36 3 A família e o tratamento da bulimia nervosa 3.1 As características e a dinâmica das famílias de pacientes com transtornos alimentares A etiologia dos transtornos alimentares é multifatorial, ou seja, existe uma interação dos fatores psicológicos, biológicos, sociais e familiares. Porém, apenas um desses fatores não é capaz de desencadear um quadro de anorexia ou bulimia PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA nervosa, ainda que algumas características sejam comuns nas famílias de pacientes com transtornos alimentares. Para Schomer (2003), as principais delas são o perfeccionismo, bom comportamento, superproteção dos filhos – que diminui a autonomia destes, aglutinação e pouca diferenciação dos membros, rígido controle das emoções, hipermoralidade, falta de comunicação, dificuldade em fazer elogios – que pode incentivar uma autoestima baixa, preocupação extrema com a aparência e com dietas, dificuldade de organização e poucas regras estabelecidas, pais com dificuldades em impor limites e autoridade, além de uma instabilidade emocional. Casos de abuso de álcool e drogas também são frequentes, assim como outros transtornos psiquiátricos (Schomer, 2003; Fasolo & Diniz, 2002; Morgan, Vecchiatti & Negrão, 2002). Além disso, Schomer (2003) também aborda a questão do sofrimento familiar, que difere entre as famílias de pacientes com transtornos alimentares e pode ser distribuído pela família ou recair somente sobre um de seus membros. Esse sofrimento geralmente é provocado por algum conflito parental, nascimento ou falecimento de alguém importante ou uma doença na família, que antecede a anorexia ou a bulimia, podendo interferir em seu surgimento e desenvolvimento. Muitas vezes, a gravidade do transtorno alimentar impede que esse sofrimento anterior seja vivido e com isso, ele só reaparece e pode ser trabalhado quando a paciente apresenta melhoras. Esse funcionamento mostra como a família mobiliza 37 e é mobilizada por um transtorno alimentar e vice-versa (Schomer, 2003; Fasolo & Diniz, 2002; Herscovici, 1997; Roberto, 1994). O corpo fala e fala especialmente aqueles sentimentos que ainda não puderam ser expressos com o simbolismo das palavras. Muitas vezes, os conflitos psicológicos e as disfunções familiares são manifestadas na magreza auto-imposta, na purgação, nos ataques de comer, nas atividades físicas exageradas e no uso de medicamentos, na maioria autoprescritos (…). Os transtornos alimentares (TAs) são considerados, por muitos autores, como expressão das dificuldades na comunicação familiar (…). Podemos dizer que encontraremos uma “magreza de sentimentos” com hipervalorização do corpo expressando sintomas e manifestações mais ruidosas, como o emagrecimento e o deixar de sangrar (amenorréia). (Barros & Jaeger, 2006, p.285 e 286) Outra autora que também estudou o sofrimento nas famílias de pacientes com transtornos alimentares foi Roberto (1994). Segundo ela, a família ignora os PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA problemas alimentares do paciente na tentativa de não piorar as tensões e os sintomas, sendo assim, a harmonia familiar é mantida pela evitação. Os sintomas alimentares surgem como uma forma de expressar comunicações secretas e metafóricas à família sem que haja conflitos. Esta autora compreende os sintomas como metáforas para o sofrimento, uma vez que essas famílias têm dificuldades para tolerar e integrar as diferenças individuais. Roberto (1994) também concorda com outros autores no que diz respeito a algumas características dessas famílias, tais como: baixo índice de resolução de conflitos, comunicação com prejuízos e falhas, perfeccionismo, ênfase na aparência, na posição social e no autocontrole. A autora acredita que quando uma pessoa não tem consciência de seu estresse interno, ela não reflete sobre novas possibilidades e alternativas, o que faz com que a situação não mude. Sendo assim, muitas dessas pessoas, preferindo evitar qualquer crítica externa ou falta de apoio, criam um segredo dentro de si mesmas sobre sua própria infelicidade. Os julgamentos negativos e os comportamentos autopunitivos das pacientes com transtornos alimentares podem ser o reflexo de uma ansiedade que elas preferem direcionar para si ao invés de enfrentar o mundo e buscar satisfazer suas reais necessidades. 38 É difícil imaginar que uma mulher jovem possa vir a ter um peso significativamente abaixo do normal ou usar técnicas invasivas de purgação como o vômito persistente ou abuso de laxantes sem criar alta ansiedade em seu companheiro ou na família. Contudo, as estratégias de enfrentamento que ela e os que a rodeiam desenvolvem ao longo do tempo em uma mútua acomodação realmente permitem que seu comportamento ocorra sem intervenção. O resultado é que a família age como se o comportamento fosse invisível, apesar de a alimentação da anoréxica ser altamente ritualística, óbvia e extremamente perturbadora. (Roberto, 1994, p.172) A influência de um transtorno alimentar na família em geral também é discutida por Herscovici (1997), que relatou que quando um membro da família desenvolve um transtorno alimentar, todos os familiares são envolvidos, seja na forma como interferem nas situações em casa ou no modo como reagem aos sintomas do paciente: “Ninguém de casa fica isento de ser afetado de alguma maneira PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA e, portanto, o doente não é o único da família a ter problemas” (p. 37). Ainda segundo a mesma autora, as mães de pacientes com bulimia nervosa ou anorexia do tipo bulímico apresentam uma maior incidência de obesidade e de transtorno da compulsão alimentar periódica, além de transtornos afetivos e alcoolismo. As famílias de pacientes com bulimia ou anorexia nervosa do tipo bulímico também têm o nível de conflito mais acentuado e explícito. Geralmente, os pais se sentem enganados e impotentes diante do encobrimento dos sintomas dos filhos que, por sua vez, se sentem controlados, espiados e frustrados por não conseguir moderar suas compulsões. Essa situação contribui para um clima de brigas, que impera nessas famílias. O desacordo conjugal é mais notório nessas famílias, enquanto a coesão e o apego são maiores nas famílias das paciente com o diagnóstico de anorexia nervosa do tipo restritivo. De acordo com essas características, nota-se um padrão de retroalimentação, ou seja, os sintomas dos transtornos alimentares podem ser acentuados a partir de uma disfunção familiar e esta, por sua vez, pode ser agravada com os comportamentos do membro portador deste transtorno. De acordo com Herscovici (1997), as pacientes com bulimia nervosa e anorexia do tipo bulímico geralmente apresentam um nível maior de conflito e pior relação emocional com os pais, além de terem um relacionamento mais distante com o pai. A autora reúne mais algumas características das famílias de 39 mulheres com bulimia nervosa: ambos os pais são mais exigentes e aumentam a rivalidade entre os irmãos, comparando-os abertamente; as mães têm maiores expectativas de sucesso social e acadêmico para as suas filhas; as mães têm mais problemas em relação ao controle da conduta da filha; os pais apresentam depressão, rigidez, excessiva autodisciplina e distância emocional e o nível de tensão na família e entre os pais e a filha é muito elevado. Segundo a autora, conforme a paciente melhora do transtorno alimentar, a família é beneficiada e a percepção em relação aos conflitos na família melhora. Alguns tipos de organização familiar quando um membro sofre de um transtorno alimentar também são discutidos por esta autora. O primeiro ponto abordado pela autora é a rigidez das regras. Todas as famílias funcionam a partir de regras, implícitas ou explícitas, mas parece que as das famílias em questão não PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA são flexíveis o suficiente para se adequarem aos novos requisitos desta situação. As regras que já foram úteis em algum momento não são atualizadas e acabam inibindo o crescimento e desenvolvimento da família, fazendo com que a pessoa sintomática responda a um problema às custas de sua saúde, talvez como uma forma de provocar mudanças. O segundo ponto diz respeito às fronteiras problemáticas. As famílias estabelecem fronteiras para delimitar o espaço que cada um ocupa em determinada situação. Quando essas fronteiras são difusas, um membro ocupa o lugar físico ou mental de outro membro. Porém, quando são rígidas demais, a família precisa de flexibilidade para lidar com as mudanças inerentes à vida. Nesses casos, a autonomia dos filhos é prejudicada e muitos deles acreditam que o seu peso e sua comida são as únicas coisas que lhes cabem controlar e administrar. Qualquer um desses extremos acarreta problemas para as famílias, que têm que aprender a equilibrar e a saber em qual momento flexibilizar ou enrijecer suas regras e fronteiras. Em todo o caso, o sintoma deve ser entendido como um sinal e também uma oportunidade para modificar as regras costumeiras e os modos de relação entre as pessoas implicadas. (Herscovici, 1997, p. 56) O terceiro ponto abordado pela autora consiste nas hierarquias alternadas, ou seja, quando os filhos ditam as normas da casa ao invés disto ser 40 responsabilidade dos pais. O quarto e último ponto se refere às falhas no controle, que ocorrem geralmente quando há um desacordo entre os pais sobre a criação dos filhos. Segundo Herscovici (1997), esse desacordo costuma ser mais encoberto pelos pais das pacientes com anorexia nervosa e mais manifesto pelos pais das que têm o diagnóstico de bulimia nervosa. As pacientes que tem o diagnóstico de anorexia nervosa, na maior parte das vezes, reagem com submissão, enquanto as que têm bulimia nervosa, com hostilidade. Além disso, é comum nessas famílias a existência de alianças entre a paciente e um dos pais, excluindo o outro. Frequentemente um dos pais fica como cúmplice da filha, sendo complacente com os seus sintomas, enquanto o outro assume uma postura mais severa e disciplinar e, consequentemente, é deixado de fora de algumas situações, o que reforça a manutenção da situação problemática. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA Herscovici (1997) conclui enfatizando que nenhuma situação familiar por si só é capaz de provocar o surgimento de um transtorno alimentar. Alguns fatores podem contribuir para o desencadeamento e o reforço de uma sintomatologia, que gera sofrimento para o paciente, sua família e todos ao seu redor. A relação entre os membros dessas famílias também é um assunto que interessa a diversos outros autores. Muitos relatam que, na maioria dos casos, o pai é mais distante ou ausente e a mãe ocupa um espaço maior dentro dessas famílias. A mãe geralmente é muito protetora, controladora e invasiva e a relação com a filha costuma ser bem simbiótica (Schomer, 2003; Morgan et al., 2002; Herscovici, 1997). O transtorno alimentar pode surgir como forma da filha se mostrar independente dessa mãe, controlando o que sente que é apenas seu, ou seja, seu corpo, sua alimentação e seu peso. Uma hipótese levantada por alguns autores é de que a relação com as irmãs pode ser de competição pela atenção dos pais, o que aumenta a chance do desenvolvimento de anorexia ou bulimia por mais de um filho (Schomer, 2003, Herscovici, 1997). Alguns estudos mostram que as opiniões e os juízos dos pais, a respeito do tamanho das diversas zonas do corpo, influenciam a paciente e poderiam condicionar a evolução de seu transtorno. Há famílias nas quais a valorização pessoal depende em grande parte do aspecto físico, e com frequência esse valor é transmitido de geração em geração. (Herscovici, 1997, p. 43) 41 Agras, Hammer & McNicholas (1999) verificaram que a insatisfação corporal da mãe, a internalização do ideal de magreza, as dietas constantes, os sintomas bulímicos e o maior IMC da mãe e do pai aumentam a chance do surgimento de problemas alimentares na infância, proporcionando um maior risco para o desenvolvimento de um transtorno alimentar no futuro. As mães que apresentam algum transtorno alimentar influenciam negativamente no comportamento de seus filhos, segundo Hodes, Timimi & Robinson (1997), pois se comunicam através da comida e se preocupam com o peso de suas filhas desde que elas completam dois anos de idade. Apesar disso não ser o suficiente para que os filhos desenvolvam um transtorno alimentar, 50% deles apresentam transtornos psiquiátricos. Laliberté, Boland & Leichner (1999), por sua vez, evidenciaram com seus PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA estudos que as famílias de pacientes de transtornos alimentares costumam valorizar a aparência física, as conquistas pessoais e a reputação familiar. Com isso, o paciente poderia recorrer à dieta como uma tentativa de se enquadrar nos padrões sociais de estética. McNamara & Loveman (1990) concluíram que pacientes com bulimia nervosa consideram suas famílias mais disfuncionais do que as pessoas de um grupo controle, sendo as principais queixas relativas ao pouco afeto, comunicação não satisfatória e dificuldade para resolução de conflitos entre os membros. Strober, Freeman, Lampert, Diamnd & Kayen (2000), por sua vez, também concluíram que anorexia e bulimia nervosa seriam doenças familiares e acometeriam com mais frequência os parentes de pacientes com anorexia do que as pessoas que não tivessem este diagnóstico. Outros autores também defendem a ideia de que as disfunções familiares - ou a desarmonia familiar, a falta de afeto entre os membros da família, a comunicação pobre, a preocupação excessiva com a aparência ou o clima familiar - contribuem para a predisposição e para a perpetuação dos transtornos alimentares (Bryan-Waugh, 1995; Laliberté, Boland, Leichner, 1999; Fráguas, 2009). Segundo Buckroyd (2000), os pacientes que desenvolvem bulimia ou anorexia nervosa sofrem uma forte influência da forma como sua família lida com 42 os sentimentos. Muitas desestimulam, por exemplo, a expressão espontânea das emoções, principalmente as consideradas negativas, como a raiva ou a frustração. A autora cria categorias para representar essas famílias. A “família controladora” é aquela que formula regras para controlar o que pode ser expresso, em quais situações e por quais membros da família. Nesses casos, os filhos são os que mais sofrem porque não sabem quando é seguro expressar o que sentem. Já a “família legal” demonstra não ter problemas e nenhum membro pode expressar o que acontece emocionalmente com ele. A “família que tem coisas demais para enfrentar” é aquela em que os pais vivem sobrecarregados e não têm disponibilidade para dar atenção aos filhos que, por sua vez, aprendem a lidar sozinhos com seus sentimentos e necessidades. As crianças que nascem nessas famílias costumam ter dificuldades em PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA identificar seus sentimentos e expressá-los, já que são treinadas a controlá-los ao máximo para agradar aos pais. Como consequência disso, buscam meios menos saudáveis para demonstrar o que sentem. Os meninos geralmente buscam alvos externos – pessoas ou propriedades – e podem se comportar de maneira mais violenta ou até mesmo criminosa. Já as meninas costumam agredir a si próprias, através de automutilação, comportamentos sexuais promíscuos ou transtornos alimentares, por exemplo. Ainda de acordo com Buckroyd (2000), como essas crianças não podem expressar livremente os seus sentimentos, passam a ter dificuldades em identificálos e podem até acreditar que não têm sentimentos. No caso da anorexia, as pacientes não sabem o que sentem, inclusive não conseguem diferenciar a sensação de fome de alguns sentimentos, como a alegria ou a tristeza. Já no caso da bulimia nervosa, as pacientes costumam identificar melhor o que sentem, embora os rejeitem. Elas têm dificuldades em discernir os sentimentos e associam todos eles à sensação de fome. Geralmente, têm compulsões alimentares na tentativa de preencher alguma carência emocional que não foi identificada e que, consequentemente, não será suprida. Outra questão apontada por esta autora é que essas pacientes se julgam más por apresentarem tais sentimentos, pois aprenderam a não ter necessidades que não pudessem ser respondidas por suas famílias. A baixa autoestima pode 43 emergir quando percebem que seus pais gostariam que elas tivessem menos necessidades emocionais e elas não conseguiram obedecê-los. Os transtornos alimentares podem surgir com a difícil função de tentar eliminar ou controlar as suas emoções. Herscovici (1997) também reconhece essa característica de dificuldade de comunicação nas famílias de pessoas com transtornos alimentares, que faz com que os membros tenham que adivinhar o que os outros sentem. Com isso, os filhos podem crescer sem conseguir discernir e expressar o que sentem, tendo dificuldades para reconhecer e satisfazer as suas necessidades. Martins & Diniz (2006), ao descreverem o trabalho realizado pelo Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro (ITF-RJ) com famílias de pacientes com transtornos alimentares, também encontraram nessas famílias algumas das PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA características citadas, tais como dificuldade de expressar seus sentimentos, pobres habilidades de comunicação e de resolução de conflitos. Além disso, a hierarquia familiar muitas vezes está confusa e as fronteiras são extremamente frágeis ou rígidas. Os pais podem não dar conta de suas funções parentais por estarem emocionalmente paralisados em fases anteriores e ou por estarem muito envolvidos em questões referentes ao relacionamento do casal. As autoras também caracterizam as famílias de pacientes anoréxicos como empobrecidas emocionalmente, tendendo a funcionar como um bloco único, não permitindo a independência de seus membros. Ao longo do trabalho terapêutico, o espaço para o “eu”, o “você” e o “nós” começa a existir, favorecendo o processo de diferenciação interpessoal na família. A maior diferença entre as famílias de pacientes bulímicos e as de pacientes anoréxicos, de acordo com Le Grange & Lock (2009) é que as primeiras tendem a ser mais conflituosas e desorganizadas, enquanto as segundas tentam demonstrar que são bem educadas e evitam conflitos. Outra diferença é a motivação para o tratamento, pois as famílias de anoréxicos estão em contato com os sintomas visíveis da anorexia e com isso se mobilizam mais para cuidar do filho adoecido. No caso dos pacientes com bulimia nervosa, os sintomas podem estar mais disfarçados e, com isso, a família pode não ter a mesma motivação para o tratamento. Além disso, os autores encontraram em seus estudos um nível maior 44 de críticas e conflitos nas famílias de adolescentes com bulimia nervosa, quando comparadas com as com anorexia nervosa. Outra diferença encontrada na literatura é que a bulimia é vista como uma patologia mais individual que a anorexia, com características singulares, tais como o isolamento e a consciência sobre a aparência. As relações familiares se mostram conflituosas e os pais parecem estar mais próximos das filhas na primeira infância e mais distantes na adolescência. Além disso, os pais de pacientes com bulimia nervosa, em especial as mães, enfatizam o sucesso acadêmico e social e acabam estimulando um alto grau de competição entre seus filhos. Esses pais costumam ser depressivos, extremamente rígidos, com autodisciplina e distanciamento emocional, o que pode dificultar a convivência com suas filhas (Vandereycken & Kog (1989). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA Fasolo & Diniz (2002) relatam que na literatura - tanto a especializada em transtornos alimentares, quanto a de terapia de família - os casos identificados de bulimia são em número inferior e menos detalhados do que os de anorexia. A hipótese das autoras é que os terapeutas de família se interessam menos pela bulimia nervosa, uma vez que esta patologia incide prioritariamente em mulheres mais velhas, que muitas vezes não moram mais com suas famílias, enquanto a anorexia nervosa acomete mais adolescentes e pré-adolescentes. Minuchin, Rosman & Baker (1978) foram uns dos primeiros a estudar os aspectos familiares dos transtornos alimentares. Em seus estudos com famílias de pacientes anoréxicos, diabéticos e asmáticos verificaram um funcionamento bastante parecido entre essas patologias familiares e, com isso, passaram a classificá-las como famílias psicossomáticas. A partir de diversas pesquisas com essas famílias, detectaram quatro características comuns entre elas: enredamento, superproteção, rigidez e falta de resolução de conflitos. Segundo eles, nenhuma delas por si só é capaz de desencadear o processo, mas seu padrão transacional é característico de famílias que estimulam a somatização. O enredamento pode ser traduzido por aglutinação ou simbiose. Se refere a uma pobre diferenciação interpessoal, frágeis limites, formas extremas de proximidade e intensidade nas interações familiares, que levam a uma falta de privacidade entre os membros da família. A superproteção, por sua vez, leva a um 45 alto grau de preocupação com o bem-estar dos outros, que pode retardar o desenvolvimento das crianças, sua autonomia e seus interesses fora da família. Os membros dessas famílias são muito sensíveis a sinais de tensão, queixas ou conflitos e a criança, principalmente se for psicossomática, se sente responsável em proteger a família, muitas vezes usando seus sintomas para reforçar a sua doença. Essas famílias, como dito anteriormente por Minuchin et al. (1978), também são muito rígidas e muito comprometidas em manter o status quo. Têm dificuldades em fases de mudanças e crescimento. Se a família não muda, a rigidez aumenta e o sistema pode se tornar patológico. A última característica encontrada foi a dificuldade de resolução de conflitos. Mesmo quando procuram terapia, essas famílias se dizem sem problemas, exceto pelo fato de um membro PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA estar doente. São muito vulneráveis a eventos externos, que podem até sobrecarregar seus mecanismos disfuncionais e provocar doenças. Minuchin et al. (1978) ainda citam uma quinta característica comum nas famílias psicossomáticas: o envolvimento da criança no conflito parental, que aparece como o fator principal de regulação do sistema familiar, a partir do sintoma do paciente. A criança pode se envolver nos conflitos parentais de várias formas e se coloca como mediadora ou apoiadora, muitas vezes tomando partido dos pais. Quando uma família de paciente com anorexia nervosa busca terapia, quase sempre acredita que algo de errado aconteceu apenas com a criança. Os pais se veem como acompanhantes e incapazes de ajudar a filha. Tendem a insistir que a criança não tem motivo para agir assim e que a família era feliz até então. A evitação de conflitos da família da paciente com anorexia nervosa não pode ser vista como sinônimo de harmonia. É um padrão patogênico que mantém o sintoma, além de uma das disfunções mais resistentes dessa família. Um dado importante abordado pelos autores é que os membros da família estão constantemente usando uns aos outros para difundir estresse e manter a pseudo-harmonia. A criança que recebe o diagnóstico de anorexia nervosa muitas vezes ocupa esse papel, apesar de ela já ter uma posição especial na família antes mesmo da anorexia nervosa. A doença foi incorporada a um ambiente 46 transacional que já existia, mas possibilitou usufruir de privilégios dos quais a criança não quer se desfazer. Por isso, a criança pode se mostrar resistente às propostas de mudanças do terapeuta. Fasolo & Diniz (2002) relatam que no trabalho realizado no Instituto de Terapia de Família – RJ com famílias de pacientes anoréxicos, todas elas apresentaram as mesmas características descritas por Minuchin et al.: emaranhadas, superprotetoras, rígidas e incapazes de resolver conflitos. Além desses fatores comuns, as autoras ressaltaram também a importância do investimento emocional dessas famílias em comida e peso. Nos oito anos anteriores à publicação do artigo, as autoras atenderam onze famílias que tinham pelo menos um membro com transtorno alimentar. Dentre estas, oito consideravam que a comida e o controle de peso eram temas que as mobilizavam PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA desde antes do surgimento do transtorno alimentar. Apenas duas dessas onze famílias valorizavam as refeições como momentos de encontro e prazer, enquanto, nas outras nove, esses encontros eram pouco frequentes e havia uma discordância quanto ao conteúdo, horário e local das refeições. A quinta característica apresentada anteriormente por Minuchin et al. (1978), como o envolvimento da criança no conflito parental, recebeu posteriormente o nome de “patologia parental silenciosa” por Norsa & Seganti (1999), que a descreveram como uma indiscriminação dos pais com a paciente, que encobriu o conflito do casal através de sua doença. Nestes casos, os aspectos negativos e doentes do casal e da família são depositados na paciente, que representa a “patologia marital”. Diversos outros autores comentaram o trabalho de Minuchin et al., dentre eles Mello Filho & Burd (2004), que afirmam ser possível reconhecer essas quatro características em crianças não somente com as enfermidades apontadas pelo autor, mas também em pacientes psicossomáticos mais graves. Estes costumam ser simbióticos, rígidos na manutenção de seus sintomas, buscam ser superprotegidos e não admitem conflitos. Também costumam ser dependentes, masoquistas e às vezes usam pensamento operatório. De acordo com esses autores, suas famílias costumam apresentar lutos não resolvidos, características hipocondríacas, dissociação mente-corpo, dentre outras. 47 Mello Filho & Burd (2004) acrescentaram que os membros da família que não apresentam a doença e se sentem culpados por isso, podem criar uma rede superprotetora para o paciente. Isso também pode gerar raiva, inveja e ciúme dos privilégios que são dados a este. Tais questões, se trabalhadas em terapia, podem ajudar muito os pacientes. Apesar de Minuchin et al. (1978) defenderem a abordagem sistêmica como a mais completa, enquanto Mello Filho & Burd (2004) revelam resultados positivos com as técnicas analíticas, a conclusão a que esses autores chegam é a mesma: o trabalho terapêutico com a família é fundamental nesses casos, independente da abordagem teórica adotada. 3.2 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA A evolução do tratamento familiar para a bulimia nervosa Os estudos relacionados às famílias de pacientes com transtornos alimentares tiveram início com Salvador Minuchin, em 1978. Até então, a família era excluída do tratamento dos transtornos alimentares, por ser vista como uma influência negativa para o paciente. Minuchin, por sua vez, preferiu tratar também a família, ao invés de excluí-la (Souza & Santos, 2007). Minuchin et al. (1978) escreveram o livro Psychosomatic families, no qual desenvolveram uma teoria psicossomática, a partir de uma visão sistêmica da anorexia nervosa e das observações sobre o diabetes mellitus. Este livro é uma das referências mais importantes quando se trata de questões familiares dos transtornos alimentares. Estes autores revelaram a coexistência de dois modelos de terapia para anorexia nervosa: o linear e o sistêmico. O linear tinha o foco no indivíduo e compreendia os modelos psicodinâmico, médico e behaviorista. Já o sistêmico, focava no contexto e no feedback, levando a métodos de terapia familiar. Apesar de terem elementos comuns, os autores se concentraram em polarizar as diferenças. Minuchin et al. (1978) abordaram a questão da mudança no tratamento da anorexia nervosa como reflexo da mudança de paradigmas, ou seja, a partir de 48 diferentes conceituações do homem e de seu lugar no mundo. Inicialmente, havia o modelo médico, que tratava da doença do organismo humano. Depois, veio a dialética, com o enfoque psicossomático, considerando a inter-relação do contexto do paciente com mecanismos psicológicos e fisiológicos. Finalmente, surgiu o enfoque sistêmico, que valorizava um todo integrado pelo paciente e seu contexto. O objetivo principal da terapia, segundo esses autores, não era mudar o indivíduo, mas sim o sistema familiar. Outras metas da terapia na década de 70 eram facilitar o desenvolvimento da resolução de conflito entre os pais e o paciente anoréxico, abordar questões não relacionadas à comida para valorizar a capacidade da criança de fazer coisas sozinha e a habilidade dos pais de fazer demandas pessoais à criança. Ainda de acordo com Minuchin et al. (1978), o terapeuta podia desafiar o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA enredamento sem desafiar o valor de família unida. Além disso, também podia reforçar o direito de todos terem e defenderem seus próprios espaços psicológicos. A postura do terapeuta de insistir para que cada um fale por si próprio reforçava os direitos individuais e aumentava a diferenciação dos membros. Isso também podia ser feito por meios não verbais, como a representação. A criança precisava aprender a lidar com situações em que tinha pouco ou muito poder, além de saber negociar e acomodar-se quando necessário. Ao abordarem a rigidez da família, os autores apontaram para uma possível dificuldade do terapeuta: a tentativa da família para convencer o terapeuta de que ele podia se esforçar, mas que a mudança seria impossível. O terapeuta não podia tomar para si toda a responsabilidade de mudança para não ocupar o lugar até então do anoréxico. A família que tem um membro com um diagnóstico de anorexia nervosa tende a embotar a intensidade de tudo, inclusive das mensagens do terapeuta, que deve aumentá-la até causar impacto. De acordo com Minuchin et al. (1978), isso se tornava mais eficaz por meio de técnicas de dramatização, como por exemplo, tarefas e desenvolvimento de temas concretos. Além desses autores, outra terapeuta familiar que, também na década de 70, se interessou pelos transtornos alimentares foi Mara Selvini-Palazzoli. Junto a sua equipe de Milão, desenvolveu uma visão sistêmica da anorexia nervosa, na qual a paciente é responsável por manter a homeostase familiar. De acordo com 49 essa autora, a anorexia nervosa seria uma reação das crianças aos conflitos conjugais de seus pais que, em sua maioria, não mantinham um relacionamento emocional maduro, eram muito dedicados ao trabalho e a casa e atentos às normas sociais. A tensão e o mau-humor são constantes nessas famílias, descritas pela autora como unidas e coesas, com secretas alianças entre seus membros. Outra característica comum é a dificuldade de diferenciação entre os membros e os filhos que, sempre divididos entre os pais, não conseguem investir e cuidar de sua própria vida. Ainda de acordo com Selvini-Palazzoli (1974), o transtorno alimentar surge em momentos de mudanças intra ou extrafamiliares, como a entrada da criança na adolescência, por exemplo. A proposta de intervenção da autora era de provocar o sintoma, através de prescrição de tarefas estratégicas e paradoxais, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA com a intenção de alterar os padrões interacionais. No final dos anos 70, segundo Martins & Diniz (2006), as teorias lineares de causa e efeito da terapia familiar começaram a ser questionadas e a ideia não linear dos sistemas complexos passou a prevalecer. Nessa nova visão, o terapeuta passou a ser visto como alguém que faz parte do sistema e que participa deste. Além dos descritos acima, outros estudos sobre os transtornos alimentares foram realizados na área da terapia familiar, como por exemplo os desenvolvidos pelos profissionais do Maudsley Hospital, em Londres, no ano de 1985. Estes apontaram melhores resultados da terapia familiar em pacientes internados, menores de 19 anos e com pouco tempo de doença. Já os pacientes que iniciaram os sintomas após os 18 anos reagiram melhor ao tratamento individual. Alguns desses estudos mostraram bons resultados para a terapia familiar com pacientes bulímicos, principalmente quando os pais receberam informações sobre a doença e conseguiram ajudar seus filhos a controlarem os sintomas. (Dare, Eisler, Colahan, Crowther, Senior & Asen, 1995; Le Grange & Lock, 2009). Segundo Martins e Diniz (2006), a terapia familiar pode ser indicada para pacientes de outras faixas etárias e com tempos de evolução de doença diferentes, uma vez que as famílias de pacientes com transtornos alimentares vivenciam sofrimentos e angústias profundos. 50 Assim como a maioria das equipes que trabalha com transtornos alimentares, os profissionais do Maudsley Hospital também não responsabilizam os familiares dos pacientes pela doença, mas ao contrário disso, utilizam-nos como recursos para a cura. Parte-se do pressuposto de que o adolescente está fortemente ligado à família, o que torna essencial que esta participe de seu tratamento. Com isso, contam com os pais para controlarem a alimentação de seus filhos até que estes estejam capazes de assumir novamente esse controle, pois acreditam que nesses casos o transtorno alimentar domina o adolescente ao invés de ser o contrário. Diferentemente de Minuchin, os profissionais de Maudsley se concentram por mais tempo no transtorno alimentar e nos seus sintomas, envolvendo a família na busca por uma alimentação saudável de seus filhos. A partir desses estudos do Maudsley Hospital, Lock et al. (2001) escreveram um PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA manual para o tratamento familiar de adolescentes com anorexia nervosa, que foi testado em 2005, obtendo grande sucesso (Lock & Le Grange, 2005). Ainda na década de 80, alguns autores abordaram a questão familiar nos transtornos alimentares, como revelaram Fasolo & Diniz (2002). Em 1980, Jeammet associou a “anorexia mental” do adolescente ao seu contexto familiar. Em 1988, Hilde Bruch descreveu as pacientes com anorexia nervosa como emaranhadas com seus pais, com dificuldades de separação e individuação e em uma aparência harmoniosa com sua família. Esta autora, com a preocupação de evitar o isolamento social das pacientes, incluía no tratamento familiares e amigos. Já na década de 90, Roberto (1994), que compreende os sintomas como metáforas para o sofrimento, defendeu a ideia de iniciar o tratamento com a insistência sobre a revelação dos sintomas, sejam eles jejuns, “comilanças” ou purgações. Quando a cliente se recusava a falar sobre isso, o terapeuta devia informá-la da impotência que sentiu para ajudá-la, já que não conheceu sua realidade e não pôde compreendê-la. Essa atitude do terapeuta aproximava a cliente e diminuía a desconfiança dela. A autora também abordava, no início da terapia, a possibilidade da cliente ter um colapso e como seria a reação da família frente a isso. Essa conversa confrontadora aproximava o terapeuta da dor da cliente e da situação de perigo na qual ela se encontra. 51 Caso os pais ou cônjuges não quisessem acompanhar a cliente à terapia, a autora recomendava que o terapeuta não os forçasse a isso. Muitos familiares argumentavam que a cliente se sentiria mais à vontade sozinha, mas esta seria uma forma de fugirem mais uma vez deste segredo. Porém, o terapeuta teria que expor o segredo da cliente para a família, conforme combinado com a cliente previamente ou incentivando-a a contar em casa. A autora acreditava que a fase mais crucial da terapia individual e familiar seria quando a cliente percebesse que ela tinha mais a perder se mantivesse o seu segredo e, com isso, passasse a reconhecer os seus afetos negativos, que foram anteriormente reprimidos. Para Roberto (1994), este segredo seria o menos ameaçador para a família, quando comparado a outros, que trouxeram muita dor emocional como, por exemplo, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA casos extraconjugais ou abuso sexual. Uma terapia que se focalize sobre o valor metafórico desses sintomas somáticos e trate os jejuns ou “comilanças” e purgação como segredos do relacionamento, dá poder ao membro afetado e aos seus íntimos, para que comecem a examinar os aspectos mais sensíveis e escondidos de seu relacionamento. No processo, é aberto espaço para que cada um deles comece a assumir posições individuais sobre importantes problemas e eventos familiares, de modo que a auto-expressão possa ser integrada nos vínculos conjugais e familiares. Quando isto é conquistado, os segredos da anorexia e da bulimia não mais são úteis, além de ser substituídos por relacionamentos baseados na reciprocidade e na confiança. (Roberto, 1994, p. 182) Já a ênfase da terapia sistêmica proposta por Anderson (1997) era na díade mãe/filha, pois acreditava que a paixão de uma menina por sua mãe e a conexão entre elas seria a fonte curativa da anorexia. Defendia que não era só a mãe que se agarrava à filha para satisfazer suas necessidades inconscientes, mas a filha também se dedicava a “salvar” a mãe, já que sentia uma paixão por ela. Na mesma época, Herscovici (1997) defendia a importância da terapia familiar no tratamento de pacientes com transtornos alimentares, principalmente nos casos de adolescentes e adultos jovens. A terapia familiar seria uma forma de mantê-los informados a respeito dos sintomas, além de evidenciar uma doença, que muitas vezes era escondida ou não reconhecida pela própria paciente. 52 O terapeuta familiar deve avaliar a família, para descobrir o aspecto da vida familiar que contribuiu de algum modo para o desenvolvimento do transtorno alimentar, e em que medida ainda persistem sem resolver temas conflituais, presentes desde o começo da afecção. Igualmente, é importante estabelecer quais são as atitudes e condutas atuais que podem dificultar a recuperação da paciente. (Herscovici, 1997, p. 162) No início dos anos 2000, Schomer (2003), ao abordar o tratamento com as famílias de paciente com transtornos alimentares, mostrou a importância de uma primeira fase informativa sobre a doença e o funcionamento do tratamento e, uma segunda para trabalhar as relações familiares e seus conflitos. A autora acreditava que a família chegava com muito medo e precisava ser acolhida e liberada do rótulo de culpada pelo que aconteceu com o paciente para que se responsabilizasse e participasse desse processo de tratamento. Para ela, não só o PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA paciente teria que se trabalhar, mas a família também. A capacidade de comunicação teria que ser retomada para que cada um pudesse se expressar melhor e os comportamentos inadequados pudessem ser modificados por outros mais saudáveis. O objetivo seria recuperar o desejo pela vida e a possibilidade de fazer novas escolhas. A sugestão da autora era que o foco desse trabalho não fosse apenas na alimentação, mas principalmente nos vínculos afetivos e nos relacionamentos. Fasolo & Diniz (2002), por sua vez, ao analisarem o trabalho de Philipe Jeammet e Annie George, Une forme de thérapie familiale – Le groupe de parents (1980), investiram em uma abordagem que facilitaria a criação de laços terapêuticos entre a família e o paciente, já que muitos deles se afastaram por conta do transtorno alimentar e participam cada vez menos da convivência familiar. O trabalho que estes autores desenvolveram era o de grupo de orientação aos familiares, na equipe do Ambulatório de Transtornos do Comportamento Alimentar da Fundação Universitária Mário Martins, em Porto Alegre, RS. O início desta técnica se deu com o esclarecimento de como as relações familiares se estabeleceram ao redor da paciente e de sua doença. No grupo, os pais trocavam experiências entre eles e podiam descobrir formas novas de lidar com a situação, o que seria terapêutico. Além disso, o grupo permitia e estimulava que os pais expressassem o que sentiam por suas filhas e pela doença ao invés de 53 negá-la, que aceitassem o processo de separação-individuação e que contribuíssem, junto à equipe, para o esclarecimento mais amplo do funcionamento familiar. A participação do pai no tratamento também era estimulada por esta equipe, mesmo quando as mães colocavam obstáculos e os desestimulavam, o que favorecia a hipótese de uma aliança secreta entre mãe e filha. Jaeger (2003) também acreditava nos ganhos com o grupo multifamiliar, mas reforçou que este não deveria ser o único recurso de intervenção. A autora se referiu ao trabalho feito em um hospital universitário de Porto Alegre, que conta com a participação de médicos, psicólogos, nutricionistas e educador físico. Para Jaeger (2003), o principal objetivo do grupo, composto por pacientes com anorexia nervosa ou bulimia nervosa e seus familiares, seria trazer melhorias para PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA a comunicação dentro da família. Outro autor que também defendia os benefícios da abordagem multifamiliar era Eisler (2005), pois acreditava que esta possibilitaria a troca de experiências entre diferentes famílias, reforçando a coesão grupal e o apoio entre elas. O grupo, segundo o autor, também permitia que cada família observasse em que fase do tratamento as outras se encontravam e vislumbrasse novas possibilidades para a sua. Mesmo acreditando que não existia um único padrão de características que pudesse ser encontrado em todas essas famílias, a proposta de tratamento do autor era a de utilizar os mecanismos adaptativos destas, com o objetivo de mostrar que os parentes podiam auxiliar na recuperação do paciente, sem que fossem vistos como culpados pelo surgimento do transtorno alimentar. Souza & Santos (2007) também exemplificam o trabalho multifamiliar a partir de um estudo com um grupo de apoio psicológico a familiares de pessoas com transtornos alimentares e em tratamento. Segundo os autores, este tipo de trabalho multifamiliar teve início nos Estados Unidos, há mais de 40 anos, com pacientes psicóticos. Para eles, este seria um esforço dos profissionais de saírem da posição de “especialistas no problema dessas famílias” para uma postura de escuta a respeito de suas experiências, podendo então se aproximar mais do que para elas, e não para a teoria, é considerado problemático. Além disso, ainda de acordo com estes autores, a compreensão da forma como os significados 54 surgissem no contexto grupal poderia trazer informações relevantes para a elaboração de estratégias mais condizentes com as reais necessidades desses familiares. Acreditamos que o grupo de apoio oferece um contexto fecundo para investigar (e desconstruir) a maneira como ideias, valores e crenças são constituídos pela tradição da comunidade discursiva da qual provém seus membros e que adquirem uma aparência de “realidade” para as pessoas que pertencem àquela comunidade. Por “desconstruir” entendemos: problematizar como aquilo chegou a ser o que é, em determinado momento histórico, enquanto uma realidade local e situada – já que o que é construído como “realidade” para uma comunidade não o é para outra. O grupo se constitui, portanto, como um espaço que favorece a exploração de algumas possibilidades e também algumas limitações, especialmente em um contexto como o de grupos abertos e de apoio a familiares de pacientes submetidos a tratamento de saúde. (Souza & Santos, 2007, p.47) PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA O grupo proposto por Souza & Santos (2007) foi criado em um ambulatório do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP - e contou com a participação de uma equipe interdisciplinar formada por médicos, psicólogos e nutricionistas. Os participantes eram parentes ou acompanhantes dos pacientes diagnosticados com anorexia nervosa ou bulimia nervosa, atendidos neste ambulatório. A frequência era semanal, com duração de uma hora e a assiduidade variou em cada família. Neste estudo foram analisadas dez sessões consecutivas do grupo que teve, em média, seis participantes por encontro. A base teórica desse estudo foi o construcionismo social, que enfatiza que a família é uma construção histórica e social, suscetível a mudanças ao longo do tempo, assim como o próprio conceito de doença ou de fenômeno. Os principais objetivos deste grupo eram incluir os participantes no tratamento, promover a troca de experiências entre pessoas que teriam algum membro familiar sofrendo de um transtorno alimentar, alám de favorecer um espaço de apoio e conversação a respeito da doença e a compreensão dos aspectos emocionais desta. Neste estudo, os autores descrevem os encontros, algumas falas dos participantes e as reflexões feitas posteriormente: 55 Vicente traz um sentido muito parecido ao construído por Salvador. Afirma que, para ele, o papel do grupo, um dos papéis mais importantes, é servir para o tratamento da família, que também estaria adoecida. Acredita que, assim como os pacientes tratados pelo ambulatório, a família “desvia da normalidade”. O grupo seria o espaço para a família se habilitar a “compreender a situação dos filhos”. Ademais, o grupo seria a oportunidade para os pais caminharem juntos com o filho no tratamento, para “não dissociarem” possibilitando a interação entre eles. (p.97) Através de relatos desses parentes e reflexões posteriores aos encontros, os autores concluíram que o grupo teve um sentido diferente para cada participante, mas promoveu trocas de experiências e a possibilidade de reflexão sobre ideias, crenças, valores e preconceitos a respeito deste tema. Somado a isso, o fato de que a reestruturação da família favorece a melhora dos filhos é coerente às teorias de correlação entre o mau funcionamento da dinâmica familiar e o surgimento de PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA uma psicopatologia em um membro da família. Por fim, Le Grange & Lock (2009) escreveram um manual para o tratamento de adolescentes com bulimia nervosa, que envolve toda a família. Segundo os autores, este transtorno alimentar tem início no meio ou no final da adolescência e parece ter ligação com algumas dificuldades vividas neste período. Com isso, acreditam que as abordagens mais bem sucedidas são as que valorizam as questões do desenvolvimento desta fase da vida e que contam com os pais durante a recuperação de seus filhos. Este livro, intitulado “Tratando bulimia em adolescentes: Uma abordagem baseada no envolvimento de toda a família”, foi uma adaptação do manual feito anteriormente por eles, mas destinado a pacientes com anorexia nervosa e suas famílias, baseando-se sempre no tratamento do Maudsley Hospital. Neste manual, os autores valorizam que o terapeuta utilize a si mesmo como instrumento e faça do livro apenas mais uma ferramenta na evolução do tratamento. Descrevem as etapas a serem seguidas em um tratamento de bulimia nervosa, sendo a primeira delas a do rompimento, por parte dos pais, de comportamentos alimentares disfuncionais do adolescente, que incluem as suas dietas exageradas, as compulsões alimentares e os métodos purgativos. Quando os hábitos alimentares do paciente estiverem mais saudáveis, o peso do paciente estiver estável e a família se sentindo mais segura, pode-se passar para a segunda etapa que, segundo 56 os autores, é a de devolver o controle da alimentação ao adolescente. Já a terceira etapa consiste em abordar questões mais gerais relativas ao adolescente e sua família, uma vez que os sintomas bulímicos já estiverem controlados. A partir disso, o trabalho é voltado para a autonomia pessoal do adolescente e os limites familiares. O livro descreve detalhadamente cada uma dessas etapas para a obtenção de um tratamento bem sucedido com adolescentes bulímicos e suas famílias e reforça a importância de uma visão imparcial em relação à etiologia da doença, ou seja, considera a família inocente sob a perspectiva do tratamento. A partir desta revisão da literatura, observa-se que prevalece a tendência a elaboração de manuais com orientações técnicas para o trabalho com os transtornos alimentares. É mais difícil encontrar estudos que busquem um maior aprofundamento da compreensão dos mecanismos psicodinâmicos destas famílias, PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0912455/CA o que é de fundamental importância para a realização de um trabalho mais amplo e integrado com pacientes acometidos por transtornos alimentares.