), outros elementos precisavam ser esboçados. Assim compreendendo estes encaminhamentos de Rorty, em a Filosofia (parte III), embora seja o capítulo conclusivo da obra, encontramos um exercício preliminar e indicativo do que poderia ser a filosofia sem a epistemologia. Neste sentido, tendo como referência as contribuições advindas da hermenêutica, quer nos parecer que a desconstrução operada por Rorty, assume uma posição construtiva da filosofia, agora em condições de ser compreendida como “conversação” e “edificação”. Este enfoque que emerge na passagem da epistemologia para a hermenêutica, na redescrição de Rorty, parece corroborar o sentido mais profundo de sua virada pragmática na filosofia. Diversamente da mão 331 única prescrita pela visão epistemológica, – enquanto representação precisa capaz de assegurar uma prática legitimada a partir de um terreno comum de concordância –, a hermenêutica, na interpretação de Rorty, restringe-se em sugerir que ser racional é, antes de tudo, abster-se da epistemologia. Seguindo a elaboração de Hans-Georg Gadamer (1900-2002), a hermenêutica para o filósofo americano, situa-se no contraponto da problemática do conhecimento, e nesta posição, não se filia a um temasucessor da epistemologia, tão pouco, constitui uma disciplina, um método, ou ainda, um programa de pesquisa. A hermenêutica, tal como o holismo advogado por Rorty, é uma dessas formas de racionalidade que coloca em questão a própria “racionalidade”, sem pretender restringi-la a um discurso monológico. Dessa maneira, afirma o autor, a hermenêutica encara as relações entre discursos variados como as relações entre partes integrantes de uma conversação possível, uma conversação que não pressupõe nenhuma matriz disciplinar que una os interlocutores, mas onde a esperança de concordância nunca é perdida enquanto dure a conversação. Essa esperança não é a esperança da descoberta de terreno comum de concordância anteriormente existente, mas simplesmente a esperança de concordância, ou, ao menos, discordância interessante e frutífera (Rorty, 1979, p. 314). A hermenêutica, tal como é assumida na interpretação de Rorty, como discurso sobre discursos (idem, 338), não apenas indica um distanciamento da arbitrariedade presente na visão epistemologicamente centrada mas, também expressa, o reconhecimento de uma pluralidade 332 discursiva como explicitação da inesgotabilidade de sentido da contingência humana no mundo. Neste enquadramento mais amplo e dinâmico, trazido pela compreensão hermenêutica, a imagem de mundo estruturado, estável e permanente, cede passagem e passa a condividir o lugar com outros modos alternativos de descrição, isto é, no dizer de Rorty, proclamar que não temos nenhuma essência, nos permite ver as descrições de nós mesmos que encontramos em uma das (ou na unidade das) Naturwissenschaften como a par com as várias descrições alternativas oferecidas pelos poetas, romancistas, psicólogos de profundidade, escultores, antropólogos e místicos. As primeiras não são representações privilegiadas em virtude de que (no momento) há mais consenso nas ciências do que nas artes. Simplesmente fazem parte do repertório de auto descrição à nossa disposição (Rorty, 1994, p. 356). 333 A partir desta perspectiva, emancipado de uma “essência” onde se queria ancorar a “verdade”, o autor faz emergir a possibilidade de um diálogo hermenêutico contextual, auto-implicativo e relacional. Neste caso, a conversação assume toda a sua importância pois, é a conexão convergente pela qual pode-se tecer e recriar a trama de crenças descritas e redescritas, antes como um modo de provocar a solidariedade que uma maneira de alcançar comensuração e objetividade. Nessa maneira de lidar com o mundo, “a objetividade deveria ser vista como conformidade às normas de justificação (para asserções e para ações) que encontramos sobre nós (Rorty, 1994, p. 355), e não no plano prescrito por uma teoria como ideal a ser atingido. Quer dizer, o sentido pragmático da vida substitui a intenção prescritiva da teoria. Nestas circunstâncias em que a justificação é um fenômeno pragmático-social e não teórico-epistemológico, o “conhecimento”, como objetivo do pensar, é sucedido pela noção de bildung (educação, autoformação), tal como propôs Gadamer e, na versão de Rorty, fora redescrita como “edificação”, isto é, a forma “para representar esse projeto de encontrar modos novos, melhores, mais interessantes, mais fecundos de falar” (cfr. Rorty, 1994, p. 353-354). A edificação é, neste sentido, tudo o que possa resultar de uma conversação em tratando-se de arrancar-nos de nós mesmos e, dessa maneira, inserir-nos em um contexto mais amplo, diverso e produtivo. 334 Ocorre, no entanto, que este caráter reativo do projeto de edificação, ao insistir em outros modos de falar, não pode desconsiderar que um contexto determinado, embora cultural e não mais universal, segue como sendo o ponto de partida para a redescrição auto-criativa. É pois, diante desta situação, que Rorty assevera que “educação tem que partir da aculturação” (idem, 359) como caminho de abertura, intercâmbio fecundo e contínuo de contextos e culturas diferentes. Diante deste panorama o papel da filosofia não será outro que fazer parte da conversação, redescrever e edificar. É em relação a isso, que a filosofia “edificante” de Rorty e outros filósofos periféricos, contrasta com a filosofia “sistemática” da corrente principal. Enquanto esta se mantém na “trilha segura” da ciência e busca circunscrever e restringir os discursos, aquela põe sob suspeita este tipo de visão e visa antes continuar a conversação e ampliar a redescrição discursiva. Para Rorty, este poderia ser o palpite edificante: “do ponto de vista educacional, enquanto oposto ao epistemológico ou tecnológico, o modo como as coisas são ditas é mais importante do que a posse de verdades” (Rorty, 1994, p. 353). A título de palavras finais Neste trabalho buscou-se acompanhar o pensamento de Richard McKay Rorty a partir de sua obra A filosofia e o espelho da natureza cujo alcance, por ocasião de sua publicação, nos final dos anos 70, deu a conhecer um trabalho polêmico e controvertido. Não se trata de concordar ou não com o autor. Passados mais de duas décadas e, neste já avançado início de milênio, aquelas idéias continuam conduzindo material inflamável e influenciando a conversação filosófico-social sem perder o mérito de angariar, contra e a favor de si, muitos interlocutores. 335 O posicionamento do autor, no período subseqüente, foi sendo aprimorado e ampliado em uma infinidade de outros trabalhos. Segundo o filósofo, os desdobramentos de suas idéias podem ser compreendidos no fato de que, embora o sucesso das proposições contidas em A filosofia e o espelho da natureza, sua sistematização havia deixado por resolver sua pretensão de uma “visão unificada” entre justiça e realidade, algo que, já se passara trinta anos, havia buscado encontrar na universidade. E prossegue Rorty, Enquanto procurava entender o que tinha dado errado [com A filosofia e o espelho da natureza], aos poucos fui me dando conta de que a própria idéia de reunir realidade e justiça em uma só visão foi precisamente o que levou Platão a perder o rumo. Mais especificamente, me dei conta de que apenas a religião, apenas uma fé indiscutível num pai substituto que, ao contrário de qualquer pai na vida real, incorporava amor, poder e justiça em iguais medidas, poderia fazer a mágica que Platão pretendia fazer. Como não me conseguia imaginar tornando-me um religioso – e, de fato, ao longo dos anos eu havia me tornado ainda mais secularista –, decidi que a esperança de alcançar essa visão única através da filosofia havia sido uma tentativa autoenganadora de um ateísta de fugir da religião. Assim decidi escrever um livro46 sobre como poderia ser a vida intelectual se pudéssemos desistir da tentativa 46 Rorty refere-se ao livro Contingency,Irony and Solidarity (1989), tradução de Nuno Fonseca (1992) para Editorial Presença, de Lisboa, impresso no ano de 1994 com o título Contingência, Ironia e solidariedade. Na introdução deste trabalho, o filósofo americano esclarece: “o presente livro tenta mostrar o aspecto que as coisas assumem se pusermos de parte a procura de uma teoria que unifique o público e o privado e nos contentarmos com tratar as exigências de autocriação e as de solidariedade humana como sendo igualmente válidas, embora definitivamente incomensuráveis. O livro desenha uma figura a que chamo a ‘ironista liberal’. /.../ Ironistas liberais são pessoas que incluem entre esses desejos infundáveis a sua esperança de que o sofrimento venha a diminuir e de que a humilhação causada a seres humanos por outros seres humanos possa terminar” (Rorty, 1994a:17). 336 platônica de reunir realidade e justiça em uma só visão (Rorty, 2000, p. 161). Levando a termo sua intenção, é no bojo desta guinada que a configuração da teoria social do filósofo americano seguiu cotejando muitos temas sociais, políticos, éticos, culturais, filosóficos, educacionais, etc., sempre na perspectiva do neo-pragmatismo. Em Os perigos da sobre-filosoficação, por exemplo, Rorty se declara como “alguém que tem lá suas dúvidas a respeito da relevância da filosofia para a educação”, assim como também, “da relevância da filosofia para a política”, e acrescenta: “na medida em que a filosofia tenha uma função social, ela me parece ser uma função terapêutica – ajudar as pessoas a sair do domínio das idéias filosóficas antiquadas, ajudando a quebrar a crosta de convenções. O principal instrumento para quebrar a crosta de convenções, contudo, é a sugestão de alternativas concretas” (Rorty, 1997, p. 60). De fato, não é difícil constatar que um certo desencantamento com a “razão ilustrada”, tem sugerido uma adesão irrestrita a um pragmatismo de resultados em detrimento de fundamentos teóricos sofisticados e logicamente construídos. Tal embate tem mobilizado particularmente a filosofia, mas em decorrência de sua direta correlação, não tem deixado incólume a educação, visto que ambas, a primeira implicando sobre a segunda, em grande parte, se fizeram emoldurar por aquela visão clássica de ser humano e de mundo, sujeito – objeto. A obra de Rorty se insere em meio a este debate e, a seu modo, como vimos, procura redescrever o seu caminho, terapêutico para a filosofia e alternativo para a educação. Podemos dizer que a partir do estudo realizado, esboçamos algumas condições para melhor compreender as proposições de Rorty e, 337 em certo sentido, alcançamos alguma habilidade para transitar entre as investigações sobre o autor que, no campo da educação, tendem a polarizar-se em caminhos contrários. Se de um lado há, os que integralmente assumem a posição rortyana e, desde ai, buscam elucidar uma filosofia da educação; de outro, a flexibilização teórica representada pela elaboração de Rorty é vista com suspeição e crítica, uma saída problemática para a filosofia e a educação. Neste campo de tensões, partidário e divulgador da filosofia de Rorty, Ghiraldelli Jr. a compreende, antes de tudo, como uma filosofia da educação. Para o autor brasileiro, em oposição a um sujeito racional, consciente e responsável, o neo-pragmatismo possibilita um sujeito “sem essências”, plástico, “rede de crenças e desejos”. Sem invocar uma explicação para si e para o mundo do qual faz parte, em lugar de uma teoria, o que há para lidar com as mais diversas situações são estratégias redescritivas. São elas que permitem ao sujeito uma autodescrição criativa, incomensurável, provocadora de mudanças. Dessa maneira, esclarece o autor: este é o meio pelo qual o eu se constrói e se reconstrói. O meio pelo qual o sujeito se altera infinitamente. As estratégias redescritivas são estratégias educacionais. Estratégias confiantes de si mesmas, já que estão acopladas (mas não fundamentadas na – e isso é importante para entendermos Rorty), à idéia de que o ser humano é infinitamente plástico (Ghiraldelli Jr., 1997, p. 30). No contraponto desta visão, em declarada oposição à teoria social de Rorty, em suas pesquisas Moraes confronta o que considera uma espécie de “ceticismo radical” presente no pensamento do filósofo 338 americano. Utilizando-se do recurso da retórica, denuncia a autora, tal ceticismo impugna qualquer possibilidade de conhecimento objetivo e verdadeiro e, na mesma medida, elimina as ações que permitam intervir e transformar a realidade. Segundo Moraes, diferindo da “objetividade neopragmática definida no consenso, /.../ a complexidade do ser social é inteligível; por isso é efetividade social aberta ao conhecimento, à correta compreensão e à intervenção” (Moraes, 2003, p. 194). Disso decorre o interesse da educação como prática social, interação de sujeitos e articulação reflexiva de um horizonte para o pensar e o agir humano, elementos que a filosofia edificante de Rorty nivelou de forma rasteira. E pergunta Moraes: “a que se propõe, então, a educação rortyana? A um curioso idealismo, a aparentes boas intenções, mas, sobretudo, a uma forte adequação à sua utopia liberal e à formação de suas ironistas” (idem, 193). Como se pode notar, não há como simplesmente contornar as questões trazidas pela teoria social de Richard Rorty. Por sua vez, tendoas em consideração, a estória por ele redescrita do pensamento ocidental, da filosofia, da educação etc, exige do leitor perguntar, ao menos, se esta é a melhor interpretação de que dispomos, o que nos leva, irremediavelmente, a revisitar a história, os autores, outras perspectivas. Quanto à proposta de uma educação “sem epistemologia”, ou seja, a “edificação” proposta por Rorty, o desafio em nosso contexto atual é o mesmo de sempre: promover solidariedade e igualdade em uma sociedade de liberalismo e desigualdade. O tempo nos dirá quem tem razão! 339 Bibliografia GHIRALDELLI JR., P. Para ler Rorty e sua Filosofia da Educação. In: Paulo Ghiraldelli Junior e Nadja Hermann Prestes (Editores). Revista Filosofia, Sociedade e Educação [Ano I – Nº1 – p. 09 a 30]. Marília/SP: UNESP, 1997. MORAES, M.C.M. Ceticismo epistemológico, ironia complacente: indagações acerca do neopragmatismo rotyano. In: Maria Célia Marcondes de Moraes (Organizadora). Iluminismo às avessas. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. RORTY, R. Os perigos da sobre-filosoficação. In: Paulo Ghiraldelli Junior e Nadja Hermann Prestes (Editores). Revista Filosofia, Sociedade e Educação. [Ano I – Nº1 – p. 59 a 67]. UNESP – Marília/SP, 1997. _____. Contingência, Ironia e solidariedade. Lisboa: Editorial Presença, 1994a. _____. Pragmatismo – A filosofia da criação e da mudança. (Magro, C. e Pereira, A. M. org.). Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000. _____. A filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1994. 340 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO BÁSICA 341 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO: APRENDENDO UMA RAZÃO-EMOÇÃO CRÍTICOREFLEXIVA Celso Ilgo Henz∗ A educação é fenômeno vital na trajetória de humanização da espécie humana. Ela supõe e possibilita homens e mulheres em contextos de práticas sociais. Ela é o próprio processo pelo qual os seres humanos vão se constituindo a partir e através da interação com o meio circunjacente e com os demais membros da sua coletividade. Nas palavras de Kant, é nessa relação que “o homem somente se torna homem pela educação. Ele nada é, senão aquilo que a educação dele faz” (Kant, 1988, p. 699). A educação, pois, está assentada na vocação ontológica dos humanos, que precisam aprender a ser humanos a partir da realidade do mundo que experimentam, na qual e sobre a qual homens e mulheres se constituem em reciprocidades reflexivas e comunicativas. Vivemos uma virada de século e de milênio, em cuja totalidade uma das facetas nos revela que as relações humanas e as Doutor em Educação, [email protected] professor do ADE/CE-UFSM. Endereço eletrônico: 342 responsabilidades sociais se multiplicam em ritmo acelerado, desafiando a educação e a pedagogia a uma visão mais abrangente, fruto de reflexões coletivas e dialógicas que, partindo da observação e admiração das pessoas e da realidade, da intuição e da problematização, busque os melhores caminhos para contribuir com a humanização de todos(as), sobretudo daqueles e daquelas cuja humanidade é impedida, interrompida, diminuída ou roubada. Assim tornar-se-á possível avançar para uma concepção pedagógica orientada por uma racionalidade onde as dimensões cognitivo-instrumental, prática, ético-normativa e estéticosubjetiva se dialetizem, numa prática educativa em que homens e mulheres possam ir se descobrindo na sua totalidade, e como partes de uma totalidade ainda maior, “gostando de ser gente”, sabendo-se condicionados(as) e inconclusos(as) e, por isso mesmo, capazes de “ser mais” , com a ousadia de correr o risco da aventura histórica como possibilidade de vislumbrar e construir horizontes mais esperançosos. Entendemos que o objetivo da educação crítico-reflexiva está na autonomia do(a) aluno(a) na sua capacidade de sentir/pensar/agir, enquanto corpo consciente, enquanto ser que entrelaça emoção e razão como racionalidade, num continuado esforço para ultrapassar a simples repetição daquilo que outros(as) sentiram, experimentaram, fizeram, pensaram e/ou disseram, desenvolvendo uma visão própria de si mesmo(a) e do mundo. A primeira condição para tal é: acreditar nas capacidades das crianças, criando as condições necessárias para que todos possam “dizer a sua palavra”, a partir do seu mundo da vida, da sua maneira de ser e viver como crianças e adolescentes, através das suas fantasias, dúvidas, vontades e pensamentos, uma vez que "para assumir responsavelmente sua missão de homem, há de aprender a dizer a sua palavra, pois, com ela, constitui a si mesmo e a comunhão humana 343 em que se constitui; instaura o mundo em que se humaniza, humanizando-o" (Fiori, In Freire, 1998, p. 13). Daí a importância de irmos exercitando desde cedo o assumir-se, o posicionar-se, o defender com argumentos bem fundamentados o nosso saber-fazer como homem, como mulher, como educando ou educanda, como cidadão ou cidadã, como educador ou educadora. Para tanto a possibilidade de perguntar, criticar, refletir, criar, manifestar o sentimento, falar, escutar, espantarse, arriscar-se são momentos fundamentais nos processos de ensinar e aprender, sempre num clima de muita amorosidade, afetividade e diálogo. Entretanto, uma pedagogia crítico-dialógica sempre parte da realidade e dos conhecimentos que os(as) educandos(as) vivem e trazem. Somente assim, os outros conhecimentos, quando confrontados com aqueles trazidos pelos meninos e meninas que vêm para aprenderem a ser mais, poderão ganhar relevância e significação para a sua formação. Caso contrário não passarão de “cultura morta”, palavras ocas e vazias, que retoricamente serão vomitados por professoras e professores, sem um mínimo de articulação entre o saber popular e o saber científico, sem nenhuma mediação e interlocução com as experiências que homens e mulheres vivemos no mundo e na história. Teoria e prática, então, não mais serão dicotômicas, mas uma ajudará a pensar a outra, numa necessária, permanente e dialética relação processual em que uma possibilita a outra a encontrar a sua razão de ser. Assim todos(as) podem ir se capacitando para participarem conscientemente do que existe, mas também para se empenharem fortemente na busca e construção de alternativas que criem condições favoráveis para que todos(as) possam assumir-se como sujeitosfazedores da sua história e do mundo no qual intersubjetivamente vão se 344 gentificando. Nesta perspectiva, o questionamento e a pergunta são mais do que simples indagação; são manifestações dos corpos conscientes que estão em busca da realização dos seus sonhos ou da resolução de suas preocupações, condicionados pela cultura, história, posição de classe, sentimentos, denúncias, esperanças, saberes do mundo da vida em que historicamente vêm se constituindo como homens e mulheres. Antônio Faundez, no livro “Pedagogia da Pergunta”, dialogado com Paulo Freire, relata que ele e alguns de seus colegas intelectuais chilenos não estudavam para apreender fórmulas, teorias e/ou sistemas, numa separação entre as idéias, a vida do povo e a necessidade de transformação da realidade do Chile: eu diria que estudávamos filosofia para resolver problemas e não para aprender sistemas. [...] Era antes compreender como as idéias se concretizavam na mente e na ação de um povo culturalmente dependente, como é o povo chileno. [...] Uma experiência da qual, se iniciada, não mais se pode sair, porque se descobre o verdadeiro trabalho do intelectual. O trabalho em que a teoria, a prática e tudo o que se faz intelectualmente se faz com a finalidade de compreender a realidade e, se possível, transformá-la – esse é um trabalho que não se perde num jogo de idéias (In Freire & Faundez, 1998, p. 15-18). Esta nova perspectiva pedagógica, com rigorosidade e sensibilidade, assenta-se numa “pedagogia radical da pergunta”. Tratase de aprender a perguntar, aprender quais perguntas são fundamentais para sentir e apreender a realidade, e quais perguntas são fundamentais na rigorosidade da busca da razão de ser do conhecimento, seja ele popular ou científico. Somente quem se pergunta e permite que a 345 curiosidade dos(as) outros(as) o(a) provoque e desafie pode ir apreendendo sempre, mesmo quando está ensinando. Mais que um confronto, a pergunta coloca educandos(as) e educadores(as) lado a lado para juntos(as) buscarem novas respostas, exercitando intersubjetivamente a curiosidade epistemológica e o engajamento sócio-político. Exercitar o perguntar e o deixar-se ser perguntado faz parte de práticas educativas que se pretendem dialógicas e democráticas, re-inventando as relações de poder para colaborar com a construção de uma sociedade também democrática. Não obstante, em nossas escolas normalmente se desenvolve uma pedagogia das respostas, onde os(as) educadores(as) já trazem as respostas prontas para quaisquer perguntas, ou até mesmo para perguntas que ainda não existem. Por não aguçar a curiosidade, por não ensinar a perguntar, castramos a curiosidade dos(as) educandos(as) e, depois, criticamos o seu desinteresse em aprender. O interesse foi anulado porque a curiosidade foi abafada por práticas educativas autoritárias e conteudistas, com um movimento linear em que respostas vão sendo discursadas para alunos(as) que, quando muito, silenciosamente ousam perguntar a si mesmos(as) para que serve aprender todo aquele entulho de teorias e conceitos. Mas, “O que é perguntar?... O que significa mesmo perguntar?”, pergunta curiosamente Paulo Freire. Ao que ele mesmo foi tentando responder, muitas vezes com novas perguntas que fizessem a resposta ser construída juntamente com seus interlocutores: ... o centro da questão não está em fazer com a pergunta “o que é perguntar?” um jogo intelectual, mas viver a pergunta, viver a indagação, viver a curiosidade, testemunhá-la ao estudante. O problema que, na verdade se coloca ao professor é o 346 de, na prática, ir criando com os alunos o hábito, como virtude, de perguntar, de “espantar-se". [...] Eu insistiria em que a origem do conhecimento está na pergunta, ou nas perguntas, ou no ato mesmo de perguntar; eu me atreveria a dizer que a primeira linguagem foi uma pergunta, a primeira palavra foi a um só tempo pergunta e resposta, num ato simultâneo (In Freire & Faundez, 1998, p. 48). Uma “pedagogia da pergunta” humaniza porque estimula a capacidade de assombrar-se, de criar, de escutar e reconhecer o(a) outro(a), de refletir criticamente, de tomar nas mãos a própria história, gerando aprendizagem e (re)construção de conhecimento e da existência humana, e não apenas o relato de conclusões a que chegaram outras pessoas. Isto muito mais educativo do que sujeitar as crianças, os(as) adolescentes e jovens a aprender e repetir o que os(as) seus(suas) professores(as) apreenderam anteriormente, ou o que simplesmente transferem dos livros didáticos para os cadernos dos(as) alunos(as). Assim, aos poucos a sala de aula vai se transformando no espaço-tempo em que o diálogo problematizador possibilita que as diferentes vozes digam seus problemas, necessidades, experiências, sonhos, esperanças, sentimentos e conhecimentos; escutando e dialogando, professores(as) e alunos(as) problematizam as múltiplas (por vezes contraditórias) maneiras de ver e pronunciar o mundo, seja a partir do conhecimento da experiência-feito, seja a partir do conhecimento acadêmico-científico. Os conhecimentos sistematizados (ou científicos) não perdem sua validade, mas passam a ser relativizados em função da humanização de crianças, de jovens e de adultos que vivem – ou resistem com manhas de sobrevivência – dentro de situações sociais, políticas, culturais e econômicas que os afetam diretamente. 347 Começa-se a descobrir que professores(as) e alunos(as) estamos na escola para aprendermos sempre a ser mais humanos(as), e tudo o que ali fazemos e aprendemos deve sempre estar em função de significados e horizontes mais abertos: a escola existe para nos ajudar a aprender a ser homens e mulheres, a “virar gente”. Professores(as) e alunos(as) somos desafiados a ir nos capacitando para assumirmos posições e opções diante da vida, da cultura, da sociedade, da história. Para tanto, muito mais que uma “pedagogia de respostas”, uma “pedagogia da pergunta” pode nos ajudar na construção de critérios, valores, sentimentos e saberes críticos, desenvolvendo em todos(as) a capacidade de assumir-se, com opções e responsabilidades; as escolas, assim, vão se transformando em “comunidades de aprendizagem”, onde professores(as) e alunos(as) possamos ir aprendendo sempre a nos assumirmos como sujeitos de nós mesmos(as) e do mundo em que estamos nos humanizando, “tomando nas mãos” - dialógica e criticamente – os conhecimentos, os sentimentos, os valores, as técnicas, as habilidades e os sonhos, coerentes com os projetos pessoais e político-sociais construídos e aprendidos através de processos educacionais onde todos podemos “dizer a nossa palavra” e “ser mais “. O conjunto de interações e relações geradoras de significados muitas vezes levam a romper com o preestabelecido, pois possibilitam "compreender os detalhes da vida cotidiana e a gramática social do concreto mediante as totalidades mais globais da história e do contexto social" (Giroux, in Freire e Macedo, 1990, p. 16), fazendo com que educandos(as) e educadores(as) aprendam a ser os(as) autores(as) de seus próprios mundos e suas próprias vidas. 348 A sala de aula como comunidade de investigação é possível quando todos(as) se dispõem a uma linguagem de partilha, de escuta, de problematização, de reflexão, de pensar aprofundado pelas comparações, análises, julgamentos, argumentos e raciocínios bem fundamentados e organizados; vai-se apreendendo a respeitar e questionar o posicionamento dos(as) outros(as), ao mesmo tempo que cada participante vai se encorajando a pronunciar seus pontos de vista e exigir que os mesmos também sejam respeitados, embora sempre passíveis de contestações, questionamentos e contra-argumentações, pois "...os alunos dividem opiniões com respeito, desenvolvem questões a partir das idéias dos outros, desafiam-se entre si para fornecer razões a opiniões até então não apoiadas, auxiliarem uns aos outros ao fazer inferências daquilo que foi afirmado e buscar identificar as suposições de cada um" (Lipman, 1995, p. 31). Ao dizerem a sua palavra, os seres humanos não manifestam apenas opiniões, idéias e/ou informações, mas também expressam suas emoções e sentimentos, sua existenciação humana. Uma práxis educativa que se pretende crítico-reflexiva assentase nesta dialeticidade e radicalidade das correlações intergenéticas, mesmo quando trabalha especificamente com os conteúdos conceituais das diferentes disciplinas, pois “quanto mais nos aprofundamos em uma disciplina, mais descobrimos como esta implica em esquemas conceituais que são essencialmente relacionais, consistindo de relações históricas, relações lingüísticas, causais, estilísticas, sociais, etc” (Lipman, 1995, p. 96). A capacidade de refletir, discernir, analisar, pensar por si mesmo(a), com autonomia e responsabilidade, somente é possível se, a fortiori, assumirmos uma “pedagogia do diálogoproblematizador”, que tome como ponto de partida e de chegada a vida e 349 o mundo dos homens e das mulheres que dele participam. Se é verdadeiro que para pensar criticamente é preciso primeiro saber pensar, também é verdadeiro que para pensar é necessário pensar em algo; e este algo não pode ser abstrato, mas sim algo que os(as) educandos(as) experimentam no mundo da vida. Defendendo uma pedagogia da pergunta como o meio de existenciação dos seres humanos, Freire insiste na necessidade de estimulá-la nas relações pedagógicas, além de ter o cuidado de não burocratizá-la: a existência humana é, porque se fez perguntando, à raiz da transformação do mundo. Há uma radicalidade na existência, que é a radicalidade do ato de perguntar. Exatamente, quando uma pessoa perde a capacidade de assombrar-se, se burocratiza. Me parece importante observar como há uma relação indubitável entre assombro e pergunta, risco e existência. Radicalmente, a existência humana implica assombro, pergunta e risco. E, por tudo isso, implica ação, transformação. A burocratização implica a adaptação, portanto, com um mínimo de risco, com nenhum assombro e sem perguntas. Então a pedagogia da resposta é uma pedagogia da adaptação e não da criatividade. Não estimula o risco da invenção e da reinvenção. Para mim, negar o risco é a melhor maneira que se tem de negar a própria existência humana (In Freire & Faundez, 1998, p. 51). Quando as pessoas falam, não apenas dizem coisas, mas manifestam o que estão sentindo. As palavras têm um poder estruturante e instituinte; de certa forma, somos o que dizemos, pois vamos criando, assumindo e/ou recriando sentimentos, imagens, valores e idéias que nos fazem ser e viver uma certa identidade. Juntos(as), dialogando criticamente, analisando, decodificando, sentindo, refletindo e tentando 350 compreender com radicalidade o mundo que lhes é comum, homens e mulheres buscamos desvendar a raison d'être das coisas, dos fatos, da vida e dos próprios mitos de liberdade criados para manter um status quo. Uma nova consciência começa a emergir do mundo vivido em que homens e mulheres vão se constituindo intersubjetivamente enquanto subjetividades criadoras; aos poucos vão desvendando a manipulação no mundo em que vivem cotidianamente, descobrindo que, embora construído por eles(as), este mundo nem sempre é verdadeiramente para eles(as). Não se trata de deixar de lado a aprendizagem da memória coletiva e da herança cultural que a humanidade historicamente foi construindo e acumulando, mas de não ficar apenas na mera repetição e reprodução do sistematizado e enunciado, sem nada criar, nada questionar, na mudar e/ou acrescentar. A aprendizagem dos conteúdos conceituais precisa estar mergulhada no conjunto de outras aprendizagens fundamentais ao aprendizado humano: aprender a aprender, aprender a sentir, aprender a admirar, aprender a escutar, aprender a falar, aprender a questionar, aprender a raciocinar, aprender a imaginar, aprender a agir, aprender a ser. E isto só se aprende trazendo para dentro da sala de aula – como “conteúdo” de aprendizagem, admiração, análise e desafio – a vida de homens e mulheres enquanto convívio social, relações sociais, trabalho, relações de produção, relações com o meio ambiente, valores, ética, cultura, emoções, identidades, linguagens, papéis sociais, preconceitos, condutas, caráter, responsabilidade, direitos, nossa condição temporal e espacial e outras dimensões da vida humana. Numa comunidade de investigação as deliberações são multifacetadas, pois cada questão sofre uma percepção diferente a partir 351 das pessoas diferentes, podendo resultar numa apreensão o mais ampla possível, sob um maior número de pontos de observação. Decorre daí que em vez de soluções únicas, podem surgir múltiplas soluções, cada uma com seus custos e benefícios. É por isso que cabe ao(a) educador(a) crítico-reflexivo uma atenção toda especial à decodificação da realidade tomada como ponto de partida, onde tem a função de "não apenas ouvir os indivíduos, mas desafiá-los cada vez mais, problematizando, de um lado, a situação existencial codificada e, de outro, as próprias respostas que vão dando aqueles no decorrer do diálogo" (Freire, 1998, p. 112113), possibilitando, assim, a superação de uma visão focalista dos problemas, em prol da construção de uma visão na dimensão da totalidade. A pessoa que participa de um grupo de investigação dialógica, mesmo que tímida e com outras resistências, começa a dar-se conta dos muitos lados existentes em uma mesma questão. Contrapõe os diferentes enfoques, compara-os com os posicionamentos dos demais membros da comunidade. De repente, inesperadamente, brota o seu posicionamento, a sua palavra; ela é ouvida e sua idéia é debatida. Ao voltar para casa, sozinha, continua dialogando consigo mesma sobre o que disse, refletindo sobre como poderia ter argumentado melhor, ter sido mais veemente, mais convincente... e novas idéias vão brotando, de forma crítica e criativa. Será que isso não é muito mais instigante, alegre e criativo do que a frieza e o calculismo da descrição e da aquisição de conhecimentos "desconectados da vida"? Aprendendo a falar umas com as outras, as pessoas aprendem também a reconhecer e incorporar as diferentes visões de mundo presentes nas palavras de cada participante. Quando dialogamos habilmente, respeitosamente, dando razões e critérios, argumentando e fazendo juízos que têm a ver com a nossa vida em todas as suas 352 dimensões, os nossos corpos conscientes saltam para o mundo e para vida, envolvendo-nos, questionando-nos e provocando-nos emocional, ética, política, moral, lógica, pedagógica, individual e socialmente. Tudo isso sempre alicerçado em projetos de reflexão e de pesquisa que conduzam a atitudes cada vez mais autônomas, dialogantes, investigativas, rigorosas, criativas e colaborativas, onde os saberes, os conhecimentos, os valores, os sentimentos, as ações e a vida se interliguem e dialetizem constantemente, para que as pessoas se desenvolvam e se constituam em sujeitos com projetos de vida e de sociedade, pelos quais lutem consciente e responsavelmente. Todos(as) vão se conhecendo, se descobrindo na intersubjetividade com os(as) outros(as) que também pensam, sentem, agem, vivem. Começam a reaprender a ver o mundo e a si próprios(as). Além de indagar sobre o "como é" e "por que é", buscam o "como deveria ser" e o "como poderia ter sido", julgando as ações, as idéias e os fatos, desvelando e construindo o seu significado, o sentido das experiências, dos saberes e dos conhecimentos sistematizados; como homens e mulheres concretos(as), vão refletindo criticamente sobre os fundamentos desses conhecimentos e do sentir/pensar/agir das pessoas, muitas vezes necessitando tomar distância dos mesmos para melhor admirá-los e compreendê-los. Esta postura reflexiva fundamental pode ser situada no âmbito da filosofia. Entretanto, enquanto processo de constituição de uma razão-emoção crítico-reflexiva pela práxis educativa a partir da vida, esta não deve ser uma tarefa restrita aos(às) filósofos(as) profissionais, mas a todos(as) quantos(as) se sintam educadores e educadoras, para que paulatinamente se transforme na maneira de olhar, sentir, analisar, pensar, organizar e viver a vida de todos os seres humanos, assumindo- 353 se como homens e mulheres-sujeitos, na perspectiva das palavras de Marilena Chauí sobre "o que é filosofia": imaginemos, agora, alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas. Alguém que tomasse essa decisão estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência. Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica: a decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-las sem antes havê-las investigado e compreendido (Chauí, 1995, p. 1112). Assim, juntos poderão ir descobrindo que eles(as) também podem dar novos rumos às suas trajetórias e aos caminhos a serem percorridos daquele então para frente. Somente quem sente e analisa criticamente as durezas e agruras da realidade é capaz de querer, pensar, sonhar e projetar um futuro diferente, ter uma utopia pela qual se engaja para participar da construção do inédito viável, lutando por melhores condições de vida para todos(as). A reflexão sobre as diferentes práticas, modos de ser, de viver, de relacionar-se, de agir e reagir em meio à realidade sócio-histórico-cultural vai suscitando novas visões e novas posturas, motivando uma reflexão e fundamentação teórica cada vez maior, ao mesmo tempo que os novos enfoques e análises descortinam novos horizontes e possibilidades. 354 Porque o futuro não é algo pré-dado ou a mera repetição mecânica do presente e do passado, há lugar para a filosofia e a educação, enquanto problematização, conscientização, reflexão, sonho, utopia, esperança e práxis histórica em que homens e mulheres vamonos constituindo em homens e mulheres-sujeitos que, sabendo-nos corpos conscientes inconclusos, vamos aprendendo a nos assumir como capazes de interagir com o meio, dialogar, ter sensibilidades, refletir, analisar, fazer opções, tomar decisões, sonhar, projetar e agir coerentemente na história em que nos fazemos e refazemos permanentemente, pela razão-emoção crítico-reflexiva construída também através de processos educacionais emancipadores, libertadores, (re)humanizadores. Tudo isso poderá tornar nossas escolas muito mais humanas e humanizadoras, fazendo com que educadores(as) e educandos(as) levem para as suas vidas, além de alguns conhecimentos compreendidos, a experiência de terem sido escutados(as), de terem podido pronunciar suas idéias e debatê-las respeitosamente, de terem podido ser gente na pluralidade das dimensões cognitivas, afetivas, éticas, políticas, espirituais, etc; por terem sido tratados(as) com dignidade enquanto crianças, adolescentes e/ou jovens, levarão para a vida uma outra lição: respeitar e querer serem respeitados(as) como gente, em outros tempos e espaços. Enfrentando as situações de uma forma dialogante e contextualizada, observando cuidadosamente a realidade social em que estão inseridos, vão vivenciando um clima onde todos(as) podem exercitar a cidadania pela participação, co-construção, diálogo, iniciativa, reflexão, análise, argumentação, experimentação, integrando espaços de liberdade, respeito às diferenças, responsabilidade e 355 organização. Juntos(as) vão construindo uma visão partilhada do caminho a ser seguido, refletindo sistemática e cooperativamente sobre as implicações e conseqüências possíveis no processo que é assumido. Desta forma, talvez, estaremos contribuindo para que a escola e a sociedade ganhem novos contornos identitários, não previsíveis de todo; mas todos(as), na escola e através de uma práxis que transcende os limites dos conteúdos conceituais e do silêncio intra-muros, sentir-se-ão sujeitos de uma nova história, de um novo tempo e de um novo jeito de ser gente, numa escola e numa sociedade também em renovação, reencontrando a sua vocação de partícipes da aventura histórica do processo de construção do mundo e da humanização do ser humano. Bibliografia CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 3ªed. SP: Ática, 1995. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 6ªed. RJ: Paz e Terra, 1997. _____. Pedagogia do Oprimido. 25ªed. RJ: Paz e Terra, 1998. FREIRE, Paulo & FAUNDEZ, Antonio. Por uma Pedagogia da Pergunta. RJ: Paz e Terra, 1998. FREIRE, Paulo & MACEDO, Donaldo. Alfabetização. Leitura do mundo, leitura da palavra. 2ªed. RJ: Paz e Terra, 1994. KANT, Immanuel. Schriften zur Anthropologie, Geschichtsphilosophie, Politik un Pädagogik – 2. Frankfurt, 1988. LIPMAN, Matthew. A Filosofia vai à Escola. 2ªed. Trad. Maria Elice de Brzezinsk e Lucia Maria Silva Kremer. SP: Summus, 1990. _____. O Pensar na Educação. Trad. de Ann Mary Fighiera Perpétuo. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995. _____. Natasha. Diálogos Vygotskianos. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. Porto Alegre/RS: Artes Médicas, 1997. 356 SILVEIRA, Renê José Trentin. A Filosofia vai à Escola? Contribuição para a crítica do Programa de Filosofia para Crianças de Matthew Lipman. Campinas, SP: Autores Associados, 2001. 357 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO BÁSICA Clovis R. J.Guterres∗ O primeiro impulso foi não aceitar o convite para esta mesa. Pensei melhor e resolvi aceitar como forma de acabar esse “adiamento de fala” uma vez que a espera do “momento ideal” pode não coincidir com o “momento histórico”. Embora tenha minha formação em filosofia (licenciado em 1972, mestre em 1977 e especialização em filosofia moderna em 1979) tenho trabalhado mais na área da educação com filosofia, sociologia e eventualmente história da educação. Esse desvio em relação ao ponto de partida talvez seja o responsável pelo “adiamento de fala”, é como já não mais me sentisse no direito de falar como profissional de filosofia “pura” uma vez que passei a trabalhar com a filosofia “aplicada”. Pode ser que, aparentemente, não se justifique esta distinção mas na prática Doutor em Educação e Professor do FUE/CE/UFSM. Endereço eletrônico: [email protected]. 358 ela é inevitável. Em primeiro lugar o que move ou direciona um profissional de filosofia pura é o domínio teórico de um autor ou de um sistema enquanto que o profissional de filosofia aplicada é movido pela exigência de fundamentar uma prática (ação) a partir de um autor ou sistema. Portanto não se trata de um conhecimento gratuito, de conhecer por conhecer mas de conhecer para fundamentar um fazer. Mas, retornando ao “adiamento de fala”, a trajetória e o doutorado em educação, me impõe a obrigação de fala uma vez que o tema proposto abrange as duas áreas pelas quais venho transitando desde 1970. Claro que esse “adiamento de fala” tem uma relação direta com a filosofia que é reproduzida e produzida no meio acadêmico. Pode ser uma visão distorcida, deformada pelo contexto, mas na época distinguia uma filosofia acadêmica, propriamente dita, em que os temas, autores ou sistemas eram tratados como em um laboratório cujos procedimentos metodológicos evitavam qualquer tipo de contaminação o que dava, naqueles tempos, uma conotação de neutralidade a filosofia pura. A outra filosofia, não se restringia apenas a compreensão ou interpretação, mas defendia a ação concreta e transformadora. Era, obviamente, uma filosofia (social) que exigia envolvimento, engajamento e por isso mesmo, era mais sedutora e parecia ser mais verdadeira. Nem por isso ignorávamos os alertas contra tal opção. Procurávamos manter um estado de vigilância permanente para reduzir os riscos de um suicídio filosófico via engajamento assim como atacávamos os riscos da alienação via indiferença frente aos acontecimentos da época. Quando ingressei no Curso de Filosofia em 1969 já escrevia compulsivamente e participava de movimentos sociais, mas a ditadura atingia o auge da repressão aos movimentos estudantis aos políticos e a 359 todos que a ela se opunham. Mas, uma filosofia de influência aristotélico-tomista ministrada nas salas de aula nos fazia viver em dois mundos distintos, o da universidade silenciada onde os conteúdos, apesar de importantes, não eram relacionados com o que ocorria na sociedade onde a perseguição e a repressão eram constantes. Durante quatro anos passei entre a sala de aula e os diretórios acadêmicos na universidade e nos movimentos sociais possíveis na sociedade, mesmo assim, altamente vigiados pelos órgãos de repressão. No Curso, apesar da tendência predominante, algumas disciplinas mantinham um contato com o mundo exterior discutindo, ainda que de forma acadêmica, o existencialismo, o marxismo e alguns teóricos da Escola de Frankfurt, como Marcuse, o guru das rebeliões estudantis do final da década de 60. Com esse contexto e minhas inclinações mais políticas que metafísicas a opção filosófica não poderia ser outra que não a que enfocasse a realidade concreta, os dramas sociais e a ação necessária a sua transformação. Mesmo assim, procurava uma alternativa mais apropriada a realidade brasileira. Minha tese de mestrado representou essa tentativa de fusão entre a academia e a sociedade, na medida que se propunha contribuir à libertação humana através da análise dos pensamentos do filósofo francês Emmanuel Mounier cuja filosofia, sem ignorar as bases cristãs, se aproximava do marxismo e rejeitava as principais teses do capitalismo. Defendia a construção de uma nova ordem social, mais justa, mais solidária e havia exercido profunda influência na formação do pensamento de Paulo Freire. Atualmente, apesar da queda do Muro de Berlim, entre outras coisas, continuo acreditando que a tarefa do filósofo e da filosofia não pode se restringir a academia, mas deve também continuar investigando 360 a sociedade, não apenas para produzir novas concepções de liberdade, de justiça ou paz mas para indagar, denunciar e exigir mudanças necessárias a superação da miséria, da violência, da mortalidade infantil, das epidemias devastadoras, do terror, das guerras e do profundo sofrimento humano. Minhas dúvidas, portanto, a respeito da implantação da filosofia na educação básica, referem-se a situação da filosofia. Deposta como rainha das ciências. Após quase mil anos de reinado, amarga um exílio forçado para uma área cada vez mais restrita. Submetida a teologia no mundo medieval e encarcerada nos mosteiros por quase onze séculos, não resistiu as rupturas metodológicas (razão matemática) do mundo moderno. A fragmentação e o avanço das Ciências por oposição a metafísica e a geração de novas formas de compreensão e, principalmente, de intervenção na realidade tornaram-na secundária. Destronada pela física de Newton (1642-1727) no século XVIII e enterrada, mesmo que simbolicamente, pela sociologia de Comte (17981857) no século XIX cuja apologia das Ciências aliada a Revolução Industrial não deixava dúvidas sobre o crepúsculo da filosofia. Kant (1724-1804), já reconhecera a impossibilidade da metafísica tradicional, mas reservara à filosofia ainda o papel de crítica do conhecimento, em outras palavras, cabia ainda a filosofia a tarefa de, a semelhança de um tribunal da razão, indicar o lugar das ciências através de uma teoria do conhecimento. Uma reflexão interessante a esse respeito é feita por Gallefi (1999) em um artigo que trata do papel da filosofia no ensino médio. Para desenvolver sua argumentação o autor refere-se a uma conferência de Habermas (1989) intitulada “A Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete” proferida em Stutgart, em junho de 1981. 361 Nela Habermas realiza uma síntese magistral de sua posição filosófica, e fala de um lugar que se apresenta como uma espécie de crítica quase defintiva sobre as pretensões de uma filosofia ao modo kantiano, ou hegeliano, ou mesmo marxista....Na conferência mencionada ele apresenta o papel “atual” da filosofia como “guardador de lugar e como intérprete”. Esta sua posição ocupa o lugar da crítica que não aceita a função da filosofia como “indicador de lugar”, propalando uma função mais modesta de “agir comunicativo” ... para Habermas, diz Gallefi, a função da filosofia como indicador de lugar e supremo tribunal da razão não faz mais nenhum sentido. Essa trajetória parece demonstrar um processo gradativo de perda de poder, de redução de espaço e, em resumo, de decadência e morte da filosofia. Como, então, defender a inclusão da filosofia na educação básica? Corremos o risco de ensinar filosofia como se ensinava o latim, como língua morta. Principalmente se nos limitarmos a ensinar filosofia como antes, isto é, começando pela antigüidade. Mas, ao mesmo tempo, me pergunto se existe esse propósito tão determinado de incluir a filosofia na educação básica, certamente, os defensores dessa causa devem ter as certezas que não tenho. Nesse sentido, me reporto aqui àqueles que indiferentes ao declarado fim da filosofia continuam a ressuscitá-la de diferentes formas como filosofia para crianças, filosofia do cotidiano, filosofia clínica etc. É preciso reconhecer que a filosofia sobrevive na academia, mas certamente os filósofos das universidades sabem que transferir para a educação básica o debate e os dramas da filosofia atual seria pouco produtivo ou quiçá desastroso no sentido de discutir o caos para quem está tentando compreender a ordem das coisas e da vida. Lembro aqui de 362 um texto do Renato Janine Ribeiro, da USP, que inicia dizendo que “a filosofia é menos difícil do que se imagina” mas quase no final faz a seguinte observação: Não tenha medo do jargão filosófico. Toda disciplina tem seu rigor próprio, e na filosofia ele é decisivo. Mas penso que ela só adota jargão bem técnico ao ser ministrada nas universidade - o que acontece no fim da Idade Média, com a escolástica, e, modernamente, desde Emmanuel Kant (17241804). Ela se torna mais difícil ao leigo, mas retirando esses 500 anos mais técnicos, restam pelo menos dois milênios de filosofia feita em larga medida, para um público não-acadêmico (Folha -sinapse n.14 -2003). Seguindo essa linha de argumentação fica clara uma distinção entre uma filosofia acessível ao público não-acadêmico e uma filosofia complexa restrita à academia. O problema é que quando se pergunta aos acadêmicos sobre a implantação da filosofia na educação básica, a primeira coisa que vem a mente é, exatamente, a filosofia que está no centro dos debates no meio universitário. E, muitas vezes, os temas tratados são a negação daquilo que os não-acadêmicos entendem por temas filosóficos. Assim, pode ocorrer que os temas que venham a ser trabalhados na educação básica sejam aquilo que não é mais considerado objeto da filosofia nos dias atuais. Ocorre-me aqui a referência de Rorty ao livro “Investigações Filosóficas de Wittgenstein que “dissolveu a maioria dos problemas filosóficos que fui educado a levar a sério”. Por outro lado, esse processo de decadência histórica e distanciamento do grande público possa ser interpretado de outra maneira. Não será essa trajetória um retorno da filosofia as origens menos pretensiosas quando os filósofos se declaravam amigos ou 363 amantes do saber e não seus proprietários? Acho que esse lugar modesto é uma espécie de recuperação da atitude originária de se interrogar e de se surpreender com o mundo e a vida. Talvez por esta razão a filosofia não morra nunca porque ela, diferente das ciências, renasce em cada ser humano e não a partir do conhecimento acumulado e sistematizado. Talvez esta recuperação da humildade perdida facilite a descoberta ou a construção de elos de ligação entre a filosofia complexa produzida na academia e a filosofia comum que transita por fora dos muros das universidades. É oportuno lembrar aqui a obra de Stanley Cawell, professor de filosofia de Harvard, reconhecido como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo que, ao contrário da rotina da academia toma o cinema como objeto de reflexão filosófica como relata em recente entrevista: Passei a fazer filosofia a partir de um objeto que ninguém considera como filosófico, lançando uma questão que no entanto está no centro da filosofia desde Platão: o que é a experiência humana? As comédias são um exemplo disso: elas colocam a idéia de que o conhecimento profundo de si é o resultado dos roteiros, dos diálogos, da mise-enscène, do desempenho dos atores. A comédia mais completa será aquela em que os personagens se colocam mais intensamente as questões de quem eles são, onde a experiência os leva, o que os faz agir. Ora, essas são questões filosóficas por excelência. Sem ignorar as objeções dos filósofos analíticos a “experiência” não podemos deixar de saudar como encorajadoura esta atitude de reencontrar a reflexão filosófica a partir do comum. 364 Outro autor, um pouco mais radical, Michel Onfray, pensador marginal na cultura francesa, vendeu 100 mil exemplares de seu livro intitulado “Antimanual de Filosofia”. Em recente entrevista, questionado sobre a função do professor, respondeu o seguinte: O professor é aquele que conduz, que aponta o norte, o sul, e depois diz ao aluno: Vire-se você, faça o seu próprio caminho”. Nietzsche dizia que um bom mestre é aquele que ensina os alunos a se desligarem dele. Então é preciso ensinar as pessoas a se desligarem de seus mestres, a serem mestres de si mesmas. É um estranho paradoxo, mas nós, professores, somos feitos para não existir. O que interessa é que as pessoas tenham uma relação direta com a filosofia, na qual eu serei apenas um mediador. Eu sou feito para desaparecer. (Folha Sinapse - 17/12/2002). Onfray parte também do quotidiano, com questões chocantes, as vezes brincalhonas, mas que vão envolvendo os alunos ao mesmo tempo que vai abordando os temas clássicos da Filosofia como: a natureza, a arte, a técnica, a liberdade, o direito, a história, a consciência, a razão e a verdade. Para concluir quero sintetizar minas preocupações sobre a filosofia ser levada a educação básica: 1 - Uma filosofia articulada com a realidade social e educacional do aluno que o habilite a compreender e mover-se no contexto; 2 - Uma filosofia envolvente e envolvida, não uma filosofia exilada ou encavernada; 3 - Uma filosofia acadêmica menos pretensiosa ou arrogante, capaz de se fazer entender pelo leigos; 365 4 - Uma filosofia que parta do cotidiano, dos problemas concretos vividos pelos alunos: 5 - Uma filosofia mais humilde ou até mesmo anarquista que ensine mais a pensar do que a reverenciar. Bibliografia BAECQUE, Antoine. A Filosofia do Comum (Entrevista com Stanley Cawel). Folha de São Paulo - Caderno Mais. São Paulo, 11 de janeiro de 2004. GALLEFI, Dante Augusto. O Ser: sendo da Filosofia. Salvador: EDUFBA, 2001. _____. O Papel da filosofia no ensino médio: indicador, guardador ou construtor / desconstrutor de lugares? In Agere; Rev. de Educação e Cultura. Salvador v. 1 p. 1 - 208, 1999. GUTERRES, Clovis Renan Jacques. A Libertação do Homem Contemporâneo no Pensamento de Emmanuel Mounier. Tese de Mestrado. UFSM, 1977. MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. Lisboa: Moraes Editores, 1973. NETO, Alcino Leite. Conhecimento Grátis para todos. (Entrevista com Michael Onfray). Folha de São Paulo - Sinapse. São Paulo, 17 de dezembro de 2002. RIBEIRO, Renato Janine. Filosofia para todos os gostos. Folha de São Paulo - Sinapse n. 14. São Paulo, 26 de agosto de 2003 RORTY, Richard. A Narrativa da Vida. Folha de São Paulo - Caderno Mais. São Paulo, 8 de junho de 2003. 366 SOBRE O SIGNIFICADO E O PAPEL DA PEDAGOGIA EM KANT∗ Cláudio Almir Dalbosco∗ Introdução Um tratamento adequado da pedagogia kantiana não pode prescindir do fato de que Kant não se ocupou sistematicamente com esse tema como se ocupou, por exemplo, com o problema de oferecer uma fundamentação transcendental para o conhecimento a priori de objetos, investigando suas condições de possibilidade, ou com o problema da fundamentação da ação moral, como ela é entendida na GMS47, enquanto Versão portuguesa da conferência proferida no Philosophisches Forum do Interdisziplinären Arbeitsgruppe für philosophische Grundlagenprobleme der Wissenschaften und der gesellschaftlichen Práxis (IAG) da Universität Kassel (Alemanha) em 15 de janeiro de 2004. A versão alemã se intitula: Zur Bedeutung und der Rolle der Pädagogik bei Kant. O texto da conferência está vinculado a Linha de Pesquisa Fundamentos da Educação do Mestrado em Educação e do Núcleo de Pesquisa em Filosofia e Educação (Nupefe) da Universidade de Passo Fundo (UPF) e em conexao com o trabalho de cooperacao entre as Universidades de Kassel e de Passo Fundo nas áreas de filosofia e educacao. Agradeco tanto a Fapergs como ao DAAD por terem me oportunizado uma estadia de pesquisa durantes os meses de janeiro a marco/2004 na Alemanha. ∗ Doutor pela Universität Kassel (Alemanha) e professor do Curso de Filosofia e do Mestrado em Educação da Universidade de Passo Fundo. Endereço eletrônico: [email protected] 47 Utilizarei as siglas usuais para as seguintes obras: GMS: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundamentação da Metafísica dos Costumes); KrV: Kritik de reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura); KpV: Kritik der praktischen Vernunft (Crítica da Razão Prática); Päd: Über Pädagogik (Sobre Pedagogia); Prol: Prolegomena (Prolegomenos). Estes escritos serão citados segundo a Akademie-Ausgabe (AA), indicando-se primeiro a abreviatura da obra, seguida do número do volume em romano e da respectiva paginação 367 fundamentação da lei moral na forma de uma dedução do imperativo categórico (Dalbosco, 2002, p. 253-301). Por razões ministeriais (Weisskopf, 1970; Hufnagel, In: Kant, 1988, p. 43-56)48 Kant proferiu preleções sobre pedagogia na Universidade de Königsberg, durante o semestre de inverno de 1776/77, o semestre de verão de 1780, o semestre de inverno de 1783/84 e o semestre de inverno de 1786/87. O material que dispomos destas preleções foi organizado por seu aluno e depois colega Friedrich Theodor Rink e publicado em 1803 com o título Immanuel Kant über Pädagogik. O referido texto, que não fora submetido à apreciação do próprio Kant, encerra uma profunda polêmica filológica no sentido de saber o que teria sido realmente proferido por Kant em suas preleções e o que teria sido acrescido pelo próprio punho de Rink. As dificuldades filológicas, que não posso tratar aqui, se encontram, no entanto, brilhantemente documentadas, primeiro, pelo extenso estudo já citado de Weisskopf 49 e, depois, resumido por Peter Kauder e Wolfgang Fischer em seu livro Immanuel Kant über Pädagogik, publicado em 1999.50 em arábico. 48 Weisskopf (1970, p. 89) informa ainda que além da preleção (Vorlesung), duas outras formas de ensino acadêmico eram empregas na época de Kant, a disputação (Disputation) e a declamação (Deklamation). No que diz respeito especificamente à preleção, ela era proferida ou na forma de “conferência sistemática de uma ciência” ou na forma de “esclarecimento de um livro texto”, sendo que uma combinação entre ambas era o mais usual. 49 Este autor formula a hipótese geral de que o escrito “Immanuel Kant über Pädagogik” é uma compilação de diferentes partes, que surgem em diferentes períodos e que são desenvolvidas para atender diferentes finalidades (Weisskopf, 1970, p. 240). Neste sentido, concentrando-se na pergunta pelo surgimento e pela construção do escrito, ele caracteriza a edição de Rink como uma “técnica compilatória” (Ibidem, p. 176), o que ajudaria a marcar a diferença fundamental entre a “Introdução” e o “Tratado” e, no interior do “Tratado” mesmo, a diferença entre a “Educação física” e a “Educação moral” do escrito. 50 Com base na interpretação de Weisskopf, Kauder chega a conclusão de que Rink escreve o Prefácio de Über Pädagogik com a intenção clara de eliminar a cisão entre a “Introdução” e o “Tratado”, procurando mostrar uma ligação entre ambas as partes e deixando transparecer a imagem de um escrito harmônico e unitário. Baseando-se ainda na 368 Embora Kant não tenha tratado sistematicamente da pedagogia em seus escritos e embora persistam dúvidas quanto à autenticidade de parte de suas preleções “compiladas” por Rink, mesmo assim eu gostaria de sustentar a hipótese de que Kant atribui papel fundamental à educação e o faz não só por razões, digamos assim, de ordem históricopolíticas, no sentido de que a educação seria indispensável à sociabilidade humana e à construção de um Estado mais justo, senão também e, fundamentalmente, por razões de ordem sistemática, conectadas com exigências internas de esclarecimento de sua própria filosofia prática. Dito de forma direta, sustento a hipótese de que Kant vê na educação uma das formas de realização de sua filosofia prática e procuro demonstrar isso recorrendo, primeiro, ao conceito de disciplina e, depois, à concepção de educação como idéia. Para justificar esta hipótese, concentro-me em Über Pädagogik para mostrar em que sentido a construção de uma ação pedagógica disciplinada é condição da ação moral e, com isso, em que sentido a educação torna-se, por meio da disciplina, uma forma de realização da filosofia prática (I). Em seguida, analiso o conceito kantiano de educacao enquanto idéia regulativa (II). interpretação de Groothoff (1982) Kauder, por sua vez, formula a tese de que enquanto a “Introdução” orienta-se por um conceito de “educação social” o “Tratado”, em sua última parte, é conduzido pelo conceito de “educação moral”. Isso mostra então uma “mudança de curso” no pensamento de Kant ocorrida entre os períodos de 1776 a 1791 que diz respeito não só ao seu pensamento sobre a pedagogia, como se refere também a sua filosofia prática, num sentido mais amplo, uma vez que é durante este período que Kant escreve os trabalhos sistemáticos de sua filosofia moral. Deste modo, o “ser social” que se tratava na “Introdução” do escrito é substituído pela exigência de um “ser moral” do homem, a qual é desenvolvida na parte final do “Tratado”. Isso caracteriza então a diferença de conteúdo que há entre as duas partes do escrito (Kauder, Fischer, 1999, p. 4950). O déficit na argumentação de Kauder reside, ao meu ver, no fato dele não esclarecer a diferença entre o que denomina de “ser social” e “ser moral” e por não mostrar convincentemente a precedência cronológica da “Introdução” em relação ao “Tratado”. 369 Da coação disciplinada para a obrigação moral Para tratar de problemas de fundamentação da moralidade em suas obras de filosofia prática, cujo exemplo paradigmático é a GMS III, Kant parte de um conceito de ação humana que pressupõe um sujeito agente constituído racionalmente de tal modo que possa decidir-se a agir ou não de acordo com a lei moral e, por isso, ser responsabilizado pela sua ação. Ou melhor, é tarefa dessa fundamentação mostrar que a ação moral do sujeito é possível enquanto uma decisão livre e justificada racionalmente51. No entanto, sua teoria educacional tem diante de si um sujeito, no caso a criança, que age orientada predominantemente por seus caprichos e suas inclinações e, nesta condição, deve ser educado para que, progressivamente, possa agir racionalmente, isto é, possa pensar por conta própria. Trata-se de dois tipos de ação pertencentes a um e mesmo sujeito compreendido a partir de duas fases distintas, enquanto pertencente à infância, potencialmente apto a ser educado e à fase adulta, na qual o sujeito deve ser capaz de decidir a agir ou não de acordo com o princípio moral racionalmente justificado. O primeiro tipo é a ação da criança que constrói suas relações com o mundo orientada por uma vontade arbitrariamente livre e que encontra o motivo maior de sua ação nos seus caprichos e nas suas inclinações. Trata-se da ação própria ao “estado selvagem”, no qual predomina uma liberdade sem regras. O segundo tipo é a ação racional-livre do jovem ou do adulto que se encontra na situação de ter que tomar decisões e responder por seus atos. A superação progressiva da distância que separa esses dois tipos de 51 Esta tarefa Kant assume de modo sistemático primeiro na GMS e depois na KpV. Para uma análise deste problema ver a última parte de meu livro: DALBOSCO, 2002. 370 ação é, segundo Kant, um dos principais desafios de uma teoria educacional, caracterizando-se com isso, simultaneamente, a contribuição da pedagogia no sentido de aproximar cada vez mais a ação humana à moralização. Tal contribuição consiste, segundo ele, em provocar no educando uma apropriação e um desenvolvimento progressivos de sua racionalidade, pois que “o aprender a pensar por conta própria” é condição de possibilidade da ação moral. Neste contexto, a pedagogia não é compreendida por Kant como um conhecimento científico que estivesse baseado numa racionalidade de tipo metódico-experimental e nem como uma sabedoria espontânea que pudesse ser levada adiante sem qualquer plano ou orientação metódica. Ela é, antes de tudo, uma arte52, definida assim numa passagem de Über Pädagogik, onde a educação possui a tarefa de “desenvolver as disposições naturais53 do ser humano” (Päd, IX, 447). Embora naturais, essas disposições não se desenvolvem de modo espontâneo e naturalmente por si mesmas, precisando por isso de serem provocadas pela ação de outros homens e a isso Kant denomina de arte da educação. Porém, nem toda a arte da educação é pedagogia. A denominada de arte mecânica, por exemplo, na qual “a educação não 52 Ao longo de Über Pädagogik são empregados vários conceitos, as vezes como sinônimo e as vezes não, como por exemplo, os conceitos de educação (Erziehung), pedagogia (Pädagogik), arte da educação (Erziehungskunst) e teoria da educação (Erziehungslehre). Além disso, Kant emprega aí também o conceito de formação (Bildung). 53 O conceito de “disposição natural” (“Naturanlage”), embora central tanto para a antropologia como para a pedagogia de Kant, não deixa de reunir dificuldades. Tal conceito não deve ser entendido, ao meu ver, simplesmente num sentido biológico ou psicológico, como se fosse meramente um reflexo inconsciente do comportamento ou só como uma necessidade social. Ao contrário disso, ele precisa ser conectado com a capacidade racional e, mais especificamente, com o conceito de razão prática, uma vez que para Kant a principal disposição humana é a racionalidade. Com o conceito de disposição, segundo Hufnagel, Kant quer significar uma determinação de orientação ou um conjunto dimensional de possibilidades, como as animalescas e as racional-humano-morais. (Hufnagel, 1988., p. 47-48). 371 segue nenhum plano” (Päd, IX, 447), não é considerada como tal. Somente a que consiste numa “arte da educação raciocinada” é que pode assumir o status de pedagogia, pois essa arte “desenvolve a natureza humana de tal modo que esta possa alcançar a sua determinação” (Päd, IX, 447). Ao assumir este perfil, a pedagogia se transforma então num estudo. Kant é enfático ao exigir a presença de um plano no domínio educacional e, ao proceder assim, ele está criticando a presença do mecanicismo no âmbito da pedagogia. Por outro lado, ele também é enfático, quando procura justificar a pedagogia como um estudo. Neste sentido, sua justificativa ampara-se no princípio pedagógico de que “não se devem educar as crianças segundo o presente estado do gênero humano, mas segundo um estado melhor, possível no futuro, isto é, segundo a idéia de humanidade e da sua inteira determinação” (Päd, IX, 447). Disso resulta a idéia de que pedagogia como estudo significa a justificação de uma ação pedagógica que deve estar voltada para a construção da “idéia de humanidade”. Tal construção pode ser esclarecida, por exemplo, no contexto da relação entre pais e filhos, onde a educação não se resume somente em aprender o que os pais ensinam. Pois, embora “uma geração eduque a outra”, a nova geração tem sempre o dever de ser melhor do que a precedente e de ir além dela. Assim se explica a presença do conceito de progresso no contexto educacional kantiano, isto é, como idéia de que a natureza humana, racionalmente bem formada, caminha, paulatinamente, para a “perfeição da humanidade”, a qual exige, de imediato, a formação do caráter. Tal formação é, como afirma Kant, de responsabilidade da cultura moral: “A 372 primeira tarefa da cultura moral é lançaras bases da formação do caráter” (Päd, IX, 481).54 Uma educação moral tem a ver, portanto, com a formação do caráter, o qual é definido, por exemplo, na KrV (B 567) como lei de uma causalidade eficiente, “sem a qual de modo algum ela seria uma causa” e na Über Pädagogik como uma ação segundo máximas (Päd, IX, 481). De qualquer modo, a idéia de caráter significa uma firme determinação da vontade de agir segundo máximas ou leis. Ora, aqui se compreende porque a formação moral precisa ser precedida pela formação disciplinar, uma vez que esta prepara o caráter infantil para sua futura formação moral. Daí, por exemplo, a importância de se disciplinar a criança nos horários para brincar, estudar, trabalhar55, passear, dormir, etc. Kant concebe a escola como lugar por excelência onde se deve desenvolver o trabalho da e com a criança e chega mesmo a falar, em seus exemplos, do quanto é importante para o senso disciplinar da criança, o simples fato dela ficar sentada em sala de aula, mesmo que não aprendesse nada aí. No entanto, e isso precisa ser enfatizado novamente, toda a formação disciplinar só adquire seu sentido, quando esta a serviço da cultura moral, a qual, ela mesma, não deve mais repousar sobre a disciplina, mas sim sobre as máximas (Päd, IX, 480). Isso nos remete também para as passagens iniciais de Über Pädagogik onde Kant abre as preleções com a afirmação de que o 54 Sobre isso ver: Cenci, 2003, p. 12-14. (Mimeo) Em várias passagens das preleções Über Pädagogik Kant deixa claro a importância do trabalho na formação da criança: “A criança deve brincar, ter suas horas de recreio, mas deve também aprender a trabalhar. [...] Quanto mais ele [o homem] se abandona à preguiça,mais dificilmente se decide a trabalhar” (Päd, IX, 470); “É de suma importância que as crianças aprendam a trabalhar. O Homem é o único animal obrigado a trabalhar” (Päd, IX, 471), e é na escola que a tendência ao trabalho pode ser mais bem cultivada: “A escola é uma cultura obrigatória” (Päd, IX, 472); “O gosto pela facilidade é para o homem o mais funesto dos males da vida. Por isso é muito importante que as crianças aprendam a trabalhar desde cedo” (Päd, IX, 477). 55 373 “homem é a única criatura que precisa ser educada” (Päd, IX, 441). Confrontando-o com a característica instintiva do animal, a qual é determinada por uma razão estranha a ele e na qual o animal age com base num comportamento codificado, o homem é concebido por Kant como um ser que “tem necessidade de sua própria razão” (Päd, IX, 441). Ora, pelo fato de não poder agir só instintivamente, o homem “precisa formar por si mesmo o projeto de sua conduta” e, porque ele, ainda enquanto criança, não pode formar sozinho este projeto, outros devem ajuda-lo. “Formar por si mesmo o projeto de sua conduta” é um ideal educacional que se movimenta nos horizontes iluministas de não mais aceitar nada que venha de fora da própria razão e que lhe seja estranho. Este ideal é a raiz do próprio conceito de autonomia, o qual, central para a moralidade kantiana, significa a capacidade que uma vontade livre tem de se dar racionalmente leis a si mesma. Ou seja, autonomia é, como a Grundlegung nos ensina, a autolegislação (Selbstgesetzgebung) da própria razão, derivando dela leis capazes de obrigar.56 Para o ponto que nos interessa agora é importante destacar que no contexto de Über Pädagogik fazem parte também desses ideais, a convicção de que se pode estabelecer uma linha divisória entre o estado selvagem e o estado racional na natureza humana e conceber o processo cultural-civilizatório experimentado pela espécie como herança de sua conquista progressiva de racionalidade. Para o próprio Kant, coloca-se a questão de que uma aproximação progressiva à idéia de moralização só é possível mediante a superação do que há de selvagem no ser humano e isto, visto do ponto de vista pedagógico, só pode ser conquistado mediante o desenvolvimento da capacidade de pensar. Kant não contou, 56 Conforme Bittner, R. “Das Unternehmen einer Grundlegung zur Metaphysik der Sitten”, in: Höffe, G (Hrsg.). Grundlegung zur Metaphysik der Sitten: ein kooperativer Kommentar (Fundamentação da Metafísica dos Costumes: um comentário coletivo), p. 28. 374 no entanto, - ou pelo menos isso não foi sua preocupação primeira - com a possibilidade de que a selvageria brote, como irão nos ensinar, quase dois séculos mais tarde, os autores da Dialektik der Aufklärung, do interior do coração mesmo da cultura e que seja, portanto, algo inerente à própria racionalidade, colocando-se sempre ao menos como sua possibilidade. Nas preleções os conceitos de disciplina e de educação como idéia são duas indicações claras no sentido de mostrar como a pedagogia é uma das formas de realização da filosofia prática. Os conceitos de pressão (Zwang)57 e, associado a ele, de disciplina (Disziplin) desempenham um papel central na teoria kantiana da educação. Na passagem 452 das preleções Kant resume lapidarmente sua teoria. Aí o processo educativo é concebido como constituído por duas etapas que, embora distintas entre si, estão relacionadas uma com a outra por meio do conceito de sujeição (Unterwerfung). Na primeira etapa, que é a da sujeição passiva, deve ser oportunizado ao educando as condições para que o mesmo desenvolva sentimentos de sujeição e obediência. Tais 57 F. C. Fontanella traduz Zwang por constrangimento. Outra possibilidade seria traduzi-lo por coação. No entanto, considerando que as convicções pedagógicas de Kant se inserem inteiramente nos ideais de formação de um sujeito autônomo, penso que a tradução mais adequada para o termo Zwang é pressão, porque ele, além de não poder ser confundido com um ato de inibição moral ou psicológica, o qual parece estar próxima ao conceito de constrangimento, adequa-se melhor aos propósitos pedagógicos de mobilizar o educando para a tarefa de pensar por conta própria. Isso não elimina, é verdade, a tensão inerente ao processo educacional entre a necessidade da pressão, por um lado e, por outro, da liberdade. No entanto, Kant mesmo considerou esta tensão como altamente significativa para a pedagogia. Por outro lado, o próprio Wahring Deutsches Wörterbuch (p. 1415) toma Druck, que em alemão significa literalmente pressão, como sinônimo de Zwang. Pode-se notar também que nos ambientes escolares e universitários alemães é usual o emprego da expressão Druck visando um sentido ou uma finalidade pedagógicos, como, por exemplo, em situações nas quais o estudante precisa escrever seu segundo diploma e não consegue avançar na escrita, então ele é “pressionado” pedagogicamente pelo seu orientador a fazê-lo. Neste contexto, gostaria de agradecer a Elli Benincá por ter me precavido sobre alguns pontos problemáticos que possam estar contidos no emprego de Zwang como coação, sobretudo considerando que tal termo é empregado no âmbito de justificação de uma teoria educacional que tem como fim mostrar em que sentido a ação pedagógica tem o papel de aproximar a ação humana à moralizacao. 375 condições são criadas pela disciplina coativa. Na segunda, que é a etapa da sujeição ativa, o educando deve ser permanentemente provocado (mobilizado ou estimulado) a fazer uso permanente de sua própria reflexão e liberdade, desde que ambas estejam “mediante certas leis” (Päd, IX, 452). Ambas as etapas estão orientadas pelo conceito de pressão (Zwang), para o qual Kant atribui também um duplo significado: “No primeiro período a pressão é mecânica, no segundo, é moral” (Päd, IX, 452). A pressão mecânica se caracteriza por ser um tipo de pressão que deve ser exercida junto ao educando, em sua infância, com o intuito de ir regulando progressivamente o seu “comportamento selvagem”, formado por uma vontade que, embora livre, é constituída arbitrariamente. A pressão moral, pressupondo o trabalho já realizado pela pressão mecânica, caracteriza-se pela ação racional do educador sobre uma vontade já acostumada minimamente a agir mediante regras menores. Por se tratar de uma pressão baseada na reflexão, ela implica no uso da razão e o convencimento que deriva daí dever ser, portanto, um convencimento racional. Neste contexto, não há duvida de que o que interessa a Kant é o conceito de pressão moral, pois ele significa um passo decisivo para o ideal educativo da moralização. A pressão moral deve preparar a passagem de um tipo de ação baseada na pressão para agir mediante regras menores, que é a ação orientada pela disciplina, para um outro tipo de ação orientada pelo respeito pela lei moral, ação essa que só pode ser exercida por uma vontade livre que é racionalmente obrigada a agir de acordo com a lei moral. Esta última só pode ser levada a diante pela vontade autônoma de um sujeito capaz de pensar por conta própria. Uma diferença fundamental que já se esboça aqui entre a ação 376 disciplinada e a ação moral consiste no fato de que enquanto a primeira tem o papel de evitar maus hábitos, ou seja, de evitar uma formação viciada do caráter, a moral é um tipo de ação baseada em máximas, as quais formam “o modo de pensar” (“Denkungsart”). Neste sentido, é preciso proceder de tal forma, no âmbito da educação moral, que “a criança se acostume a agir segundo máximas (Maximen), e não segundo certos impulsos (Triebfedern)” (Päd, IX, 480). O tipo de ação denominado por Kant de moralização, que constitui o fim último tanto da ação humana em geral como da ação pedagógica em particular, não deve ser entendida, no entanto, como um lugar onde se possa chegar ou como algo que se possa realizar inteiramente. Ao contrário disso, tal ação deve ser entendida enquanto processo que se desenvolve progressivamente, visando o bem. Diz Kant: “Na verdade, não basta que o homem se incline à toda espécie de fins; é necessário também que ele consiga a disposição de escolher apenas os bons fins. Bons são aqueles fins que são aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um” (Päd, IX, 450). Esta finalidade da ação, voltada para a idéia do bem, pressupõe que ela mesma possa orientar-se pela exigência posta pelo imperativo categórico. Ou seja, boa é aquela ação baseada numa máxima que pode se tornar ela mesma uma lei universal. Mas se a moralização é o fim a ser buscado e a pressão moral é indispensável para que a ação humana se aproxime cada vez mais dela, ambas só podem ser pensadas a partir do trabalho preparatório da pressão passiva, ou seja, ambas só são possíveis na medida em que forem precedidas pela ação formada com base na pressão disciplinadora. Por isso, o trabalho disciplinador do educador assume papel importante no sentido de orientar (conduzir) a ação do educando, mostrando-lhe, 377 permanentemente, os limites de sua relação com o mundo. Trata-se de uma árdua tarefa, para a qual não há prescrição de receitas. Consciente de que ao falarmos de educação, estamos diante de um dos problemas mais complexos e difíceis que o ser humano já criou, Kant não poderia deixar-se guiar pela idéia reduzida de tratar a relação pedagógica a partir de um conjunto de técnicas organizadas num método que terminaria por aprisioná-la como numa camisa de força. Para que isso seja evitado é fundamental que o trabalho disciplinar não seja exercido como adestramento. Talvez nenhuma passagem contenha de modo tão claro a idéia kantiana de educação do que esta: “A educação deve ser impositiva; mas nem por isso deve ser escravizante” (Päd, IX,472). Portanto, a ação disciplinar exercida pelo educador em relação ao educando não pode, nem de perto, ser confundida como uma ação de adestramento. A expressão adestramento conduz para uma imagem bem familiar à cultura humana da domesticação de animais. Domesticar um animal significa adequar o seu comportamento à vontade humana com base na pressuposição que o mesmo não possui liberdade e nem vontade. Por possuir um comportamento reflexo determinado, o animal não pode sair de sua rotina e, por isso, pode ser facilmente domado. Ora, transpor esta relação de domesticação para o âmbito da relação pedagógica entre educador e educando significa ignorar o que existe de profundamente humano no homem, a saber, sua racionalidade e sua liberdade. Este é o motivo porque Kant se volta radicalmente contra a idéia de se adestrar homens. Ao conceber a educação como uma tarefa tão complexa que, por isso, não pode ser tratada por meio de simples receitas, Kant atribuiu ao conceito de disciplina um papel importante para o ideal de construção de um estado futuro melhor, associando-o inteiramente ao propósito de 378 ensinar a criança a pensar. Assim diz ele: “O homem pode ser, treinado, disciplinado, instruído, mecanicamente, ou também ser ilustrado. Treinam-se cães e cavalos; mas também se podem treinar homens. [...] Entretanto, não é suficiente treinar as crianças; é necessário que aprendam a pensar” (Päd, IX, 450). Com base neste propósito, a disciplina não pode ser confundida com adestramento. Neste sentido, o procedimento disciplinador do educador em relação ao educando, na fase inicial de seu processo educativo, precisa incidir sobre a vontade desse, isto porque sua vontade está constituída de modo arbitrariamente livre. Trata-se de disciplinar a liberdade de uma vontade que ainda não conhece regras e, portanto, ainda não pode estabelecer nenhum limite entre sua ação e o mundo. Trata-se de uma vontade que quer tudo, agindo simplesmente de acordo com seus caprichos e inclinações. Aqui se ve claramente que Kant parte de um conceito de infância no qual a criança é compreendida como um ser que ainda não possui as condições racionais de agir por conta própria. Por isso, ela ainda não está em condições de agir moralmente e ser imputada, inteiramente, como o jovem ou o adulto, por suas ações. A criança ainda não é livre no sentido moral de decidir por conta própria e de ser responsabilizada pelas ações que derivam dessa decisão. Justamente por partir deste conceito de infância é que ele atribui papel central para o conceito de disciplina. A criança é concebida como “matéria bruta” que é, pela ação da educação enquanto arte, “polida” em sua rudeza. Kant deixa entender aí uma concepção de ser humano como constituído por uma associação entre humanidade e selvageria, competindo à disciplina, neste contexto, evitar que o homem permaneça no estado selvagem. Assim afirma ele: “A disciplina impede o homem de se desviar de seu destino, de se desviar da humanidade por meio de suas inclinações 379 animais” (Päd, IX, 442). Aqui se nota claramente sua função negativa, porque a disciplina “é a ação por meio da qual se tira do homem a sua selvageria” (Päd, IX, 442). O conceito de disciplina assume, deste modo, um duplo papel: negativo, enquanto recurso pedagógico por meio do qual se estabelecem limites à ação do educando em sua relação com os outros seres humanos e com o mundo e um sentido positivo, derivado do negativo, na medida em que ao agir mediante limites, a criança se exercita a viver mediante regras. Para se entender a importância do conceito de disciplina, se faz necessário compreender sua relação com o sentido atribuído por Kant ao conceito de selvageria (Wildheit)58. Este, que caracteriza o estado inicial da infância, significa o oposto da moralização entendida como estado no qual a ação humana obriga-se racionalmente a agir de acordo com a lei moral. Ou seja, a ação que se encontra no estado de moralização é aquela guiada por uma vontade que decidiu racional e livremente a assumir a lei moral como um dever de ação e, portanto, como um imperativo moral. Por conter uma vontade livre que age de acordo com a lei que a razão se dá a si mesma, o estado de moralização se caracteriza, portanto, por uma ação livremente orientada por leis. Ora, a selvageria significa o seu oposto, na medida em que é um agir independente de leis. Kant diz isso, literalmente, na seguinte passagem: “A selvageria consiste na independência de leis” (Päd, IX, 442). 58 Kant também emprega o conceito de animalidade (Tierheit) como sinônimo de selvageria e não atribui nenhum fator descritivo biológico ou psicológico para estes conceitos. Animalidade significa muito mais, como deixarei claro a seguir, um conceito normativo contrário à moralidade. Enquanto humanidade e racionalidade são conceitos idênticos, a disciplina pode conduzir à emancipação e, neste contexto, a animalidade significa o “ainda-não” (“Noch-Nicht”) da racionalidade. Sobre isso ver: Hufnagel, 1988, p. 50. 380 Neste sentido, justifica-se aqui seu empenho em superar o estado selvagem por meio da educação, pois Kant era consciente de que a permanência do ser humano neste estado o afastaria da moralidade, simplesmente pela razão de que um adulto que não tenha regrado a sua vontade, em sua infância, não saberá viver mais tarde mediante a obrigação racional exigida pela lei moral. Ora, como do estado selvagem deriva-se um conceito de liberdade enquanto ausência de lei, e como tal conceito está muito distante daquele exigido para o cumprimento da lei moral, ou para a obrigação moral diante da lei, então ele precisa ser criticado e a disciplina cumpre esta finalidade. “A disciplina submete o homem às leis da humanidade, começando por fazê-lo sentir a força das próprias leis” (Päd, IX, 442). Ela se volta contra o estado selvagem de uma vontade que quer ser livre de qualquer lei, impedindo que o conceito de liberdade sem lei se fortaleça no processo de formação do ser humano. A disciplina é compreendida então como forma de educação dos desejos, dos caprichos e inclinações e, neste sentido, como desempenhando uma função preparatória para o exercício futuro de obediência à lei, a qual está fundada racionalmente no sentimento de “respeito pela lei moral”. Se o conceito de disciplina não pode ser entendido, por um lado, como um tipo de imposição do educador sobre o educando que levaria ao adestramento, por outro, com ele também não é pensado um tipo de proteção excessiva que os pais devem exercer sobre seus filhos ou que o educador deve exercer sobre o educando. Disciplina nada mais é do que acostumar o homem “a submeter-se aos ditames da razão” (Päd, IX, 442). Com isso o conceito kantiano de educação movimenta-se no meio de uma tensão entre impedir que a vontade arbitrária do educando exercite-se livremente e sem direção, por um lado e, por outro, 381 que os pais intervenham excessivamente na formação dos filhos. Portanto, se a vontade do educando precisa ser disciplinada, também a ação do educador precisa encontrar os seus limites e o desafio educacional consiste em estabelecer limites sem impedir que a liberdade dos envolvidos no processo pedagógico se desenvolva. Kant mesmo oferece uma formulação lapidar da tensão inerente ao processo educacional com as seguintes palavras: “Um dos maiores problemas da educação é o de poder conciliar a submissão à pressão das leis com o exercício da liberdade. Na verdade, a pressão é necessária! Mas, de que modo cultivar a liberdade?” (Päd, IX, 453). Tal tensão manifesta-se no processo pedagógico, como ele esclarece ainda na seqüência da mesma passagem, na medida em que é “preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida à pressão de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade” (Päd, IX, 453). Nos encontramos aqui no coração de uma teoria educacional que tem na idéia de liberdade e no exercício adequado da mesma o seu ponto culminante. A tensão que daí deriva consiste no fato de que a própria liberdade precisa ser educada por meio da pressão. Como exercer autonomamente a liberdade mediante a sujeição à pressão de leis, eis aí o grande desafio de uma educação voltada para a moralidade. Tal desafio antecipa, de modo claro, aquela situação, aparentemente desconcertante, na qual o sujeito sente-se racionalmente obrigado a agir de acordo com a lei moral. O problema consiste aqui em saber, como Grundlegung mesma pergunta, “woher das moralische Gesetz verbinde” (GMS, IV, 450). 382 Educação como idéia regulativa Penso ter deixado claro, com a argumentação desenvolvida até aqui, as razões que tornam a disciplina um conceito central à pedagogia, principalmente ao seu propósito de ser uma das formas de realização da filosofia prática. Agora, pretendo dar um passo adiante e mostrar que esta tarefa da pedagogia só pode ser compreendida adequadamente na medida em que for esclarecida mediante o conceito de educação como idéia, defendido por Kant em Über Pädagogik. Pois, ao meu ver, é a concepção kantiana de educação como idéia que baliza um emprego adequado do termo “realização” no interior de sua filosofia prática. Se o conceito de moralização empregado por Kant nas preleções Über Pädagogik tem o lugar sistemático nos seus escritos de filosofia moral, o conceito de idéia desempenha papel sistemático central no interior da KrV, no sentido de legitimar a passagem e, ao mesmo tempo, demarcar os domínios e a continuidade entre “Analítica Transcendental” e “Dialética Transcendental”, entre entendimento (Verstand) e razão (Vernunft) e, com elas, de legitimar o emprego especulativo da razão pura.59 A possibilidade de tal emprego, bem como sua legitimidade, surgem no âmbito daquela problemática aberta pela aventura da razão pura para além da experiência determinada como possível pelo seu emprego teórico. Sem poder entrar nos detalhes dos problemas que tal discussão contém, basta dizer apenas, para os propósitos do momento, que é por meio das idéias que Kant procura justificar, inicialmente, a importância da discussão sobre o emprego 59 Para um comentário detalhado sobre a “Dialética Transcendental” e, de modo especial, sobre o significado e papel que as idéias desempenham na KrV, ver: Heimsoeth, 1971. Aqui especialmente a primeira parte: “Ideenlehre und Paralogismen” (“Doutrina das Idéias e Paralogismos”. 383 especulativo da razão pura. Pois, uma desautorização completa do emprego especulativo resultaria, simultaneamente, na redução da razão pura somente ao seu emprego teórico. Neste sentido, visto sob a perspectiva mais ampla do desenvolvimento progressivo da filosofia crítica kantiana subseqüente a KrV, a passagem da “Analítica” para a “Dialética Transcendental” e, com ela, a noção de idéia reterão, momentaneamente, toda a possibilidade de justificação futura de um emprego prático da razão pura. Isso, no entanto, o próprio Kant deixa claro numa nota da passagem B 398, que é um acréscimo da segunda edição da KrV, onde indica o primado da razão prática, estritamente vinculado ao caminho aberto pela razão especulativa. Como afirma Terra: “Assim o campo das idéias amplia-se à medida que as idéias práticas também são consideradas, e coloca-se a questão da relação entre as idéias especulativas e as práticas” (Terra, 1995, p. 19).60 Kant considera as idéias tão naturais à razão pura especulativa como os conceitos o são para o entendimento, ou seja, para a razão pura teórica. Elas nada mais representam do que a ampliação das categorias até o incondicionado (KrV, III, B 436). Entretanto, elas não podem ser confundidas com a função constitutiva de conhecimento que as categorias desempenham e nem com “a ilusão dialética”, pois possuem a legitimidade de descortinar um leque de possibilidades à razão pura que não podem ser visualizados pelo emprego teórico da mesma, o qual, para ser objetivamente válido, como já mostraram tanto a “Estética” como a “Analítica”, deve permanecer restrito ao âmbito estabelecido pelo princípio da conexão necessária entre intuição e conceito. Ora, justamente por estarem livres da restrição imposta por este princípio, é 60 Como mostra Terra neste trabalho, a herança platônica do termo idéia em Kant é clara. No entanto, Kant a transforma “numa regra, num padrão de medida racional, recusando qualquer hipóstase” (p. 21). 384 que as idéias não são obrigadas a possuírem algo congruente nos sentidos e isso constitui o núcleo de sua definição: “eu compreendo por idéia”, assim afirma Kant, “um conceito necessário da razão para o qual não pode ser oferecido nenhum objeto correspondente nos sentidos” (KrV, III, B 383). Ou, como é dito em outra passagem, “a peculiaridade da idéia consiste exatamente no fato de nenhuma experiência jamais poder congruir com ela” (KrV, III, B 649). Por estarem livres daquele princípio, elas não podem ser submetidas a nenhum tipo de dedução, que fosse semelhante aquele realizado com os conceitos puros do entendimento, no âmbito de justificação do emprego teórico-transcendental da razão pura. No entanto, embora não suportem uma dedução transcendental e, por isso, não possuam validade objetiva no sentido posto por aquela dedução, as idéias comportam uma “derivação subjetiva da natureza de nossa razão” (KrV, III, B 393) e, enquanto tal, possuem uma validade indeterminada (unbestimmte Gültigkeit), transformando-se assim em princípio regulativo próprio para a unidade do emprego do entendimento. As idéias expressam, portanto, a determinação objetiva da razão, a saber, enquanto “princípio da unidade sistemática do emprego do entendimento” (Prol, IV, # 56). E, o mais importante de tudo isso, é o fato de que Kant, no interior da “Dialética Transcendental”, concebe-as como “causas eficientes (das ações e seus objetos) na moralidade” (KrV, III, B 374) e, depois, já no interior do “Cânon da razão pura”, trata-as como forma de avaliação da moralidade (“die Beurteilung der Sittlichkeit”), distinguindo-as das máximas, que são a forma pela qual as leis da moralidade são observadas (KrV, III, B 840). Com isso fica claro que as idéias, segundo Kant, não possuem significado de utopia e nem podem ser confundidas com uma mera 385 ilusão. Elas são, isto sim, conceitos racionais necessários (notwendigevernünftige Begriffe), que, embora não possuam uma função constitutiva de conhecimento, assume um papel regulador central. Tal é o significado atribuído por Kant a idéia de perfeição no contexto da Über Pädagogik. Kant define a idéia aí como “o conceito de uma perfeição ainda não encontrada na experiência” (Päd, IX, 444). Ora, conceber a educação como idéia significa concebê-la como um processo contínuo de formação orientada para o ideal de busca da perfeição humana, a qual é possível de ser alcançada progressivamente por meio do “desenvolvimento das disposições naturais” do ser humano. Com isso fica claro então que a concepção de educação como idéia significa concebê-la como um projeto que tem como fim desenvolver e aperfeiçoar as disposições naturais humanas e isso não significa outra coisa do que conceber a idéia de educação também como um conceito racional necessário. A educação entendida como idéia evita, deste modo, que o termo “realização” seja compreendido somente no sentido histórico de concretizar ou alcançar uma meta ou um estado social desejados. Também evita, por sua vez, sua simples redução a uma premissa empírica, no sentido de que sua própria “existência” devesse ser verificada na “realidade”, embora, neste caso, tanto existência como realidade devessem ser devidamente esclarecidos. Neste sentido, o termo “realização” desempenha uma função normativa, enquanto um ideal regulador da própria relação entre filosofia prática e pedagogia. Não quer dizer, por isso, uma simples aplicação dos postulados da filosofia prática ao processo pedagógico. Pensar a relação entre filosofia prática e pedagogia de acordo com este conceito de “realização” impede, ao meu ver, pelo menos de se conceber tal relação no sentido de que a 386 filosofia moral devesse tratar somente de problemas de fundamentação e a pedagogia à tarefa de se ocupar com a aplicação dos conceitos morais fundamentados. Pois, pensada nestes termos, tal relação não extrapolaria o âmbito da “arte mecânica”, não podendo alcançar a “arte raciocinada”. Bibliografia CENCI, A. V. Esclarecimento, Autonomia e Educação Moral em Kant. Passo Fundo, 2003, p. 12-14. (Mimeo). DALBOSCO; C. A. Ding an sich und Erscheinung. Perspektiven des transzendentalen Idealismus bei Kant. Würzburg 2002. GROOTHOFF, H-H. Immanuel Kant. 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Basel: Editio Academica, 1970. 387 HERMENÊUTICA, LINGUAGEM E EDUCAÇÃO 388 HERMENÊUTICA, LINGUAGEM E EDUCAÇÃO Nadja Hermann∗ O tema desta Mesa Redonda não se configura com um tema clássico para a educação ou para a pedagogia, porque a hermenêutica não integra aquele conjunto de saberes filosóficos que constituíram, a partir da tradição moderna, as bases de justificação da educação. De modo geral, os cursos de formação de professores incluem em seu currículo a tradição iluminista, mas a hermenêutica não costuma ser objeto de tematização no meio educacional. Podemos ainda afirmar que são tímidas ou quase inexistentes as iniciativas que tentam pensar a educação a partir da abordagem hermenêutica. Entretanto, quem a ela se dedica sabe de sua produtividade para uma nova compreensão da educação. Este evento é uma oportunidade de tornar mais esclarecida as relações entre educação e filosofia, sobretudo quando a filosofia não se coloca mais como um “fundamento” da educação, deixando de ser Professora Titular de [email protected] Filosofia da Educação/UFRGS. Endereço eletrônico: 389 filosofia da educação para ser uma filosofia na educação61, como será retomado mais adiante. Desde o pensamento platônico até o século XIX, a filosofia estabeleceu um fundamento para a educação e sob tais fundamentos, definiu os chamados fins educacionais. “Fundamento” é o termo moderno utilizado para designar o princípio primeiro das coisas. Seu pressuposto é que nada existe sem sentido: nihil est sine ratione.62 A tradução da palavra latina ratio é fundamento, mas também razão e causa. Nesse sentido, educar, na tradição clássica, deve ter um fundamento, uma razão, algo que justifique a ação que pretende transformar o ser humano naquilo que deveria ser, se realizasse o fim definido pela sua natureza. Entender qual a essência da natureza humana, qual a relação com o universo, com os outros e consigo mesmo passa a ser o objeto da formação, de base metafísica. Como indicou Heidegger, a culminância da metafísica traz o mundo técnico e a predominância da racionalidade científica, pela qual tudo pode ser objetificado, tornando a educação fortemente influenciada pelas racionalizações técnicas. Disso advém todas as críticas do reducionismos da educação, que se deixar encerrar pelos ditames da cientifização, pelo empobrecimento da experiência e pelo atrelamento à mera formação profissional. É justamente quando entram em crise os fundamentos derivados da metafísica que novas respostas são pensadas sobre 61 Essa sugestão foi indicada por Hans-Georg Flickinger na Mesa Redonda intitulada “Filosofia da educação: para quê?”, I Seminário Internacional sobre Filosofia e Educação, realizado pela UPF, Passo Fundo, RS, de 22 a 26/09/2003. 62 A noção de causa, causalidade, relação causal, princípio causal aparece no pensamento filosófico, desde seu início. A expressão nihil est sine ratione (nada é sem razão) é o princípio da razão suficiente formulado por Leibniz (1646-1716), pelo qual nada pode ser como é sem que haja uma causa para isso. Compreender é dar razão, valendo-se de princípios invariáveis. 390 natureza humana, nossas relações com o mundo, conosco mesmos etc. A hermenêutica põe em dúvida o sujeito soberano como fundamento do conhecimento baseado na representação dos objetos, para dar lugar à linguagem e aos contextos práticos da vida cotidiana, como forma de compreensão. Nosso acesso ao mundo se dá pela interpretação, dentro de determinado contexto. A hermenêutica de Hans-Georg Gadamer (1900-2002) é um tipo de racionalidade que surge da exigência de se contrapor a uma época que procurou conhecer seguindo apenas a racionalidade de procedimentos empírico-formais e da explicação causal própria das ciências naturais63. Ou seja, o saber só teria validade quando atendesse às seguintes características: verificação empírica, estabelecimento de relação causal, eliminação de todo o pressuposto subjetivo e hostilização da historicidade. Só mais tarde, quando se instaurou a dúvida e a crítica radical à hegemonia avassaladora da racionalidade de procedimentos empírico-formais e de explicação causal, predominante no âmbito da ciência, é que a cultura em sua totalidade se defrontou com a autolimitação do método científico para obter conhecimento. A desconfiança passou a questionar se nosso acesso ao mundo poderia ser assegurado apenas por um tipo de procedimento. Encontrávamo-nos, assim, diante de uma profunda desconfiança quanto a um modo de conhecer e saber que não negociasse com outras experiências como aquelas vividas pela arte e pela consciência histórica. A hermenêutica surge, então, como uma teoria inserida no mundo prático, apontando a história e a linguagem como elementos estruturadores de nosso acesso ao mundo e nosso aprender. 63 Parte das argumentações que se seguem, retomam, com modificações, algumas idéias desenvolvidas no livro de minha autoria, Hermenêutica e educação. 391 Embora as origens da hermenêutica sejam bastante recuadas no tempo, trata-se de um modo de filosofar típico do século XX, que tematiza a compreensão da experiência humana no mundo, um mundo que desde já se dá interpretado. Seu problema central é a interpretação, um ato cultural que surge com as profundas lutas espirituais do Renascimento, diretamente associado à criação do sujeito e à produção do saber. Nosso conhecimento tem raízes na prática das relações précientíficas que mantemos com as coisas e as pessoas. Isso significa que o saber mantém vínculos estreitos com o mundo prático, antes que qualquer tematização. Estamos, assim, desde já inseridos num mundo que constitui o horizonte sob o qual se realizam nossos processos compreensivos. É nessa medida que a hermenêutica filosófica é uma racionalidade que conduz à verdade pelas condições humanas do discurso e da linguagem. Ela pode designar “uma capacidade natural do homem, isto é, a capacidade de um contato compreensivo com os homens” (Gadamer, 1983, p. 61). Compreender é participar de um sentido comum, de uma tradição a qual pertencemos. Gadamer se pergunta pelo que significa propriamente compreender: “Compreender não é, em todo o caso, estar de acordo com o que ou quem se compreende. Tal igualdade seria utópica. Compreender significa que eu posso pensar e ponderar o que o outro pensa. Ele poderia ter razão com o que diz e com o que propriamente quer dizer. Compreender não é, portanto, uma dominação do que nos está à frente, do outro e, em geral, do mundo objetivo” (2000b, p. 23). Compreender assim depende da linguagem e do diálogo. 392 O que significa linguagem para a hermenêutica? Gadamer defende a tese de uma unidade entre linguagem e pensamento, ou seja, a linguagem não é um instrumento do pensamento, ou “um dos meios através dos quais a consciência liga-se ao mundo” (Ibid., p. 120), mas, ao contrário, a linguagem é o meio pelo qual se efetiva a compreensão de algo, por ela temos um mundo e o modo como nele nos situamos. Trata-se da lingüisticidade originária de estar-nomundo. Mas abordar o tema da linguagem não é tarefa simples. O próprio Gadamer reconhece que: a linguagem é uma das coisas mais obscuras que há para a reflexão humana. O caráter lingüístico está tão extraordinariamente próximo de nosso pensar e na sua realização é tão pouco objetivo, que ele esconde, a partir de si próprio o seu verdadeiro ser. [...] A partir do diálogo que somos, procuramos nos aproximar da obscuridade da linguagem (1977, p. 457). Mesmo reconhecendo seu caráter obscuro, é por possuir linguagem que o homem “pode falar, isto é, pode tornar patente o não-presente através de seu falar, de forma que também um outro o veja diante de si. Tudo o que pensa, ele pode, assim, comunicar. Mais ainda é pelo fato de poderem assim comunicar-se que existe, entre os seres humanos, e só entre eles, um pensar partilhado, isto é, conceitos comuns e aqueles, sobretudo, através dos quais torna-se possível a convivência humana sem assassinatos e homicídios, a saber, na forma de uma vida social, na forma de uma constituição política” (2000b, p. 118). A linguagem encontra sua realização no diálogo. Gadamer vale-se do diálogo platônico para estruturar a experiência hermenêutica 393 do compreender. O diálogo se estrutura pela lógica da pergunta, que tem prioridade sobre o enunciado. Quando uma pergunta é lançada, ela projeta um horizonte de sentido sob o qual se situa e se torna possível de ser formulada. Perguntar é mais difícil que responder, por isso os diálogos platônicos seguem um caminho imprevisível. Fazer perguntas é condição fundamental para saber, uma vez que elas contêm a oposição entre o sim e o não, atendendo à dialética do saber, que consiste em considerar o seu contrário. Todos os envolvidos estão determinados pelo tema e o objetivo não é enfraquecer a posição do outro, como uma mera disputa, mas penetrar no tema e mostrar sua força. O verdadeiro diálogo, portanto, não tem por objetivo derrotar uma pessoa, mas deixar o tema vir à luz. O diálogo exige a abertura ao outro, através do reconhecimento de que não sabemos. O diálogo possibilita condições de reflexão sobre um entendimento ainda não disponível; ou seja, oportuniza aos participantes fazer uma auto-reflexão sobre seus próprios pontos de vista. A primazia da pergunta para a essência do saber, diz Gadamer, aponta, de maneira mais originária, a inadequação do método. Não há um método para ensinar a perguntar e é justamente com Sócrates que se criam os pressupostos o perguntar e o querer saber pressupõem um saber que não se sabe e as perguntas são conduzidas através da arte de desconcertar. O diálogo é impossibilitado se um dos participantes pressupõe uma tese superior, pois ele exige abertura ao outro, levando à sério suas posições. A pergunta abre o horizonte do outro, conduz o participante do diálogo para fora de suas próprias reservas. Flickinger observa que aprender a perguntar marca o próprio processo de compreender: “Tratase aqui, naturalmente, de uma lógica do perguntar, desvinculada das 394 condições do conhecimento objetivo, porque não se pergunta para confirmar o que se sabe, senão para proporcionar a si mesmo e ao desconhecido um mostrar-se que o preserve e exponha simultaneamente. Prevalece aqui, portanto, o perguntar sobre o responder. E o destino de cada debate vindo após uma determinada apresentação depende inteiramente da pergunta que o abre. O mesmo dá-se no encontro entre duas pessoas. É a postura inicial de cada um que determina o aparecer da outra, no seu horizonte interpretativo. O compreender exige, por isso, em primeiro lugar, o aprendizado de como perguntar, a saber, de como preservar, na pergunta, a alteridade, isto é, o outro na sua diferença, dentro do próprio horizonte do encontro” (Ibid. p. 46). O impulso daquele que não aceita opiniões pré-estabelecidas é o que promove a pergunta, proveniente da negatividade da experiência. Isso ocorre porque, em determinados momentos, dado o tipo de experiência a que nos submetemos, a pergunta se impõe e não é mais possível nem iludir-se, nem permanecer nas opiniões prévias. Com esses aspectos, Gadamer destaca a singularidade da dialética da pergunta e resposta frente a tudo o que se pode aprender e ensinar. Por isso ela não é arte de ganhar ou convencer os participantes pelo uso dos argumentos, mas é uma arte que só se manifesta naquele que sabe perguntar e que for capaz de manter em pé suas perguntas, isto é, manter sua “orientação aberta”. A verdadeira interrogação pressupõe abertura e, conseqüentemente, desconhecimento da resposta. A dialética entre pergunta e resposta desmobiliza a firmeza das opiniões dominantes, pois põe a descoberto o que até então não havia surgido. A arte de perguntar, diz Gadamer, “é a arte de seguir perguntando e isto significa que é a arte de pensar. Chama-se dialética porque é a arte de conduzir um autêntica conversação” (1977, p. 444). 395 O diálogo, que se realiza pela maiêutica socrática (o parto da palavra), faz aparecer a verdade do lógos, que não é a de nenhum dos parceiros do diálogo, pois se trata de uma verdade que não estava até então disponível. Ela aparece na arte de olhar juntos e produzir um novo conceito. A linguagem, que se realiza no diálogo, é a valorização de um saber prático da vida, independente de toda a ciência. Por isso, para Gadamer, “a experiência hermenêutica chega na verdade tão distante como na disposição ao diálogo entre os seres racionais” (Ibid., p. 466). A possibilidade que o diálogo tem de trazer uma verdade que não é aquela obtida pelos procedimentos metódicos é uma recuperação da dialética platônica para a fundamentação do próprio processo de compreender. Nesse sentido, a dialética platônica foi decisiva na estruturação da hermenêutica filosófica e deixou marcas mais intensas que o idealismo alemão. A dialética que interessa a Gadamer é definida pelo próprio Platão como a arte de interrogar e responder. Num diálogo filosófico não deve sobressair o desejo de brilhar de um em relação a outro, mas a procura da verdade, onde as perguntas de um dos interlocutores leva o outro a esclarecer sua própria posição, sem que se chegue a uma síntese absoluta como seria na dialética hegeliana. Assim, a verdade que pode ser obtida no diálogo, não significa uma posse da verdade, mas uma verdade compartilhada pelo diálogo. O que significa, para a educação, a defesa da linguagem e do diálogo, proposta pela hermenêutica? A possibilidade compreensiva da hermenêutica permite que a educação torne esclarecida para si mesma suas próprias bases de justificação, através do debate a respeito das racionalidades que atuam 396 no fazer pedagógico. Assim, a educação pode interpretar seu próprio modo de ser, em suas múltiplas diferenças. Esta auto-compreensão que a hermenêutica reivindica não se refere a uma pretensão de total transparência. Segundo Gadamer, a auto-compreensão está sempre em trânsito, isto é, se encontra num caminho cuja realização até o final é impossível. Se há uma dimensão do inconsciente que não foi iluminada, se todas as nossas ações, desejos, impulsos, decisões e formas de comportamentos – e por conseguinte o todo de nossa existência humano-social remonta à obscura e oculta dimensão da totalidade dos impulsos inconscientes – se todas as nossas representações conscientes podem ser somente máscaras, pretextos – sob os quais nossa energia vital ou nossos interesses sociais perseguem seus fins de maneira inconsciente –, se todas as compreensões evidentes e patentes que possuímos estão sujeitas a tais dúvidas, então a ‘auto-compreensão’ não pode significar uma auto-transparência de nossa existência (1983, p. 70). A interpretação nunca pode estar plenamente concluída porque ela revela a finitude humana. A interpretação nos remete assim a um incessante jogo de perguntas e respostas, que exige que se compreenda os pressupostos da perguntas. Mesmo que saibamos não ser possível obter um completo esclarecimento, faz parte da situação hermenêutica continuar buscando o esclarecimento dos pressupostos de nossos interesses. Daí a importância das perguntas e do diálogo. Ao perguntar pela prevalência da normatividade técnicocientífica que domina o cenário pedagógico, a hermenêutica expõe o reducionismo de entender a educação a partir dos ditames da 397 cientificização, em que o outro se torna objetificado (seja através de uma relação de poder, seja por imposições técnicas que condicionam o caminho da aprendizagem), para indicar que o processo educativo é uma experiência do próprio aluno, que se realiza pela linguagem. Quanto mais o processo pedagógico se aproxima dos ditames científicos, maior será a pretensão de controle das circunstâncias em que ocorre tal processo. As diferentes versões do olhar objetificador, seja behaviorismo, tecnicismo ou construtivismo, deixam escapar a experiência dos atores envolvidos no processo, com seus inevitáveis preconceitos e danos e, por conseqüência, empobrecem a experiência formativa. Se o processo educativo se torna objeto desse modo de fazer ciência, deixa de considerar a pluralidade de concepções pedagógicas que expressam diferentes modos de socialização e de orientações valorativas em favor da crença de que só temos um caminho a seguir. Esse é um dos principais equívocos na condução do processo pedagógico, que a abordagem hermenêutica expõe como um limite científico-metodológico, para buscar na linguagem um horizonte intransponível de interpretação das relações educativas. Horizonte este que, por princípio, não é objetificável e que se constitui num espaço interpretativo que não tem limites. É nessa perspectiva que o processo educativo extrapola a relação sujeito-objeto, no sentido do sujeito que domina o objeto. Evidentemente que uma interpretação dessa natureza expõe a estreiteza de muitas categorias prevalentes nos sistemas de ensino, que abrangem desde modos de avaliação da aprendizagem, procedimentos pedagógicos até metodologia da pesquisa condição determinante da em cursos de pós-graduação, como aprendizagem. Tais determinações 398 metodológicas costumam reduzir o espaço da experiência, em que aquele que aprende deve-se entregar à nova situação, aceitando o risco das incertezas. É em favor de uma abertura da experiência educativa que se situa a afirmação de Gadamer que “educar é educar-se” (2000a, p. 11). Isso implica em levar a sério a posição do outro, no caso, o aluno, como alguém que necessita ter suas capacidades e limites respeitados. Só nesse espaço de abertura pode se dar o convencimento necessário a respeito dos conteúdos da aprendizagem e o aluno pode realizar sua própria experiência. “Educar é educar-se” implica, sobretudo, no reconhecimento de que o processo contém debilidades e que educar-se pressupõe a exposição ao risco. Nessa perspectiva, quem efetivamente aprende, aprende a partir de suas próprias falhas (Idem, ibid., p. 48). A experiência educativa, enquanto hermenêutica, exige a exposição ao risco, às situações abertas e inesperadas, coincidindo com a impossibilidade de assegurar a tais práticas educativas uma estrutura estável, que assegure o êxito da ação interventiva. Além disso, não pode deixar de reconhecer a fecundidade da experiência do estranhamento, pela constante necessidade de ruptura com a situação habitual, como exigência para penetrar no processo compreensivo. Assim, a desorientação e a desestabilização, que tanto mal-estar provocam pela quebra da regularidade metódica - que se orienta por uma expectativa de comportamento correto -, se constituirão em produtividade de sentido. O sentido da educação não emerge de uma abstração, de uma subjetividade pura, nem encontra sua produtividade quando se entrega à rede de técnicas e procedimentos metodológicos, mas da entrega à própria experiência educativa, aceitando o que ela tem de imprevisibilidade. Trata-se da lógica do acontecimento, que não é 399 captável pela lógica dos conceitos. Daí que a valorização da metáfora na educação se deve às possibilidades interpretativas da hermenêutica, onde não está mais vigente o pensamento da identidade, como propôs a metafísica, mas a decisão de pensar o ser como abertura, como propôs Heidegger. Abrir o sentido da educação pela metáfora é ampliar as possibilidades compreensivas, deixar o espaço para a pluralidade contra o esmagamento do modelo único e seus perigos. O mundo se torna legível pela interpretação que damos aos sinais, pois não há uma essência a penetrar, portanto, não há um método decisivo para chegar à verdade. Isto torna compreensível dois aspectos que ocorrem na prática pedagógica, aparentemente contraditórios: por um lado, a existência de uma ansiedade tecnizante, proveniente de uma tradição em que a metodologia penetrou fortemente o campo educacional, com sua pretensão de intervir para obter resultados seguros. Poderíamos afirmar que desde as políticas até a organização curricular o fazer pedagógico tenta se traduzir numa técnica (técnicas de leitura, técnicas de trabalho em grupo, passando pelas promessas das novas tecnologias informatizadas que facilitam o processo conhecedor). A existência da técnica tem como pressuposto um certo aparato conceitual que permite a ação intervencionista. Não há nada de errado com a técnica, exceto quando ela tutela o processo, sem tornar explícitas as bases de seu proceder e quando ela pretende encerrar a produtividade de um processo, que consiste em abertura ao outro, em suas proceduras lógicas. É evidente aqui o contrabando da metodologia científica em sua pretensão de universalidade. Por outro lado, a frustração em relação às promessas de êxito da metodologia leva os professores a uma radicalização da perda de sentido. Ou seja, se as posições seguras oscilam, se o objetivo estabelecido não é atingido, a educação deve 400 encontrar um horizonte mais amplo para compreender esse suposto fracasso. Contudo, a necessidade de autocompreensão do processo educativo não pode significar uma pretensão de total transparência. É uma ilusão considerar que podemos clarear todas as motivações e interesses, que subjazem à experiência pedagógica. A hermenêutica nos mostra que nem tudo aquilo que é desconhecido é transformado em conhecido, como pretendia o conceito de progresso iluminista. E os processos pedagógicos, a despeito do domínio buscado por diferentes técnicas, trazem consigo o movimento próprio da existência humana que é a tensão entre iluminação e encobrimento. Reconhecendo esse movimento da existência humana, sob influência de Heidegger e a desconstrução da metafísica e de seus fundamentos, desestabiliza-se o conceito mais forte da educação que é natureza humana interpretada idealisticamente. A partir desse conceito, sempre se derivou uma ética e uma pedagogia. Por muitos descaminhos, a compreensão que o humanismo trouxe a respeito de natureza humana é de um ente objetificado, controlado por procedimentos racionais. Loparic, em Ética da finitude, aponta que o perigo maior do humanismo moderno, na perspectiva de Heidegger, não é o terror e o totalitarismo, mas o modo de conceber a essência do homem, como um ser tematizado no horizonte das objetividades. Ao usar o termo Dasein, Heidegger quer descomprometer-se de toda a concepção prévia de natureza humana para compreender o homem fora do âmbito das categorias tradicionais, seja como mente, corpo, ou qualquer relação causal. O homem é um acontecer temporal e suas possibilidades são uma acontecência do estar aí no mundo. 401 Certamente isso implica em, pelo menos, desestabilizar o arcabouço teórico do projeto pedagógico moderno. O ser humano, que foi visto pelo iluminismo como um ser racional, deveria levar adiante um processo educacional marcado pelo otimismo na ação emancipatória e pela certeza no esclarecimento científico e no processo de aperfeiçoamento que orienta as práticas educacionais. Isso resultou em ênfases unilaterais, apoiadas no que se convencionou chamar critério racional e num forte aparato tecnológico para garantir a intervenção segura sobre a natureza humana, da qual é esperada sempre novas e melhores performances. A hermenêutica impõe limites à descrição estrutural do sujeito, uma vez que ele se dá no acontecer. Nesse sentido, ela quer mostrar a impossibilidade de a educação seguir o caminho do ideal metafísico do conhecimento como descrição de estruturas objetivamente dadas, pois isto seria a negação da historicidade que nos é constitutiva. Com a hermenêutica abrem-se, então, novas perspectivas de reflexão para as ciências humanas e para a educação, pois dissolve a idéia metafísica de fundamento. Assim, creio que se torna mais claro o que foi anunciado no início: não temos uma filosofia da educação, que nos proporcione um fundamento inequívoco. A perspectiva que se abre é uma filosofia na educação, um incessante interrogar sobre suas rede de pressupostos, de modo a articular de forma cada vez mais explícita a inspiração original da educação, o que implica em compreender sua própria herança, para além de qualquer dogmatismo ou prescrição dedutiva. A educação pode assim compreender-se a si mesma numa abertura de linguagem, numa conversação filosófica, em que pode seguir conversando com os envolvidos, repensando e redefinindo sua 402 própria experiência. Trata-se de um trabalho da educação recuperar seu sentido, recuperar sua própria memória, uma vez que, originalmente, a filosofia fez parte da educação. Bibliografia GADAMER, Hans-Georg. Gesammelte Werke. Tübingen: Mohr Siebeck,1999. _____. Verdad y Metodo. Trad. por Ana Agud Aparicio e Rafael de Agapito. Salamanca: Sígueme, 1977, _____. Verdad y Metodo II. Trad. por Manuel Olasagasti. Salamanca: Sígueme, 1992. _____. El problema de la conciencia histórica. Trad. por Augustín Domingo Moratalla. Madrid: Tecnos,1993a. _____. Hermenêutica como filosofia prática. In:. GADAMER, HansGeorg. A razão na época da ciência. Trad. por Ângela Dias. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1983. _____. Elogio de la teoría: discursos y artículos. Trad. por Anna Poca. Barcelona: Ediciones Península, 1993b. _____. Der Anfang der Philosophie. Stuttgart: Reclam, 1996. _____. Der Anfang des Wissens. Stuttgart: Reclam, 1999. _____. Erziehung ist sich erziehen. Heidelberg: Kurpfälzischer Verlag, 2000a. _____. Da palavra ao conceito, a tarefa da hermenêutica enquanto filosofia. In: ALMEIDA, Custódio Luís Silva de; FLICKINGER, HansGeorg: ROHDEN, Luiz Hermenêutica filosófica: nas trilhas de HansGeorg Gadamer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000b, p.13-26. _____. Homem e linguagem. In: ALMEIDA, Custódio Luís Silva de; FLICKINGER, Hans-Georg: ROHDEN, Luiz Hermenêutica filosófica: nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000b, p.117-127. _____. Retrospectiva dialógica à obra reunificada e sua história de efetuação. Entrevista de Jean Grondin com H-G Gadamer. In: ALMEIDA, Custódio Luís Silva de; FLICKINGER, Hans-Georg: 403 ROHDEN, Luiz Hermenêutica filosófica: nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000c, p. 203-222. GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Trad. por Benno Dischinger. São Leopoldo: Editora UNISINOS,1999. HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Trad. por Álvaro Valls. Porto Alegre: L&PM, 1987. HEIDEGGER, Martin. Caminos de bosque. Trad. por Helena Cortés e Arturo Leyte. Madrid: Alianza Editorial, 1995. _____. Ser e tempo. Trad. por Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1995. HERMANN, Nadja. Hermenêutica e educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. HOY, David Couzens. Heidegger and the hermeneutic turn. In: GUIGNON, Charles B. The Cambridge Companion to Heidegger. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 170-194. LOPARIC, Zeljko. Ética e finitude. São Paulo, EDUC, 1995. PALMER, Richard. Hermenêutica. Trad. por Maria Luisa Ribeiro Ferreira Lisboa: Edições 70, 1989. PLATON. Obras completas. Trad. del grego, preámbulos y notas por Maria Araújo e outros. Madrid: Agilar, 1981. 404 PRAGMÁTICA DO SABER: A MUDANÇA DE PARADIGMA NA EDUCAÇÃO∗ Amarildo Luiz Trevisan∗ Considerações introdutórias Tendo em vista as transformações por que passa o contexto cultural atualmente, a teoria pedagógica, que pretende oferecer embasamento às nossas práticas, e a formação docente, são solicitadas a fazer a terapia das grandes fábulas ou das grandes esperanças depositadas na idéia do progresso. Para propor a “terapia” dos excessos da razão, a Filosofia deve captar o espírito do tempo (Zeitgeist), preocupando-se em identificar onde ele se manifesta. Hoje esse espírito se manifesta no visível, no movimento de voltar-se para o imediato, no aqui e agora, no modo tribal de viver, na idéia de interatividade (que sozinhos não resolveremos os nossos problemas), na valorização do O texto é uma versão resumida da terceira unidade do livro que será publicado em breve sob o título Terapia de Atlas: Pedagogia e Formação Docente na Pós-Modernidade. Santa Cruz do Sul/RS: EDUNISC, 2004 (no prelo). ∗ Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação do CE/UFSM e Pesquisador do CNPq. Endereço eletrônico: [email protected] 405 corpo e o que lhe está próximo, como o imaginário e o estético. Ora, se é preciso capturar o Zeitgeist que permeia esses temas para entender as transformações do mundo atual, procuro num primeiro momento decifrar ou decodificar melhor o enigma desafiador da idéia de fim das grandes histórias explicativas, como uma das características básicas da chamada pós-modernidade, tentando perceber por que elas estão desacreditadas. A seguir, busco na historicidade das tradições alguns elementos para pensar o equilíbrio dos excessos cometidos pela racionalidade moderna. A discussão procura acolher alguns elementos históricos, como a relação entre mito e educação e, depois de uma breve análise, investigo a reelaboração que as tragédias gregas e a Filosofia deram aos mitos. E, num terceiro momento, pretendo mostrar como alguns autores podem auxiliar a fazer a terapia dos discursos que estabeleceram uma sobrecarga metafísica e epistemológica nos discursos educacionais, a partir da análise de algumas teses de Adorno e Habermas especialmente. A pragmática do saber na pós-modernidade Estamos vivendo uma espécie de esgotamento de opções da racionalidade que apostou na ideologia do progresso a todo custo, em nome da qual o homem acabou destruindo os seus parceiros, como a natureza, investindo na guerra por conta do lucro – motor do progresso capitalista. Não é mais sensata a suposição de que podemos promover a educação tendo como guia o ideário de um progresso cego. A ideologia das grandes metanarrativas do progresso perdeu credibilidade, porque ninguém mais acredita na idéia de que o cientista faz pesquisas visando ao desenvolvimento social, senão com o interesse do capital e do lucro, 406 por exemplo. A influência do paradigma da relação sujeito e objeto, homem e mundo, que está no fundamento da dominação que norteia o desenvolvimento da modernização capitalista, trouxe como resultado a reificação, coisificação ou alienação do indivíduo. Em conseqüência disso, os objetos (mercadorias) passaram a ter vida, e os sujeitos passaram a ser vistos como coisas sem vida ou objetos, transformandose em verdadeiros “instrumentos úteis”. Complementando essa idéia, Vattimo alerta para uma outra relação que devemos estabelecer com o mundo: “No fundo dessa constatação está a idéia, bastante discutível, mas que, justamente por isso, merece ser debatida e levada em consideração, de que vivemos uma época em que a produtividade e o crescimento de uma sociedade não são medidos mais exclusivamente, ou sequer principalmente, a partir de sua capacidade de dominar, subjugar, reorientar, etc., as forças naturais, segundo uma imagem mecânica da relação homem-mundo” (1992, p. 16). A Filosofia, como de resto todas as áreas do conhecimento, está passando por uma crise que sinaliza para grandes mudanças de paradigmas. No paradigma epistemológico do pensamento moderno, os conhecimentos eram valorizados pela sua proximidade em relação à realidade, pelo atingimento de certezas ou não. Quanto mais próximo da representação do real, mais a área do conhecimento era digna de crédito e, portanto, mais aportes de status e financiamentos recebia. Era o paradigma segundo a imagem da mente como espelho, a que se refere Richard Rorty, ou paradigma da consciência, conforme afere Jürgen Habermas. A derrota do pensamento moderno inicia, no entanto, quando a cultura contemporânea constata, em diversos campos do conhecimento, que não temos o pretendido controle sobre os dados da 407 realidade, controle esse prometido pelo uso adequado do método científico. E que a formação do sujeito consciente, autônomo, racional e emancipado é uma ficção. Na verdade, somos muito mais controlados do que controladores do meio social, somos como marionetes teleguiados pelo inconsciente (Freud), ou pelos controles do sistema econômico (Marx), ou ainda pelas confusões de linguagem (Wittgenstein). As novas evidências trazem profundas repercussões em todas as instâncias teóricas, porque não temos mais como afirmar que um tipo de conhecimento é mais importante, hierarquicamente falando, do que outro tipo de conhecimento, dado que nenhum apresenta certezas absolutas. Conseqüentemente as informações passam a ser tratadas de outra maneira, na medida em que impera uma pragmatização e uma democratização dos saberes. Como exemplifica Anísio Teixeira a esse respeito: “Está claro que não basta, para isso, aprender uma informação. Pode-se saber tudo a respeito de dentes: a sua estrutura, a causa de suas cáries e de suas moléstias e, ainda assim, nada disso alterar a conduta prática da vida” (2000, p. 64-65). Não se pergunta mais nesse novo paradigma sobre o que algo é em essência ou o que ele significa ou representa, para o indivíduo saber posteriormente como deve agir, mas a pergunta é direcionada no sentido de saber para que fim esse algo pode ser utilizado. Ao comentar a virada paradigmática inaugurada por Wittgenstein, Auroux argumenta nesse sentido: “Partindo do jogo de linguagem, não se pode mais defender a identificação da significação com a coisa: ela consiste na função de reconhecimento dos objetos correspondentes a partir da percepção de seu nome no curso de uma atividade determinada. Dito de outro modo, o uso é uma dimensão 408 irredutível: o importante não é mais se perguntar sobre a significação, mas sobre o uso” (1998, p. 273). O peso das metanarrativas Sob o pano de fundo da pós-modernidade, a cultura, e, por conseguinte, a linguagem, por uma questão de tradutibilidade, precisa deixar o peso das metanarrativas de lado, pois elas eram instâncias agregadoras de subjetividades que se reconheciam de forma homogênea. No ambiente da pós-modernidade, as teorias e práticas pedagógicas são desafiadas a se desfazer do peso das metanarrativas, dos grandes discursos que alimentaram os sonhos da modernidade por dias melhores. Afinal, eles se tornaram muito densos, pesados, iguais à figura lendária do mito de Atlas, que ficou condenado a levar a esfera do mundo sobre os ombros. Tendo então essa compreensão do problema, o exorcismo do complexo de Atlas pode ocorrer pela terapia das linguagens. Assim, mister se faz que a educação possa se relacionar melhor com o espírito da pós-modernidade, confrontando-se com uma tradição que enfatiza a compreensão da Filosofia como terapêutica da linguagem e de teorias de filósofos contemporâneos (trans)histórica. Pretendo que procuram aliviar essa carga apresentar a seguir, de um ponto de vista hermenêutico, alguns dados históricos que apontam para essa outra maneira de encarar o conhecimento. Afinal, a hermenêutica é uma abordagem que serve para nos lembrar os compromissos históricos assumidos pela Filosofia desde o seu surgimento, especialmente no sentido de phronesis, que significa, antes de tudo, amor ao equilíbrio e ao senso de medida. 409 Mito e educação A Filosofia surge como tentativa de resposta aos questionamentos colocados pelos mitos. Os mitos eram narrativas que apresentavam os perigos para o homem dos excessos postos no mundo, quando era extrapolada a medida do humano, tanto no exagero quanto na falta. A enormidade tem a ver com a idéia de monstruosidade e também de desumanidade. Atualmente os mitos não têm mais a carga negativa que lhes era atribuída até há um certo tempo atrás, quando eram vistos, principalmente na perspectiva positivista, como depósito de todo tipo de irracionalidades. Ao contrário, novos estudos fizeram com que os mitos pudessem ser analisados com outros olhos. A importância do elemento mítico está sendo recuperada, a ponto de a oposição entre mito e Filosofia já não estar sendo mais aceita. Jaeger, nesse aspecto, chega a afirmar que há uma filosofia no mito, ou melhor, os mitos “constituíam toda a filosofia daqueles homens” (1995, p. 89). Os mitos revelam forças ocultas dentro do ser humano, pulsões originais, sentidos a desvelar, que trazem mais liberdade no sentido interpretativo. A sua performance coloca em cena as enormidades e os excessos sem julgamento moral, sem ocultamentos e sem máscaras, mas como formas que podem se fazer presentes no mundo humano. Ao mostrar as pulsões originais que podem levar ao exagero que está na raiz das doenças da alma ou da psiquê humana - e ao cometimento da loucura, tanto no sentido individual quanto no coletivo, ou atuar no revigoramento das capacidades psico-espirituais humanas, os mitos revelam o seu conteúdo educativo, sendo então, ao mesmo tempo, multifuncionais e pluridiversificados. Em função do desejo da 410 população de evidenciar as conseqüências dos conflitos humanos, seus desequilíbrios e sua reelaboração na justa medida, os mitos continuaram a existir de forma reelaborada, primeiro pelas tragédias gregas e, depois, por intermédio da contribuição da Filosofia. As tragédias gregas foram uma tentativa anterior à Filosofia de repensar os mitos, porém, enquanto esta procurava fazer a sua reestruturação em bases racionais, aquelas o faziam num sentido voltado à catarse ou à terapia dos sentimentos e emoções. As tragédias são educativas porque mostram o que acontece quando o equilíbrio humano é rompido, tanto no excesso quanto na falta da justa medida, que os gregos chamavam de phoronesis, isto é, a sábia compreensão (leitura) da situação. A tragédia causa no espectador a purgação, a purificação ou a catarse dos sentimentos de piedade e medo (que são dois extremos do comportamento moderado), através do choque dos extremos pelas imagens representadas no teatro. Quando um dos lados rompe o equilíbrio de forças contrárias, cumpre-se a “força do destino”, que é onde o trágico busca compreender a existência da desmedida no mundo humano. É por isso que elas foram aproveitadas pelo estado grego como instrumento educativo e, contemporaneamente, como um material prodigioso para a psicologia e a psicanálise, que trabalham com a terapia do emocional. A tradição cultural que se estabeleceu depois, e que substituiu o período áureo das tragédias gregas, também preocupouse em zelar pelo equilíbrio do bem viver. A busca do equilíbrio pela Filosofia 411 A Filosofia nasceu de forma sistemática na vida urbana ateniense, depois que os helenos deixaram de lado as grandes batalhas que deram origem às narrativas mitológicas e o sentimento do trágico, expresso nas tragédias. Ela surge no ambiente da cidade-Estado, preocupada com a convivência próxima entre as pessoas e a necessidade do respeito às regras da civilidade. Nessa linha de raciocínio, a Filosofia brota do contexto grego com a marca da busca do exercício da cidadania de forma harmoniosa e racional. Se a Filosofia nasceu sob essa condição, então significa que toda a cultura está batizada com a mesma marca da busca do equilíbrio das paixões no campo racional, pois no berço da civilização ocidental todos os conhecimentos eram considerados Filosofia, isto é, amor à sabedoria. A Filosofia não aceita que o equilíbrio seja dado pela intervenção de um ente divino, mas ele deve ser conquistado pelo exercício da razão. É nesse sentido que ela se aproximou do logos, para os pré-socráticos, da retórica, segundo a versão dos Sofistas, da maiêutica socrática, das matemáticas, como no caso de Platão, buscando adequação entre razão e proporção, ou então esteve preocupada com o meio termo das decisões que se posiciona de forma eqüidistante dos extremos, conforme a interpretação da ética aristotélica. A preocupação dos grandes aportes teóricos do pensamento grego com o comportamento embasado na justa medida mostra o quanto a Filosofia se preocupou com a “cura” das desmedidas e o quanto é possível compreendê-la no seguimento da linha que leva dos mitos às tragédias, e não em sua contraposição. É por isso que a Filosofia não pode ser isolada da educação, e também do convívio com as ciências, pois cada uma, a sua maneira, contribui para a construção da harmonia, 412 seja na invenção de procedimentos de intervenção educativos (planejamento de métodos e técnicas), seja para a produção de tecnologias e inovações (ciências), seja ainda em forma de sentidos para ação (Filosofia) que permitam colocar em equilíbrio os diferentes elementos que dão suporte à atividade humana. A Filosofia da Educação, herdeira dessa compreensão, se preocupa em eliminar os excessos contidos na educação, procurando resguardar a sua racionalidade. A contemporaneidade rompeu com a noção de equilíbrio grego, mas não com os compromissos históricos assumidos pela Filosofia. A novidade é que essa dinâmica adquiriu na atualidade uma nova configuração, estando preocupada com os exageros causados pelo uso da própria racionalidade, isto é, a própria racionalidade se transformou em mito, ela própria é causadora das monstruosidades e desumanidades já denunciadas nas mitologias. A cultura contemporânea e a terapia dos excessos da razão A teoria da Escola de Frankfurt, na versão dada por Adorno e Horkheimer, esforçou-se em demonstrar que a oposição entre mhytos e logos, fantasia e razão, já não é tão evidente como pensavam a ciência e o positivismo. E, nesse sentido, procuraram mostrar a inviabilidade da separação entre um elemento e outro na etapa do capitalismo tardio (pós-moderno), ao afirmar que a própria racionalidade (instrumental) se transformou em um novo mito. O conhecimento racional tornou-se semelhante às características fantásticas do mito, portanto resultou em algo fictício e circular. A dureza da dominação dos poderes naturais - 413 expulsa pela porta da frente pelo iluminismo - acabou agora retornando pela porta dos fundos, causando a frieza das relações sociais, a rígida extratificação social e o endurecimento da cultura em fórmulas fixas e desligadas do fluxo da vida. A rigidez conceitual dificulta levar adiante o compromisso da educação com um ensino de qualidade, pois não permite flexibilizar as ações pedagógicas de acordo com as necessidades de debelar o empobrecimento da experiência. Para se contrapor a esse estado de coisas, Adorno defende uma espécie de utopia às avessas, em que o poder da imagem é utilizado no sentido educativo para despertar a humanidade de suas idiossincrasias coletivas. É uma espécie de flexibilização para o alto, já que Adorno tem em mira a alta cultura, em sua expressão no campo das artes, da literatura e da estética. A imagem, nesse caso, tem uma função terapêutica, desinflando a abstração e o controle do conceito, livrando dos didatismos rígidos.1 A imagem em estilo adorniano serve para quebrar a reificação do conceito, é uma espécie de terapia da paralisação da discussão em um aspecto fechado da discussão. 1 Em trabalhos anteriores (Trevisan, 2000; 2002a e 2002b), procurei refletir sobre os potenciais pedagógicos de diversas teorias filosóficas que colaboram para fazer a terapia das linguagens utilizadas por diversos discursos vigentes no campo da educação. Enfatizei nesse sentido a teoria estética de Theodor W. Adorno, que busca resgatar o poder das imagens – a filosofia das imagens – como antídoto da prática conceitual reificada, e sua apropriação pela hermenêutica filosófica de Gadamer e a teoria da ação comunicativa, de Jürgen Habermas. Em ambos os textos, procurei refletir sobre a possibilidade de uma “mímesis da arte” e de uma “educação pela imagem”, respectivamente, servirem de fonte de inspiração para a requalificação do processo educativo em seu sentido mais elevado. A investigação se concentrou em desvelar as imagens presentes nos discursos filosóficos e pedagógicos, com o intuito de avaliar a crise das noções ligadas à formação cultural (Bildung) na pós-modernidade, que tem dificultado a avaliação de um produto cultural autêntico no campo da educação e da Pedagogia. Pretendo agora retomar alguns pontos dessa discussão, tentando mostrar como Adorno e Habermas, cada um à sua maneira, querem evitar extremos perturbados, opor-se à sobrecarga de demandas e à inflação de perspectivas elevadas de trabalho, colaborando para a instauração do paradigma da pragmática do saber. 414 Habermas pensa o legado de Adorno sob o mesmo viés da crítica da Escola de Frankfurt ao Iluminismo. O paradigma da relação sujeito e objeto jogou a reflexão num beco sem saída, uma vez que pensou a relação do homem com o mundo de maneira excessivamente objetivada. Esse foi o problema da reflexão de Adorno, como de resto de toda a Escola de Frankfurt: o sujeito se tornou objeto do sistema, acabando reificado ou coisificado na alienação de todos os procedimentos, o que levou a cultura a uma paralisação ou inércia da objetividade. Ao deixar de ser sujeito e tornar-se mero objeto, o indivíduo se desumaniza. A educação teria como tarefa lutar nesse paradigma contra as forças da alienação em direção à humanização, para reverter o quadro de dominação do sistema, que tende a se ampliar cada vez mais, igualando indivíduos a mercadorias. Por ser fiel à dimensão lingüística, para Habermas é preciso retirar a sobrecarrega do ato de fala de seus estrangulamentos. Seu diagnóstico é o de que a cultura se tornou reificada ou então ossificada em fórmulas fixas e rígidas, porque perdeu contato com o mundo da vida, com o espírito de época e com as transformações ocorridas. É nesse sentido que os discursos reificados se transformaram em ideologia ou falsa consciência, a qual, segundo Freitag e Rouanet (1993, p. 21), acaba atuando em dois sentidos básicos na esfera pública: de um lado, acobertada nas visões religiosas, metafísicas e epistemológicas de mundo, acaba suprimindo do horizonte de discussão pública ‘temas e problemas’ que a afronta e, de outro, impedindo a abertura de canais de comunicação para os ‘discursos práticos’, que poderiam reorientar a ação no sentido da correção dos desvios patológicos da comunicação. Ainda de acordo com o diagnóstico de Freitag e Rouanet: 415 É assim que Habermas concebe a terapia como a tentativa de re-simbolizar esses conteúdos banidos, reintegrando-os na linguagem pública. E é também à base do modelo psicanalítico que concebe o papel da teoria crítica, enquanto instrumento de elucidação pedagógica: ela deve propor interpretações que levem os sujeitos, imersos na falsa consciência a reconhecer-se em tais construções, por processos autônomos de autoreflexão, assim como o analista propõe interpretações que, se verdadeiras, são apropriadas autonomamente pelo paciente, que com isso reconstrói fragmentos de sua autobiografia. A crítica da ideologia é uma espécie de ‘discurso terapêutico’ (Ibid., p. 21-22). A necessidade de elaboração das desmedidas, entendidas por Habermas como patologias sociais, poderia ocorrer colocando em contato o problema com o mundo vivido isto é, com as condições normais de fala. Ao ser colocado em contato com o mundo vivo, o problema tende a se diluir, pois as confusões de linguagem estão na origem das dificuldades de compreensão. A terapia nesse caso visa a fazer a catarse, desinflacionar as expectativas exageradas de trabalho, para que se adquira um comportamento mais adequado à realidade e daí se possa, livre das amarras, operar com criatividade no contexto pósmoderno. Com isso, a terapia desfaz os paradoxos restituindo a discussão para a esfera pública, para que as pessoas se ponham em acordos válidos, minimamente possíveis, sobre questões envolvendo a prática da vida. Porém, enquanto em Wittgenstein a diluição do problema, ou, como ele mesmo diz, a “saída da mosca da garrafa” faz com que não sobre mais nada para ser refletido, para Habermas existem 416 aí elementos a ser aproveitados. A crítica descontrutiva à modernidade não faz desaparecer o seu projeto, mas levanta novas possibilidades para reconstruir, de forma hermenêutico-pragmática, a problemática da crise da razão que se enredou novamente no círculo vicioso do mito. O tema da imagem é tratado sob o fundo da crise do Iluminismo, que veio a desembocar na programação reificada das indústrias culturais, as quais, em vez de esclarecer as populações de suas potencialidades emancipatórias, acabam muitas vezes confundindo e alienando os indivíduos. Nesse espectro há uma predominância das imagens fugidias, flexíveis e desconstrutivas que guardam uma relação direta com o consumo e a fruição estética dos sentidos e que, além disso, têm um forte apelo visual. Habermas sinaliza favoravelmente à idéia de que a linguagem pode abarcar as reivindicações da comunicação que se utiliza das imagens produzidas pela publicidade e que pode ser refletida nos discursos. “Compreensão do sentido se orienta para o conteúdo semântico do discurso, mas também para as significações fixadas por escrito ou em sistemas de símbolos não-lingüísticos, na medida em que eles, em princípio, podem ser ‘recolhidos’ (eingeholt) em discursos” (, 1987, p. 26). Na verdade, há um acordo, um pacto, que estabelece um fundo comum entre quem produz as imagens midiáticas e quem assiste/consome. Para haver mudanças, é preciso mexer nesse fundo ou nesses acordos gerais que mantêm a produção da mídia operando de maneira estática (ou reificada), sem compromisso com a dimensão educativa da imagem. E esse fundo comum (nesse caso, distorcido), existe positivamente em todos os jogos de linguagem. São consensos que os homens estabelecem e que ultrapassam a multiplicidade dos 417 contextos e que une a todos sem constranger as diferenças. Se não houvessem esses acordos públicos a sociedade não poderia sobreviver. Aqui o paradigma de Habermas se distancia daquele utilizado por Adorno, pois enquanto o segundo contenta-se em denunciar as mazelas trazidas pela coisificação do ser humano (sujeito que se tornou objeto do sistema), o primeiro avança a discussão mostrando que o sujeito perde autonomia pelo consentimento em não fazer uso público da razão. Os acordos que permitem à publicidade funcionar, produzindo a alienação dos indivíduos, não é algo alheio ao querer da coletividade, mas sempre passa pelo assentimento ou concordância da opinião pública. É nesse ponto que a terapia da razão dialógica passa a atuar, diluindo os paradoxos criados pelo paradigma da relação sujeito e objeto, porque não são forças estranhas que inviabilizam o indivíduo de ser sujeito frente ao real, mas a sua própria subjetividade que não se reconhece no confronto com outras subjetividades, renunciando a si mesma e as suas múltiplas diferenças, se tornando então homogênea e indiferenciada. Porém, para tocar esse fundo comum que a publicidade midiática tornou falso, é preciso formar a opinião pública crítica e por isso a relação da imagem com a razão comunicativa é um campo profícuo a ser potencializado. Por esse caminho, a teoria da ação comunicativa responde afirmativamente às reivindicações da pós- modernidade. A educação em sintonia com a pós-modernidade Cabe um questionamento dirigido à educação nesse novo cenário: como é possível desenhar os contornos da Pedagogia e da 418 formação docente de acordo com o espírito da pós-modernidade, ou então, como a Pedagogia, interessada na sua inserção na cultura contemporânea, pode fazer a “terapia” do Complexo de Atlas? A reelaboração do Complexo de Atlas, que é justamente a fixação excessiva e por demais idealizada numa atitude enrijecida, tanto teórica quanto prática, pode acontecer na educação, na medida em que se desenvolverem novos olhares sobre o problema da formação docente e a sua base pedagógica. E isso repercute diretamente na prática educativa, uma vez que as diretrizes de que a educação e a Pedagogia ficaram reféns, muito mais do que produzir reflexão, por vezes penalizaram o avanço da discussão no sentido pragmático. Concluo que seria interessante uma atenção especial da educação para a hegemonia da comunicação na forma da cultura imagística, que está situada excessivamente no nível da exploração mercantilizada. Assim, é necessário situar a Pedagogia como um conhecimento crítico, auto-crítico e criativo, decodificando os enigmas (sinais, símbolos, signos e ícones) da sociedade pós-moderna. “Nisto se baseia aquela reflexividade que permite, contra a regra dos tipos que o conteúdo semântico de proferimentos lingüísticos contenha, ao lado da comunicação manifesta, também uma comunicação indireta sobre suas aplicações. Isto vale, por exemplo, para o uso metafórico da linguagem” (Ibid., p. 29). E isso exige situar a educação no plano da sensibilidade estética, pois a tradição contém metáforas que, de forma implícita, são imagens do discurso a ser potencializadas no sentido de auxiliar a promover a formação da vontade pública esclarecida. Nesse sentido, a educação e a Pedagogia não precisam mais operar com a compreensão de trabalho abnegado, conforme a imagem do pedagogo-escravo, ou a 419 aceitação da veiculação de valores eternos e imutáveis, como na imagem da caverna platônica, e ainda a concordância com os esquematismos das pedagogias da consciência, que repassaram para dentro da educação todo o peso da transformação social, como é ilustrado na interpretação da metáfora segundo a curvatura da vara. Torna-se possível acreditar então que as imagens produzidas no âmbito estético da linguagem permitem desvelar as estruturas distorcidas que transitam na comunicação, clarificando e auxiliando na terapia dos mecanismos da racionalidade da dominação que permeiam o processo educativo. É claro que essa é uma terapêutica diferente daquela que visa, em princípio, a trabalhar aspectos singulares da conduta humana. Ela tem antes muito mais a ver com a tradição grega que compreende a Filosofia como “medicina da alma” e “amor à sabedoria”. A terapia da linguagem utilizada visa à cura dos males ligados aos diversos idealismos. Talvez por esse caminho possam ser combatidas as doenças da Filosofia, que Deleuze denunciou tão bem ao dizer: “Não vamos comparar os filósofos e as doenças, mas há doenças propriamente filosóficas. O idealismo é a doença congênita da filosofia platônica e, com seu cortejo de ascensões e de quedas, a forma maníaco-depressiva da própria filosofia. A mania inspira e guia Platão” (2000, p. 131). Bibliografia AUROUX, Sylvain. A filosofia da linguagem. Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000. 420 FREITAG, B.; ROUANET, S. P. Introdução. In: ___. (Orgs.) Habermas. Col. Grandes Cientistas Sociais. Vol. 15. São Paulo: Ática, 1993. HABERMAS, J. Dialética e hermenêutica. 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Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 108 – Interdisciplinaridade. jan.-mar., 1992. 421 HERMENÊUTICA E FORMAÇÃO NA VIRADA LINGUÍSTICA Noeli Dutra Rossatto∗ Pois quando uma forma do Espírito não traz mais satisfação, a filosofia presta rapidamente atenção e procura compreender o descontentamento (Hegel). 1. Espistemologia e hermenêutica na educação Em artigo publicado em 1992 com o título A educação contemporânea entre a epistemologia e a hermenêutica, Gianni Vattimo, após constatar que a perda da autoridade do ideal científico de formação ocorre num contexto amplamente condicionado pelo fim da crença no progresso e que, além disso, depende por sua vez da dissolução da concepção de unidade da história, acrescenta: “A hermenêutica apresenta-se como possível sucessora da epistemologia, enquanto ideal diretivo da educação, num momento em que a atitude Professor e Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSM. Endereço eletrônico: [email protected] 422 científica característica da mentalidade européia da idade moderna se evidencia, justamente, como um aspecto desta mentalidade e nada mais” (Vattimo, 1992, p. 14-15). O diagnóstico de Vattimo se completa a partir do acréscimo de algumas exigências que daí advêm, a destacar: a) o estado de desagregação das sociedades avançadas prova que a informação técnico-científica não é suficiente para gerar valores sociais; b) a pura formação técnico-científica não educará o cidadão para uma sociedade democrática, mas criará apenas “instrumentos inanimados”; c) a capacidade de cooperar, de mudar de trabalho, de consumir, de comunicar, é essencial à sobrevivência e ao desenvolvimento de uma sociedade democrática; d) e, por fim, a produtividade e o crescimento de uma sociedade não são apenas medidos com base no domínio mecânico das forças naturais pelo homem (cf. Vattimo, 1992, p. 16). Dentro desse quadro é que a hermenêutica é vista como a natural candidata a responder às exigências impostas por essa nova realidade. Ela poderia capacitar o ser humano a se abrir a uma pluralidade de paradigmas, compreender uma infinidade de linguagens e dialogar com diferentes sistemas de metáforas enunciadores do mundo. Frente a isso, cabe a pergunta: que se pode entender com a chamada passagem do ideal epistemológico ao ideal hermenêutico em educação? E mais: que se pode entender quando se diz que a primazia 423 do ideal da educação não mais poderia ficar nas mãos da formação científica? Tentar tirar a primazia do ideal de educação da ciência significa no mínimo voltar-se contra séculos de afirmação de um tipo de formação em que o trabalho técnico-artesanal triunfalmente substituiu a chamada educação humanística, essencialmente contemplativa, que seguia os pressupostos remanescentes da filosofia greco-clássica. Antes, porém, de tratar do tipo de formação voltada para o trabalho, cabe apontar algumas características do modelo de educação voltado para a contemplação. 2. Educação: contemplação e ócio Em sua origem grega, a imortalidade foi concebida desde o início como uma atividade diretamente relacionada com a contemplação da natureza (physis). Era a natureza o modelo a ser imitado, pois, em seu ciclo interminável, ela configurava o protótipo daquilo que permanecia para sempre: o mundo, como ensina o Timeu (37d) platônico, é um ser vivente que procura realizar em seu curso uma certa imagem móvel da eternidade. A idéia antiga de eterno retorno é bem ilustrada pela ave Fênix que renasce sempre igual de suas cinzas. Porém, logo os gregos vão se deparar com um problema: a grandeza humana não poderia continuar a ser medida em função da eterna repetição do curso natural do mundo. Segundo essa medida, o verdadeiramente humano, que para eles residia nas palavras e nas ações humanas, ficaria situado no campo dos elementos fúteis e menos duradouros. 424 Conforme mostra Hannah Arendt (1996, p, 49ss), a primeira solução ao impasse virá dos poetas e historiadores e não dos filósofos. A imortalidade, para os poetas e historiadores, passa a residir nas palavras que eternizam os feitos, os eventos e as façanhas dos mortais. Aquiles, por exemplo, será considerado um homem de grandes façanhas e de grandes palavras. Os relatos dos historiadores e poetas superam não só o momento trivial da palavra e da ação humanas, mas vão elevar aqueles que falam e agem a um patamar situado além da simples vida dos mortais. É o período dos heróis. Apenas em segundo momento, continua Arendt, a solução será dada em termos filosóficos. Não obstante, nem Platão nem Aristóteles parecem estar dispostos a deixar que a imortalidade seja medida em função das grandes proezas (historiador) e das grandes palavras (poetas) humanas. Isso pode ser constatado na atitude tomada por Platão em relação aos poetas. Eles acabam banidos de sua República. Também, o mesmo Platão deitará sombra sobre o mundo sensível, factual, efêmero dos eventos humanos. E se isso não bastasse, para o filósofo grego, a verdade última, proporcionada pelo mundo das idéias, é algo que não pode ser expresso por palavras (Cf. Leis, 721 e a Sétima Carta). Seu discípulo Aristóteles, mesmo definindo o homem em termos do discurso (zoon logon), não deixará de reconhecer na atividade contemplativa do nous, que não se utiliza de palavras, a mais alta capacidade humana (Ética a Nicômacos, 1143a36 e 1177b30-35). Assim, poetas, historiadores e filósofos se distinguirão em um ponto fundamental: se para os primeiros a palavra ocupa um lugar central, para os últimos a atividade que mais se acerca da imortalidade é a contemplação sem palavras (Cf. Arendt, 1996, p. 55 e 81). 425 Não obstante, seríamos injustos com Platão e Aristóteles se deixássemos de registrar que, apesar da desconfiança em relação à palavra, eles continuam creditando a ela uma função mediadora no acesso às verdadeiras coisas. E é nesse mesmo sentido que mais tarde virá a diferenciação estóica - e depois agostiniana - entre a palavra proferida (logos prophorikós) e a palavra não proferida (logos endiáthetos) ou contemplada. Apenas a última poderá revelar a plenitude do Logos ou Verbo. Assim, pois, não deve surpreender que, desde suas mais remotas origens, o termo grego skolé (escola) e o latino schola, estão associados à atividade contemplativa, à inação, ao repouso, ao tempo livre e, em uma palavra, ao otium. A prática, entendida no sentido do trabalho (tecné), será considerada uma atividade de escravos. E se os medievais passam a entender o trabalho como virtude e o ócio como pecado, nunca deixarão de prezar o saber contemplativo. Bem ilustrativo, nesse aspecto, é o clássico Nome da Rosa de Umberto Eco, em que o saber está contido nos livros e é domínio absoluto dos bibliotecários, chefiados pelo velho e cego monge, Jorge de Burgos. 3. Educação: conhecimento e ação A relação entre a práxis como trabalho ou técnica e teoria só aparecerá claramente no Renascimento. É aí que o trabalho passa a alcançar um lugar bem distinto daquele antes ocupado no mundo grecoromano e medieval. Com a Reforma Protestante, ele passa a desempenhar o papel de mediador no processo de santificação do mundo. Alcança assim o grau de plenitude e de pureza outrora reservado 426 apenas aos contemplativos. A nova relação entre teoria e trabalho está registrada, talvez por vez primeira, nas utopias renascentistas, que são uma espécie de paralelo teórico dos movimentos reformistas (Cf. Turrò, 1985, p. 99ss). 3.1. Das utopias à tecnologia: quem sabe faz Na Utopia de Tomas Morus de 1516, na Cidade do Sol de Tommaso Campanella, escrita em 1602 e na Nova Atlântida de Francis Bacon, publicada em 1627, do mesmo modo que na utópica República platônica, os postos de governo continuam a ser ocupados pelos detentores da teoria: os sábios. Porém, eis a questão: quem é agora o sábio? Certamente, não são mais os contemplativos filósofos gregos e medievais. Tomemos a Cidade do Sol como exemplo. Nela, o sábio é o hábil engenheiro que se ocupa da natureza mediante o trabalho e a técnica. Uma frase posta por Campanella na boca de seu personagem, o Almirante, bem ilustra a quebra com a velha relação entre saber e contemplação, ócio e educação, trabalho e ignorância: “Não posso exprimir-lhe quanto desprezo têm por nós, por chamarmos de ignóbeis os artífices e de nobres os que, não sabendo fazer coisa alguma, vivem no ócio e sacrificam tantos homens que, chamados servos, são instrumentos da preguiça e da luxúria. Dizem ainda que não é de admirar que dessas casas e escolas de torpeza saiam catervas de intrigantes e malfeitores, com infinito dano para o interesse público” (Campanella, 1983, p. 253). 427 Um dos elementos que marca a nova relação saber e trabalho é ruptura com a antiga distinção greco-medieval entre naturalia e artificialia. Até então o objeto de contemplação era o mundo natural. Em contrapartida, os que trabalhavam eram desvalorizados porque exerciam uma atividade inferior, e os produtos do trabalho, (os artificialia) porque eram consideradas cópias. A partir do renascimento dá-se o processo inverso: as cópias passam a valer. 3. 2. Ação como processo mecânico Porém, há aqui um elemento novo a destacar. Não se trata apenas de deixar de contemplar mimeticamente a natureza, passando a valorizar em troca os produtos humanos. Trata-se, sim, de imitar os processos naturais de forma mecânica. Como observa pontualmente Arendt, o investigador já não mais se pergunta, em sentido contemplativo, pelo “que” das coisas: irá investigar “como” elas são feitas. Assim: “«conheço» algo quando compreendo como chegou a ser” (Arendt, 1996, p. 66). A ênfase agora migra das coisas para o processo de fabricação das mesmas. O movimento geral não será mais o de contemplar a natureza ou a história em busca de um bom exemplo a ser imitado. Busca-se agora fazer ou fabricar artificialmente a natureza e a história. Em semelhante sentido diz Habermas (cf. 1987, p. 67ss): tratase de reproduzir de forma artificial os processos naturais e, segundo esta mesma medida, a teoria ganha um novo critério de verdade que é o da certeza do técnico: só conhecemos um objeto na medida em que somos capazes de fazê-lo ou reproduzi-lo. Exemplo disso é a mentalidade que 428 permeia O Príncipe de N. Maquiavel, em que ganha prioridade a busca de artifícios eficazes para mantenere lo stato. Ou o Leviatã de Tomas Hobbes, em que, a saída de um suposto estado natural ameaçador, se dá pela construção de um estado artificial, mediante leis e pactos. Tal mentalidade é que vai forjar vocábulos e expressões, tais como “desenvolvimento” e “progresso”, “unidade da história” e “história única”. Palavras e expressões que são até hoje usadas com esse mesmo conteúdo semântico e hermenêutico. Em termos de educação, a julgar pelo que diz Paolo Rossi, há nesse momento uma clara tendência a substituir uma pedagogia literária e retórica por um tipo de ensino que dará progressiva importância à preparação técnica e a formação profissional (Rossi, 1966, p. 21-22). Esse modelo de treinamento prima pelo tecnicismo pedagógico e a utopia do trabalho. As escolas aos poucos vão se transformar em verdadeiras fábricas, e essas linhas de montagem não vão fazer mais que treinar jovens para o mercado. E como fica a questão da linguagem nesses modelos técnicocientíficos? Tomemos um exemplo. Trata-se de uma das versões renascentistas da lenda judaica do Golem. 4. O Golem: ética e linguagem na ciência Várias são as versões dessa lenda judaica, romanceada por Gustav Meyrink, sob o título O Golem (Der Golem, 1915). Todas elas revivem a mesma hipótese formulada por alguns rabinos medievais, segundo a qual era possível construir, mediante artifícios mágicos da 429 linguagem, um ser dotado de vida e de inteligência. Em uma palavra: era possível repetir o experimento da criação de Adão. Para tanto, bastava moldar uma imagem humana em argila vermelha e infundir-lhe vida. Como na tradição judaica a marca do divino é da Palavra, acreditavam eles, assim como o Deus veterotestamentário, poder descobrir a combinação alfabética capaz de infundir vida a esse bloco de barro. A palavra mágica, que devia ser escrita em sua testa, era emeth (verdade). Tão logo ela fosse gravada na fronte desse boneco de argila, ele se ergueria e transformar-se-ia numa espécie de autômato a serviço dos humanos. Houve um primeiro problema. A criatura cresceu de maneira desmedida e tornou-se muito perigosa. Outro problema surge: ela era totalmente destituída de princípios morais. Não fazia distinção entre o bem e o mal. Simplesmente levava a cabo o que queria executar. Surgiu daí a necessidade de eliminá-la. Era preciso apagar a primeira letra da fórmula, revertendo-a em meth (morte). Vejamos dois aspectos deste exemplo. 4.1. Além do bem e do mal O primeiro aspecto a destacar é o da relação entre ética e ciência. No exemplo citado, a criatura, que é a imagem de seu criador, é incapaz de distinguir o bem e o mal. Assim, criador e criatura encarnam um tipo de consciência incapaz de reconhecer imperativos morais. Este é o protótipo da consciência renascentista e moderna que só conhece depois de ter varrido todos os ídolos de seu fórum interior. E tal conhecimento se reduz a aplicação de um conjunto de verdades 430 apodíticas (episteme), isto é, verdades fixas e atemporais como as da matemática, na obtenção de um determinado fim prático-operativo (tecné). Assim, não há mais lugar para a ação que não visa um fim instrumental e conseqüentemente a ética não tem mais razão de ser. Uma das justificativas da exclusão da ética da ciência pode ser buscada num dos pressupostos do empirismo de Hume (1973, p. 138), que diz ser a razão humana capaz de lidar apenas com dois tipos de objetos: as relações de idéias (princípios lógicos e matemáticos) e as questões de fato. Idêntico pressuposto reaparece mais tarde na desalentadora afirmação do Tractatus lógico-philosophicus (6.42), de Ludwig Wittgenstein, que conclui de modo lacunar: “não pode haver proposição ética”. E por que não podem existir proposições éticas? Porque tal concepção de razão, que só sabe avaliar proposições factuais e relações matemáticas, concluirá inevitavelmente que, no tocante às proposições éticas, que implicam em juízos de valor e fins não instrumentais, o melhor é guardar silêncio (Cf. Macintyre, 2001, p. 102ss e Habermas, 1989, p. 62ss). Esta análise pode ser complementada com base na comparação entre o modelo helênico de ciência e o babilônico (cf. Husserl, 1976, Anexo III; e os comentários de Turrò, 1985, p. 325ss). A nova ciência, herdeira da técnica renascentista, traz consigo os remanescentes da magia, da alquimia e de todo o saber hermético. Desse modo, a sua própria essência radica em um elemento obscurantista, propício a ocupar um posto fundamental com o passar do tempo. Trata-se do saber reduzido a uma minoria de especialistas, isto é, um grupo de iniciados que convertem a mediação teórica em serva da pura operatividade técnica, reavivando a prática do hermetismo mágico-místico. 431 Esses remanescentes obscurantistas não advêm da ciência helênica propriamente dita, pois esta, ao contrário: a) preza o caráter de publicidade, dado que está aberta a todos os homens, b) submete a pura atividade técnica a uma normativa de fins e razões éticas, e c) privilegia a razão sobre a operatividade fática desenfreada (cf. Turrò, 1985, p. 325). Assim, pois, o caráter privado da linguagem científica, os métodos que visam a cega e rígida aplicação técnica de uma teoria e a ausência de princípios éticos são elementos introduzidos na modernidade e que não advêm strito sensu da tradição grega. O segundo aspecto consiste em dirigir um comentário específico à linguagem científica. 4.2. Linguagem oracular e ciência A nova ciência, fiel à herança do hermetismo renascentista, concebe a linguagem enquanto um conjunto velado de arcanos só decifrados coerentemente por um pequeno, seleto e fechado grupo de especialistas. Essa linguagem, tal qual um oráculo sagrado, alberga as verdades que, quando aplicadas corretamente, produzem efeitos mágicos, verdadeiros milagres. Cada grupo de cientistas - e daí não escapam os cientistas políticos e sociais, economistas, pedagogos e filósofos - produz seu jargão particular, difícil de ser comunicado e compreendido desde uma posição externalista. Quem olha de fora, aliás, não tem mais nada a fazer senão reverenciar tantas palavras sábias com tantos resultados fantásticos. Significativo ainda para essa análise é o fato de que a linguagem científica, ao reivindicar para si a pretensão de neutralidade e 432 objetivadade, não faz mais que reviver um dos elementos caros à tradição judaica. Trata-se da identificação entre palavra e coisa. Lembrese que o termo davar na tradição semita, diferentemente da helênica, significa palavra e coisa a um só tempo. O nome é a referência essencial da coisa. O Livro do Gênesis já apontava para a falta de distancia entre dito e feito: “Deus disse: Faça-se a luz. E a luz foi feita” (Gen 1,3). De igual modo, a linguagem científica opera com um pressuposto nada modesto: o da identificação entre conhecimento, linguagem e ser ou fazer. Daí algumas ilações. Quem conhece o ser (as coisas) sabe como fazê-lo. Quem domina o ser, domina sua linguagem e possui a verdade das coisas. E quem tem o domínio dos meios e dos fins tem a verdade. Nada mais alheio a isso que os resultados das últimas pesquisas no campo da filosofia. Depois da virada ontológica, provocada por Heidegger, só se pode conhecer como ser-no-mundo; e mais: o ser reside na linguagem. Desde os chamados teóricos da suspeita (Marx, Freud e Nietzsche) já se desconfia da linguagem devido aos seus conteúdos ideológicos, inconscientes e genealógicos. Para outros, no melhor dos casos, a linguagem se mostra apenas como a representação de uma presença ausente (Lefebvre, 1983). É em semelhante sentido que a hermenêutica gadameriana vem estabelecer, contra a teoria iluminista da consciência, que o sujeito do conhecimento já está ontologicamente situado no-mundo-da-linguagem; e, por isso, está previamente dominado pelos prejuízos que ele mesmo nega e não admite como ponto de partida (Gadamer, I, 1991. p, 437). A semiótica, por seu lado, vem endossar essa crítica ao dizer de forma irreverente que, em última instância, a linguagem só serve para “mentir”, dado que os signos são sempre “um substituto significante de 433 outra coisa qualquer”, e esta coisa “não precisa existir nem subsistir de fato no momento em que o signo ocupa seu lugar” (Eco, 1980, p. 4). 5. Confluências atuais: formação e processos livres Dentro desse quadro geral, vê-se com maior clareza o porquê da desconfiança em relação a deixar nas mãos da formação técnicocientífica a primazia do ideal da educação. Vê-se, ainda, conforme foi advertido inicialmente com Vattimo, como a informação técnicocientífica não podia gerar valores e educar para a cidadania, dado que, por seus resquícios obscurantistas, se tornara extremamente adversa ao mundo da ética. E, por fim, vê-se que a capacidade de cooperação, a produtividade e o crescimento não podem continuar a ser medidos apenas pelo domínio mecânico das forças naturais. Para concluir, apontamos, além disso, para dois pontos que atualmente confluem, levando a repensar o diferenciado tratamento da ação educativa. 1. O primeiro ponto reside na categoria de ação. A ação não pode mais ser tratada simplesmente dentro do rígido esquema técnicocientífico, como ação instrumental (tecnologia) ou como trabalho social (marxismo). De igual modo, deve deixar de ser tratada como práxis vital (fenomenologia) ou práxis espontânea, reduzindo-se a uma seqüência de atos isolados, alheios ao contexto de origem (existencialismo e filosofia analítica). Parece ser esse o dilema vivido pelo personagem Antoine Roquentin de A náusea de Jean-Paul Sartre: ou as ações são tomadas no cotidiano do indivíduo isolado, sem sentido algum e sem 434 inteligibilidade; ou, de outro lado, elas já estão plenas de sentido e significado no palco da História. Nos dois casos, as ações ficam deturpadas. A conclusão não poderá ser outra: a História com inteligibilidade é falsa; verdadeira, ainda que ininteligível, é a descrição da sucessão de atos individuais. Isso ilustra bem o conflito que marca a passagem do paradigma epistemológico (ordem do conhecimento) para o ontológico (ordem da existência). Qual a solução ao impasse? Ela não virá de Sartre. O passo seguinte será o de tirar a ação dos limites da relação sujeito e objeto, ou seja, deixar de pensar dentro do paradigma da consciência iluminista. Assim, é preciso, em um momento, reconhecer que há uma instância atemática ou pré-cognitiva que precede e funda a relação sujeito-objeto. Porém, em outro momento, se faz necessário passar a compreender a ação, o sujeito e o objeto dentro dos limites da linguagem. É o que, em última instância, está entredito nos conceitos de ação comunicativa de Habermas, de narração de A. MacIntyre e de narrativa de P. Ricoeur. Apenas compreendendo a ação como linguagem, como texto, como narração é que se pode dar primazia à hermenêutica na educação. Exercerá ela o papel de interlocutor situado dessas várias linguagens. 2. O segundo ponto resulta do novo rumo tomado pela própria pesquisa científica. Por mais paradoxal que possa parecer, há algum tempo a ciência começou a operar com um novo conceito de ação: a ação como processo livre. Nesse sentido, H. Arendt (1996, p. 68ss), em texto publicado em 1954, já advertia para a entrada definitiva nesse segundo momento da ciência. A ação como processo mecânico, 435 característica fundamental da modernidade sólida, aos poucos foi cedendo lugar à ação livre, conceito que era até então reservado apenas ao universo da ética. De acordo com isso, o procedimento científico vai desencadear processos naturais que adquirem uma espécie de vida própria, dado que, tal qual os seres humanos, desenvolvem-se com plena liberdade e autonomia. Ao contrário dos processos mecânicos, que, do início ao fim, podiam ser controlados, posto que seguiam às rígidas leis da causalidade, agora na liquid modernity não se tem mais essa possibilidade: os processos livres não deixam atrás de si produto algum. Tal qual a ação ética, que não visa um fim exterior, os processos livres não deixam vestígio atrás de si. E, devido a essa natureza sutil, não podem ser facilmente diagnosticados, medidos, avaliados, controlados ou dominados. A duração eterna que, segundo Bauman (2001, p. 145), era o principal motivo da ação na modernidade sólida e o foco do conhecimento científico, não tem mais função. Ela deixou o lugar para uma noção de tempo fugaz, instantâneo, imediato, real. Assim, o máximo que se pode antever é que o processo vai a uma determinada direção, e mesmo a respeito disso nunca se está seguro. Aqui, poder-seia exemplificar tanto com as mais recentes conquistas da ciência (Projeto Genoma, Clonagem, Medicina nuclear, transgenia, etc), como com alguns dos produtos da indústria cultural (Big Brother, reality show, informações em tempo real), ou ainda as novas formas de guerra de terror, os fluxos de capital e a informática. Não é de estranhar, portanto, que hoje a própria ciência de ponta volte-se para a ética. Mais especificamente, no caso da clonagem 436 humana, que pode pôr em jogo o destino da espécie, e das guerras atômicas ou bacteriológicas, que podem colocar em risco a destruição do planeta, fica-se, em última instância, à mercê de decisões e imperativos éticos. Em consonância com isso, caberia ao educador desencadear processos livres em que não se pode avaliar de forma mecânica os resultados da aprendizagem, pois, ao contrário do que antes ocorria, não se teria mais certeza a respeito do produto final, ou melhor, não poderia mais haver produtos finais. Seriam processos livres e nada mais. Bibliografia ARENDT, Hannah. Entre el pasado y el futuro. Ocho ejercicios sobre la reflexión política. Barcelona: Península, 1996. ___. A vida do espírito. O pensar, o querer e o julgar. Rio de Janeiro: Dumará, 1991. BACON, Francis. Novum organum. Nova Atlântida. 3ª ed., São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores), l984. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida (Liquid Modernity, 2000). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. ECO, U. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1980. GADAMER, H.-G. Verdad y método. Fundamentos de una hermenéutica filosófica. Vol. I, 4ª ed., Salamanca: Sígueme, 1991. HABERMAS, J. Teoría y praxis. Estudios de filosofía social. Madrid: Tecnos, 1987. HUME, D. Investigações sobre o entendimento humano. In: Os pensadores (Berkeley/Hume). São Paulo: Abril Cultural, 1973. HUSSERL, E. La crise des sciences européens et la phénoménologie transcendentale. Paris: Gallimard, 1976. LEFEBVRE, H. La presencia y la ausencia. 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Para alguns pensadores contemporâneos, dentre os quais cito o italiano Gianni Vattimo, não mais vivemos um tempo em que ainda se possa pensar a partir de uma representação única de historia. O que temos, em síntese, são imagens construídas de um passado. Imagens e representações, essas, que provém de diversos, e até mesmo divergentes, pontos de vista. Como não acredito na existência de um ponto de vista único, capaz de dar conta da complexidade das questões Prof. Adj. CE/UFSM - ADE (Dep. Administração Escolar) - GEPEIS (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Imaginário Social). Endereço eletrônico: [email protected] 440 que emergem nos tempos de pós-modernidade em que vivemos, me filio àqueles e àquelas que preferem olhar para a história através de diferentes possibilidades interpretativas. Essa concepção está em acordo, também, com o que defende o poeta e ensaísta mexicano Octávio Paz (1994) quando este afirma que, muito mais que fazerem a história, como sempre defendeu o pensamento iluminista moderno, os homens e mulheres são a história. Para esse pensador latino-americano, a vida em sociedade é muito mais ritual que histórica. Em função dessa característica não se submete a mudanças sucessivas e muito menos de tipo linear. O passado se comporta como um arquétipo e o presente como algo que a ele se ajusta, se adequa, em um processo de regressos e avanços num ritmo que é dado pelos rituais e pelas festas. Uma dessas possibilidades interpretativas da história, a que me referi acima, nos é oferecida pelos movimentos sociais não clássicos da modernidade. Me refiro aos movimentos das ditas minorias ativas (Moscovici, 1978). Nesse ensaio farei uma reflexão contribuições filosóficas do movimento sobre as possíveis ecologista, como um movimento político e cultural, para a educação em tempos de pósmodernidade. A perspectiva de pós-modernidade, aqui tomada, é a de um movimento de superação dos ideais paradigmáticos da modernidade, buscando a construção daquilo que Boaventura Santos (2000) denomina de transição para um universo crítico pós-moderno e inquietante ou de resistência. De oposição a uma idéia de pós-modernidade conservadora e de viés meramente economicista tão ao gosto das elites conservadoras latino-americanas. Ao se referir a este período de transição, Holanda (1991) o denomina de “Pós-modernidade de resistência”. Para ela poucas 441 expressões tem causado tanta polêmica entre acadêmicos e intelectuais em geral quanto o termo pós-moderno. Holanda vê a pós-modernidade de resistência como uma forma de enfrentamento à pós-modernidade da fragmentação e da desconstituição dos sujeitos e das relações. Essa, uma das tantas facetas do quadro contemporâneo. Na sua opinião o pósmodernismo de resistência surge como uma resistência prática não apenas à representação oficial das elites modernas, mas, também, contra uma falsa normatividade reacionária. Está preocupada com a desconstrução crítica da tradição em lugar de “instrumentalizar apenas pastiches de formas pseudo-históricas, com uma crítica das origens, não como uma volta a elas” (Holanda, 1991, p. 09). Em um estudo recente sobre as representações sociais da Intelligentsia latino-americana sobre ecologia e meio ambiente, Reigota (1999) ressalta que, via de regra, o termo pós-moderno é rápida e apressadamente associado às elites conservadoras e ao ideário neoliberal. No entanto, para este autor, pós-modernidade não pode ser resumida apenas a estes aspectos. Na sua opinião, tal resistência está relacionada a uma série de equívocos. Destes, o mais comum, é o simplismo de reduzir pós-modernidade a um mero processo de passagem do modelo industrial ao pós-industrial. Uma das conseqüências imediatas dessa visão simplista é acreditar que este movimento se restringiria aos países que atingiram o modelo pósindustrial de desenvolvimento. É a partir desse lugar, e com esse olhar, que proponho refletir sobre as contribuições do pensamento ecologista para uma educação que privilegie o diálogo entre as diferentes culturas, a solidariedade, a 442 tolerância e o Direito dos Povos64 a um mundo social e ecológicamente mais justo. Esse diálogo tem como pressuposto uma relação de troca, de encontro e não de submissão e/ou colonialismo cultural. Um encontro desse tipo tem muito que ver com um importante movimento da segunda década do século XX. Me refiro ao Movimento Antropofágico, do qual Oswald de Andrade foi um dos principais inspiradores. Suas idéias serão um dos principais referenciais teórico-filosófico para o presente ensaio. A idéia da antropofagia cultural será tomada como uma contribuição filosófica com o objetivo de nos ajudar a viver de forma mais justa, social e ecologicamente, em um mundo cada vez mais cosmopolita e marcado pela intolerância e pelos sectarismos de toda ordem. No entanto, e paradoxalmente, vivemos num mundo em que ao mesmo tempo em que aumentam os confrontos, também se diversificam as possibilidades para os encontros. Façamos nossas escolhas. E que elas sejam mais pela dança e menos pela marcha. Mais pela poesia e menos pela prosa. Enfim, pela paz e não pela guerra. Como muito bem escreveu Oswald de Andrade no Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) “A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária”. Ecologistas, tropicalistas, antropófagos e outros bárbaros “Importamos toda a produção dos prelos incoerentes do Além-Atlântico. Vieram para nos desviar, os Anchietas escolásticos, de sotaina e latinórios...Que fizemos nós? Que devíamos ter feito? 64 Direito dos Povos na perspectiva defendida por John Rawls (2001), onde os povos devem reconhecer que não podem compensar a falha em regular seu crescimento demográfico e econômico em cuidar de sua terra, mediante conquista ou migração para o território de outro povo sem o seu consentimento. 443 Comê-los todos. Enquanto esses missionários falavam, pregando-nos uma crença civilizada, de humanidade cansada e triste, nós devíamos tê-los comido e continuar alegres. Devíamos assimilá-las, elaborá-las em nosso subconsciente, e produzirmos coisa nova, coisa nossa” (Antropofagia de Cultura, Oswald Andrade, Os dentes do Dragão, 1990, p. 44). Do ponto de vista histórico, político e cultural, a década de sessenta, do século XX, foi rica quanto ao surgimento de movimentos sociais que buscavam escapar às formas tradicionais e/ou clássicas de organização. Surgem, entre outros, o movimento feminista, dos homossexuais, das etnias, da contracultura (na música, no cinema, no teatro, na pintura, na literatura, etc), movimento negro, movimento estudantil (Maio 68), movimento pacifista e movimento 65 ambientalista/ecologista em sua vertente libertária da década de 60 do século XX. Tais movimentos são também denominados de movimentos das “minorias”, que buscam organizar-se na tentativa de assegurar seus direitos mínimos, como o direito à cidadania e autonomia. Várias são as tentativas de explicação para o surgimento destes movimentos reivindicatórios, que têm seu principal foco nos países do chamado “mundo industrializado”, “desenvolvido” ou do dito “primeiro mundo”. Aproveito esse momento para dizer que o uso das expressões “mundo industrializado”, “mundo desenvolvido” ou “primeiro e terceiro mundo”, não significa que concorde com o significado que em geral lhes 65 Nesse ensaio adotarei a expressão movimento ecologista e/ou ecológico por considerála de domínio público no mundo acadêmico, bem como nos movimentos sociais. 444 é atribuído. Acredito, isto sim, que estas denominações são, ou genéricas ou reducionistas demais para designar as formas complexas pelas quais as desigualdades hoje se apresentam no mundo globalizado. Uma prova disto é que basta uma rápida análise, por exemplo, dos indicadores clássicos de distribuição de renda, no Brasil, para constatarmos que temos aqui convivendo estes dois “mundos”. Em países do dito “terceiro mundo”, temos uma pequena parcela da sociedade que tem acesso a boas escolas, a uma ótima atenção à saúde, enfim, tem acesso ao que de melhor e mais sofisticado a ciência e a técnica modernas podem oferecer, estando, assim, muito bem enquadradas ao dito “primeiro mundo”. Entendida desta forma a situação atual, a idéia de existência de um “centro único e fixo” de poder dá sinais de esgotamento. O que se percebe é que estes centros de poder também fragmentaram-se, globalizaram-se, com todas as conseqüências daí decorrentes. Da mesma forma, a idéia anterior de “periferia” também passa por este processo de mudança. Paradoxalmente, estas denominações são muito utilizadas para conceituar e/ou classificar a situação dos países latino-americanos frente ao contexto mundial. No entanto, as mesmas, quando muito conseguem ser fiéis aos parâmetros clássicos da economia. Dificilmente conseguiriam dar conta da realidade histórica, cultural e artística dos povos latino-americanos. O poeta e ensaísta mexicano Octávio Paz (1994), foi um dos intelectuais latino-americanos que se dedicou, com muita propriedade, profundamente ao estudo da forma como as elites deste continente se comportaram historicamente. Sobre estes reducionismos classificatórios ele faz a seguinte observação, e um oportuno esclarecimento 445 La noción de subdesarollo, por ejemplo, puede ser aplicada a la economía y a la técnica, no al arte, la literatura, la moral o la política. Más vaga aún es la expresión: Tercer Mundo. La denominación no sólo es imprecisa sino engañosa (1994, p. 74). Outro autor no qual me referencio para fazer esta reflexão é o antropofágico Oswald de Andrade. Em seu Manifesto Atropófago (1928) ele as denomina de “elites vegetais em contato com o solo”. Esses grupos souberam muito bem, ao longo dos séculos, locupletaremse da riqueza dos povos ditos “primitivos”, “selvagens”, “descobertos” do “novo mundo”. Retornarei mais adiante as idéias antropofágicas deste autor, como uma contribuição filosófica e ecologista para a educação brasileira. Em um detalhado e pioneiro estudo sobre as representações de meio ambiente, junto a Intelligentsia latino-americana, Reigota (1999), ao procurar responder a uma pergunta muito antiga e que inquietou e ainda inquieta os intelectuais e acadêmicos sobre se existe uma América Latina, argumenta que no contexto globalizado em que se dão, atualmente, as relações, trona-se cada vez mais temerário e complexo definir o que caracterizaria uma América Latina. Isso se deve, ao fato de que tal definição requer uma profunda reflexão. Reflexão, esta, que precisa contemplar não apenas aspectos geográficos, econômicos e políticos, mas sim, os aspectos relativos as representações imaginárias e simbólicas dos povos. Para este autor não há como descuidar Das manifestações culturais no espaço físico, aleatório e nômade, de indivíduos e comunidades de origem afro-asiática-indígena-latina, caracterizado por grupos e pessoas que transportam sua identidade individual e coletiva de mistura cultural e étnica, 446 desafiando, criando e estabelecendo novas fronteiras e rompendo com os conceitos clássicos da geopolítica, ultrapassando assim a concepção (moderna) de identidade com base em parâmetros de origem nacional” (1999, p. 35-36). Uma das justificativas para o surgimento dos movimentos das minorias da década de 60, já antes referidos, credita-se à busca da autonomia dos sujeitos ou grupos moleculares (Guatarri, 1987) que não se sentiam representados - se é que um dia o foram - pelas instituições clássicas de luta contra a ordem estabelecida: os partidos políticos de esquerda e as organizações sindicais. Estas instituições tinham como principal fonte de organização, e veiculação de suas idéias, a classe operária da época. O confronto político e ideológico dava-se basicamente com a sociedade capitalista, que era vista até então como a única responsável por todos os problemas de desigualdade e de opressão sociais. Para Gonçalves (1991) era em torno do movimento operário que se organizavam as críticas e contestações teóricas e práticas em relação à ordem capitalista estabelecida. Esta era tida como a única responsável por todas as mazelas com que a sociedade se defrontava na época. Ao mesmo tempo em que surgem estes movimentos sociais, de emancipação política e de questionamento do modo de vida 66, começa a ocorrer um movimento de tomada de consciência nos mais diferentes segmentos da sociedade civil, de que está em andamento uma degradação crescente do ambiente social, ambiental e mental (Guattari, 1991). Para este autor não se constituiria em nenhum ato de pessimismo 66 Gonçalves, C.W.P. Contexto, 1990. Chama a atenção para o fato de que nenhum outro movimento social levou tão a sério esta idéia de questionamento das formas de vida como o movimento ecológico dos anos sessenta. 447 ou exagero, postular que a tomada de consciência ecológica67 nos próximos anos não poderia ficar restrita aos fatores físicos do “ambiente”, mas sim, que estas preocupações precisariam também levar em conta outros tipos de degradações/deteriorações, tais como “devastações ecológicas no campo social e no domínio mental”. Para o autor, sem uma mudança radical nas mentalidades e nos costumes coletivos, o que teremos serão apenas “medidas ilusórias relativas ao meio material”. Sobre a contribuição da concepção ecológica guattariana Reigota (1999, p. 05), assim se manifesta A perspectiva ecológica guattariana apresenta grandes possibilidades, já que rompe com muitos clichês do senso comum, ou melhor, com as representações sociais naturalistas sobre a questão ecológica, ainda fortemente enraizadas nas escolas, nas universidades, meios de comunicação de massa, produção artística, etc... Foi nesta mesma época, que uma publicação chamada “Primavera Silenciosa” da jornalista Rachel Carson (1962), faz um conjunto de relatos sobre catástrofes e desastres ambientais. O referido livro passa a ser visto como uma importante fonte de denúncia sobre os perigos de uma forma de pensar a relação homem/mulher e seu mundo circundante. Não é sem motivo que esta publicação transforma-se em um dos clássicos mais lidos na época sobre a questão ambiental. 67 A utilização da expressão “ecológica(s)” tem como referência a idéia Guattariana de Ecosofia, apresentada pelo autor, Félix Guattari, no livro As três ecologias. São Paulo. Papirus, 1991. Este seria, para Guattari, um conceito onde estariam contemplados os três territórios constituintes da Ecosofia: a ecologia do social; a ecologia do ambiente e a ecologia da mente. Para o estudo que vou realizar este conceito é o que no momento melhor se adequa, na medida em que, propicia maior espaço para as dimensões sociais e subjetivas das questões ecológicas contemporâneas. 448 Esta publicação pode ser considerada um marco para o início de grandes discussões sobre o ambiente, indo da simples inquietação individual do(a) cidadão(ã) até grandes organizações como a ONU (Organização das Nações Unidas). Rachel Carson, já naquela época conclui seu livro com uma forte e muito atual advertência: El control de la naturaleza, es una frase concebida com arrogancia nascida em la edad de neardenthal de la biologia y de la filosofia, quando se suponia que la naturaleza existe para la conveniencia del hombre. Nuestra alarmante desgracia es que ciencia tan primitiva se haya armado a sí misma com la más moderna terryble de las armas, y que al volveria contra los insetos se ha vuelto tambien contra la tierra” (Carson, 1962, p. 302). Tomam forma e evidência públicas, mais concreta a partir de então, uma série de movimentos sociais que visavam questionar o modo de vida adotado no planeta e suas conseqüências sobre as diferentes formas de degradação dos processos de vida. Dentre estes movimentos está o movimento ecologista. Com a pressão destes movimentos, oriundos da sociedade civil, as decisões que envolviam as questões ambientais, que até então não eram tomadas pelas entidades governamentais, no caso do estado, ou das entidades empresariais e industriais, no caso do sistema produtivo privado, começam a ser questionadas. Dois movimentos culturais, surgidos no Brasil, tiveram uma grande influência na formação filosófica, ética e estética do movimento ecologista brasileiro: Tropicália, ou movimento tropicalista e Antropofagia, ou movimento antropofágico. 449 Tropicália é um movimento da década de 60 que fecundou o movimento ecologista por vias indiretas e de maneira não intencional. Estabeleceu, com ele, por vias indiretas, uma relação de mestiçamento altamente criativo e pertinente. Este movimento sacudiu os alicerces conservadores da sociedade brasileira. Constituiu-se em uma tendência que se manifestou em vários campos da cultura nacional. Nas artes plásticas com Hélio Oiticica; Glauber Rocha no cinema novo; a música, que tornou mais conhecida esta tendência, contou entre outros com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Rita Lee, Celso Martinez, José Carlos Capinam, Gal Costa, Nara Leão, maestro Rogério Duprat...e muitos outros(as). A música, Tropicália, símbolo deste movimento, é um chamamento à contestação, à organização dos diferentes grupos sociais. Enfim, à busca de espaços de contestação em uma sociedade aprisionada pela ditadura militar pós-64. Mesmo sob o signo da repressão política, que começa a recrudescer no país desta época, ainda aparecem nesta música refrões do tipo: “sobre a cabeça os aviões sob os meus pés os caminhões aponta contra os chapadões meu nariz... eu organizo o movimento eu oriento o carnaval eu inauguro o monumento no planalto central do país” O monumento é de papel crepom e prata Os olhos verdes da mulata A cabeleira esconde atrás da verde mata, o luar, do sertão. O monumento não tem porta, A entrada é uma rua antiga estreita e torta E do joelho uma criança sorridente feia e morta 450 Estende a mão Viva a mata ta ta Viva a mulata ta ta (Caetano Veloso, 1988). Como não ver nesses versos, daquela que foi a música inauguradora do tropicalismo, uma enorme afinidade com a conjuntura de um Brasil de quarenta anos depois? Um Brasil que viu golpes militares, revoluções, reformas, sofreu ditaduras e aberturas? Que teve campanhas “Diretas Já?” Que teve impeachman de presidente? Um país onde ainda se precisam fazer campanhas contra a prostituição infantil, contra o trabalho escravo, contra a exploração de mulheres e de crianças em trabalhos insalubres? Um Brasil que assiste ao assassinato de suas lideranças populares como o ambientalista Chico Mendes e tantos outros e outras? Que ainda precisa de programas do tipo “Fome Zero”? Que vê, agora, a esquerda chegar ao poder máximo do país, via Partido dos Trabalhadores e da eleição de LULA, seu líder maior, presidente da república? Novamente é profética a frase de Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago “A nossa independência ainda não foi proclamada...Antes dos portugueses terem descoberto o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade” (1928). Além das contribuições filosóficas e estéticas do Tropicalismo, para o movimento ecologista, muitos de seus representantes se envolveram ativamente – e ainda o fazem - com as causas ecologistas. O atual ministro da cultura, Gilberto Gil, é apenas um exemplo. Ao estudar a relação de entrecruzamento entre ecologia e tropicalismo Reigota (1999), mostra como esses dois movimentos promoveram atividades conjuntas que em muito contribuíram para a divulgação das idéias ecologistas no Brasil e no planeta. 451 O outro movimento, que em muito influenciou os ecologistas foi A antropofagia, chegando a ser considerado como uma das origens do tropicalismo. Sobre a origem do nome, Antropofágico, a este movimento, acredita-se que o mesmo decorre de um quadro que a pintora Tarsila do Amaral deu como presente de aniversário, (11 Janeiro de 1928), ao seu então marido Oswald de Andrade, um dos fundadores do movimento e autor do Manifesto Antropófago. A pintura constava de uma figura humana um pouco “estranha”. Grotesca. Diriam alguns, como Raul Bopp, logo que a viram. Tratava-se de um homem de tamanho fora do “normal”: um gigante. Curiosamente tinha mãos e pés muito grandes em contraste com uma cabeça diminuta. A coloração de terra da figura contrastava com o azul do céu, o sol alaranjado e um cactus verdejante. Ao receber o quadro de presente Oswald de Andrade não o entendendo, socorreu-se de seu amigo modernista Raul Bopp, que também ficou intrigado com “aquilo” que Tarsila tinha pintado. A própria Tarsila do Amaral ao ver o resultado de sua obra chegou a exclamar surpresa: “Mas como é que eu fiz isso?” Como brincadeira Oswald sugeriu que dessem à figura o apelido de um selvagem gigante. Recorreram ao dicionário de língua Tupi. Lá encontraram como sinônimo de Homem: Aba. Para aquele que come carne humana: Poru. Foi fácil a ligação Aba-Poru. Aquele que come carne humana: Antropófago. Nasce assim a Antropofagia. Este movimento teve já de início vários desdobramentos. Dentre eles uma revista chamada Revista de Antropofagia, que ao invés de edições, tinha, segundo seus fundadores “dentições”. São mais conhecidos desta produção cultural no campo da literatura brasileira os Manifesto Antropófago (1928) e o Manifesto 452 Poesia Pau-Brasil (1924) de Oswald de Andrade. Assim Oswald encerra o Manifesto Poesia Pau-Brasil “Bárbaros, crédulo, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a Escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil” (1972, p. 10). Esta mistura de conceitos e palavras, característica do pensamento de Oswald de Andrade, aparece novamente em vários representantes do tropicalismo. Um destes exemplos está na música Geléia Geral com música de Gilberto Gil e letra de Torquato Neto “Um poeta desfolha a bandeira E a manhã tropical se inicia Resplandente, cadente, fagueira Num calor girassol com alegria Na geléia geral brasileira Que o Jornal do Brasil anuncia. A alegria é a prova dos novembro E a tristeza é teu porto seguro Minha terra é onde o Sol é mais limpo E Mangueira é onde o samba é mais puro Tumbadora na selva-selvagem Pindorama, país do futuro A alegria é a prova dos nove Superpoder de paisano Um carnaval de verdade Com o roteiro do sexto sentido... Faz do morro pilão de concreto Tropicália bananas ao vento!” (Gilberto Gil e Torquato Neto, 1996). Esta mistura de elementos estéticos, essa mestiçagem de cores, sons, sabores, humores e de componentes epocais distintos, fez da antropofagia um movimento que na própria concepção de um de seus maiores inspiradores, Oswald de Andrade, era de muito difícil definição ou enquadramento. Diga-se de passagem, essa dificuldade de 453 conceituação e de definição é uma das características do que hoje está sendo denominado de pensamento ou período da pós-modernidade. Quando lhe pediram que definisse o movimento da Antropofagia, Oswald Andrade (1990, p. 43) respondeu que tratava-se de um culto “Á estética instintiva da Terra Nova; é a redução, a cacarecos, dos ídolos importados, para a ascensão dos totens raciais; outra: É a própria terra da América, o próprio limo fecundo, filtrando e se expressando através dos temperamentos vassalos de seus artistas”. Foram essas as únicas definições encontradas, por Oswald de Andrade, para esse movimento do qual também faziam parte Antônio de Alcântara Machado, Cassiano Ricardo, Raul Bopp, Menotti del Pcchia, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Zina Aita, Yan de Almeida Prado, Di Cavalcanti, Oswaldo Costa, Sergio Buarque, Alvaro Moreira, Filipe D’Oliveira, Sergio Milliet, entre outros e outras que se rebelaram contra a arte imitadora dos museus da velha Europa (Andrade, 1991). Como pode-se perceber, a busca de definições e de amarras conceituais nunca foi coisa de que gostassem os antropofágicos. Se assim não fosse, certamente, não teriam se arriscado em criar um movimento tão “exótico” para o Brasil dos anos 20 do século passado. Da mesma forma, constata-se que a tentativa de definição, de conceituação e conseqüente burocratização das idéias não é algo novo em nosso mundo acadêmico ou intelectual “normal”. Ao contrário, como diria Oswald, faz parte da tradição de “microcefalia” que se aninha na Academia Brasileira(!) Regurgitando idéias – deglutindo o novo e vomitando as mesmices 454 “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos...É pois o academicismo, a imitação servil, a cópia sem coragem, sem talento que forma os nossos destinos, faz as nossas reputações, cria as nossas glórias de praça pública...Nada de revolução: o papel é mais forte que as metralhadoras” (Oswald de Andrade, 1992, p. 20). Recentemente em seu livro A Floresta e a Escola: por uma educação ambiental pós-moderna, ao investigar as relações entre as idéias antropofágicas e as questões ecológicas contemporâneas Reigota (1999), afirma que o Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o Manifesto Antropófago se constituíram em momentos decisivos na cultura brasileira, na medida em que inauguraram o rompimento de seu autor, Oswald de Andrade, com as principais idéias que marcaram a Semana de Arte Moderna68, dando, com isso, os primeiros sinais do que viria a ser o “movimento antropofágico”. Para ele, um dos movimentos mais importantes da cultura brasileira e inaugurador da pós-modernidade por essas terras brasilis. Em Antropofagia ao alcance de todos, Benedito Nunes (1972) salienta a importância dos manifestos de Oswald de Andrade para o entendimento do restante de sua obra ensaística, poética e romancista, bem como o papel que a mesma desempenhou no modernismo, para o entendimento de seus escritos e reflexões filosóficas pós-modernistas. 68 Encontro que ocorreu no teatro Municipal do Estado de São Paulo, no ano de 1922, e que reuniu intelectuais de diferentes áreas como literatura, pintura, escultura, cinema, músicos e intelectuais em geral. Seu objetivo principal era refletir criticamente sobre o momento em que se encontrava a produção acadêmica, política e cultural no Brasil de então. 455 As discussões sobre as questões ecológicas no Brasil em geral e, em particular, sobre o desafio de trazer a educação ambiental para o contexto educativo – escolar e não escolar – tem exigido um grande esforço intelectual de todos aqueles e aquelas que nos últimos anos se envolveram com esse assunto. Pode-se dizer que já avançamos bastante quanto à produção de conhecimentos, saberes, subjetividades e imaginários que envolvem a ecologia local e planetária. Já fazem parte do passado as representações e concepções simplistas, ingênuas e, em alguns casos, até oportunistas que reduziam as questões ecológicas a meros problemas de resolução técnica e/ou burocrática. Uma conseqüência disso é que já podemos afirmar, com certa tranqüilidade, que a educação ambiental que se desenvolve nas diferentes regiões e territórios simbólicos do Brasil é uma das mais criativas e diversificadas do planeta. Muitas das experiências aqui desenvolvidas têm despertado o interesse e a curiosidade de organizações e de pessoas de vários países que para cá se dirigem em busca de conhecê-las melhor, bem comover de que forma podem aprender com elas. Curiosamente a educação ambiental brasileira está provocando uma reação inversa ao que sempre ocorreu com as elites latino americanas em geral, e com a brasileira em especial – e que aqui é o cenário que privilegiei para analisar. Se para as elites modernas o correto, o importante e suficiente era copiar, com a educação ambiental em sua perspectiva pós-moderna e antropofágica, o que se busca é exatamente o contrário: é inventar, recriar, imaginar, mestiçar, experimentar. Enfim, para usar uma forma criativa dos antropófagos: comer, regurgitar e depois deglutir o que queremos - que achamos que nos interessa – e vomitar aquilo que não queremos – que no momento 456 não nos atrai. Como diria o amigo, estudioso da educação ambiental e antropófago cultural, Marcos Reigota: o banquete está apenas começando. A produção teórica, e as iniciativas na busca de entendimento das questões ecológicas tem obrigado a que façamos rupturas e mudanças de rumo. Nossa tradição filosófica de copiar, ao invés de criar, não mais consegue dar conta dos desafios contemporâneos. Como já me referi anteriormente, neste texto, esse costume amplamente adotado pelas elites latino-americanas é um dos principais responsáveis por boa parte das injustiças sociais e econômicas neste continente. Esteve, também, sempre ao lado das ditaduras políticas que se instalaram – e ainda tentam renascer – nesse pedaço do planeta. Um dos exemplos desta cultura da cópia foram as várias e dispersas tentativas de modernizações ocorridas no continente latinoamericano. Modernização que foi tomada como sinônimo de europeizarse num primeiro momento e, posteriormente, como sinônimo de norte americanizar-se. Reconheçamos, no entanto, que no fundo estas duas expressões trazem uma carga político-ideológica muito forte: a colonização e dominação cultural. Uma dominação que encontrou um campo fértil na submissão de uma elite latino-americana que contentouse em copiar ao invés de criar. De acomodar ao invés de ousar. Ao refletir sobre esse comodismo e a essa submissão no Manifesto Antropófago (1928), Oswald de Andrade chamou seus adeptos de “Elites vegetais em contato direto com o solo”. Foram elites que rapidamente aderiam às “novidades” de alémmar, desde que esta adesão não arranhasse seus interesses de poder tanto econômico quanto político. Uma adesão que não raro era/é carregada de um certo desdém pelo que existia e/ou existe na cultura nativa. 457 Exatamente o inverso disso é o que propuseram os antropofágicos com suas produções filosóficas e estéticas. Para eles e elas, devíamos nos voltar para a realidade brasileira antes do dito “descobrimento”. Valorizando o povo aqui existente antes da chegada dos europeus. Dialogando com seus aspectos selvagens, sua total liberdade, sua relação de pureza e integração com o mundo a sua volta. Enfim, feliz e vivendo soltamente até a nefasta chegada de Cabral com sua trupe. Antes da imposição da colonização portuguesa, que veio explorar as riquezas da “nova terra” e tornar cristão os “bárbaros” e “selvagens” aqui residentes. É com esse olhar antropofágico que o movimento antropofágaico acredita poder construir uma estética e uma filosofia que, ao mesmo tempo em que se relacione com as outras culturas, não despreze as raízes da terra. Que viva essa experiência de deglutição saboreando suas diferenças com muito humor, preguiça e irreverência, como mostra Oswald nessa passagem do Manifesto Antropófago em que caricaturiza Shakespeare: “Tupi, or not tupi is the question”. Quando, em educação ambiental, nos voltamos para as diversidades étnicas, biológicas, estéticas, religiosas, filosóficas, enfim, culturais de nossas gentes, estamos fazendo uma reverência ao legado desses bárbaros da antropofagia. Estamos colocando mais uma “dentição” na sua Revista de Antropofagia – que por sugestão do grupo não teria Edições e sim Dentições com as quais devoraria os bispos sardinhas, que pelo caminho aparecessem, bem como os críticos conservadores e patrulheiros de plantão na arcádia. Sobre esses sentinelas da estética Oswald, ao defender seu Manifesto Poesia PauBrasil (1924), prega uma radical ruptura estética, pois até então a lembrança das fórmulas clássicas 458 Impediram durante muito tempo a eclosão da verdadeira arte nacional. Sempre a obsessão da Arcádia com seus pastores, sempre os mitos gregos ou então a imitação das paisagens da Europa com seus caminhos fáceis e seus campos bem alinhados, tudo isso numa terra onde a natureza é rebelde, a luz é vertical e a vida está em plena construção. A reação contra os museus da Europa, de quem resulta a decadência da nossa pintura oficial foi operada pela semana da arte moderna, que se realizou em São Paulo (Andrade, 1991, p. 38). São contribuições filosóficas desse tipo que podem nos auxiliar no rompimento com uma certa tradição latino americana em geral, e brasileira em particular, de pouco respeito e apreço pela cultura nativa, bem como pela opinião alheia. Atitudes, essas, de conseqüências extremamente nocivas ao processo democrático no continente latinoamericano. Tal postura fez com que a intelectualidade latino-americana acabasse por abraçar sem, ou com muito pouco, espírito crítico as teses do liberalismo, do positivismo e, num terceiro momento, a doutrina do Marxismo-Leninismo. Esse foi/é mais um paradoxo latino-americano: ao pensar sua modernidade como sinônimo de europeizar ou americanizar, abriu-se mão daquilo mesmo que é um dos fundamentos da própria idéia de modernidade: a crítica. Caiu na armadilha de adotar idéias contemporâneas concomitantemente com ações arcaicas. A isto Paz denomina de “Paradóxica modernidade: as idéas são de hoje, as atitudes de ontem” (1994, p. 77). Acabamos, com essa postura intelectual, preferindo idéias à realidade e adotando os sistemas de idéias antes da crítica e da reflexão sobre os mesmos. Últimas “mordidas” ou...o começo da devoração 459 “Nada existe fora da devoração. O ser é a Devoração pura e eterna...Um passo além de Sartre e de Camus. É preciso ouvir o homem nú. A Antropofagia... Só a antropofagia nos une” (Oswald de Andrade, 1946). A idéia da Antropofagia, como uma construção filosófica, teve sua última defesa por parte de Oswald de Andrade, como Tese para concurso da Cadeira de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de são Paulo, no ano de 1950. A Tese se denominava “A Crise da Filosofia Messiânica”. Sua construção teórica e filosófica se apoiava, justamente, nos seus dois manifestos: Poesia Pau-Brasil (1924) e Manifesto Antropófago (1928). Por razões óbvias não foi aceita e ficamos sem saber como se comportaria esse antropófago nos ambientes acadêmicos que foram, por ele, sempre criticados. Após um período de “esquecimento” ou, como diria Reigota (1999), de ostracismo, as idéias antropofágicas retomam sua ânsia de devoração na esteira do movimento Tropicalista ou da Tropicália. Este movimento e seus organizadores(as) – já mencionados(as) anteriormente neste texto – são considerados(as) legítimos(as) herdeiros(as) da antropofagia. Fazem parte, não só de uma enorme fonte criativa em suas respectivas áreas de produção estética e artística, como foram, também, “porta-vozes” de um grande número de jovens e intelectuais que nessa época (década de 60/70) tentavam criar espaços de resistência à ditadura militar imposta ao país pelas elites políticas reacionárias com o apoio dos coturnos dos militares golpistas. As idéias antropofágicas, como uma referência teóricofilosófica, têm merecido uma restrita atenção ao longo dos anos pelos 460 setores acadêmicos tradicionais. Salvo melhor juízo, são estudadas e analisadas quase que exclusivamente no campo dos estudos literários, das artes cênicas e em alguns poucos casos nos campos da sociologia e da antropologia. A busca de interlocução com o pensamento de Oswald de Andrade e de seus parceiros antropofágicos é quase que totalmente inexistente por parte de educadores e educadoras. Uma das exceções por mim encontradas - talvez para justificar a regra – são os estudos e pesquisas realizadas pelo educador e educador ambiental Marcos Reigota. Não por acaso seus estudos sobre a contribuição das idéias antropofágicas para o movimento ecologista, foram uma das fontes em que me orientei nesse texto. Além das bibliografias desse autor, aqui citadas, foram de muita importância as conversas e diálogos intelectuais que temos travado ao longo dos últimos anos. Para Reigota (1999, p. 57) é importante levar em consideração, quando se coloca em diálogo ecologia e Antropofagia, o fato de que A interpretação ecologista dos manifestos PauBrasil e Antropófago precisa ser feita a partir da contemporização destes, juntamente com o conjunto de textos produzidos pelo autor, paralelamente à produção específica em ecologia global, sobretudo nos seus aspectos, sociais, culturais e políticos. Que estão implícitos ou explícitos nas imagens, frases e slogans” (1999, p. 57). É nesta perspectiva que tomei nesse ensaio algumas idéias e dialoguei com seus autores. Até porque, ao decidir tomar como referencial teórico textos de caráter literário não podemos nos esquecer que as interpretações feitas são apenas algumas das tantas possíveis. Há 461 que levar em conta que, nossos atos e atitudes cotidianas estão fortemente condicionadas por nossas representações. São a expressão de parte de um imaginário construído que está, por sua vez, de forma direta ou indireta, impregnado de nossas crenças, valores e mitos. Somos criaturas simbólicas e como tal nos movemos no mundo. Em tempos de pós-modernidade a realidade é muito mais o resultado de uma “mistura”, “contaminação” uma resultante da diversidade de representações, imagens e interpretações que se formam em nossas vivências quotidianas. Fazem parte de um processo intenso de devoração, deglutição e reelaboração de conceitos, símbolos e imagens veiculadas através das mais diferentes e complexas possibilidades de comunicação disponíveis nos tempos atuais de pós-modernidade. Resultando disso um conjunto de elaborações imaginárias que não estão, segundo Vattimo (1992), necessariamente, sendo coordenadas por alguma entidade organizadora central, muito menos única. Tal construção subjetiva leva a uma dilatação dos espaços de vida, proporcionando a entrada em cena de outros possíveis mundos e modos de vida. Tais construções não são, porém, apenas territórios imaginários, marginais ou complementares ao mundo real. Ao contrário, acabam por constituir, através de seu jogo de relações, o mundo real em que vivemos. Considero que as questões ecológicas contemporâneas são um dos exemplos desse tipo de construção a que se refere Wattimo. Vale lembrar o que nos diz Candido (2000) que, ao se referir as possibilidades da literatura como alternativa de diálogo com a sociedade, afirma que a mesma constitui-se em um produto social. Uma construção que se dá na relação do escritor com seu grupo. Ou como nos adverte Deleuze (2000) que compara a literatura, com o delírio, tendo, ambos, origens na sociedade. Passam, necessariamente, pelos povos, 462 pelas questões étnicas, pelos grupos tribais. Em função desta característica, a literatura, como o delírio, está inscrita no movimento histórico e cultural da humanidade. Assim como o delírio, carrega consigo os dois pólos: doença e saúde. A literatura pode, então, representar um estado doentio, por exemplo, ao “eleger uma determinada raça pretensamente pura, superior e dominante” e também representar a saúde ao invocar esta raça menor, oprimida que “não pára de se agitar sob as dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona” (Deleuze, 2000, p. 19). Para este autor a literatura pode, a partir desta idéia, significar a invenção de um povo, uma possibilidade de vida. Seria uma forma de escrever por este povo que falta, sem querer com isto, ocupar o lugar deste, mas, segundo Deleuze na “intenção deste”. Algo semelhante é o que propõe Oswald Andrade quando no Manifesto Antropófago (1928) defende o direito dos nativos a construírem e viverem sua cultura Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar a comissão. O reianalfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel, mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia...Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema...Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud...Contra a baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo...Peste dos povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos (1970, p. 18-19). Ao refletir sobre a escrita como forma de comunicação entre os seres humanos Derrida (1991), lembra que se escreve com o objetivo de 463 comunicar alguma coisa para alguém. Escrever é buscar o diálogo com aquele ou aquela que está ausente. É nesta perspectiva que, para o autor, o conceito de representação é indissociável dos de comunicação e também de expressão. Sobre esta relação entre sociedade e literatura, recorro novamente a Octávio Paz, quando este afirma existir uma relação que é ao mesmo tempo muito forte e complexa entre obra e história. Paz vê também como fundamental o entendimento da relação existente entre o leitor, o texto literário e sobre o autor, pois, na sua opinião “En toda sociedad funciona un sistema de prohibiciones y autorizaciones” (1994, p. 21). Residiria aí o domínio daquilo que se pode ou não fazer. Ao nos voltarmos para o que é produzido pelo autor veremos que, segundo Paz, existe uma outra esfera de regulação que nos diz aquilo que pode ou não ser dito e/ou escrito. Para Paz (1994, p. 21) “ El sistema de represiones vigente en cada sociedad reposa sobre ese conjunto de inhibiciones que ni siquiera requieren el ascentimiento de nuestra conciencia”. É neste sentido que podemos afirmar que a literatura ao ser entendida como um discurso que acontece na e pela sociedade, não pode ser vista de forma apartada, isolada da cultura desta sociedade na qual está inserida e onde a estamos analisando. Assim sendo, podemos pensar a literatura como uma das tantas formas de manifestação de valores, crenças, regras, mitos. Enfim, uma maneira a mais e muito especial, das pessoas tornarem públicas, na sociedade, suas diferentes representações. Uma das características do pensamento ecologista, na sua vertente libertária da década de 60 do século XX, é uma permanente busca de novos interlocutores políticos, culturais, éticos e estéticos. Não apenas por serem contemporâneos do ponto de vista de época, mas, sim, por terem algo a dizer mesmo tendo origens distantes histórica e 464 culturalmente, bem como por se expressarem através de diferentes linguagens – na literatura, no cinema, no teatro, na pintura, etc. As idéias antropofágicas são, em meu entendimento, um desses exemplos de pertinência que atravessa épocas, gerações e se manifestam em diferentes cenários estéticos da cultura no Brasil. Que dialoga com o outro, mesmo que estrangeiro, mesmo que “exótico”. Não foge do diferente. Ao contrário, vai ao encontro – às vezes de encontro – buscando aquilo que Oswald Andrade (1970, p. 18) chama de a “Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena realidade...Antropófagos”. A filosofia antropofágica traz, também, esse ingrediente fundamental para o pensamento ecologista que é a capacidade de se relacionar antropofagicamente com diferentes culturas. Ou seja: estar aberta ás diferenças, ao paradoxal, à necessidade de diálogo mesmo entre os contrários e/ou momentaneamente opostos. Não podemos nos esquecer que os graves problemas ecológicos que hoje afetam a vida no planeta (degradações sociais, ambientais e psicológicas; poluições; extinções de espécies de outros animas, de vegetais e de culturas; guerras tradicionais e não convencionais; terrorismo de estado e de grupos; exploração do trabalho infantil; discriminação de gênero e de opção de sexualidade, etc.) não podem prescindir de uma visão complexa e de ações de solidariedade locais e planetárias. O pensamento ecologista ao mesmo tempo em que não descuida dos aspectos globais dos problemas ambientais não os vê de forma dissociada do local, do cotidiano. Está atento aos encontros – ou desencontros – cotidianos entre as diferentes etnias, nas esquinas cosmopolitas das grandes cidades, nos metrôs superlotados, nos 465 shopping centers, nos centros de lazer e de consumo pós-modernos. Por outro lado reconhece que são fundamentais os saberes e fazeres ecológicos dos povos que vivem em seus ambientes primeiros. Me refiro aos povos nativos que ainda resistem à face silenciadora dos processos de globalização excludentes, de colonialismos e aniquilamentos culturais. Da mestiçagem, resultante da deglutição e da devoração antropofágica, pode surgir o novo, o diferente, o estranho. Enfim, desse encontro nasce um terceiro. Diferente de ambos. Um terceiro, quem sabe, mais interessante, mais complexo que seus originadores. Mais alegre, mais colorido. Criativo. Como sugerem os antropófagos “Contra a verdade dos povos missionários...Contra as sublimações antagônicas...Contra a fonte do costume. A experiência pessoal renovada...A alegria é a prova dos nove...Antropofagia” (1970, p. 1618). É extremamente ilustrativa, dessa necessidade/possibilidade da Antropofagia, a convivência entre o local e o global que o Tropicalista e antropófago Gilberto Gil faz na sua música Parabolicamará. Esse bárbaro reúne na mesma palavra – parabolicamará – o pós-moderno, da antena parabólica, com o cesto artezanal camará dos povos amazônidas e os envolve no ritmo afro-brasileiro da capoeira. Um banquete antropofágico digno dos criadores desse movimento filosófico. Devoração da melhor qualidade. Cardápio mais diverso impossível. Talvez até por isso que ainda não o tenhamos provado em nossas academias e círculos intelectuais tradicionais. As idéias antropofágicas e seus desdobramentos, nos mais diferentes campos da produção cultural brasileira, são uma demonstração da necessidade de ampliação de nossos horizontes 466 filosóficos e educacionais. São um chamamento, no sentido de mostrar que o processo educativo, mais do que nunca, precisa buscar novos interlocutores. Não é mais possível, nem aceitável, que continuemos repetindo normas, regras, fórmulas, ou, simplesmente, importando modelos sem fazer a sua devida, e necessária, tradução. A antropofagia cultural tem, na sua origem, esse compromisso: o de dialogar com o(a) outro(a) sem, no entanto, abrir mão do seu eu. Portanto, não há porque pensar de forma pessimista. Ao contrário. Podemos pensar de maneira otimista, pois, a força da antropofagia está, justamente, nessa capacidade dos(as) antropófagos(as) de perambularem entre os demais comensais. Está na fragilidade da “metamorfose ambulante” (Seixas, 2001), resultante das devorações culturais. Não desanimemos, antropófagos e antropófagas, em grupo ou solitários. Assim como foram devorados bispos, bandeirantes, nativos valentes e outros viventes, há muito o que ser devorado, deglutido ainda. Organizemos novos banquetes! Lá onde estão – no céu ou no inferno – os antropófagos e antropófagas mostrarão suas dentições afiadas...e seu sorriso escarlate! Saudações ecologistas e antropofágicas! Bibliografia ANDRADE. O. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Obras Completas. V.6. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1970. _____. Estética e Política. São Paulo, Globo, 1992. _____. Os dentes do dragão- entrevistas. São Paulo. Globo, 1990. 467 CANDIDO. A. Literatura e Sociedade. Estudos de teoria e história literária. São Paulo. T.A. QUEIRÓS, 2000. CARSON, R. A Primavera Silenciosa. Barcelona. Grijalbo, 1980. COHN-BENDIT, D. O grande bazar. São Paulo. Brasiliense, 1988. DELEUZE, G. Crítica e Clínica. Lisboa. Edições Século XXI, 2000. DERRIDA, J. Margens da Filosofia. Campinas. Papirus, 1991. GIL, G. Todas as letras. São Paulo. Companhia das Letras, 1996. GONÇALVES, C.W.P. Os (Des)caminhos do Meio Ambiente. São Paulo. Contexto, 1991. GUATTARI, F. As Três Ecologias. São Paulo. Papirus, 1991. _____. 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Portanto, o desafio em termos de formação política é mudar o trabalho escolar-formativo dos professores, reorganizando currículos e práticas escolares dos cursos de licenciatura, mestrado e doutorado em educação (escopos da escolarização inicial e continuada, respectivamente, destes profissionais da educação), sintonizando-os com as teorias-guia dos movimentos sociais. Diante do quadro atual, explicitaremos como temos: 1) reorganizado o currículo e o trabalho Professor do Departamento de Metodologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado - CE/UFSM. Endereço eletrônico: [email protected] 470 escolar nestas instâncias escolares, ao longo da última década no país; 2)contribuído com os movimentos sociais, não apenas teoricamente, mas na prática política cotidiana, ocupando espaços políticos nos atuais contextos local, regional e nacional. Onde, por um lado, ocorrem desregulamentação, desresponsabilização escolarização pública e, por outro, e flexibilização da crescem e se consolidam os movimentos sociais, mudando o trabalho de formar os professores. É neste escopo de formação de professores e movimentos sociais, que explicitaremos como a educação como prática da liberdade, de orientação existencialista, tem potencializado a elaboração e resolução de problemas a partir da realidade educacional vivida. “A consciência crítica é a representação das coisas e dos fatos como se dão na existência empírica. Nas suas correlações causais e circunstanciais. A consciência ingênua (pelo contrário) se crê superior aos fatos, dominando-os de fora e, por isso, se julga livre para entendê-los conforme melhor lhe agradar” (Vieira Pinto em Freire, 2000, p. 113, grifos em negritos nossos). Problematização inicial da realidade educacional vivida Como discente de curso de formação-escolar inicial de professores – licenciatura em Física -, de universidade pública federal, vivi intensamente na década de oitenta o movimento estudantil universitária no âmbito do centro acadêmico livre de Física e do respectivo diretório central dos estudantes. Contudo, mesmo nos congressos da união nacional dos estudantes, a problematização em 471 torno da formação escolar que estávamos vivendo não emergia com força suficientes para orientar os momentos reflexivos. É claro que naquela ocasião, a matriz orientadora dos movimentos sociais vividos mais de perto do espaço universitário, no caso o docente e discente, era bastante diferenciada da de hoje. Contudo, o caráter existencialista da orientação filosófica dos mesmos, embora não fosse explicitado e sistematizado pelos participantes ativos, emprestava conceitos-chave para elaboração da prática social, não apenas no plano discursivo. Nos cursos de formação-escolar continuada de professores – mestrado e doutorado em educação -, como participante da associação nacional dos alunos de pós-graduação, a problematização das realidades vividas no escopo universitário, embora dicotomizado pela escolaridade, de um lado e, luta política de outro, refinava-se teoricamente e nos afastava dos quefazeres cotidianos. Tanto na universidade pública federal, quando na estadual mais próxima da latência dos movimentos operários, o vivido no âmbito universitário sinalizava para uma formação orgânica a distância. Nos meados da década de noventa, como docente universitário no movimento grevista dos docentes das universidades públicas brasileiras, que esta reflexão emergiu no escopo de um comando de greve local. O foco problematizador incidiu sobre a qualidade do trabalho educativo cotidiano nos cursos de formação de professores. A reflexão seguiu pela mão dupla: por um lado, os professores da escolaridade básica, mais organizados e ativos na luta, pelo menos naquela ocasião no estado do Rio Grande do Sul. Contudo, mais distantes das instâncias produtoras dos conhecimentos científicos e 472 tecnológicos, sustentadores da produção escolar. Conhecimentos científicos e tecnológicos que, são problematizados no dia-a-dia escolar e tornam-se objetos cognoscentes dos quefazeres educativos. Por outro lado, os professores universitários do ensino superior, produtores majoritários dos conhecimentos científicos e tecnológicos, que amparados na constituição federal ensinam, pesquisam e extensionam, concomitantemente no cotidiano escolar. Mas, na sua grande maioria, mesmo dentro do espectro progressista de determinadas áreas e centros de conhecimento, estão passivos sócio- educacionalmente. Mesmo nos momentos de rupturas de um movimento social como o docente universitário, bastante processual se comparado com a maioria, nas ocasiões de enfrentamento com os governantes que comandam as ações do Estado, os professores encontravam-se distantes dos acontecimentos. É claro que, os questionamentos centraram-se na formação escolar que a maioria teve. E a maioria nas universidades não é professor! Está professor por força de concurso público. Mesmo assim, como esperar de nós, profissionais atuantes da educação escolar superior, escolarizados num contexto de opressão cultural explícita, politização embargada até o início da década de oitenta, comprometimento ativo, ações sintonizadas com a luta em defesa da escola pública, laica, de qualidade, como dever do Estado e direito dos cidadãos, constitucionalmente assegurado? Se levarmos em conta, apenas o histórico escolar, definitivamente não podemos! Mas, por outro lado, como agir politicamente diferente, no escopo da escolarização dos professores, neste mesmo espaço-tempo sócio-educacional com esta “massa aparentemente desinteressada e passiva” pela “coisa pública”, em especial a educação? 473 Afinal, participação ativa na sociedade para, conquistar e assegurar, o bem estar material e os direitos sócio-políticos dos indivíduos e grupos, são tarefas indivisíveis que exigem apoderamento. Esta luta para atingirmos as mudanças necessárias é uma conseqüência da vocação, formação ou direito, apenas, de alguns eleitos? Como um professor ativo pode, de maneira intencional, portanto informada e sistematizada, compreender que, tem poder para realizar tarefas “fundamentais” na direção das melhorias das condições de vida da sociedade? Podem estas ações ocorrerem fora de um processo de investigação da realidades? Esta condução é ou não uma atividade de investigação, ação, integradas, conectadas, concomitantes, principalmente no escopo privilegiado da formação: a escola? Investigação, conhecimento e ação sócio-educacional Será que o problema da passividade humana, nesta sociedade pautada pela barbárie, não está, enraizada fundamentalmente, na interação entre o conhecimento indispensável para a construção de um projeto de vida melhor? Na nossa visão profissional, vista a partir da educação escolar, existencialmente onde como temos produzido e nos produzido professor, produzir e comunicar este conhecimento científico e tecnológico é o elemento essencial. Isto pode potencializar, não apenas nossa formação humana, mas também, nos desafiar a viver como gostaríamos que fosse nosso mundo. Trata-se de assumirmos a tarefa de intérpretes-autores nesta produção! É fundamental, para nós seres humanos no mundo com pretensões de sermos, sempre e cada vez, mais humanos, conhecer como nossas vidas podem ser diferentes do que são - plenas de injustiças e 474 sofrimentos – e, projetar a possibilidade de mudança. Afinal, para nós, a condição de seres humanos em estado de incompletude, exige que participemos ativamente da determinação dos rumos da sociedade na qual vivemos. Pois isto de fato, afeta nossas próprias vidas (Freire, 1983). O leitor pode estar pensando que moramos em outro lugar. Quem sabe algum país europeu, do chamado primeiro mundo. Vale a pena lembrar que, ao nos referirmos aos países desenvolvidos não podemos esquecer que, os mesmos são habitados, dirigidos, projetados por seres humanos. Ou será que a carga de bondade, justiça, fraternidade destes “habitantes humanizados” é divinamente alta e...os nossos eivados de maldade e injustiça? Este fato é importante destacar! Afinal, quando nos referimos aos donos do poder, às elites nacionais, onde nos colocamos? Se nos colocamos do lado de fora, significa que estamos vivendo no analfabetismo, na miséria, fora da construção da sociedade brasileira! Contextualizar onde estamos vivendo nossa existencialidade, é fundamental para organizar e orientar nossa ação no mundo. Isso porque, a ciência e tecnologia são os principais produtos existenciais das relações entre os seres humanos e o meio. Dito de outra forma, mesmo apenas na condição de usuário ou consumidor de idéias e produtos, compartilhamos com nossa prática sócio-educacional com a maioria dos significados ideológicos, por exemplo, da pesquisa científico- tecnológica e da formação do pesquisador (Vieira Pinto, 1979). Assumindo a localização sócio-educacional privilegiada e as tarefas que se impõem 475 Ora, num país de vinte milhões de analfabetos e cem milhões de brasileiros fora da escolaridade básica, o que somos senão a elite escolar, intelectual e de certa forma, associados aos donos do poder? Não esqueçamos que, conhecimento e poder andam de mãos dadas! Afinal, ser profissional da educação, pago pelo Estado ou por entidade concessionária - do Estado, convém ressaltar - da educação, não implica em atuar politicamente para aproximar os cidadãos da cultura elaborada, científica, tecnológico e escolar de seu tempo? Isto é fazer parte do contingente de pessoas do país, denominado de “empregado”, com salário e que realiza “trabalho qualificado” pela escolaridade? Ou será que, não tem diferença nenhuma entre nosso trabalho e o que recebemos por ele e o de um servente de pedreiro, ou mesmo do trabalho de um professor das séries iniciais do ensino fundamental atuante numa escola pública municipal e o que é pago para ele? Para nós está claro que, para agirmos na direção de mudanças estruturais da sociedade, no sentido de corrigir injustiças sociais, precisamos urgentemente sintonizar nossas ações, de profissionais da educação, com a dos movimentos sociais. É urgente reorganizar o processo escolar de nossa formação, priorizando o componente da luta política por justiça social e distribuição de renda, para permitir às pessoas serem mais humanas de fato. Ser mais como essência do existencialismo concreto (Kosik, 1976). Isto implica em priorizar, na sala de aula, pelo menos, a apreensão de conhecimentos científicos e tecnológicos com potencial de compreender e mudar a realidade vivida. 476 Outros quinhentos...como exemplar analítico-existencial Em tempos de realização de rituais oficiais, do Estado e da mídia, em comemoração ao descobrimento do Brasil (sic!), por exemplo, qual nosso argumento pedagógico para estudarmos a carta de Caminha, seus vocábulos (só para citar um: “achamento”), sua preocupação excessiva em descrever os “comportamentos mansos” e as “poucas vestes” dos nativos e das nativas. Ou será que nossas crianças não podem saber que os portugueses, mesmo sem grandes recursos e preocupações comunicacionais, queriam saber mesmo, apenas, é se tinha por aqui ouro, prata e outros minérios possíveis de pilhar e valorizar? Será que, nem ao menos, têm o direito de saber porque passamos a ser chamados Brasilland na europa? Por aqui...no Rio Grande do Sul, o governo do Estado tem sido processado pelos partidos político da oposição (sic! de novo?) por agir nesta perspectiva, ou seja, de revelar e contar outra história. Ah! Quem sabe queiram processar também a Varig, pois a edição de setembro de 1999 de sua revista de bordo - a revista Ícaro - mostrou, na íntegra, a referida carta que noticia o descobrimento do Brasil, com notas de um professor universitário da área da história (http://www.icarobrasil.com.br). Ah! Já sei prezado leitor: este “conhecimento proibido” é, só para os poucos brasileiros - o que inclui o autor, professor universitário da área da educação em ciências naturais e suas tecnologias, só para não esquecer é claro - que viajam de avião (quando custeados pela universidade) ou acessam a internet para comunicação, cooperação, pesquisa bibliográfica e ensino a distância. A maioria, o que inclui a maior parte dos professores da educação básica e seus respectivos 477 alunos, que não viajam de avião, portanto, não lêem a referida revista e, também, pouco ou quase nunca acessam e, muito menos sabem da existência e função sócio-educativa da Internet, coube tão somente a campanha da rede Globo dos quinhentos anos, com direito à contagem regressiva e tudo. Acreditemos que é possível transformar isto tudo nos “próximos quinhentos”, principalmente com nossas ações investigativas na sala de aula (Freire, 1992). A investigação-ação escolar como reorganizadora da prática para liberdade Precisamos ter em mente, que a organização majoritária de nossa prática escolar favorece, injustiças e desigualdades, especialmente no escopo sócio-educacional. Ter consciência disto, não é suficiente! É preciso transformarmos os dados educacionais escandalosos, que nos revoltam, principalmente pelo que fazemos profissionalmente, para viver dia após dia. Precisamos criar idéias sobre, porque isto está assim, procurando compreender como as coisas são, porque são e procurar resolver nossos problemas existenciais. Por exemplo: do que adianta sabermos, que oitenta por cento dos professores aposentados, não desejariam a mesma profissão para os seus filhos, se não buscamos, pelo menos, uma boa explicação para isto e caminhos para mudar esta situação? Será que isto acontece, apenas, devido ao baixo valor da aposentadoria, que a grande maioria recebe como recompensa pelos anos dedicados a educação escolar? Por outro lado, o leitor pode estar se questionando: do que adianta conhecer estes dados educacionais, angustiantes e desencantadores e, das “teorias educativas explicativas”, construídas, na 478 maior parte das vezes, por quem não vive concretamente, no dia-a-dia, a realidade da situação em questão? Concordamos que, muito pouco adianta apenas compreender, se nossa opção é pela mudança das situações-problema abordadas. Embora, precisamos reconhecer que no escopo das ciência e tecnologia, estas ‘teorias interpretativas” auxiliem bastante, a quem se proponha a agir informadamente, com intencionalidade e sistemática, para mudar a realidade, na direção da justiça e eqüidade sócio-educacional (Carr e Kemmis, 1986). O que defendemos, no contexto da prática educativa no espaço escolar da formação de professores, é um processo formativo pautado pelo movimento entre as investigação e ação, simultâneo e sistematicamente. Por exemplo: ao procurar saber quantos pais ainda agridem fisicamente seus filhos, posso ficar isento de agir para mudar esta situação? Ou, mais especificamente ainda, podemos apenas observar e diagnosticar que, ano após ano de nossa carreira profissional, apenas vinte por cento dos alunos “sacaram” a organização conceitual das aulas? Podemos nos conformar, em apenas criar, uma boa teoria educacional para explicar este fato e assumir, fatalisticamente, que alguns se desenvolvem, humanamente falando, com nossa prática escolar e a maioria não? Pois bem! Assumindo a possibilidade de mudar nossos destinos e injustiças sentidas e, não apenas observarmos passivamente a vida passar, optamos por atuar na perspectiva de elaborar colaborativamente nossos problemas e soluções escolares, na concretude de nossa existencialidade, da sala de aula mesmo. Para implementar soluções viáveis-possíveis - às vezes inéditas, é preciso dizer -, necessariamente colaborativas porque educacionais, precisamos vivê-las como possibilidade de solução na prática. É claro, que isto exige estudo 479 rigoroso dos nossos quefazeres educacionais, reatando, cada vez mais, a relação da escola com a sociedade que produzimos. Embora às vezes, digamos meio inconscientemente, que não somos nós os culpados...E que, pouco podemos fazer de concreto para mudar de fato...Porque não temos poder, dinheiro, formação...Afinal, que não temos nada a ver com isto, com estas nuances da realidade...Que nossa tarefa é ensinar um determinado conteúdo escolar. Duas frentes de atuação articulada: a parceria com o MST e o governo popular Finalmente, vamos contar em poucas palavras, como temos nos capacitado profissionalmente em educação, conectando formação e movimentos sociais presentes na realidade. Apesar da cristalização dos currículos escolares na ocasião, atuamos nos escopos do Programa Nacional de Reforma Agrária (PRONERA) e do Movimento de Alfabetizacão de Jovens e Adultos (MOVA) do governo estadual. No primeiro deles, atuamos nos assentamentos de reforma agrária da macro região sul e no segundo, no espaço geo-educacional de Santa Maria. Nos dois, a meta era a capacitação dos profissionais da educação, professores ou não, que atuavam em programas educacionais recorrentes, com trabalhadores excluídos do processo de escolarização. A frente de trabalho no âmbito do PRONERA ocorreu em parceria com o Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra (MST), através de um projeto denominado de CUIA (Construindo a Unificação entre Investigação e Ação). Problematizava, na prática, a atuação educacional integrando investigação e ação. Concretamente falando, capacitamos monitores-alfabetizadores para atuar nesta perspectiva com 480 seus companheiros, também trabalhadores rurais assentados na reforma agrária brasileira. Praticamos a quintaessência de que, só podemos fazer isto, se investigarmos como eles pensam a respeito desta realidade, por exemplo: por que será que não se alfabetizaram durante a estada na escola? Isto foi opção consciente deles? Quais suas principais dificuldades no trato com lápis e papel? Têm sentido, pra ele, as coisas escritas? Ou é melhor acreditar na palavra? Será que compreendem a função da cultura escrita, nesta sociedade que possui como lei, o direito à terra, à propriedade privada, à educação pública...? Neste sentido, assumimos concretamente, que não importa qual seja o assunto a ser tratado, precisamos dialogar com os envolvidos, se queremos, de fato, viver um processo educacional comprometido com transformações. Transformações existenciais e concretas, como a vivida no momento em que ocupa um latifúndio, resiste nas proximidades do mesmo na barraca de plástico preto com sua família, conquista seu lote de terra e passa a produzir sua segurança alimentar, desenvolvendo de forma sustentável sua existência humana. Parece tarefa difícil, nos formarmos professores, negligenciando a problematização deste contexto de inclusão-exclusão sócio-educacional. A própria reforma agrária, implementada à força pelo MST em tempos de governos neoliberais, é um exemplar existencial de ser mais. O desafio vivido foi mostrar que a educação escolar pode contribuir com este movimento social. Ou no dizer do poeta Zé Pinto, trata-se de “juntar as forças, segurar de mão em mão, numa corrente em prol da educação... se o aprendizado for além do Be a Ba, todo menino vai poder ser cidadão.... reforma agrária também na educação (CD Arte em Movimento, 1999). 481 Na frente de trabalho MOVA-RS, atuamos em parceria com o atual governo do Estado do Rio Grande do Sul (em especial com o grupo de profissionais da educação responsáveis pela 8ª Delegacia de Ensino da Secretaria Estadual de Educação) e entidades não governamentais (como, associações de bairros, igrejas, sindicatos, etc.) para alfabetizar os trabalhadores e desempregados gaúchos da região geo-educacional de Santa Maria. Fomos além do diagnóstico do número de analfabetos (que é importante saber!), construir teorias para explicar esta exclusão num Estado da Federação que se orgulha do alto nível de escolaridade de seus habitantes (e isto é fundamental fazermos, antes que um pesquisador do sudeste faça por nós!), agindo concretamente neste empreendimento educacional. A tarefa, à primeira vista impossível, foi resgatar os deserdados da escola para esta que os deserdou e os condenou à miséria material e cognitiva. Isto exigiu de nós professores, assumirmos que é possível apreender com estes sujeitos “deserdados da vida” (escolar, material, familiar, etc.), o que eles precisam, para revitalizar sua cidadania roubada no seu tempo escolar. O desafio foi fazer educação na prática, mostrando sua face desafiadora... Própria da educação progressista, que tanto lemos nos livros e gostamos de ensinar-investigar-aprender na formação de professores. Tanto numa, como noutra frente, a quintessência do empreendimento educativo foi viver na sua plenitude a tarefa humana que, na nossa opinião, nos faz mais humanos: a educação como prática da liberdade. Especificamente, aprendemos na prática, embora fora do escopo da escolaridade (estamos lutando para introduzir esta dimensão nos currículos de formação de professores), a capacitar profissionais da 482 educação em sintonia com os movimentos sociais, nos contextos de políticas neoliberais, por um lado e, populares e democráticas, por outro (Sader, 1988). Assumimos, na prática, que educação não se faz apenas produzindo textos, livros e artigos. Por isto nos propomos a correr riscos, desafios, encarar problemas apontados pela “população desescolarizada” e viver, com esta, as soluções concretas, para que efetivamente possamos “encher a boca” pra dizer que educação é prioridade para o ser humano ser mais humano, existencialmente falando. Bibliografia CARR, W. E KEMMIS, S. Becoming Critical: Action Research, Educational And Knowledge. Falmer Press, London, UK, 1986. DE BASTOS, F. da P. E outros. A Luta da Escola Pública Frente a LDB. Santa Maria, SEDUFSM, 1997. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983. FREIRE, P. Pedagogia Da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. _____ . Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000. KOSIK, K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. SADER, E. Quando Novos Personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande Sào Paulo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. VIEIRA PINTO, A. Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro, ISEB/MEC, 1961. VIEIRA PINTO, A. Ciência e Existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. 483 ÉTICA E EDUCAÇÃO 484 A ÉTICA ARISTOTÉLICA DAS VIRTUDES E A EDUCAÇÃO: COMPLEMENTARIDADE ENTRE O UNIVERSALISMO E O PARTICULARISMO Denis Coitinho Silveira∗ Introdução O objetivo do presente texto é analisar o significado contemporâneo da ética aristotélica das virtudes em sua relação com a educação, estudando o modelo de complementaridade entre o particularismo e o universalismo. Um ponto central de divergência em relação à validade ou insuficiência da ética das virtudes de Aristóteles se encontra na própria especificidade de seu método de filosofia prática. Aristóteles criou um modelo ético baseado na racionalidade da própria ação humana, não fazendo uso de uma dedução particular de leis universais, no momento em que se distanciou do modelo que identificava causas necessárias (tanto pelos fenômenos naturais como pelas formas ideais) para o agir moral, apontando o homem como princípio da ação ética, o que destacou o sentido da responsabilidade da ação humana69. Uma forma de interpretação usual tende a ressaltar suas Doutor em Filosofia – PUCRS. Professor e Pesquisador da URI – Campus de Erechim. Endereço eletrônico: [email protected] 69 Ver a respeito do método adotado por Aristóteles em sua ética. (Guariglia, 1997, p. 33102). 485 características particularistas em ética, dizendo que Aristóteles não se utiliza de princípios universais como referências centrais para a ação humana em função da inexatidão das afirmações universais sobre ética (inexatidão da ética) que, por não possuir 6D\$,4" (exatidão), a ética diz algo de forma aproximada (ñH ¦B JÎ B@8b) (EN I, 3, 1094 b 12-14; 1094 b 19-22. Aristóteles, 1894, Reimp. 1962)70 e, sendo assim, Aristóteles não identificaria o papel da teoria ética com o estabelecimento de princípios universais (gerais) para o agente moral decidir sua ação com base em critérios mais sólidos do que a pura subjetividade humana. Essa interpretação, conduz à conclusão de que a teoria das virtudes está fundamentada na percepção dos agentes morais para o estabelecimento da decisão moralmente acertada sobre casos particulares, em que não se verifica a utilização de princípios gerais para orientar a ação, só se utilizando de juízos particulares. Parece que é este o ponto central que deve ser investigado, a saber: se essas generalizações em ética que apontam para o provável são somente resumos para a ação moral (referências), em que os juízos perceptivos nos casos particulares possuem anterioridade em relação às regras morais, ou se podem ser interpretadas como guias para a ação, em que se teriam princípios para a ação moral. Dito de outra forma, o que está em jogo é evidenciar se se encontra em Aristóteles a defesa da tese particularista que afirma a anterioridade normativa da percepção subjetiva do agente moral como sobreposta à validação de princípios gerais (universais), universalistas neste ou se modelo é de possível ética. verificar Pretendo características demonstrar a 70 Para as citações em português, uso a tradução de Mario Gama Kury (4. ed.), editada pela Editora UnB, Brasília, 2001. A obra será abreviada por EN. 486 complementaridade entre o particular e o universal na teoria da ética das virtudes, evidenciando-se que Aristóteles não subscreve a tese particularista da prioridade da percepção moral em casos particulares, pois, mesmo que o agente moral não possua uma lista completa de princípios éticos que possibilite a adequação do caso particular com o princípio acertado, os indivíduos são orientados por princípios gerais para a ação, o que estabelece, por conseguinte, que o indivíduo possui uma capacidade com conteúdo que é fornecida pelas generalizações; porém essas generalizações não se apresentam como suficientes para a decisão contingente acertada. Nessa perspectiva, é possível evidenciar aspectos universalistas nesse modelo de pensamento através de um estudo que inicia com a investigação sobre o significado da inexatidão em ética e, depois, analisa a abrangência dos princípios generalizantes usuais e, também, a importância dos princípios universais para, posteriormente, investigar a respeito do significado da percepção moral particular. Vale ressaltar que a significação da ética aristotélica das virtudes para a educação estará circunscrita neste modelo de complementaridade entre o particularismo e o universalismo. Significado da Inexatidão em Ética Em seu projeto de elaboração de uma ética (¦B4FJZ:0 B@84J46Z - ciência política) (EN I, 2, 1094 a 27 – 1094 b 2), que tem seu objeto no próprio bem humano (sua finalidade última) e seu objetivo na realização desse bem (praticar e não apenas conhecer), Aristóteles abandonou o modelo matemático como única forma de racionalidade e conhecimento na filosofia prática, abandonando a categoria de 487 6D\$,4" (exatidão) (EN I, 3, 1094 b 13) como único critério para o conhecimento científico, introduzindo uma outra forma de cientificidade que deve contentar-se com um delineamento do que é, em linhas gerais, através de um conhecimento esquemático, isto é, de um conhecimento de JbBå (EN I, 2, 1094 a 24-26), compreendendo a ética não como um conhecimento com exatidão matemática, que possibilita um conhecimento detalhado e exaustivo do objeto, mas que se apresenta como suficiente para o propósito estabelecido da prática (BD>4H) (Berti, 1998, p. 119-120). Para interpretar essa especificidade de exatidão, proposta por Aristóteles (EN I, 3, 1094 b 11-12), é importante ter como referência a distinção entre as ciências teoréticas, práticas e produtivas, no momento em que Aristóteles adverte que não é possível alcançar a mesma dimensão 6D4$ZH (exata) em todas as partes da filosofia, bem como em todos os produtos de determinados ofícios (EN I, 3, 1094 b 12-14). A filosofia, para Aristóteles, é identificada como plenitude e totalidade de conhecimentos, sendo o ser dito de muitas formas (Met. IV ('), 2, 1003 a 31)71 e, dessa maneira, ela é compreendida enquanto conhecimento de todos os seres, das formas das ações humanas e, também, dos instrumentos produzidos pelos homens. Toda ciência (¦B4FJZ:0) investiga os princípios, as causas e a natureza dos seres que são seu objeto específico de estudo. É importante ressaltar que as ciências possuem em comum o procedimento (:X2@*@H) de busca dos princípios e das causas, porém não podem ser confundidos, pois diferem segundo a natureza do ser que investigam, sendo que a natureza do que é investigado faz com que os princípios e as causas em cada ciência sejam diferentes dos das outras. É a partir dessas diferenças 71 A obra será abreviada por Met. 488 especificadas que é possível a classificação das ciências em três grupos, a saber: ciências teoréticas (¦B4FJZ:0 2,TD0J46Z), ciências práticas (¦B4FJZ:0 BD"6J46Z) e ciências produtivas (¦B4FJZ:0 B@40J46Z) (Guariglia, 1997, p. 68). As ciências práticas (ética e política) têm como princípio ou causa o homem enquanto agente da ação, sendo sua finalidade (JX8@H) o próprio homem. Nas ciências práticas, o agente, a ação e a finalidade específica da ação são inseparáveis, sendo que a ética e a política se referem ao que é propriamente humano, isto é, a BD>4H (prâxis), que é uma atividade que não produz algo dissociado do agente e tem como causa central a vontade humana enquanto escolha deliberativa, refletida e, também, racional (Reale, 1986, p. 99-100. As ciências práticas não são contemplativas como as teoréticas e seu objeto (que é a prâxis) não é universal ou necessário (Ionescu, 1973, p. 147-148). O que é determinante nas ciências práticas é a finalidade (télos), e isso confere uma certa universalidade e necessidade a elas, pois as ações que são racionais e refletidas são aquelas realizadas para atingir um fim, e isso constitui um bem (("2`<). Esse bem (finalidade) não é universal e necessário como um princípio teorético, porém é uma referência estável e geral, sendo válido para todos e oferecendo um critério (:XJD@<) para o agente racional fazer sua escolha entre as várias ações que são possíveis (Aubenque, 1976, p. 49). O que está em jogo é identificar que o específico da filosofia prática se constitui na ação humana, e essa não pode estar pressuposta em uma ciência imutável, universal e necessária, pois Aristóteles se posiciona afirmativamente a respeito da existência de um horizonte da vida humana que permanece contingente e particular (política, ética e técnica), mas nem por isso pode ser classificado como 489 sem-sentido ou irracional72. Para Aristóteles, as ações humanas são realizadas por uma vontade racional, entretanto permanecem contingentes e dependentes de escolhas concretas, não sendo possível sua identificação com a idéia universal de Bem (como no caso platônico) (Düring, 1995, p. 528). Isso pode ser explicado porque o conceito de 6D\$,4" sempre esteve identificado com o conceito de 8Z2,4" (verdade) que possui um caráter normativo, o que implicaria a noção de um conhecimento exato sobre todas as coisas a partir de uma forma ideal para compreender o real. Aristóteles utiliza uma noção não absoluta de 6D\$,4", sem, contudo cair no relativismo, no momento em que estabelece uma adequação do conceito de exatidão à matéria específica do conhecimento prático (Guariglia, 1997, p. 65). Essa inexatidão na ética não significa uma renúncia absoluta de um universalismo em ética, reduzindo cada situação particular ao mecanismo de cálculo em relação às circunstâncias, pois a ação moral, que é particular, é um caso particular da ação humana em geral, isto é, da prâxis (Aubenque, 1976, p. 95-105), da mesma maneira que o relativismo não encontra espaço neste modelo de pensamento 72 Aristóteles também distingue entre ciência prática e ciência produtiva (BD>4H B@\0F4H). A ciência produtiva, do agir instrumental, do fazer, do produzir, pertence à esfera da JXP<0 (técnica) e esta, voltada para a perfeição da própria obra, é um meio em função de um fim que é exterior a si mesma. As ciências produtivas investigam a respeito da ação fabricadora humana. Na poíêsis o agente, a ação e o produto da ação constituem-se como em separados, em que a finalidade da ação está em um objeto, estando fora da própria ação a finalidade. As ciências produtivas também operam com o contingente e o particular e possuem um critério que oferece uma certa universalidade e necessidade que é a finalidade (o télos). A finalidade é o modelo daquilo que vai ser produzido, sendo que as ações produtivas são compreendidas enquanto técnicas, pois são ações repetitivas que visam à produção de um objeto, não tendo sua finalidade na própria ação. As ciências produtivas têm referência a um aspecto particular da capacidade técnica humana, sendo seus exemplos: a arquitetura, a escultura, a medicina, a guerra, a discussão, a poesia, a engenharia, a tecelagem etc. Os casos investigados por Aristóteles são a retórica, como arte da discussão e da persuasão por meio do discurso e a poética, onde se analisa o drama (tragédia), a comédia, a poesia épica e lírica etc. Ver a respeito da distinção entre prâxis e poíêsis: Natali, 1996, p. 109-112 e Gauthier, 1973, p. 38-44. 490 (Guariglia, 1997, p. 61). Abrangências dos Princípios Generalizantes Usuais e Universais Aristóteles estabelece uma relação entre a inexatidão da ética com a perspectiva usual das generalizações éticas, pois a filosofia prática, que tem como objeto o belo, o justo e o bem, não pode determinar com exatidão absoluta o que são o belo, o justo e o bom em todas as circunstâncias particulares, porém, ela indica o seu significado em termos gerais (Berti, 1998, p. 1)73. Aristóteles evidencia que o objeto da filosofia prática está identificado com o “belo” (6"8`H), o “justo” (*\6"4@H) e o “bem” (("2`<) (EN I, 3, 1094 b 14-18) e que estes estão envolvidos pela *4"N@DV< (diversidade de opinião, diferença) e pela B8V<0< (incerteza, variação sobre o tema) (EN I, 3, 1094 b 15-16), o que pode conduzir a um convencionalismo (EN I, 3, 1094 b 16). Se se interpretar que a diversidade e a incerteza que envolvem as questões a respeito do belo, justo e bom conduzem a uma convenção, ter-se-ia um Aristóteles absolutamente relativista, em que as determinações de justiça, por exemplo, seriam estabelecidas pela decisão contingente e subjetiva do agente moral. Se não é esse o caso, só se pode identificar que essa diversidade e incerteza tem relação não com a pura subjetividade do agente, mas com aspectos objetivos em relação ao objeto da ciência prática (com o justo). Concordando com o argumento de Irwin (1996), é possível identificar essa intenção de objetividade em 73 Uma outra maneira de pensar a diferença de exatidão é fazer referência às qualificações que uma ciência oferece em sua explicação e, sendo assim, ela será mais exata, quanto mais qualificações fizer ao objeto em questão. Por isso, as generalizações em ética não podem ser exatas como na matemática, e isso significa que o tipo de objeto que se faz generalizações não permite a formulação de conclusões absolutas sem apresentar as qualificações pertinentes e, também, que as generalizações sem qualificações não abarcam a multiplicidade da vida humana. Ver a esse respeito: Irwin, 1996, p. 27. 491 Aristóteles no momento em que ele insere efeitos objetivos nocivos diferenciados em relação às concepções de bem (Irwin, 1996, p. 30). Aristóteles aponta que a concepção de bem também está circunscrita à mesma incerteza em função de coisas boas poderem ter um efeito nocivo, como é o caso da riqueza (B8@ØJ@H) e da coragem (<*D,\"), que podem destruir a vida de pessoas (EN I, 3, 1094 b 16-19). Qual é o entendimento de Aristóteles? Que em função da riqueza e da coragem poderem se constituir em algo danoso para o indivíduo elas seriam apenas uma convenção, podendo ser boas em algumas circunstâncias e más em outras? Não parece ser esse o argumento defendido, pois a riqueza e a coragem que destroem a vida não são consideradas como algo bom de forma absoluta, isto é, se uma concepção de bem tem como referência uma compreensão de riqueza e coragem que são nocivas para a vida do indivíduo, ela não pode ser subscrita e defendida. Isso significa dizer que Aristóteles não está apoiando uma tese particularista em relação às coisas belas, justas e boas, na qual a decisão sobre a ação moral (do que é belo, justo e bom) está apenas no agente particular (tese particularista) em função de a ética ser uma ciência que não é exata da mesma maneira que uma ciência teorética, revelando, assim, a necessidade objetiva de o agente particular identificar que o objeto da ciência prática não é uma pura convenção e que deve estar baseado em critérios gerais e universais que orientam a decisão particular do indivíduo (Irwin, 1996, p. 32). Como o caráter de inexatidão da ética está relacionado com as generalizações usuais em ética, o segundo passo para analisar a respeito do pretenso particularismo na ética das virtudes de Aristóteles é identificar o que significa a utilização de premissas incertas que são generalizações usuais que admitem exceções (ñH ¦B JÎ B@8b) para a fundamentação do agir moral na validade usual das 492 regras éticas (que valem na maior parte dos casos). Como Aristóteles tinha identificado que o objeto da ética (belo, justo e bom) está circunscrito à diversidade de opinião (*4"N@DV<) e a incerteza (B8V<0<), diz que a ética deve se contentar com o ponto de partida de premissas incertas, em que será possível um delineamento da verdade, sendo que essas premissas são generalizações que possibilitam conclusões que possuem validade na maior parte dos casos (EN I, 3, 1094 b 19-23). Uso como ponto de partida o entendimento de que é possível interpretar o significado de ñH ¦B JÎ B@8b de duas formas distintas, a saber: ou significa dizer que a validade usual em ética está fundamentada no juízo particular do agente somente, em que essas generalizações representariam como as coisas ocorrem na maioria dos casos, o que revelaria uma compreensão particularista em ética; ou representa afirmar que a validade usual das premissas em ética podem ser entendidas enquanto uma norma, o que introduziria uma característica universalista na ética aristotélica. Minha intenção é demonstrar que é razoável identificar no modelo da ética de Aristóteles, que utiliza generalizações usuais, um universalismo, no momento em que essas generalizações que admitem exceções forem interpretadas enquanto normas; também, é importante evidenciar que se encontram nesse modelo de pensamento generalizações universais, o que corrobora com a interpretação das generalizações usuais enquanto normas e não enquanto um entendimento particular. Essa regra generalizante pode ser formulada da seguinte maneira: na maior parte dos casos (ñH ¦B JÎ B@8b) A é bom, sendo que temos generalizações que podem ser acompanhadas de exceções, 493 não se encontrando, aqui, uma dedução de uma lei universal de tipo para todo X, A é bom. Isso significa que a razão prática se baseia em objetos que acontecem freqüentemente da mesma maneira, sendo que ela busca os princípios da ação humana partindo da finalidade (JX8@H) e estabelece as condições necessárias para que essa finalidade seja alcançada (Guariglia, 1997, p. 179-180)74. Sendo assim, a ética das virtudes de Aristóteles tem relação com os princípios por ser uma ciência, que é um conhecimento do que é geral e permanente, porém não possui de antemão esses princípios em função da variedade de fenômenos que se relacionam com a ação humana (Guariglia, 1997, p. 84; Berti, 1998, p. 125-126). Dessa maneira, tem-se a utilização de uma regra que admite exceções (que vale na maior parte dos casos), porém essa especificidade não significa um impedimento de cientificidade que aponta para o verdadeiro. Veja-se o caso anterior a respeito de as concepções de bem estarem inscritas na esfera da incerteza em função de coisas boas poderem ter algum efeito nocivo, como o caso de a riqueza e a coragem poderem destruir a vida dos indivíduos. Dizer que a riqueza ou a coragem são um bem na maior parte das vezes, é dizer que elas são um bem, mesmo que em alguns casos elas sejam nocivas. A essa aparente indeterminação, parece que Aristóteles aponta para a conclusão que nos casos em que a riqueza e a coragem constituírem-se como nocivas, elas não podem ser consideradas como bens 75. Isso 74 Aristóteles não se utiliza de uma racionalidade teórica que especifica a ação particular em função de um axioma geral, utilizando-se de uma racionalidade prática que apresenta as seguintes características: quer resolver questões contingentes, sendo que a causa da ação está no homem; não possui a exatidão dos raciocínios teóricos; fica satisfeita com um conhecimento esquemático dos objetos específicos de sua investigação; não propõe juízos infalíveis, mas razoáveis. 75 Pode-se evidenciar a seguinte formulação: (1) A riqueza é um bem geralmente; (2) A riqueza é um bem mesmo que em alguns casos ela seja nociva; (3) A riqueza não é um bem quando for nociva. Ver a esse respeito Berti, 1998, p. 122. 494 significa que as generalizações em ética devem ser acompanhadas de qualificações, isto é, devem estar acompanhadas de referências objetivas em relação ao objeto específico (Irwin, 1996, p. 50), como pode ser observado no exemplo da nocividade da riqueza e da coragem que oferecem qualificações às regras generalizantes. Entretanto não é possível que se oportunizem todas as qualificações necessárias ao objeto com a finalidade de estabelecimento de princípios corretos (universais) em função da própria intenção prática da ética; isso, porém, não invalida a possibilidade de tomar essas generalizações em ética como referências normativas essenciais para a fundamentação do agir moral (Irwin, 1996, p. 50-51). Essa referência normativa pode ser identificada em diversos momentos da estrutura da EN, como no Capítulo 2 do Livro IX da EN, quando Aristóteles se pergunta se incondicionalmente se deve obediência aos pais, se o médico deve ser obedecido no caso de o indivíduo estar doente, se em uma eleição, se deve escolher o mais apto para o cargo ou um amigo etc (EN IX, 2, 1164 b 18-26). Em um primeiro momento, ele identifica que essas questões estão também na esfera da imprecisão, pois possuem diversas variações para se estabelecer à ação acertada, o que dificulta o estabelecimento de uma norma geral para a ação moral (EN IX, 2, 1164 b 27-29). Entretanto Aristóteles estabelece que, como regra geral (éH ¦B JÎ B@8b) (EN IX, 2, 1164 b 31), deve-se preferir restituir serviços a prestar favores aos próprios amigos; que se deve pagar uma dívida a um credor a emprestar esse dinheiro a um amigo (EN IX, 2, 1164 b 31-33); que se deve pagar a dívida (EN IX, 2, 1164 b 40) e, por isso, pode-se identificar uma estrutura generalizante (EN IX, 2, 1164 b 30-33) em que aparece a fórmula “um bom número de As são B” (Zingano 1996, p. 60)76. É claro 76 Essa estrutura generalizante impõe uma fórmula ‘bom número de As são B’. 495 que essas ações admitem exceções, pois em determinadas circunstâncias essa regra geral deve ser interpretada pelo agente para a realização da ação moral alcançar o melhor resultado, levando-se em conta que a exatidão possível deve ser compatível com a indeterminação que cercam as ações humanas (EN IX, 2, 1165 a 13-15; Irwin, 1996, p. 60). Entretanto essas exceções não impedem Aristóteles de chegar à conclusão a respeito da regra generalizante que obriga que na maior parte das vezes: deve-se cuidar do sustento dos pais, pois a eles é devida a existência; deve-se honrar e estimar os pais; deve-se respeitar os mais velhos; deve-se ajudar os amigos; deve-se dar o que é devido aos parentes e concidadãos (EN IX, 2, 1165 a 26-41). Isso representa que não é apenas o particularismo da ação do agente moral que é privilegiado, observando-se, também, uma regra de generalização que obriga na maior parte dos casos, o que reforça o ponto de vista universalista, pois essas regras gerais usuais não determinam as ações particulares em toda sua extensão; sua finalidade é oferecer um direcionamento normativo para contribuir com a determinação da ação correta particular (Irwin, 1996, p. 60-61). Essa regra generalizante que obriga na maior parte das vezes é também observada na teoria da justiça de Aristóteles, quando a justiça é identificada com o ordenamento legal (B@84J46Î< *\6"4@<) que trata especificamente das relações públicas de justiça entre indivíduos que são considerados livres e iguais e possuidores de uma vida comum para a satisfação de suas necessidades visando ao estabelecimento da autosuficiência (EN V, 6, 1134 a 20-24). Aqui, a justiça política significa um conjunto de regras que são generalizações usuais que admitem exceção, exceção esta possibilitada pela virtude da eqüidade (¦B4,\6,4"). A função da eqüidade no interior da teoria da justiça, descrita no Capítulo 496 10 do Livro V da EN, é a de possibilitar uma correção da generalidade da lei, pois ela é uma espécie de corretora da justiça legal (¦B"<`D2T:" <`:@L) (EN V, 10, 1137 b 50-52), no sentido principal de aplicação concreta da justiça em razão de a lei ser uma regra generalizante que não favorece o aspecto concreto da justiça nos casos particulares (EN V, 10, 1137 b 52-58). A eqüidade é compreendida enquanto uma virtude (D,JZ) que está associada com a ND`<0F4H (razão prática) que estabelece a adequação do universal ao particular; porém não possui força coercitiva para obrigar (EN VI, 11, 1143 a 2022). Isso não representa que a eqüidade seja superior à lei, pois apenas possui a função de corrigir o erro que é decorrente da estrutura generalizante da lei que não oportuniza a exatidão pretendida em todos os casos (Höffe, 2001, p. 147). A eqüidade não é compreendida como uma substituta da justiça regular das leis em função de ser uma virtude que não possui força coercitiva; entretanto tem a tarefa de possibilitar um complemento para a justiça política, significando que tanto a lei quanto a eqüidade tem seu local assegurado no interior da teoria da justiça. Isso significa que o ordenamento legal (justiça política) é entendido enquanto um sistema de regras generalizantes que são usuais, isto é, que admitem exceções, sendo que essas exceções são oportunizadas pela virtude da eqüidade (Zingano, 1996, p. 97; Irwin, 1996, p. 61). Aristóteles apresenta uma série de argumentos de generalizações universais que não admitem exceções (Broadie, 1991, p. 18)77, o que pode levar a uma identificação que a ética das virtudes 77 Não são todas as generalizações em ética que são apenas usuais, isto é, que admitem exceções, pois Aristóteles faz uso de generalizações universais como no exemplo da teoria da mesótês que é universal. 497 aristotélica tem por objetivo construir uma teoria de complementaridade entre o particularismo e o universalismo, sendo a função do aspecto particular oportunizar qualificações (uma maior precisão) quando da inexatidão dos princípios universais ou usualmente generalizantes (Irwin, 1996, p. 46). Essa estrutura universalista pode ser identificada em diversos momentos da elaboração da EN, quando Aristóteles estabelece princípios universais que não dependem do entendimento particular do indivíduo, nem são princípios gerais usuais. Aponto alguns exemplos: (1) O bem (("2`<) está identificado com a finalidade (JX8@H), em que, se todas as coisas visam a algum bem, o bem será encontrado na finalidade de todas as coisas (EN I, 1, 1094 a 1-3); (2) É necessário estabelecer um ordenamento dos fins concretos dos homens a um fim último (bem supremo) para não cair em um regresso ad infinitum (EN I, 2, 1094 a 18-22); (3) Este bem supremo do homem é a finalidade da ciência política (filosofia prática) (EN I, 2, 1094 b 3-7); (4) A ,Û*"4:@<\" (eudaimonía) é a finalidade última (,Þ .< bem supremo) de todos os indivíduos (EN I, 4, 1095 a 21-24); (5) A ,Û*"4:@<\" (felicidade) é uma atividade da alma (RLPH ¦<XD(,4") (EN I, 9, 1099 b 26) segundo a virtude (D,JZ) (EN I, 8, 1098 b 36-); (6) A virtude (D,JZ) é encontrada na mediania (:,F`J0H) entre as ações opostas, isto é, entre o excesso e a deficiência (extremos) (EN II, 6, 1106 b 39-42). Todas essas afirmativas que constituem o delineamento central da ética das virtudes de Aristóteles são universais, isto é, são princípios 498 absolutos que não admitem exceções nem permitem a deliberação subjetiva do indivíduo particular, a saber: o bem de alguma coisa é encontrado em sua finalidade; os diversos fins devem estar subordinados a um fim último; a finalidade última humana é o objeto da ciência política; a eudaimonía é a finalidade de todos os homens; a eudaimonía é uma atividade (da alma) que tem relação com a virtude (D,JZ); a virtude é uma mediania entre o excesso e a deficiência. O exemplo mais controverso poderia ser identificado na regra da mediania (:,F`J0H), onde a virtude é encontrada em um meio-termo justo entre extremos (excesso e deficiência) que são vícios. Em um primeiro momento, essa teoria da mesótês parece afirmar a tese particularista apenas, pois em relação ao meio-termo, a virtude se constitui como meio em relação a nós e significa encontrar a ação justa em relação a dois extremos a evitar; onde se evidencia que, para aplicar o que a norma ordena, é necessário que se levem em conta as circunstâncias no meio das quais os indivíduos agem (Zingano, 1996, p. 91)78. Mas não é somente a regra particularista que é afirmada na doutrina da mesótês, em função da identificação de que a mediania é melhor que os extremos, significando que os extremos (excesso e deficiência) estão sendo negados de maneira absoluta (universalmente) (Kraut, 1991, p. 14; Irwin, 1996, p. 46-47; Broadie, 1991, p. 18). Dessa maneira é possível identificar com Zingano (1996) a afirmação de uma regra universal do tipo “todo A é B” (Zingano, 1996, p. 97), mesmo que negativamente, pois os extremos, que são considerados como vícios, não podem ser escolhidos em função de sua deficiência, sendo a virtude a mediania. Por exemplo, não é 78 Dessa maneira, tem-se a afirmação do particularismo em função das circunstâncias no interior das quais ocorre a ação. A ação que é considerada nela mesma é indeterminada, sendo que as circunstâncias nas quais ocorre a ação são indefinidas e, em função dessa característica de indeterminação, a aplicação da regra segue a lógica particularista. 499 possível ser covarde (N@$,ÃF2"4) ou temerário (2D"FbH), não existindo nenhum espaço para a análise das circunstâncias em relação a essas ações extremas, sendo a virtude a coragem (<*D,\") ( EN II, 7, 1107 b 1-2); não é correto ser insensível em relação aos prazeres nem tampouco é permitido ser concupiscente (desregrado em relação aos prazeres), pois é a moderação (FTND@Fb<0) que deve ser privilegiada (EN II, 7, 1107 b 6-8); não é acertado deliberar entre a avareza ou a prodigalidade, pois a virtude é mediania entre esses extremos que é a liberalidade (¦8,L2,D4`J0H) (EN II, 7, 1107 b 12-14). Em todos esses exemplos, as ações extremas estão sendo negadas de forma universal, em que necessariamente não é correta a ação identificada com o excesso ou com a deficiência, sendo que essa ação não está baseada nas circunstâncias particulares. Em relação aos extremos, identifica-se uma proibição universal, pois a virtude não é encontrada nessas situações. Isso significa dizer que na tese ‘nas circunstâncias X, A é bom’ (Zingano, 1996, p. 93)79, que é a lógica da regra particularista da mesótês, exclui-se de forma absoluta que B e C (extremos) possam ser considerados bens. Dessa forma, ao analisar-se a teoria da mediania (:,F`J0H), é possível identificar tanto a tese forte do particularismo, em que o meio-termo justo deve ser encontrado em função de circunstâncias que são indeterminadas, como, também, a tese universalista que proíbe necessariamente ações que se encontram nos extremos (excesso e deficiência) (Zingano, 1996, p. 98). Por mais paradoxal que possa ser, a mesma teoria da mesótês (:,F`J0H), no mesmo momento em que afirma uma tese particularista da ação em razão das circunstâncias 79 Esta é a regra particularista que pode ser identificada na teoria da mediania, a saber, que em determinadas circunstâncias, fazer uma determinada coisa é que se constitui como um bem. 500 particulares do agente moral, afirma uma tese universalista das ações que não podem ser realizadas80. A pergunta que deve ser feita é: qual o papel das proibições dos extremos no modelo da ética das virtudes? Parece razoável apontar que essa proibição de ações extremas tem uma função de limitar o espaço da indeterminação em que a mediania deve ser encontrada, significando a introdução de referências normativas universais que oportunizam uma maior exatidão para a escolha particular do indivíduo, circunscrevendo o particularismo ao universalismo. Nessa linha de raciocínio seria plausível esperar que Aristóteles identificasse algumas ações que não admitissem uma regra da mediania, pois, dessa forma, estaria comprovando seu comprometimento com o estabelecimento de um referencial normativo em seu modelo ético para delimitar a esfera indeterminada na escolha moral particular. É exatamente isso que Aristóteles faz, identifica algumas ações e emoções que não possibilitam uma mediania, o que corrobora a tese de um universalismo que possui a função de oportunizar uma maior precisão ao mecanismo subjetivo de escolha. Essa introdução de uma referência normativa universal é fundamental para a comprovação do caráter universalista da ética das virtudes aristotélica, sendo que isto é observado em razão da identificação da existência de certas ações e emoções que não admitem mesótês, isto é, que não admitem uma regra particular de escolha, em função de estarem identificadas com a maldade (perversidade) de forma absoluta (Vergnières, 1998, p. 139; Zingano, 1996, p. 99). Logo após o 80 “L’action morale inclut un rapport au sujet, et en ce sens on peut dire qu’elle est subjective. Mais ce rapport est lui aussi une réalité, et l’action qu’il définit reste aux yeux d’Aristote une action objectivement déterminée, et, il n’hésitera pas à le dire, une chose (E.N., II, 3, 1105 b 5). Le juste milieu est, chez Aristote, la qualité de cette chose, et en ce sens il est valeur objective” (Gauthier, 1973, p. 72). 501 estabelecimento da definição de virtude (D,JZ) como :,F`J0H (mediania) entre ações extremas, em que o meio-termo é encontrado pelo agente particular em função das circunstâncias, Aristóteles identifica algumas ações (BD>4H) e emoções (BV2@H) que não permitem uma mediania, a saber: (1) BV2@H: ¦B4P"4D,6"6\" (malevolência); <"4FPL<J\" (impudência); N2`<@H (inveja) e (2) BD>4H: :@4P,\" (adultério); 68@BZ (roubo); <*D@N@<\" (homicídio) (EN II, 6, 1106 b 48 - 1107 a 4). Como essas ações e emoções constituem-se como perversidades, sendo censuráveis por si mesmas, não é possível identificar o problema no excesso ou na deficiência, mas, sim, nelas próprias. Aristóteles é claro nesse ponto: “Nunca será possível, portanto, estar certo em relação a elas; estar-se-á sempre errado” (EN II, 6, 1107 a 4-5). A conclusão que está sendo estabelecida, aqui, é que não é possível considerar como moralmente acertada a realização de nenhuma dessas ações, bem como não é correto possuir alguma dessas emoções. Esses casos não têm referência com as circunstâncias particulares que envolvem a ação, pois, como no exemplo citado por Aristóteles, é observado que não é possível “(...) cometer adultério com a mulher certa, no momento certo e do modo certo” (EN II, 6, 1107 a 6-7). É impossível considerar o adultério como correto em função de certas circunstâncias, assim como também não é possível aceitar que o roubo e o homicídio sejam considerados como bons em função de suas circunstâncias particulares. A tese formulada é claramente universalista, pois proíbe absolutamente essas ações e emoções perversas que, não admitindo mesótês, são necessariamente identificadas com o erro e, portanto, estão sob uma interdição absoluta. Nesses exemplos elencados por Aristóteles, nenhum mecanismo 502 particularista da ação contingente é levado em consideração, o que possibilita a identificação da utilização de princípios universais normativos para a delimitação da indeterminação da ação particular do agente moral81. Dessa forma, não é possível analisar a ética das virtudes de Aristóteles somente a partir de suas características do particularismo, em razão de nela também ser identificada a utilização de princípios que oferecem generalizações usuais e, também, princípios que oportunizam uma referência normativa universal (Zingano, 1996, p. 99). É no horizonte de complementaridade ente o particularismo e o universalismo que o modelo da ética das virtudes de Aristóteles deve ser interpretado, pois ele possibilita que se evidenciem os aspectos positivos da deliberação particular do agente, o que assegura a responsabilidade e a liberdade do indivíduo; entretanto, oportuniza, também, que se aponte para a vantagem da utilização de princípios generalizantes usuais e princípios universais em ética, inserindo um grau maior de precisão e exatidão nas decisões particulares subjetivas. Quero demonstrar que a objetividade identificada neste modelo aristotélico de filosofia prática não invalida suas referências subjetivas; pelo contrário, possibilita uma maior qualificação para ação humana ser considerada como moralmente acertada. Em função disso, não é possível concluir que os juízos perceptivos particulares possuam uma anterioridade em relação às regras morais, sendo as generalizações usuais em ética apenas resumos para a ação moral, pois, até aqui, evidenciou-se que, tanto as generalizações prováveis, bem como os princípios universais servem como referência normativa para ação particular, por não demarcar uma fronteira excludente entre a percepção particular subjetiva e o ordenamento 81 Segundo Höffe (2001, p. 173-174), Aristóteles estabelece um reconhecimento de princípios universais de justiça que proíbem o roubo, o adultério, o homicídio, a injúria etc., quando trata da justiça corretiva no Livro V da EN. 503 referencial normativo. O próximo passo, será investigar o significado dos juízos perceptivos particulares no esquema da ética das virtudes de Aristóteles. Especificidade da Percepção Moral Particular A ética aristotélica das virtudes possui uma característica específica, a saber, ela se constitui em um tipo de conhecimento que tem a ação humana como seu objeto e, por conseguinte, possui uma exatidão apenas variável, pois está fundamentada na decisão particular do agente moral que delibera subjetivamente para encontrar a mediania em função de as formulações éticas serem generalizações usuais, isto é, apresentarem validade na maior parte dos casos, significando que essas formulações admitem exceções, o que implica na validade da avaliação particular para o estabelecimento da ação moralmente correta (Guariglia, 1997, p. 206). À primeira vista, essa formulação de fundamentação parece justificar apenas a interpretação particularista da ética aristotélica, ao dar um destaque maior para a centralidade dos juízos perceptivos. Entretanto é necessário investigar se nesse modelo de fundamentação não é possível a identificação de características universalistas, no momento em que se observa que esses juízos perceptivos particulares não possuem uma anterioridade em relação ao referencial normativo utilizado nessa teoria ética. Parto da hipótese que é possível interpretar a ética das virtudes a partir de uma perspectiva de complementaridade entre o particular e o universal, identificando que os juízos particulares não possuem uma anterioridade em relação ao referencial normativo. Para tanto, investigo a respeito do significado de 504 BD@"\D,F4H (escolha, decisão), $@b8,LF4H (deliberação) e ND`<0F4H (razão prática, prudência). Aristóteles define a virtude (D,JZ) como uma disposição da alma (ª>4H) que conduz a escolha de ações e paixões (BD@"\D,F4H) e que consiste em uma mediania (:,F`J0H) subjetiva (tem relação ao particular) entre extremos, sendo que esta mediania é possibilitada pela razão (8`(@H), pois é o indivíduo dotado da racionalidade prática (ND`<4:@H) que consegue alcançar este meio-termo (EN II, 6, 1106 b 38-41). Dessa definição de virtude já se pode verificar os dois eixos fundamentais que constituem a fundamentação da ação moral, a saber: (1) ela está relacionada com uma BD@"\D,F4H (escolha) particular entre ações e paixões extremas (que são vícios) para determinar a mediania, ressaltando-se que esta escolha é particular e (2) ela está identificada com a capacidade racional (ND`<0F4H) para a determinação da mediania (Kraut, 1991, p. 328). Em um primeiro momento pode-se ser levado a acreditar que a lógica utilizada por Aristóteles é puramente particularista, pois fundamenta a ação moral em uma escolha deliberada particular; porém esta fundamentação particularista não está em desacordo com o referencial normativo oportunizado (a) pelas regras generalizantes que possuem validade na maior parte das vezes e (b) pelas regras universais. Esse mal-entendido já pode ser evidenciado quando Aristóteles argumenta que a conduta humana está relacionada aos fatos contingentes, pois no âmbito do discurso racional prático os princípios particulares possuem um grau maior de verdade, ressaltandose a observação de que os princípios universais têm uma aplicação mais irrestrita (EN II, 7, 1107 a 18-22). Aristóteles alerta para o fato de que encontrar a mediania entre extremos não é algo fácil, assim como não é 505 fácil encontrar “o centro de um círculo” (EN II, 9, 1109 a 41), em função das diversas indeterminações que circunscrevem a ação moral. Essa forma de apresentação da fundamentação da ação moral está apontando para a necessidade de utilização de princípios particulares para a deliberação em casos de indeterminação; entretanto Aristóteles não está invalidando o referencial normativo que se utiliza de princípios generalizantes e universais para oportunizar uma maior precisão para a ação, e nem está afirmando a anterioridade desses princípios particulares. Para identificar essa não discordância entre a deliberação particular e as regras generalizantes e universais, é importante demonstrar como é construída a argumentação que esclarece a respeito da mesótês (:,F`J0H), em que são apresentadas três regras: (1) a primeira regra afirma que a mediania é encontrada quando se evita o extremo que mais se opõe à mediania (EN II, 9, 1109 a 47-48); (2) a segunda regra afirma que a mediania pode ser alcançada quando o indivíduo identifica sua propensão ao erro e se afasta dessa direção, sendo que ao afastar-se dessa direção o indivíduo se aproxima da mediania (EN II, 9, 1109 b 7-13); (3) a terceira regra estabelece que o indivíduo deve estar atento para evitar aquilo que é prazeroso (EN II, 9, 1109 b 14-19). A conclusão dessa argumentação, oferecida por Aristóteles, destaca que a escolha no caso particular para alcançar a mediania deve estar baseada na percepção ("ÇF20F4H), sendo difícil uma determinação racional nesses casos de indeterminação (EN II, 9, 1109 b 29-33). Qual o significado dessa conclusão? O ponto central da questão está em como se interpreta esta frase: “Mas não é fácil determinar racionalmente até onde e em que medida uma pessoa pode desviar-se 506 antes de tornar-se censurável (...); tais coisas dependem de circunstâncias específicas, e a decisão depende da percepção ("ÇF20F4H)” (EN II, 9, 1109 b 29-33). Se a interpretação vincula a escolha deliberada no caso particular com a percepção, de forma a afirmar que a fundamentação do juízo particular se dá apenas pela percepção subjetiva e não pelas normas gerais, ter-se-ia a afirmação da tese particularista. Todavia, se a interpretação identifica que para a escolha particular é necessária a percepção, não invalidando o auxílio normativo, tem-se uma afirmação da tese universalista-particularista, o que parece mais condizente com o propósito de Aristóteles. Isso pode ser comprovado ao se analisar o significado das regras da mediania. Na primeira regra, deve-se evitar o extremo que está mais distante da mediania. Como é possível realizar isso com base apenas na percepção subjetiva? Além de uma percepção particular, o indivíduo deve contar com uma série de regras generalizantes que orientam para uma série de ações que devem ser evitadas, oportunizando a evidência de uma referência normativa para a análise particular. Mesmo na segunda e terceira regras é possível verificar que, além da necessidade da percepção para encontrar a propensão particular ao erro e evitar o que é prazeroso, o indivíduo não deixa de contar com referências generalizantes para a orientação do que é o erro e no que se constitui o prazer que deve ser evitado. É importante ressaltar que em nenhum momento se encontra a afirmação de Aristóteles de que é a percepção que realiza o juízo pertinente sobre o meio-termo a atingir, apenas afirma que não é possível o estabelecimento de um juízo nesses casos particulares sem a presença da percepção (Irwin, 1996, p. 58). A questão não está sendo apresentada a partir de uma lógica de exclusão, em que, se a percepção é utilizada, ter-se-ia a anulação das normas gerais ou 507 universais, mas, sim, através de um mecanismo inclusivo, no qual tanto o aspecto perceptivo particular como o aspecto normativo têm seu lugar assegurado, e isso quer dizer que na ética aristotélica é possível verificar que a fundamentação da ação moral é oportunizada tanto pelos juízos perceptivos particulares como pelas regras generalizantes usuais e regras universais. Para Aristóteles, a ação que possui validade moral é aquela ação voluntária (©6@bF4@<), isto é, aquela ação que tem sua fundamentação na vontade do agente que delibera e escolhe a partir de uma situação indeterminada. Por isso, é importante analisar qual é o entendimento de Aristóteles a respeito da escolha (BD@"\D,F4H) e da deliberação ($@b8,LF4H). Ele inicia sua investigação sobre a BD@"\D,F4H apontando que geralmente ela é identificada com o desejo (¦B42L:\"), com a ira (2L:`H), com a aspiração ou vontade ($@b80F4H) e com a opinião (*`>"); porém não concorda com essa interpretação usual (EN III, 2, 1111 b 16-18)82. Tanto o desejo como a ira não podem ser considerados como estritamente racionais, pois os animais agem também segundo o desejo e a ira. Por isso, dizer que a BD@"\D,F4H não é um desejo, ou que não está identificada com a ira, é afirmar que a escolha resulta de um ato de racionalidade, enquanto que desejo e ira podem ser considerados como atos instintivos (EN III, 2, 1111 b 18-28). A aspiração (vontade) também não pode ser confundida com a escolha. Dizer que a escolha não é uma vontade é inserir o objeto específico da decisão que é a possibilidade, pois pode-se ter vontade (aspiração) de coisas impossíveis, como, por exemplo, “querer a imortalidade” (EN III, 2, 1111 b 33). Só é pertinente a escolha (decisão) 82 Ver Zingano, 1997, p. 75. 508 sobre aquilo que é possível e que depende da ação humana (EN III, 2, 1111 b 33-37). Outra diferença é que a vontade ($@b80F4H) se relaciona com os fins e não com os meios (§J4 *z º :¥< $@b80F4H J@Ø JX8@LH ¦FJ :88@<), enquanto que a escolha se relaciona com aquilo que contribui para a consecução do fim (Jä< BDÎH JÎ JX8@H) (EN III, 2, 1111 b 38-39). As diferenças entre BD@"\D,F4H (escolha) e $@b80F4H (vontade) podem ser ordenadas da seguinte maneira: - a $@b80F4H: (a) pode se relacionar com coisas impossíveis; (b) pode estar identificada com coisas que não dependem da ação individual; (c) visa a um fim; - enquanto que a BD@"\D,F4H: (a) relaciona-se com aquilo que é possível; (b) tem referência com aquilo que depende da ação humana particular; (c) tem relação com aquilo que contribui para a consecução de um fim (JX8@H) (EN III, 2, 1111 b 39-43)83. Isso significa que a BD@"\D,F4H está relacionada com as escolhas deliberadas que são possíveis para o indivíduo realizar (ação), considerando que essa decisão deliberada contribui para a realização de um fim84. A escolha também não pode ser confundida com a opinião (*`>"), pois esta versa sobre coisas que possuem relação com a verdade ou falsidade e a escolha tem relação com aquilo que é bom ou mau, em 83 É importante fazer referência ao exemplo utilizado por Aristóteles que tematiza a respeito da saúde e da felicidade: pode-se aspirar à saúde e à felicidade, porém, não se pode escolher ter saúde ou ser feliz, pois a escolha tem relação com aquilo que possibilita a saúde e a felicidade, sendo que estas têm referência ao controle particular do agente. 84 “Cette distinction de la volonté et du choix, Aristote en exprime plus clairement encore le príncipe, en disant que la première porte surtout sur la fin (JX8@H) et le second sur les moyens (J BDÎH JÎ JX8@H)”. Ver também Muñoz, 2002, p. 151-152. 509 que só se pode escolher sobre aquilo que é um bem (EN III, 2, 1111 b 44-49), isto é, o objeto da BD@"\D,F4H não pode ser confundido como uma asserção, pois está relacionado com a aceitação em relação à deliberação ($@b8,LF4H) (Zingano, 1997, p. 87). Já que a escolha não pode ser identificada nem com o desejo, nem com a ira, nem com a vontade nem com a opinião, Aristóteles apresenta a definição de BD@"\D,F4H: ela é uma ação voluntária que é precedida pela deliberação (BD@$,$@L8,L:X<@<), sendo que a escolha envolve o raciocínio (uso da razão - 8`(@L) e o pensamento (*4V<@4"). Por isso, BD@"\D,F4H significa a escolha premeditada, em que se escolhe uma coisa antes de outras coisas (EN III, 2, 1112 a 15-19; Aubenque, 1976, p. 121). Isso significa que a escolha premeditada não pode ser considerada como uma ação a partir do impulso passional, pois ela supõe o pensamento e a razão que orientam para as ações concretas e contingentes que se apresentam ao indivíduo (Millet, 1990, p. 135). A BD@"\D,F4H não se encontra nem no puramente factual nem no estritamente necessário e universal, sendo que ela pressupõe o desejo dos fins e escolhe os meios necessários para realizá-los, tendo em conta estes fins (Farias, 1995, p. 232; Aubenque, 1976, p. 121). A deliberação ($@b8,LF4H) está circunscrita às coisas que pertencem ao controle humano e que são possibilitadas pela ação ($@L8,L`:,2" *¥ B,D Jä< ¦Nz º:Ã< 6" BD"6Jä<), não tendo relação com a ordem natural (NbF4H), nem com o necessário (<V(60) nem com as coisas que resultam do acaso (JbP0), pois sua relação está identificada com as coisas que podem ser realizadas e dependem do empenho do indivíduo (Jä< *z <2DfBT< ª6"FJ@4 $@L8,b@<J"4 510 B,D Jä< *4z "ßJä< BD"6Jä<) (EN III, 3, 1112 a 36-41; Aubenque, 1976, p. 107). Não se delibera sobre os assuntos humanos que não admitem exceções, e isso significa que não é possível deliberar a respeito da “incomensurabilidade da diagonal e do lado de um quadrado” (EN III, 3, 1112 a 26) nem é possível a deliberação a respeito “da ortografia” (EN III, 3, 1112 b 1-2), pois estas matérias já estão completamente definidas. Isso representa que a deliberação opera no horizonte da indeterminação, quer dizer, só é possível se deliberar sobre aquilo que não é necessário ou universal (EN III, 3, 1112 b 9-11). A deliberação está relacionada com a escolha sobre o tipo de ação que é necessária em um caso específico que não é definido, podendo ser entendida como uma “pesquisa” para encontrar aquilo que contribuirá para a realização de um fim (Aubenque, 1976, p. 109). Essa identificação da deliberação com as coisas indefinidas pode apontar para a existência de dúvida sobre o que deve ser realizado em cada caso particular (Irwin, 1996, p. 55), o que poderia afirmar apenas o caráter particularista da ética das virtudes; porém, é importante chamar a atenção para os elementos universalistas dessa argumentação. Em primeiro lugar, Aristóteles faz referência a que a deliberação está sujeita a regras generalizantes usuais (ñH ¦B JÎ B@8b) que apontam para o bem; porém essas regras generalizantes não podem determinar com exatidão todas as ações em função das coisas indefinidas (*4`D4FJ@<) (EN III, 3, 1112 b 9-11). Em segundo lugar, para se estabelecer a deliberação no caso indeterminado é necessário recorrer a um elemento intersubjetivo, isto é, é necessário o estabelecimento de uma deliberação conjunta para encontrar a decisão correta (EN III, 3, 1112 b 10-13). Isso significa afirmar que a deliberação, que usa de escolhas nos casos particulares, não pode alcançar a escolha correta utilizando-se de 511 generalizações que sejam aplicáveis em todos os casos, sem a reflexão particular. Entretanto isso não representa que as generalizações não sejam positivas e não tenham seu lugar garantido na ética aristotélica, pois a questão é identificar que essas generalizações devem ser qualificadas e suas limitações devem ser observadas, possibilitando, assim, um referencial normativo para a escolha deliberada particular (EN III, 3, 1112 b 10-13). Com isso se verifica que a $@b8,LF4H (deliberação) está relacionada com o julgamento particular que está ao alcance do indivíduo e pressupõe um juízo razoável (juízo epistêmico) para a determinação da ação correta, significando que a deliberação particular do indivíduo se encontra circunscrita à uma esfera normativa generalizante e universal que propicia uma fundamentação da ação moral intersubjetiva (Guariglia, 1997, p. 207-208). Isso representa que a deliberação está relacionada com aquilo que interessa diretamente ao indivíduo e com aquilo que é variável e indeterminado e é passível de escolha individual (Millet, 1990, p. 135-136); porém esta indeterminação da escolha subjetiva utiliza-se de um referencial que é válido na maior parte das vezes, oportunizando um encontro entre o particular e o universal (Guariglia, 1997, p. 208). O ponto central da investigação a respeito da $@b8,LF4H indica que se delibera não sobre fins (B,D Jä< J,8ä<), mas sobre aquilo que contribui para a realização de um fim (B,D Jä< BDÎH J JX80) (EN III, 3, 1112 b 12-13). Como o indivíduo é considerado como o princípio de suas ações (<2DTB@H ,É<"4 DP¬ Jä< BDV>,T<) (EN III, 3, 1113 a 10), a deliberação está relacionada com a especificação das ações que devem ser realizadas pelo agente no âmbito particular e tem relação não com os fins, mas com aquilo que possibilita a realização dos fins (@Û ( 512 D < ,Ç0 $@L8,LJÎ< JÎ JX8@H 88 J BDÎH J JX80) (EN III, 3, 1113 a 12-13). Não é necessário entender que a deliberação é sobre os meios que conduzem a fins, em que se teria uma redução do papel da deliberação85. Pensar a deliberação como aquela que está relacionada com os fins é identificar uma ampliação na categoria de deliberação que seria possibilitada por um silogismo prático, em que: (1) ela visa como a uma instância de um ato que está conforme uma regra e (2) ela é entendida como um elemento (parte) na direção de um fim (Guariglia, 1997, p. 208). O objeto da BD@"\D,F4H (escolha) é oportunizado pelo resultado da $@b8,LF4H (deliberação) e, sendo assim, a BD@"\D,F4H é uma decisão deliberada de ações que estão em poder do indivíduo, sendo que, primeiro se delibera e depois se decide a ação que deve ser tomada86. A decisão deliberada (BD@"\D,F4H) está relacionada com os objetos esquemáticos (de JbBå) e tem relação com aquilo que possibilita alcançar os fins (º :¥< @Þ< BD@"\D,F4H JbBå ,ÆDZF2Ts 6" B,D B@ÃV ¦FJ4 6" ÓJ4 Jä< BDÎH J JX80) (EN III, 3, 1113 a 3032). Isso significa que a responsabilidade da ação moral é do indivíduo, pois as atividades nas quais se exercem as virtudes são consideradas como aquilo que possibilita os fins e, sendo assim, a virtude (D,JZ) depende de ações voluntárias, determinando que onde o indivíduo é livre para realizar algo, ele também é livre para a sua não realização (EN III, 3, 1113 b 21-29). As categorias de $@b8,LF4H e BD@"\D,F4H estão estreitamente vinculadas, sendo que ambas possuem o mesmo objeto, 85 Pensar a deliberação como estritamente identificada com meios que conduzem a fins é reduzir a deliberação à “(...) búsqueda de las conexiones causales que producen un determinado fin y de los recursos al alcance del agente para poder iniciar esa cadena de efectos” (Guariglia, 1997, p. 208). 86 A decisão (BD@"\D,F4H) não se distingue do julgamento que faz parte da deliberação ($@b8,LF4H): a decisão é o julgamento mesmo que pode ser entendido com um imperativo que obriga (Gauthier, 1973, p. 38). 513 que é a ação humana, entretanto, possuem uma ordem inversa. A ordem da deliberação parte da representação do fim determinado e investiga a obrigatoriedade da ação humana particular para chegar ao fim através de um ordenamento descendente, sendo que é o intelecto prático que deve decidir sobre a ação específica (Guariglia, 1997, p. 211). Por sua vez, a decisão deliberada é entendida como um juízo prático que conclui a deliberação (EN III, 3, 1113 a 10-12). A conclusão que Aristóteles chega é que a D,JZ (virtude) é entendida enquanto uma :,F`J0H (mediania) e enquanto uma ª>4H (disposição) oportunizada pela ÏD2ÎH 8`(@H (reta razão), sendo que ela depende da decisão particular do indivíduo (¦Nr º:Ã<) e são ações voluntárias (©6@bF4@4) (EN III, 5, 1114 b 34-38). A virtude (D,JZ) é uma maneira específica de ação que está baseada na decisão deliberada (BD@"\D,F4H) do fim das ações humanas, um fim que não é externo às ações (Guariglia, 1997, p. 216). Isso significa dizer que a virtude é possibilitada pela prática, entendendo-se por prática uma ação voluntária de acordo com a virtude, em que o agente particular delibera e decide intencionalmente realizar o ato nas circunstâncias específicas como um fim em si mesmo (Guariglia, 1997, p. 217). Em nenhum momento encontra-se a afirmação de que a decisão deliberada, que é particular e subjetiva, estaria em uma situação de anterioridade em relação às regras generalizantes e universais, apenas está destacando a responsabilidade individual particular, o que não anula o papel das referências normativas. A partir da análise do sentido de προα\ρεσις para Aristóteles, é possível estabelecer uma aproximação entre a ética deontológica de Kant (éticas das normas - deveres) e a ética teleológica de Aristóteles no momento em que se interpreta a prudência – razão prática (ϕρ`νησις) 514 na teoria aristotélica como a boa deliberação (,Û$@L8\"), pois o prudente possui a faculdade de entender o que é bom tanto para si como para os outros indivíduos, através do uso da razão (Aubenque, 1976, p. 114; EN VI, 9, 1142 b 40-43). O argumento lógico, estabelecido por Aristóteles, demonstra que em relação à ação que é um contingente indeterminado, a regra é a deliberação e através dela a razão impõe algo em prejuízo de outro, introduzindo, dessa forma, a necessidade de uma norma prática. Essa interpretação a respeito da deliberação aproxima Aristóteles de Kant em função de, na teoria de Kant, a adoção de um ponto de vista moral estar inteiramente ligada à autonomia do agente. Para Kant, a condição estabelecida é que para ter validade moral a ação, é necessário seguir uma máxima que possa ter valor para todo agente racional87. Uma das formulações principais do imperativo categórico kantiano estabelece que a máxima do indivíduo deve valer como uma lei universal da natureza, quer dizer, uma máxima que todos os indivíduos racionais sigam88. É importante destacar que a ética aristotélica não se encontra afastada desse paradigma, pois a ação do indivíduo prudente é a boa deliberação tanto em relação a si como em relação aos outros 87 Para uma possível legislação universal, deve-se perguntar se a máxima pode se converter em lei universal. Se não for possível, esta máxima deve ser rejeitada. Apenas a máxima que pode se converter em lei universal pode ser princípio numa possível legislação universal. A máxima, assim, deve ter valor universal. A razão dá a lei universal que inspira respeito e impõe o dever, o qual aparece como condição da vontade boa em si (Kant, 1985, p. 35). 88 O imperativo categórico não oportuniza à vontade a possibilidade de escolha porque é incondicional, tendo o caráter de uma lei prática que obriga necessariamente a conformidade da máxima à lei, lei esta universal. O seu conteúdo é constituído pela lei e a necessidade de adequação da máxima (vontade subjetiva) à lei universal: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (Kant, 1985, p. 59), podendo-se derivar deste, todos os outros imperativos do dever. Pode-se identificar nesta primeira formulação do imperativo categórico o princípio da universalidade e, como a realidade (natureza) é determinada por leis universais, temos a segunda formulação do imperativo categórico: “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” (Kant, 1985, p. 59). 515 através da razão (Zingano, 1996, p. 89). A decisão deliberada é, para Aristóteles, um processo de busca dos meios necessários para obter um fim e isso conduz a uma avaliação das conseqüências das ações (Zingano, 1996, p. 90). Qualquer que seja o fim do agente, ele delibera sobre os meios e a razão, significa identificar os prós e os contras desses meios. Ao deliberar sobre os meios, e deliberar é pesar razões, a adoção desses meios é sua adoção aos meios. Isso garante a responsabilidade do agente, isto é, a voluntariedade do ato moral, na qual é o indivíduo particular que delibera a partir dos meios para alcançar o fim. Com isso, se garante a liberdade do agente entre adotar uma ou outra tese, que são os meios. A questão é garantir que os meios adotados são uma atividade particular do agente, em que os meios adotados são circunscritos a razões morais (καλοØ ªνεκα)89. A tese particularista procura compreender as generalizações usuais em ética como apenas resumos de exercícios particulares de percepções éticas, de forma a tratar os princípios gerais como indicadores para a situação particular, em que se teria uma anterioridade da percepção ("ÇF20F4H) em relação aos princípios generalizantes e universais. Dessa maneira, as percepções éticas são entendidas enquanto um meio para aplicar regras gerais em casos particulares, o que conduz a relação estabelecida entre a percepção ("ÇF20F4H) e a prudência – razão prática (ND`<0F4H). Encontram-se duas referências centrais sobre a relação da ND`<0F4H com a "ÇF20F4H na análise realizada no Livro VI 89 A tese de Zingano é que pode ser identificada a partir desse raciocínio uma doutrina moderada da liberdade prática, em que o sujeito autônomo (αÛθα\ρετος), ao fazer certos atos, na forma de ter escolhido os meios de forma individual, o indivíduo adquire uma disposição (ªξις), e a repetição de atos cria uma disposição, criando uma natureza prática, existindo fins a partir dessa natureza prática. Tem-se, então, a autonomia dos fins, em que se parte da escolha racional dos meios para ser o espaço de deliberação individual com vistas a fins, obtida com a autonomia em relação aos meios (Zingano, 1996, p. 90-91). 516 da EN, a saber: (1) a phrónêsis (ND`<0F4H) tem relação com os particulares e, sendo assim, necessita da percepção ("ÇF20F4H) (EN VI, 8, 1142 a 23-30) e (2) os universais são estabelecidos a partir dos particulares, em que se deve ter a percepção desses particulares, considerando o <@ØH (entendimento) como um tipo de percepção (EN VI, 11, 1143 b 2-6). A questão central, aqui, é analisar como essas duas referências à percepção ("ÇF20F4H) não comprovam sua anterioridade em relação às regras generalizantes e universais, possibilitando a identificação de um modelo cooperativo entre o particular e o universal na ética das virtudes aristotélica. Em relação à primeira referência, a questão que se coloca é a de saber se as generalizações usuais em ética possuem alguma importância normativa, ou se apenas são as percepções subjetivas que têm validade para a determinação da ação moralmente correta, em outras palavras, se quer responder se o ND`<4:@H (indivíduo prudente) é interpretado como aquele que encontra o agir correto a partir de uma percepção particular, ou se ele pode ser compreendido como aquele que se utiliza de generalizações com força normativa para a deliberação correta, além da percepção dos casos particulares. Para tanto, é necessário analisar como Aristóteles desenvolve sua investigação a respeito da ND`<0F4H. A phrónêsis é a capacidade de deliberação sobre o contingente e, sendo assim, a ND`<0F4H está identificada com a deliberação ($@b8,LF4H), pois o indivíduo ND`<4:@H é aquele que sabe deliberar sobre aquilo que é bom em um sentido geral (EN VI, 5, 1140 a 17-22) e isso implica a capacidade de deliberar bem com o objetivo de alcançar um fim (EN VI, 5, 1140 a 22-25). A ND`<0F4H tem relação ao que é concernente aos assuntos humanos e as coisas que podem ser objeto de deliberação (EN 517 VI, 7, 1141 a 50-54; Nussbaum, 1986, p. 373-374), pois deliberar bem é o que caracteriza o indivíduo prudente e isto significa calcular bem para chegar a um bom resultado (Berti, 1998, p. 146). A phrónêsis não é compreendida como um conhecimento de princípios gerais apenas, pois está relacionada com fatos particulares, sendo que ela envolve a ação e estes estão relacionados com particulares (EN VI, 7, 1141 b 3-5). A ND`<0F4H não é uma arte (JXP<0) por visar à ação (BD>4H) (EN VI, 7, 1141 b 11-14) e não à produção (B@\0F4H) nem é uma ciência (¦B4FJZ:0) por visar ao contingente e não ao necessário. Sendo assim, a ND`<0F4H é uma disposição (ª>4H) prática e, dessa maneira, por ser uma disposição, diferencia-se da ciência e, por ser prática, diferencia-se da arte (Aubenque, 1976, p. 34). A phrónêsis é uma disposição prática e é uma virtude dianoética90 concernente às regras da escolha deliberada (Aubenque, 1976, p. 34). Como a ND`<0F4H implica conhecimento dos fatos particulares, sendo que este conhecimento é propiciado pela experiência (EN VI, 8, 1142 a 1-5), isso representa que a phrónêsis não pode ser confundida com o conhecimento científico (¦B4FJZ:0), pois ela se reporta à apreensão dos fatos particulares finais, sendo que a ação moral é identificada desta maneira (EN VI, 8, 1142 a 18-20; Berti, 1998, p. 149)91. O problema 90 Para entender o significado das virtudes dianoéticas (intelectuais) é importante fazer referência que a alma racional ou dianóia está dividida em duas partes, a saber: uma é a parte em que se especula sobre as coisas cujos primeiros princípios são invariáveis e a outra é a parte em que se especula sobre aquilo que admite variação. A primeira é a faculdade científica (¦B4FJ0:46`<) e a segunda é a faculdade calculadora ou deliberativa (8@(4FJ46`<), cf. EN VI, 1, 1139 a 17-18. Fazem parte da faculdade científica a ciência (¦B4FJZ:0), entendida como capacidade demonstrativa, o entendimento ou inteligência (<@ØH), compreendido como capacidade pelos princípios e a sabedoria (F@N\"), entendida como capacidade pelos princípios e por sua demonstração, sendo que as virtudes dianoéticas que fazem parte da faculdade calculativa são a prudência (ND`<0F4H) e a arte (JXP<0). 91 A phrónêsis possui um caráter prático que a relaciona com a ação, sendo necessário o conhecimento dos casos particulares, o que implica experiência, que é compreendida como 518 surge quando Aristóteles vincula a ND`<0F4H com a "ÇF20F4H, dizendo que a especificidade da ND`<0F4H, em oposição ao <@ØH (entendimento), está em ela se ocupar da coisa particular, só podendo ser compreendida pela percepção ("ÇF20F4H) (EN VI, 8, 1142 a 20-27). Ao se analisarem as relações entre a ND`<0F4H com a "ÇF20F4H, não se encontra a afirmação de Aristóteles a respeito da anterioridade normativa da percepção em relação às regras generalizantes, o que não confirma a tese particularista. Isso pode ser demonstrado analisando-se a ND`<0F4H como a razão que se relaciona a um fim. A phrónêsis é identificada com a razão prática, que é entendida como a razão que tem relação com o fim, e seu aspecto moral é compreendido a partir de sua contribuição para o estabelecimento de um ordenamento objetivo da norma de acordo com a qual atua a virtude. A função da ND`<0F4H está em estabelecer a finalidade moral apropriada nas circunstâncias particulares da ação em que o agente particular escolhe a ação (Vergnières, 1998, p. 133; Guariglia, 1997, p. 294). A phrónêsis tem como ponto de partida uma premissa universal, que é a premissa a respeito da finalidade, que revela um determinado fim como algo que deve ser realizado pela ação. Dessa forma, entende-se a ND`<0F4H como a faculdade que relaciona esses pontos de partida gerais, que são os princípios das ações morais, que servem de referência para a situação particular que é múltipla (Guariglia, 1997, p. 307-308). Isso significa dizer que a ND`<0F4H não tem por função estabelecer uma generalização empírica baseada nas experiências particulares que lhe possibilita o estabelecimento de um raciocínio hipotético a respeito dos casos particulares; pelo contrário, a ND`<0F4H possibilita que se alcance conhecimento dos particulares; além disso, ela inclui o conhecimento do universal para poder aplicar no caso particular uma perspectiva universal. 519 a norma, as generalizações, para possibilitar o norteamento dos casos particulares (Guariglia, 1997, p. 308), pois o ND`<4:@H se caracteriza por alcançar a boa deliberação (EN VI, 9, 1142 b 40-43). Em relação à segunda referência, a questão fundamental é a de saber se a afirmação de que os universais são derivados dos particulares não invalidaria a perspectiva que identifica que a deliberação sobre casos particulares pode estar relacionada com um referencial normativo para ação. Essa questão é identificada quando Aristóteles afirma que o entendimento (<@ØH) é um tipo de conhecimento em que as regras gerais são inferidas dos casos particulares e, por conseguinte, é necessário que se utilize a percepção ("ÇF20F4H) dos particulares para o 92 estabelecimento de princípios generalizantes (EN VI, 11, 1143 b 2-6) . A questão central está em como se interpreta o significado da afirmação de que os universais são derivados dos particulares para Aristóteles. Se a interpretação identificar que os princípios generalizantes são inferidos dos particulares, então teria-se a fundamentação da ação moral na deliberação particular do agente, sendo que os princípios generalizantes serviriam apenas como resumos para a escolha subjetiva, o que invalidaria a observação de um referencial normativo para a ação particular deliberativa. Entretanto, se se interpretar a inferência dos universais a partir dos particulares apenas como uma possibilidade de revisão dos princípios generalizantes em razão da deliberação individual, então é razoável identificar que a deliberação subjetiva está circunscrita a um referencial normativo oportunizado pelos princípios generalizantes usuais e pelos princípios universais. Nesse contexto, 92 Ver sobre os dois significados de <@ØH em Natali, 2001, pp. 74-75. Nesse texto, o autor faz referência que, em um primeiro momento, o <@ØH é visto como o oposto de ND`<0F4H e que esta está identificada com a "ÇF20F4H e, posteriormente, o <@ØH passa a estar relacionado com a "ÇF20F4H. 520 Aristóteles apenas está afirmando que o indivíduo ND`<4:@H realiza uma revisão de seus princípios gerais em função dessa reflexão particular (Irwin, 1996, p. 67), o que não comprova a anterioridade normativa da percepção sobre as regras generalizantes. Conclusão Não é possível pensar que a ética das virtudes conta somente com uma fundamentação particularista para a ação moral em razão da identificação de um modelo cooperativo entre o particular e o universal que assegura a validade da decisão deliberada subjetiva e, também, conta com um referencial normativo para a escolha individual. Isso pode ser demonstrado ao se analisar a relação estabelecida entre a ND`<0F4H e a F@N\" (sabedoria). A ND`<0F4H é prescritiva e é ‘inferior’ à F@N\" em função de orientar-se para os objetos não-necessários e particulares (EN VI, 13, 1145 a 1-9). Através da phrónêsis, o indivíduo deve alcançar aquilo que promove o bem para a realização da máxima perfeição que é possível na indeterminação do contingente. Escolher os meios acertados significa uma antecipação dos fins, isto é, significa saber aonde se quer chegar. Como a ND`<0F4H não está relacionada com o necessário, estabelecendo um movimento contrário em relação à F@N\", ela não se determina em relação ao objeto (que é mutável), mas em relação à disposição individual para a ação contingente que busca alcançar um JX8@H. Sendo assim, o ND`<4:@H (indivíduo prudente) é aquele que conhece o particular, tendo a visão dos meios necessários para a realização dos fins, mas, também, possui o conhecimento universal do fim humano, tendo um tipo de conhecimento que engloba o 521 particular e o universal93. Aqui, se identifica o apoio da ND`<0F4H à F@N\", pois o ND`<4:@H deve possuir uma visão abrangente do todo, mesmo que não seja uma compreensão teórica da realidade que explica a partir de causas universais, e isto inclui o conhecimento dos particulares e o conhecimento dos princípios generalizantes usuais e universais, estando a phrónêsis em conformidade com a ÏD2ÎH 8`(@H (Farias, 1995, p. 215). Bibliografia ARISTÓTELES. Ethica Nicomachea. Ed. I. Bywater. Oxford: Oxford University Press, 1894 (Reimp.1962). _______. Ética a Nicômacos. 4. ed. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 2001. _______. Metafísica. Ed. G. Reale. Edição Bilíngüe (grego e português). Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2002, Vol.II. AUBENQUE, Pierre. La Prudence chez Aristote. 2. ed. Paris: PUF, 1976. _______. “Aristote etait-il communitariste?”. In: GÓMEZ, A.; CASTRO, R. En Torno a BERTI, Enrico. Aristóteles no Século XX (Aristotele nel Novecento). Trad. Dion Davi Macedo. 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A racionalidade, baseada na cientificidade e no plano empírico, passa a configurar-se na sociedade moderna como um dos poucos elementos no qual poder-se-ia chegar na verdade. Dessa forma, o pensamento racional contribuiu Professor de Filosofia da Faculdade Palotina (FAPAS). Endereço eletrônico: [email protected] 525 fortemente para a formação intelectual dos indivíduos, trazendo sérios problemas no que tange o campo educacional. Nesse sentido, a Teoria da Ação Comunicativa, do pensador alemão Jürgen Habermas, torna-se uma possível saída para a crise que estamos presenciando na educação. Assim, retomando a questão ética nos estabelecimentos de ensino, verificamos que ela não pretende combater a neutralidade de pensamento e ao mesmo tempo não ser um elemento que venha propor receitas prontas, mas acima de tudo colocarse como um chão promissor de discussões em diversos pontos, contribuindo para um melhor acabamento formativo para a educação. Implicações da racionalidade moderna A racionalidade moderna surge como uma reação a toda forma de pensamento que não tivesse como pano de fundo a cientificidade e o empírico em seus aportes teóricos. Se, por um lado, a Idade Medieval baseia-se numa iluminação Divina, por outro, a modernidade busca sustentação na razão humana, tendo como base inicial a teoria empirista de Francis Bacon94 (fundamento na obra Novum Organun), no qual procurava descartar a metafísica aristotélica das quatro causas, e reduzindo-as a apenas uma: a causa eficiente, no qual o autor atribui ao ser humano o total domínio sobre todos os fenômenos da natureza. 94 Bacon é considerado para muitos o “pai da era industrial”. Nasceu em 1561 na cidade inglesa de Londres, tendo sua morte ocorrida em 1626. Sua pretensão estava em criar uma “nova” ciência, tendo como base o método indutivo, capaz de dar ao ser humano um domínio sobre a natureza. A “verdadeira” filosofia para ele não é a ciência divina ou humana e nem a busca da verdade, mas é algo prático. 526 Bacon (1973, p. 20) no aforismo IX da obra Novum Organum afirma que: A verdadeira causa e raiz de todos os males que afetam as ciências é uma única: enquanto admiramos e exaltamos de modo falso os poderes da mente humana, não lhe buscamos auxílios adequados – e complementa – Todas aquelas belas meditações e especulações humanas, todas as controvérsias são coisas malsãs. Nessas palavras fica claro que o autor afirma que enquanto o ser humano permanecer no plano contemplativo ou simplesmente voltado as questões de ordem metafísica, não tendo um relacionamento direto com os objetos, não terá como dominá-los. Por sua vez, a teoria racionalista de René Descartes95 procura colocar o pensamento racional como ponto de partida para toda a espécie de conhecimento, sendo este, a única experiência que resiste às “ilusões” provocadas pelos sentidos. O referido autor rompe com o pensamento medievo que consiste na dependência do homem a Deus. Ele passa a ignorar a teoria hierárquica do grau das perfeições, no qual estão elementos metafísicos. O racionalismo cartesiano vai além de uma interpretação dos fenômenos naturais, e visa atingir o conhecimento por via da razão. A partir do método dedutivo e de uma investigação racional, por meio da matemática, chega-se ao conhecer. 95 Descartes nasceu em La Haye (França) em 1596 e morreu em 1650. Sua base de pensamento está voltada para alcançar um conhecimento das coisas tão exato quanto à exatidão da aritmética e geométrica. Parte da dúvida metódica está para chegar ao conhecimento. Em seu entendimento, a dúvida é o principio de tudo, menos da existência do que se duvida, pois é pela dúvida que se chega a conclusão de sua existência (primeira verdade). Partindo da dúvida se chega ao conhecimento exato das coisas. 527 Fica claro que os projetos bacaniano e cartesiano configuram um ser humano voltado à razão empírico-tecnicista. Sendo assim, a confiança fundamentada nas dimensões metafísicas, não ocupa mais sua devida importância. O homem moderno estimulado pelas ciências e pela técnica passa a exercer um domínio em todas as esferas humanas. As próprias relações passam a se tornar burocráticas e instrumentalizadas, voltando-se ao domínio da natureza e do próprio ser humano. Oliveira (1989, p. 183) afirma que: o ideal-base da modernidade, é hoje proclamada perversa: uma faculdade voltada para a dominação da natureza e através dela para a dominação sobre os próprios homens, força ambivalente, que pressupõe o sacrifício e a renúncia. A necessidade de sempre estar buscando uma melhor maneira de dominar a natureza resulta a renúncia da sua humanidade. Com o domínio tecnológico e cientifico, o homem não potencializou essas conquistas para resolver os problemas de convivência, de ética, de justiça, entre outros. Não muito diferente dessas dimensões, o projeto da modernidade transita nos estabelecimentos de ensino, no qual racionaliza-se o conhecimento, reificando os sujeitos. São visíveis as “patologias” oriundas da racionalidade moderna nos ambientes escolares, estabelecendo uma relação sujeito-objeto. Fica evidente que a educação está de certa forma ligada ao projeto inacabado da modernidade, no qual a idéia de técnico-pedagogização no ensino empobreceram as relações subjetivas, intersubjetivas e metafísicas, além do pensamento emancipatório dos sujeitos. A modernidade com seus 528 métodos e processos utilitaristas aprisionou os seres humanos gerando um certo descontentamento do mundo. A razão instrumental96 apropriou-se das esferas do conhecimento, impossibilitando as relações interpessoais, elevando-os a categoria de consumo e acima de tudo, fragmentando o saber, tornando a educação pouco crítica e criativa, ressaltando os conhecimentos racionais e técnicos. A ação comunicativa e suas contribuições para uma educação metafísica Diante dos efeitos causados pela crise da racionalidade moderna, muitos teóricos procuraram entender e tematizar essa problemática. Uma das mais severas críticas feitas à referida problemática consiste nos pareceres dos pensadores da Escola de Frankfurt. Contudo, a intenção não está no nível da crítica, mas procurar analisar quais elementos da modernidade pode ser potencializado. Nesse sentido, Habermas busca aportes teóricos para entender o projeto inacabado que sofre a razão científica. Sua pretensão está em formular uma teoria capaz de questionar os ideais científicos. Acreditando no grande potencial da racionalidade, Habermas visualiza a possibilidade da razão ser um instrumento no desenvolvimento da sociedade, dando um novo sentido para a mesma, pois conforme mencionado, a razão encontra-se em crise, mesmo sendo muito utilizada nos últimos séculos. Segundo o pensador alemão, essa problemática é decorrência da concepção dos pensadores modernos, que reduz tudo ao empírico96 O conceito de razão instrumental é utilizado pelos teóricos da Escola de Frankfurt. 529 instrumental e distanciando-se dos conhecimentos de outra ordem, entre eles a dimensão ética. Partindo disso, ele procura construir uma teoria capaz de desvencilhar dessa herança, não esquecendo da realidade e tendo preocupação com o ser humano e suas realidades. O modelo de racionalidade procura formatar um sujeito cognoscente que se relaciona com os outros seres com a pretensão de manipular. Para o autor, as relações estão no nível da intersubjetividade, a fim de construírem entendimentos sobre algo na busca do consenso, por isso, sua racionalidade não é técnico-científico, mas uma racionalidade mediada pela linguagem. Seguindo essa linha de pensamento, Prestes (1996, p. 293) afirma: Habermas acredita na possibilidade de que o universal venha a emergir na comunicação entre as diferentes experiências dos atores, nutridas pelas particularidades do mundo da vivido. Assim, a pluralidade, as diferenças não estão ameaçadas e a razão pode ser ‘a razão do todo e das partes’ (Habermas). Fica claro o posicionamento teórico adotado pelo pensador alemão, no qual consiste uma “reviravolta” na razão. Por isso, sua posição é a de resgatar a dimensão comunicativa esquecida nos discursos proclamados nos últimos séculos. Essa teoria, segundo ele mesmo afirma, é a de “investigar a razão inscrita na própria prática comunicativa cotidiana e reconstruir a partir da base de validez da fala um conceito não reduzido à razão” (Habermas, 1987, p. 506). A Teoria da Ação Comunicativa busca reconstruir teoricamente alguns pontos necessários para a formação do ser humano, visando acordos em que o melhor discurso tem sua validade para o momento em 530 que se vive. Assim, sua teoria é analisada num plano conceitual em que busca fundamentar os discursos, tanto do mundo sistêmico como no mundo vivido pelos interlocutores, como afirma Bernstein (1991, p. 48) A perspectiva teórica de Habermas (...) sublinha conceptualmente a necessidade de fomentar a racionalidade comunicativa do mundo da vida a fim de que se possa alcançar um equilíbrio adequado entre as exigências legitimas da racionalidade sistêmica e a racionalidade comunicativa do mundo da vida. Por meio da ação comunicativa os sujeitos devem direcionar os processos sistêmicos direcionando-os para a finalidade da vida humana, ampliando constantemente seus atos de fala, proporcionando um relacionamento mais ético entre os indivíduos. Embora seus estudos não tenham uma conotação pedagógica, a educação entendida na Teoria da Ação Comunicativa é a ação entre sujeitos que procuram desenvolver a capacidade de relacionamento mediado pela linguagem, com a pretensão de estabelecerem acordos no “plano de ação”. Essa “filosofia da linguagem” está centrada na intersubjetividade, indo mais além da dimensão da filosofia da consciência, que estabelece um diálogo entre o sujeito com sua própria razão, que em sua relação está entre o sujeito e o objeto. Por sua vez, a ação comunicativa está em colocar os sujeitos num embate, proporcionando acordos mais apropriados, estabelecendo uma relação sujeito-sujeito. Assim, Habermas (1987, p. 10) ao escrever a Teoria da Ação Comunicativa, destaca a finalidade da sua teoria, dando três pretensões, que consistem em: 531 1) um conceito de racionalidade, que faça frente às reduções cognitivo-instrumentais da razão; 2) um conceito de sociedade, que articule o mundo da vida e o mundo do sistema; 3) uma teoria de modernidade, que explique as patologias sociais. Fica evidente na primeira intenção que Habermas visa substituir a razão instrumental pela razão comunicativa, superando os impasses causados pelo projeto inacabado da modernidade, levando em conta as características e qualidades dessa razão. Por meio da razão comunicativa, o autor acentua que ela é capaz de colocar em relação o mundo físico, com seus objetos, com os outros aspectos ligados ao homem. A linguagem utilizada como interação visa o entendimento entre os sujeitos, sendo assim, é possível através da comunicação, formar entendimentos éticos e sociais entre os sujeitos. Fica evidente que a formação ética perpassa, segundo Habermas, uma conotação centrada na relação sujeito-sujeito, respeitando suas posições e possibilitando que os melhores argumentos sejam capazes de fundamentar a sociedade em que vivemos. Vale dizer que a ação comunicativa propicia a formação de sujeitos críticos, versáteis, com capacidade de fundamentação em seus atos de fala, e acima de tudo, a volta das discussões éticas como elemento educativo, não reduzindo a razão a questão técnicoinstrumental. 532 Bibliografia BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1973. BRENSTEIN, Richard. Habermas y la modernidad. 2ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 1991. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa: racionalidade de la acción y racionalización social. Trad. Espanhol: Manuel Jiménes Redondo. Madrid: Taurus, 1987. ___. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990. BOUFLEUER, José Pedro. Pedagogia da Ação Comunicativa: uma leitura de Habermas. Ijuí: Unijuí, 2001. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A modernidade. São Paulo: Loyola, 1989. filosofia na crise da PRESTES, Nadja Hermann. A perspectiva habermasiana na investigação científica: a racionalidade comunicativa na educação. Veritas, Porto Alegre, v. 41, n. 162, p. 291 – 297, junho 1996 a. ___. Educação e Racionalidade: conexões e possibilidade de uma razão comunicativa na escola. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996 b. 533 ÉTICA: UMA AÇÃO COMUNICATIVA Jerônimo José Brixner ∗ A pretensão do artigo é de reconstruir a concepção do ethos a partir da racionalidade habermasiana, com a intenção de organizar e justificar criticamente as diversas visões da ética no decorrer das tradições e pensamentos oriundos desde a antiguidade. Na tentativa de reduzir as questões éticas a um ponto de vista, Habermas discute a temática com a pretensão de construir acordos éticos mediados pela linguagem. Sua tentativa é a de dar bases teóricas para justificar os impasses que tanto o logos, como o pensamento medievo, bem como a racionalidade moderna causaram na elaboração das bases de sustentação no pensamento humano. Ética e moral Na tentativa de buscarmos uma compreensão da ética, torna-se necessário recorremos ao entendimento do conceito, a fim de que o mesmo não seja tomado como o equivente moral. Na seqüência, apresentamos algumas contribuições éticas na intenção de mediar acordos para uma melhor convivência humana ao longo da história. Coordenador do Curso de Filosofia e professor de Filosofia da FAPAS, Santa Maria, RS. Endereço eletrônico: [email protected] 534 Aristóteles entendia a ética como a filosofia das coisas humanas, pois ela ocupa-se dos fundamentos do agir humano. Nesse sentido, a palavra ética vem do grego ethos, que significa “caráter” ou “modo de ser”. A ética pode referir-se a costumes, normas, princípios e valores. Por sua vez, o conceito da palavra moral é derivado do latim “mos” ou “mores”, que quer dizer “costume” ou “costumes”. Assim sendo, moral significa conjunto de regras adquiridas por hábito, podendo ser mudado ao longo das transformações sociais. A ética tem a função de explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes. Ela busca os fundamentos das normas morais. Estas devem valer para toda uma sociedade. Por exemplo, a ética não diz quando ou que situações devemos fazer o bem, mas procura definir o que é o bem e justificar porque o bem é um valor fundamental para a pessoa. A moral, por sua vez, é a realização da ação. Como a moral é um comportamento adquirido ou modo de ser conquistado pelo homem, isso significa que ela pode ir mudando com a história, conforme referido acima. Na mudança que vai acontecendo na história, vai mudando também a conduta moral. Por isso, ela precisa ser revisada. Evolução sobre a discussão ética A ética, como fundamento do pensamento humano, tem sua origem na Grécia. Ela surge como uma necessidade de explicar e esclarecer a convivência das pessoas que se dá na polis (cidade). Até então, recorria-se a mitos para explicar os fenômenos, especialmente da natureza, que eram objeto da atenção das pessoas. Os mitos não conseguem fundamentar sistematicamente o agir humano. A ética 535 destaca-se como um dos elementos que fornece aos indivíduos capacidade de dicernimento e de orientação de forma racional (logos), indo na direção dos princípios para uma ação humana mais sensata. A ética como busca da felicidade A ética grega caracteriza-se, em geral, por fundamentar a ação humana na busca da felicidade (Eudaimonéo). Esta, por sua vez, pode ter conotações diferentes. A felicidade pode ser vista como o alcance do maior número de bens materiais ou exteriores, ou pode significar a conquista de bens interiores. Segundo Aristóteles (384-322 a.C.), a felicidade era o bem supremo ao qual o homem devia aspirar. A felicidade consiste em dinamizar um dos aspectos do homem, a razão. Com a realização do elemento racional humano, supõe-se que outras dimensões, como saúde, fortuna, situação social e outros, possam ir adquirindo êxito. O homem atinge a felicidade no exercício da virtude. Por virtude, Aristóteles compreende um saber prático. A virtude não é estática, mas um aprendizado suficientemente eficaz para garantir a ação virtuosa. A excelência moral, revelada pela prática da virtude, seria, antes de tudo, uma disposição de caráter (ética). Para o exercício da virtude seria, pois, necessário conhecer, julgar, ponderar, discernir e deliberar, para não cair em extremos. Na eleição dos bens e do modo de agir, o homem deve buscar o “justo meio”: nem um extremo, nem outro. A felicidade é alcançada quando o homem consegue aquilo que o realiza, especialmente como ser relacional. Cenci (2000, p. 41) comenta: 536 Para assegurar a especificidade do saber prático, Aristóteles tomou de empréstimo da aritmética a idéia do meio-termo. Há o meio-termo aritmético e o meio-termo para nós. O primeiro tem a pretensão de ser exato, pois visa indicar a distância precisa entre dois extremos; o segundo, não. O meio-termo para nós é o ajuste entre a falta, isto é, a deficiência moral (a falta de caráter) e o excesso. Fica claro que Aristóteles busca teoricamente elementos que propiciem uma ligação entre a teoria e a prática, em que a elevação de uma em detrimento de outra não torna favorável a realização plena da virtude (ética). Um dos pensadores de destaque dessa época é Epicuro (341271 a.C.), fundador do epicurismo. Sua moral é baseada no princípio de que o fim supremo da vida é o prazer espiritual; critério único de moralidade é o sentimento. O único bem é o prazer, como o único mal é a dor; nenhum prazer deve ser recusado, a não ser por causa de conseqüências dolorosas, e nenhum sofrimento deve ser aceito, a não ser em vista de um prazer, ou de nenhum sofrimento menor. No epicurismo não se trata, portanto, do prazer imediato, como é desejado pelo homem “vulgar”; ora, dessa forma, não se trata de qualquer prazer, mas aquele que está na elevação da alma, ou seja, prazeres mais duradouros e de certa forma mais estáveis. Por isso, fica claro que o ao tratar dos prazeres, Epicuro diz que é preciso não se deixar dominar por eles. A filosofia está nesta função de elevação da alma. O prazer espiritual diferencia-se do prazer sensível, porquanto o primeiro se estenderia também ao passado e ao futuro e transcende o segundo, que é unicamente presente. Verdade é que Epicuro mira os prazeres espirituais 537 como os mais altos prazeres. A condição fundamental da felicidade, segundo Epicuro, está na renúncia de tudo que possa perturbar o espírito. O maior prazer reside na satisfação das necessidades essenciais, evitando o sofrimento no corpo, buscando a tranquilidade e o sossego. O estoicismo, fundado por Zenão de Citium (334-262 a.C.), tem como base de pensamento não é o prazer, mas a virtude97; não é concebida como necessária condição para alcançar a felicidade, e sim como sendo ela própria um bem imediato. A felicidade do homem virtuoso é a libertação de toda perturbação, a tranqüilidade da alma, a independência interior, a autarquia. A ética medieval Na Idade Média, busca-se a felicidade não mais na razão ou nos prazeres, mas em Deus. É feliz a pessoa que busca e encontra Deus. Santo Agostinho (345-430) prega a elevação ascética a Deus, que culmina no êxtase místico ou felicidade, que não pode ser alcançada neste mundo. Santo Tomás de Aquino (1226-1274) coloca Deus como o bem objetivo ou fim supremo, cuja posse causa gozo ou felicidade. O fim último é alcançado pela contemplação e pelo conhecimento de Deus, como prova disso Tomás de Aquino referenda na sua obra Suma Teológica as cinco vias da existência de Deus. Aqui aparece o acento 97 Mondin (1977, p. 130-131) observa que “enquanto Aristóteles havia distinguido a felicidade da virtude (a felicidade é o fim último do homem, a virtude o meio para consegui-la), os estoicos a identificam, fazendo uma coisa só. A felicidade consiste na vida segundo a razão (segundo o Logos), ou, o que é o mesmo, na vida segundo a natureza (a natureza racional do homem), e a vida segundo a razão, para os estoicos, equivale à virtude. Mas o que se entende por virtude? A virtude é uma disposição interna da alma pela qual ela está em harmonia consigo mesma, ou seja com o próprio Logos”. 538 intelectualista, no qual o autor busca através da filosofia elementos intrínsecos para que sua ética tenha uma conotação divina. No período medieval, a questão ética é dinamizada pela instituição religiosa, chamada Igreja. As questões são atribuídas a Deus, sistematizadas pela Igreja. Ética na modernidade A ética na modernidade caracteriza-se pela laicidade, em contrapartida da ética teocêntrica do medioevo. Trata-se de uma ética centrada no homem, no Eu (subjetividade). Na época moderna, acentuase a dimensão da racionalidade humana baseada na cientificidade. Procura-se o fundamento da ação humana, não mais em Deus, mas na razão. Nesse período da história, acentua-se a ação do dever pelo dever, conforme a ética kantiana. A modernidade caracteriza-se pela cientificidade e pelo empirismo. Há um acento muito grande na ciência e no uso dos métodos científicos, deixando de lado o elemento metafísico. Nesse sentido, a ética é um elemento que tem um grau de importância pouco acentuado. Na contemporaneidade, encontramos uma vida moral e uma ética que se caracterizam de diversas maneiras: centrada no Eu, busca do estético, quebra das neuroses e repressões, crítica ao racionalismo, apelo à sensibilidade, valorização das emoções, educação para a liberdade, autonomia sem autocracia, heteronomia sem anulação. Em nosso tempo, diante de todas essas manifestações, surgem muitos questionamentos éticos. A ética é questionada. As perguntas que surgem nos tempos atuais são as seguintes: o A ética é apenas conceito ou vivência no cotidiano? 539 o Em nossa instituição vivemos em uma verdadeira “Morada”? o Quais são as referências éticas que temos? o Que referência ética nós somos? o Como trabalhar a eticidade sem cair no moralismo? E no Permissivismo? Como alternativa de resposta às interrogações acima feitas, buscamos em Habermas alguns pressupostos que podem auxiliar nessas questões e assim entendemos que possam fazer com que a ética ocupe uma posição de destaque na vida das pessoas e em seus relacionamentos. A ação comunicativa e suas contribuições para a ética O mundo contemporâneo apresenta desafios decorrentes dos progressos científicos e tecnológicos, que não encontram resposta nos modelos éticos tradicionais. Habermas busca uma reconstrução racional de uma ética universalista, através da ética discursiva. Segundo o pensador alemão, os pensadores modernos reduzem, de certa forma, as diversas áreas do saber no plano empírico-instrumental, o que ocasiona um afastamento das dimensões metafísicas, entre elas a ética. Habermas procura construir uma teoria que leve em conta as situações concretas do mundo da vida dos sujeitos, fazendo com que suas sistematizações não sejam distanciadas do mundo vivido. Segundo Habermas, a racionalidade técnico-científica não leva em conta as realidades que envolvem o ser humano e as relações entre as pessoas. Para o autor, as relações entre as pessoas estão no nível da intersubjetividade, propiciando uma construção de entendimentos 540 sobre algo através do consenso. Contudo, vale dizer que os argumentos devem ter uma pretensão de validade, devendo portanto estar fundamentados. Por isso, o pensador alemão deixa claro que é importante dizer que a racionalidade moderna não potencializou, de certa forma, seu projeto inicial e que é necessário aproveitar seus propósitos positivos e reconstruir o que não se concretizou. Sua racionalidade proporciona uma nova guinada, não mais na dimensão empírico-cientificista, mas por meio da linguagem. Nesse sentido, sua base teórica visa um entendimento ético fundamentado na comunicação, buscando uma solução consensual para os conflitos de ordem ética e moral, provindos de argumentos racionais. É pelo paradigma da linguagem que Habermas visualiza uma possível saída para a reconstrução das razões práticas. Suas bases normativas enquadram-se na compreensão adequada do agir comunicativo. Assim, a Teoria da Ação Comunicativa pretende reconstruir teoricamente alguns pontos necessários para a ação humana, tendo em vista acordos nos quais vence o melhor discurso, aquele mais fundamentado, e que valerá para o momento em que se vive. Aqui se levará em conta a sistematização e também a vivência. A sistematização deverá levar em conta a vivência humana, não podendo ser desvinculada da vida das pessoas. Na ética discursiva, a interação entre os indivíduos se dá pela linguagem. A ética discursiva não tem a mesma intenção da filosofia da consciência, que dinamiza a relação sujeito-objeto, ou seja, valoriza o sujeito que usa de sua razão. Mas, no paradigma habermasiano os níveis relacionais se encontram na relação sujeito-sujeito. Um indivíduo irá 541 estabelecer por meio de embates com o outro acordos de entendimentos éticos e sociais entre os sujeitos. Nesse sentido, Hermann (2001, p. 121) afirma: A validade das normas não depende de uma consciência solitária, mas de um acordo racionalmente motivado entre todos os envolvidos. As condições do discurso e o acordo racional obtido dependem de uma situação ideal de fala, que se caracteriza pela simetria de oportunidades dos que participam do diálogo. Com isso, vale ressaltar que a pretensão proposta pela racionalidade moderna propicia uma visão unilateral, não ampliando seus discursos, mas voltando-se a uma razão solitária. Em contra-partida, o pensamento habermasiano caminha na direção de acordos normativos por meio da razão dialógica, buscando fortalecer os atos de fala de maneira a produzir um discurso sem coações e valendo-se de bons argumentos. Habermas (1989, p. 153) diz que é preciso valer-se da situação ideal de fala, “em que as comunicações não só não vêm impedidas por influxos externos contingentes, como também por coações que se seguem da própria estrutura da comunicação. A situação ideal de fala exclui as distorções sistemáticas da comunicação”. Fica evidente, nessa citação, que o pensador atribui uma situação ideal de fala não recorrendo a coerções ou a ambientes empíricos, fora de uma realidade, mas a uma “suposição inevitável que reciprocamente nos fazemos nos discursos” (Ibidem, p. 155). Ora, assim sendo, um discurso ético deve, segundo o filósofo, passar pelas dimensões cognitivas, universais e formalistas. Por 542 isso, sua teoria acerca da ética não cai em um “vale tudo” ou a um relativismo, mas baseia-se em pretensões válidas, com suas fundamentações adequadas, mediadas pelas relações intersubjetivas. De modo geral, sua ética foge ao paradigma ditado pela filosofia da consciência e assegura-se pelo pressuposto da comunicação, valendo-se das tradições e procurando, através da hermenêutica, proceder suas bases teóricas de fundamentação. Bibliografia BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1973. BOUFLEUER, José Pedro. Pedagogia da Ação Comunicativa: uma leitura de Habermas. Ijuí: Unijuí, 2001. BRENSTEIN, Richard. Habermas y la modernidad. 2ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 1991. CENCI, Angelo Vitório. O que é ética? Elementos em torno de uma ética geral. Passo Fundo: EDIUPF, 2000. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990. ___. Teoria de la acción comunicativa: complementos y estudios prévios. Trad. de Manuel Jiménez Redondo. Madri: Catedra, 1989. ___. Teoria de la acción comunicativa: racionalidade de la acción y racionalización social. Trad. Espanhol: Manuel Jiménes Redondo. Madrid: Taurus, 1987. HERMANN, Nadja. Pluralidade e ética em Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. MONDIN, Battista. I Filosofi dell’Occidente: Corso de storia della filosofia. Volume primo. Milano: Editrice Massimo, 1977. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A modernidade. São Paulo: Loyola, 1989. filosofia na crise da 543 PRESTES, Nadja Hermann. A perspectiva habermasiana na investigação científica: a racionalidade comunicativa na educação. Veritas, Porto Alegre, v. 41, n. 162, p. 291 – 297, junho 1996 a. ____. Educação e Racionalidade: conexões e possibilidade de uma razão comunicativa na escola. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996 b. SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Jürgen Habermas: razão comunicativa e emancipação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. 544