Excertos de Textos de Nílson José Machado com comentários Prof. Lúcio Fassarella Nílson José Machado: Matemática e Língua Materna. Editora Cortez: São Paulo, 1990. • A relação entre Matemática e Língua Materna funda-se no papel compartilhado de constituir meios para representarmos a realidade e comunicarmos informações sobre ela: "Tanto a Matemática quanto a Língua Materna constituem sistemas de representação, construídos a partir da realidade a partir dos quais se constrói o significado dos objetos, das ações, das relações. Sem eles, não nos contruiríamos a nós mesmos enquanto seres humanos." (p.83) "Do ponto de vista epistemológico a Matemática e a Língua Materna representam elementos fundamentais e complementares, que constituem condiçao de possibilidde do conhecimento, em qualquer setor, mas que não podem ser plenamente compreendidos quando considerados de maneira isolada." (p.83) • A dependência da Matemática em relação à Língua Materna já se manifesta no fato da argumentação matemática praticada naturalmente constituir um discurso. Além desse aspecto fundamental, também temos a necessidade de ser alfabetizados para compreender e resolver um problema de matemática enunciado num texto: "Entre a Matemática e a Língua Materna existe uma relação de impregnação mútua. Ao considerarem-se estes dois temas enquanto componentes curriculares, tal impregnação se revela através de um paralelismo nas funções que desempenham, uma complementaridade nas metas que perseguem, uma imbricação nas questões básicas relativas ao ensino de ambas. É necessário reconhecer a essencialidade dessa impregnação e tê-la como fundamento para a proposição de ações que visem à superação das dificuldades com o ensino da Matemática." (p.10) • O conhecimento matemático que uma pessoa adquire em sua vivência depende do ambiente em que se desenvolve: o conhecimento matemático é maior em sociedades mais avançadas do que naquelas menos desenvolvidas. Entretanto, o aprendizado da matemática entendida e requerida pela nossa sociedade complexa e tecnológica requer instrução formal, em nível básico para todos e em nível especializado para os indivíduos que atuarão em certos setores: "A Matemática erige-se, desde os primórdios, como um sistema de representação original; aprendê-lo tem o significado de um mapeamento da realidade, como no caso da Língua. Muito mais do que a aprendizagem de técnicas para operar com símbolos, a Matemática relaciona-se de modo visceral com o desenvolvimento da capacidade de interpretar, analisar, sintetizar, significar, conceber, transcender o imediatamente sensível, extrapolar, projetar. / Os objetos matemáticos, como números, formas, propriedades, relações, estruturas etc., aqui concebidos como construções resultantes do trabalho dos matemáticos, não são construídos tendo como referentes objetos homólogos de qualquer outro sistema preexistente - nem mesmo da Língua Materna - mas exclusivamente tendo em vista a realidade que se pretende mapear." (p.96) • O cerne dos problemas de aprendizagem da Matemática decorrem do ensino enfatizar demasiadamente os aspectos sintáticos (o formalismo) sobre os aspectos semânticos: "A carapuça de assunto árido, especialmente difícil, destinado à compreensão de poucos, não se adequa à Língua Materna de uma maneira geral, mas ajusta-se perfeitamente à Matemática. Isso, no entanto, não se deve a razões essenciais, endógenas, mas a abordagens inadequadas, tão frequentemente utilizadas nos conteúdos matemáticos que, aos menos avisados, parecem moldar-lhes as feições. É o que ocorre, por exemplo, quando a Matemática é tratada como uma linguagem em que hipertrofia da dimensão sintática obscurece indevidamente o papel da semântica, que é deixada em segundo plano." (p.17-18) Nílson José Machado: Matemática e Realidade: das concepções às ações docentes. 8a. Edição. Editora Cortez: São Paulo, 1987. • A Matemática nos ensina a pensar como qualquer outra disciplina intelectual: “Concluindo, podemos dizer que a Matemática ensina a pensar assim como a Física, a História, a Biologia, assim como pensar ensina a pensar.” (p.99) “É ao se pôr em evidência a conexão direta dos progressos da Matemática com as necessidades das outras Ciências, com as solicitações da sociedade onde ela é produzida e que ela ajuda a produzir sem, no entanto, deixar de reconhecer certa autonomia relativa das grandes construções teóricas, ou reduzir a Matemática a fins utilitários imediatistas; é aí que se está mais próximo da caracterização do papel que o pensamento dialético pode desempenhar em Matemática.” (p.141) • A Matemática não se distingue de outras disciplinas pelo que requer de abstração, ainda que a abstração possa ser realizada de modo extremo na Matemática (e.g., pela total negligencia das referências ou relações que possam haver entre um tópico de estudo e a realidade – particularmente, suas motivações, aplicações e desenvolvimento histórico). Embora a abstração extremada seja natural para alguns especialistas, não deve caracterizar o ensino básico da Matemática – sob o risco dela perder totalmente seu sentido: “A possibilidade de as abstrações matemáticas serem tratadas como algo em si, desvinculadas do substrato empírico que as engendrou, não pode ser negada. Afinal, assim se processam profícuos trabalhos de numerosos matemáticos que, assumindo uma divisão do trabalho que embasa toda a sociedade de que participam, deixam para outros a tarefa de discutir, a posteriori, os possíveis vínculos do que produzem com o mundo que está aí, de procurar aplicações para o que, ingenuamente, acreditam produzir de forma livre e desinteressada. Trata-se, muitas vezes, de uma opção que deve ser respeitada tal como a da avestruz, que esconde a cabeça no solo; é o seu modo de interagir com o real.” (p.87) “Tal imagem que se tenta transmitir da Matemática como o lugar das abstrações, acaba por possibilitar que se matem dois coelhos com uma só cajadada. Ao lado da dificuldade especial que passa, efetivamente, a revestir tal disciplina, em virtude desta caracterização anômala, outro coelho é atingido: aqueles que assimilam a Matemática tal como ela lhes é transmitida, com seus aspectos formais, abstratos, não interpretados em permanente destaque, têm nela um profícuo exercício para um pensar descolado do real, que favorece a interposição entre o pensado e o real, de toda uma gama de representações falseadoras.” (p.153) • Como outras áreas do conhecimento, a Matemática tanto requer quanto contribui para o desenvolvimento de algumas competências pessoais: “Na escola básica, as competências pessoais a serem perseguidas constituem três pares complementares, três eixos norteadores da ação educacional: capacidade de expressão (do eu, por meio das diversas linguagens disponíveis) e de compreensão (do outro, do não-eu, seja um texto, um fenômeno natural, econômico, social, etc.); / capacidade de argumentação (de análise e articulação das informações e das relações disponiveis) e de decisão (de síntese dos resultados obtidos, tendo em vista a ação efetiva); / capacidade de contextualização (enraizamento dos assuntos estudados na realidade imediata) e de abstração (imaginação de perspectivas novas, ainda inexistentes).” (p.164) • O ensino da Matemática na Educação Básica é justificado tanto (i) pela suas aplicações em outras áreas do conhecimento, quanto (ii) por ser um importante componente histórico e cultural de nossa sociedade. Didaticamente, é importante apresentar aos alunos aplicações e contextualizações significativas para os tópicos estudados; entretanto, o professor não pode se limitar a esse tipo de justificativa porque a utilidade da Matemática não esgota sua importância: “É fácil convencer os alunos sobre o significado global da Matemática, sobre sua importância como ferramenta para a ciência, a tecnologia, a engenharia, a indústria, a economia, etc.; entretanto, esbarramos em dificuldades quando temos de explicar o significado de temas específicos: para aprender logaritmos, ou matrizes, ou trigonometria, ou funções, ou geometria, ou qualquer outro tema. Ainda que se possa pensar na existência de significados particulares para cada um dos temas relacionados, não funciona, em sala de aula, essa preocupação tópica com cada microassunto a ser ensinado. Devemos, sim, procurar convencer nossos alunos do macrossignificado da Matemática como instrumento. Uma faca, por exemplo, é um instrumento que serve para cortar. Mas é a lâmina que corta; o cabo nada corta. O significado do cabo é possibilitar que seguremos a faca, para que ela realize sua função, para que seja útil. Além do cabo, digamos que haja um ou mais parafusos prendendo o cabo à lâmina; eles também fazem parte do instrumento, e devem ser ‘ensinados‘. Os parafusos nada cortam, mas sem eles, o cabo não se fixa à lâmina e a faca não funciona. Muitos conteúdos de Matemática são como lâminas, cabos e parafusos. Se quisermos dispor do instrumental matemático, indiscutivelmente útil para muitas finalidades práticas, temos de aprender não somente sobre lâminas afiadas, mas também sobre cabos que lhe dão suporte e discretos parafusos coadjuvantes.” (pp.13-14)