Experiência formativa e filosofia: a diversidade na perspectiva deweyana Cosmo Rafael Gonzatto* Dewey escreve a sua obra intitulada Reconstrução em filosofia logo após a primeira Guerra Mundial diante de um contexto social em que o avanço tecnológico se encontrava em constante desenvolvimento. A tecnologia se mostrava em forte crescimento e, em função da situação pós-guerra, ainda havia um conflito entre os avanços tecnológicos e a antiga tradição filosófica que estava sendo questionada. O texto tem por objetivo principal relatar as principais ideias dessa nova proposta filosófica apresentada pelo pragmatista americano John Dewey na sua obra intitulada Reconstrução em Filosofia, a qual será a fonte principal de estudo, sendo que, a partir dela, reconstrói-se as principais ideias, que são apresentadas neste artigo. O texto está dividido em três partes: a primeira apresenta os principais motivos que impulsionaram o autor a escrever esta obra; a segunda mostra a conceitualização histórica que é elaborada para o surgimento da filosofia; a terceira mostra os principais fatores científicos que impulsionaram a reconstrução em filosofia e os efeitos que essa reconstrução filosófica trará para a vida social. Ao escrever essa obra, Dewey se mostrou bastante otimista quanto à perspectiva do nascimento de uma nova filosofia, pois ele conseguia * Graduando em filosofia (UPF). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 42, jan./jun. 2013 125 projetar o homem a um futuro não tão distante, mas com valores e princípios, pois, mesmo em meio a tantos movimentos sociais perturbadores que ocorriam em sua época, como a segunda guerra mundial e todo o entusiasmo pela tecnologia, o filósofo nunca deixou de acreditar na esperança de um mundo melhor, onde a filosofia descesse do seu trono metafísico contemplativo e pudesse auxiliar nos problemas encontrados no mundo cotidiano. Uma revisão crítica da filosofia tradicional Ao ler a obra Reconstrução em filosofia de John Dewey, podemos observar a maneira como o autor descreve a crítica que faz à filosofia e à forma como ela é inserida no contexto atual. Para ele, a filosofia se distancia do contexto social atual no qual vivemos, pois os problemas atuais são bastante diferentes dos problemas que eram abordados no passado. Para isso o autor sugere que a filosofia seja reformulada, inserida no momento presente de modo que possam ser revistos os conceitos antigos. Portanto, a filosofia, ao evoluir e se colocar ao lado da humanidade, não se distanciando dela, poderia ajudar a contribuir para a solução dos problemas encontrados pelos homens. O filósofo da educação não está querendo dizer que não se deve deixar de ler a filosofia do passado. Sugere, sim ler, mas para melhor compreendê-la e inseri-la no contexto atual. Pois, ao estudar a filosofia do passado, busca-se respostas para resolver os nossos problemas atuais, pois as filosofias antigas foram escritas para enfrentar problemas passados. Através dessa interpretação da filosofia do passado e sua inserção no contexto atual é que se poderá buscar respostas para os nossos problemas presentes. Segundo Dewey (1959c), aqueles que buscam a verdade, as respostas, para os problemas atuais na tradição (filosofia clássica da Grécia), estão totalmente errados, pois não têm como querer buscar as respostas num contexto diferente daquele que presenciamos hoje. Não estamos aqui querendo dizer ou induzir à conclusão de que a tradição deva ou deverá de ser deixada de lado ou esquecida, mas sim que se deve reconstruir os conceitos da tradição para que se possa inseri-los no contexto atual fazendo com que, dessa forma, possam auxiliar na tentativa de resolver os problemas atualmente existentes. 126 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 42, jan./jun. 2013 Conforme Dewey (1959c), a filosofia tradicional deveria ser revista, reavaliada e seus conceitos inseridos de uma maneira que pudessem acabar com os dualismos existentes que operam no nosso dia-dia. A filosofia haveria de deixar seu trono de dona da razão, para algo mais simples e não tão distante dos problemas atuais, podendo assim aliar-se à ciência para tentar solucionar os problemas atuais. Como descreve o próprio filósofo: A alternativa é a reconstrução generalizada e de tal modo fundamental de nossas ideias à luz da noção de que, embora os males presentes resultem da penetração da “ciência” em nosso modo de viver, é, todavia inegável que eles são devidos a não havermos, até o presente, envidado esforços sistemáticos no sentido de submeter a “moral”, subjacente aos velhos costumes institucionais, à pesquisa e a critica cientifica. Este trabalho reconstrutivo que a filosofia compete executar (DEWEY, 1959c, p. 30). Os problemas atuais não são mais fruto das religiões ou crenças, mas sim dos resultados que a ciência tem provocado ao penetrar tão grandiosamente no cotidiano do ser humano. Já que apenas se preocupa com os problemas materiais, deixa a moralidade a cuidados de uma autoridade superior que determinaria as normas e condutas de comportamento dos indivíduos. Os filósofos, a filosofia, não têm a capacidade de mandar a ciência crescer, mas sim de auxilia-la no seu próprio crescimento, indicando os caminhos a serem desenvolvidos de uma maneira que não prejudicaria a humanidade e ajudando a extrair dela alguns valores impróprios (egoísmo) e auxiliando na construção de outros. Com o avanço da ciência e de suas tecnologias, a moralidade acabou por perder em muitos aspectos. O surgimento da filosofia Podemos observar que a diferença entre o ser humano e o animal encontra-se no modo de agir, já que o humano o faz racionalmente. Enquanto o ser humano vive de uma maneira que consegue guardar símbolos e até mesmo assimilá-los aos fatos futuros em uma experiência Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 42, jan./jun. 2013 127 própria; os animais têm apenas esses símbolos como aspectos físicos e momentâneos que logo em seguida passam despercebidos ao mesmo acontecimento ou fato. Mas nem sempre o ser humano consegue recordar o que é exato ou o que deveria ser, pois geralmente revive apenas aquilo que lhe interessa. Vejamos melhor nas palavras de Dewey o que fala sobre esse assunto: O homem difere-se dos animais inferiores por ser capaz de reter as experiências passadas. Revive pela memória o que antes sucedeu. Envolve os acontecimentos presente toda uma nuvem de pensamentos ligados a coisas semelhantes decorridas em tempos idos. Com os animais, a experiência, uma vez verificada cessa, e cada nova ação ou paixão se revela isolada ou independente (DEWEY, 1959c, p. 44). Percebemos então que todo o conhecimento adquirido pelos homens no decorrer do tempo não é fruto de sua imaginação isolada ou até mesmo de inspiração, mas que esses conhecimentos são oriundos das experiências passadas. Nas palavras de Dewey “a realidade é que o homem, em derradeira instância, não pode ser, de maneira nenhuma, criatura que viva totalmente de sugestão e fantasia. A cada momento, as exigências da vida requerem atenção aos fatos reais do mundo” (1959c, p. 50). E é a partir desses e outros fatores que começa a surgir a filosofia. Sócrates e Platão se questionavam se realmente as velhas crenças da sociedade eram válidas e começam a elaborar novos métodos de forma racional. Desenvolveram um pensamento crítico, pois não aceitavam como o povo era subordinado e escravizado a essas crenças e mitos e tentavam fazer com que seus discípulos ou seguidores os ouvissem de uma maneira que também conseguissem observar as coisas a partir de uma visão crítica. A filosofia não surgiu como um fato isolado, onde um homem de grande capacidade intelectual se isolou da sociedade e se dedicou exclusivamente ao desenvolvimento de seu intelecto. Pelo contrário, a filosofia surgiu no meio de problemas sociais e como busca de respostas para encontrar caminhos para ter um futuro melhor. 128 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 42, jan./jun. 2013 O surgimento e os efeitos da reconstrução filosófica para a sociedade Nas palavras de Dewey, “a filosofia começa com uma certa maneira profunda e ampla de responder às dificuldades que a vida apresenta, mas desenvolve-se apenas quando tem à mão os materiais necessários para que essa resposta seja consciente, articulada e comunicável” (1959c, p. 81). Em outras épocas, o mundo em que os filósofos se baseavam e se inspiravam a pensar, a elaborar conceitos e teorias, era um mundo bastante limitado e fechado. O mundo da ciência, por outro lado, é bastante amplo, aberto, e não está limitado. Ou seja, a diferença está na concepção de verdade ou na definição de algo: os filósofos em acreditavam ter encontrando a verdade, limitando-a; a ciência tem se esforçado para buscar respostas sempre tendo consciência de que o que busca é infinito e modificável. Vejamos melhor nas palavras do próprio Dewey: A ciência moderna iniciou seus primeiros passos, quando os astrônomos destemidos aboliram a distinção entre forças elevada, sublimes e ideias atuantes no céu, e forças baixas e materiais que atuam sobre os acontecimentos terrestres. Foi negada a pretensa heterogeneidade de substâncias e forças entre o céu e a terra; e afirmou-se que as mesmas leis são válidas em toda a parte, que existe homogeneidade de material e de processo em todos os recantos da natureza (DEWEY, 1959c, p. 89). A ciência moderna começou as suas atividades quando alguns astrônomos sem medo de futuros comentários começaram a investigar o céu e então perceberam que as forças que atuavam na terra sobre os homens e os demais seres que aqui viviam, não eram forças sobrenaturais, originárias do céu, e que essas forças atuavam em toda a parte da natureza, negando a existência dessa força superior e passando à explicação desse fenômeno através de acontecimentos e forças mundanas. Uma das principais descobertas da ciência foi a de afirmar que a terra não era mais o centro do universo, refutando a teoria de que todos os astros giravam a redor dela. Segundo Dewey (1959c), Bacon condena a sociedade da sua época (século XVI e XVII), afirmando que as pessoas ocupavam-se apenas em adquirir o saber pelo simples fato de buscarem status e erudição. Descreve Dewey: Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 42, jan./jun. 2013 129 O mais conhecido aforismo de Bacon diz: Conhecer é Poder. Levado por esse critério pragmático, Bacon condenou em bloco todo o saber então existe como não- conhecimento, como conhecimento falso e pretensioso, pela simples razão de que não gerava o poder. Era tão ocioso, inoperante. Em sua prolixa argumentação, classificava o saber erudito da sua época com três rótulos: sutil, fantástico e litigioso. Sob o titulo de sutil inclui a erudição literária, a qual, mediante o reflorescimento das línguas e literaturas antigas, ocupou relevante lugar na vida intelectual do Renascimento. [...] Tal saber contribuía, não para granjear poder, mas tão-só para servir de ornamento e decoração. Não passava de ostentação e luxo [...] (DEWEY, 1959c, p. 63-64). Bacon foi contra o pensamento tradicional, o escolástico, afirmando que o conhecimento deveria deixar de ser algo ostentoso, de luxo, e deveria passar a ser prático, de forma que se pudesse usar esse conhecimento e instrumentalizar a natureza. O conhecimento deixaria de ser limitado, algo que as pessoas não desejariam modificar ou criticar, e passaria a ser modificável. Com base no exposto, nos perguntamos: como essas mudanças podem influenciar a filosofia social? Primeiramente, é importante ressaltarmos que as sociedades são compostas por indivíduos e, sendo assim, existem alternativas para responder à pergunta: a) a sociedade deve existir para o bem dos indivíduos; b) os indivíduos devem ter seus fins e modo de viver estabelecidos pela sociedade; e c) a sociedade e os indivíduos são correlativos, formando um todo orgânico, cabendo à sociedade exigir o serviço e a subordinação dos indivíduos e, ao mesmo tempo, existir para servi-los (DEWEY, 1959c, p. 177). Já que a sociedade é composta de indivíduos, as relações que existem entre eles e a importância dela deve ser as mesma para que eles possam se manter unidos. É necessário a existência de associações, leis, estado, família, igrejas, pois, só assim os indivíduos poderão crescer e encontrar as suas funções e capacidades específicas dentro da sociedade. Para resolver, o correto seria fazer uma análise particular de cada problema, tendo a filosofia da tradição como guia, mas não como regra absoluta e suprema. A particularidade de cada indivíduo em uma sociedade não deve ser desconsiderada ou analisada como um todo, pois cada sociedade tem uma conduta diferente e um tipo de indivíduo diferente que a constitui. Na visão de Dewey, “as instituições são então 130 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 42, jan./jun. 2013 analisadas à base de seus efeitos educativos: – em referência aos tipos de indivíduos que fomentam ao passo que os interesses pela elevação moral individual se identifica com o interesse social pela reforma objetiva das condições econômicas e políticas” (1959c, p. 183). Segundo Dewey (1959c), sociedades são vários grupos de pessoas reunidas entre si que visam, através das trocas de experiências, ideias e emoções, enriquecer todos os que vivem nessa sociedade. Essa troca de experiência deve ser observada como algo recíproco, pois se assim não for será apenas cada indivíduo denominado como mero simples animal desprovido de inteligência. Conforme Dewey (1959c) é entrando em contato com outros seres humanos, que os humanos se tornam o centro consciente de experiências. A personalidade de cada indivíduo deve ser educada conforme o que é comum no grupo em que ele vive. Pois, podemos perceber que as experiências não acontecem apenas dentro de cada indivíduo e, por isso, não devemos ignorar que vivemos num mundo repleto de transformações no qual, desde o nosso nascimento até a morte, temos contato com outras pessoas, acabando por gerar inúmeros conhecimentos transmitidos entre as pessoas, de gerações para gerações. No entanto, como os seres humanos podem fazer o uso da sua experiência para que ela possa servir como instrumento condutor de boas ações futuras e evitar que ele tenha maus resultados em suas ações? Dewey acredita que é através da observação da nossa experiência. Para o filósofo da educação, a experiência consiste na condição de conduzir o indivíduo, através de sua ação, a outra ação futura, para que ele possa futuramente prever uma nova ação e conceber um novo conhecimento, aperfeiçoando-se, assim, a cada nova ação. Esse conhecimento é sempre um processo de transformação. Para Dewey, a experiência é usada como uma forma de ver melhorias e sugestões para as experiências futuras, sendo que os indivíduos devem usar as suas experiências passadas para ajudar a construir as situações futuras. Assim, a experiência se inclui no próprio processo de aperfeiçoamento. Descreve Dewey: [...] A experiência contém em si princípios de conexão e de organização, e tais princípios não são de maneira alguma sem valor, porque antes do que epistemológicos, sejam vitais e práticos. Mesmo nos níveis ínfimos de vida se torna indispensável algum grau de organização. A própria ameba necessita de ter, no tempo, Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 42, jan./jun. 2013 131 alguma adaptação ao meio ambiente. Sua vida e experiência não podem consistir em sensações atomizadas momentâneas, auto-enclausuradas. Sua atividade está em referencia com o ambiente e com o que já aconteceu ou está para acontecer. Esta organização, intrínseca á vida, torna desnecessária uma síntese sobrenatural e sobre-empirica, ao mesmo tempo em que ministra a base e o material para o desenvolvimento da inteligência como fator organizador dentro da experiência (DEWEY, 1959c, p. 107-108). A filosofia proposta por Dewey sugere formar indivíduos autônomos que possam ser capazes de aprender através das relações com o meio em que estão inseridos e nas trocas de experiências com outros seres humanos. A autonomia não implica total liberdade de ação, mas sim na capacidade de prever e usar a inteligência para os fins e meios, para evitar o malogro de suas ações e poder prever um fim com maior êxito. Assim, o texto sinalizada para a necessidade de uma reconstrução da filosofia que tem como base a experiência do homem, sendo que para isso a filosofia deve descer do seu trono metafísico e ajudar a pensar os atuais problemas que se encontram em nosso meio. Considerações finais Nesse texto, no qual tentamos reconstruir as principais ideias da obra Reconstrução em Filosofia, pudemos perceber que a proposta filosófica elaborada por Dewey consiste basicamente na teoria de reconstrução da experiência que, quando observada e usada corretamente para os fins a que se destina, ajuda a formar indivíduos dotados de uma capacidade de observar e modificar a si próprios e o ambiente em que vivem. Uma ação assim impostada pode formar uma sociedade mais evoluída, em que a mesma tentará acompanhar a evolução cientifica, sem deixar para trás os valores morais e éticos que conduzem a humanidade. A filosofia deweyana propõe atuar no âmbito educacional de modo a ajudar a formar indivíduos dotados de um pensamento reflexivo e crítico para proporcionar a construção da autonomia nos sujeitos a fim de que possam fazer bom uso de suas ações para ajudar a modificar os problemas que são encontrados na sociedade em que vivem. 132 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 42, jan./jun. 2013 Dewey tinha uma grande esperança na humanidade e tinha a intenção de direcionar a filosofia a um novo caminho. Ele também desejava reconstruir a filosofia, tornando-a mais atual, para que ela não fosse reconhecida como algo ultrapassado e desatualizado, mas pudesse auxiliar os seres humanos nas soluções dos seus problemas atuais. Referências bibliográficas DEWEY, John. Como Pensamos. Trad. Hayée de Camargo Campos. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959a. ______. Democracia e Educação. Trad. Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959b. ______. Reconstrução em Filosofia. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959c. ______. Experiência e educação. São Paulo: Editora Nacional, 1979. FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina (Orgs.). Leituras sobre John Dewey e a educação. Campinas: Mercado de Letras, 2011. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 42, jan./jun. 2013 133