C13034 - Associação de Leitura do Brasil

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TENDÊNCIAS EDUCACIONAIS E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA NOS ANOS
INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Lígia Martha Coimbra da Costa Coelho1 - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO
1. Por onde se inicia a trama do tapete?
Penélope passava horas em frente ao traçado de um tapete que nunca ficava pronto. Suas
tramas – as dela, e as do tapete – eram bem urdidas. Com muito cuidado e paciência, as linhas
deixavam-se trançar, e constituíam um pedaço a mais naquela obra artesanal. Mas, que relações
queremos nós estabelecer entre Penélope, um tapete e o ensino de língua materna nos anos iniciais do
ensino fundamental?...
O presente ensaio tece, inicialmente, um rápido histórico acerca do ensino de língua materna e
das abordagens que o constituem para, em seguida, refletir sobre esse trabalho político-pedagógico2 nos
anos iniciais do ensino fundamental, costurando-o às denominadas tendências e metodologias críticas da
educação.
Para alcançar esse objetivo, levamos em consideração nossa formação acadêmica em Letras e
Pedagogia, bem como nossa prática atual, com turmas do Curso de Pedagogia da UNIRIO, mais
precisamente com o desenvolvimento da disciplina obrigatória denominada Língua Portuguesa :
Conteúdo e Forma.
Há uma grande angústia, por parte dos alunos que freqüentam aquela disciplina, no que diz
respeito ao conhecimento restrito que têm acerca das possibilidades de trabalho com a língua materna
em uma ótica mais crítica, voltada para a Lingüística, suas inúmeras possibilidades, e a Análise do
Discurso, por exemplo. Essa angústia cresce, na medida em que o Curso avança e aumenta o
compromisso com uma postura político-pedagógica que leve em conta a realidade dos alunos com que
irão trabalhar, geralmente oriundos das camadas mais desfavorecidas da sociedade, sujeitos, portanto,
às exclusões social, econômica e cultural.
Essa angústia amplia-se, também, quando lhes informamos que são ainda bastante incipientes
os trabalhos de investigação acerca do ensino de língua materna nos anos iniciais do ensino
fundamental, tanto em termos de fundamentação teórica mais atualizada, quanto em relação às possíveis
metodologias de trabalho com essa visão mais crítica.
Constatamos que grande parte dos estudiosos formados em Letras, quando se debruçam sobre
a área do ensino, o fazem refletindo basicamente sobre as séries finais do ensino fundamental ou sobre o
ensino médio, níveis com que seus licenciados trabalham. Tece-se assim o tapete, cuja trama não está
definida, iniciando-o pelos lados. Conseqüentemente, como urdi-lo de forma a compor desenhos ainda
não definidos, contornos ainda não apontados?...
Como pensar em um ensino de língua materna mais crítico e reflexivo, quando olvidamos do
despertar sobre a língua e seu ensino, nos anos iniciais do ensino fundamental?...Esquecem-se nossos
colegas de refletir sobre essa formação nos Cursos de Pedagogia; de que o graduado neste Curso
iniciará o trabalho de construção da leitura, da escrita e de consolidação da oralidade com crianças que
serão os futuros alunos daqueles níveis fundamental e médio; que, se este trabalho primeiro não for
minimamente encaminhado, os problemas avolumar-se-ão e a trama do tapete ficará cada vez mais difícil
de ser urdida...
Nesse sentido, o estudo - reflexão que propomos justifica-se, buscando o estabelecimento de
uma ponte entre os conhecimentos mais atuais sobre língua e ensino de língua materna com os
conteúdos pedagógicos amplamente debatidos nos Cursos de Pedagogia, a fim de que os licenciados
nesse Curso percebam relações que lhes possibilitem um trabalho mais crítico e emancipador em sala de
Professora Adjunta do Departamento de Didática – UNIRIO.
Utilizaremos, sempre, as expressões trabalho político-pedagógico, prática político-pedagógica por acreditarmos que
as mesmas contêm a relação sociedade-educação com que nos identificamos e com a qual identificamos o trabalho
cotidiano com o ensino, em qualquer de seus níveis.
1
2
aula, mais aberto às novas abordagens que se dão a conhecer e implementar no estudo da linguagem
humana, especificamente da língua materna.
Propomos, portanto, trançar o tapete começando-o do meio – seu início –, uma vez que o
desenho final não se dá a conhecer, precisa ser urdido, construído em cores e formas. Iniciemos, então,
a construção deste tapete-ensino...
2. Concepções de ensino de língua materna: o tapete e as formas da trama
A construção do tapete ensino de língua materna inicia-se pela trama dos princípios filológicos e
gramaticais. Somente na década de 70, a partir do avanço dos estudos lingüísticos tomados em outra
direção, a reflexão acerca desse ensino considera rumos diferentes, como nos afirma Britto (1997):
Do ponto de vista específico da área de língua portuguesa, verificou-se, a
partir dos anos setenta, uma grita generalizada (...) Entretanto, até esse
momento, nem haviam se fixado no Brasil os estudos lingüísticos
independentes da tradição normativa e filológica, nem se consolidara um
corpo coeso de reflexão sobre a finalidade e os conteúdos mesmo do
ensino de português (p.110-101)
Contudo, essa transição não foi e não é tranqüila. Ao contrário, a “grita generalizada” a que se
refere o autor constituiu-se por momentos de tensão, principalmente entre os adeptos ferrenhos da
gramática tradicional (GT) e os entusiastas da recém empossada ciência da linguagem – a lingüística.
Essa tensão, longe de chegar ao seu fim apresenta, ainda hoje, desdobramentos. Em reportagem
recente, um jornal carioca de grande circulação apresentou matéria sobre a elaboração, por um grupo de
filólogos contratados pela Academia Brasileira de Letras, de um Dicionário Escolar e de Vocabulários
Ortográfico e Onomástico. À frente do grupo, o conhecido gramático Evanildo Bechara e o argumento da
repórter Eliane Azevedo (2002), de que
...a Academia vai criticar a forma como o idioma é tratado nas escolas
país afora e, tomando partido na velha briga entre gramáticos –
guardiões da linguagem formal – e lingüistas – defensores dos
regionalismos, coloquialismos e espontaneísmos lingüísticos -, cerrará
fileiras com os primeiros e proclamará o primado pedagógico da
chamada língua padrão
A matéria veicula, ainda, entrevista com o gramático Evanildo Bechara, que expõe sua visão
acerca do tema e, em determinada passagem afirma que “a lingüística é uma ciência, não tem função
pedagógica” (p.1). Ora, uma afirmação como esta aponta campos opostos para ciência e pedagogia,
como se uma não pudesse (ou devesse) ser veiculada pela outra. Este é um dos nós que o tapete ainda
não conseguiu desatar...
No entanto, dando continuidade ao nosso raciocínio, podemos sintetizar que, na base do ensino
de língua materna, até a década de 70, predominavam os princípios da Filologia 3 e da Gramática
Tradicional. Tais princípios traduziam-se, metodologicamente falando, em práticas calcadas na utilização
de livros didáticos, fundados em exercícios repetitivos, que exploravam as melhores cantilenas didáticas,
existentes na denominada educação tradicional; em textos fragmentados, que eram dados à leitura e
interpretação discentes causando, não raras vezes, o (des)gosto pela leitura; em conceituações dúbias
que, ao invés de levarem à reflexão sobre a língua, reforçaram o senso comum de que “ a língua
portuguesa é muito difícil”...
Essa fórmula passava ao largo de concepções e de práticas que apresentassem os avanços do
conhecimento na área de língua materna e de seu ensino – que ora denominamos de conhecimentos
lingüísticos. Nesse sentido, Britto (1997) afirma que :
3
Não nos esqueçamos das aulas de Latim, que durante muito tempo fizeram parte do currículo de colégios como o
Pedro II, por exemplo.
Os processos de coesão e coerência textual não se incorporam
facilmente ao ensino porque estão fora do âmbito da gramática normativa
e, portanto, dentro desta perspectiva de língua não se submetem à
norma culta, pelo menos tal como esta é apresentada pelas gramáticas
escolares (p.119).
O autor tece a reflexão acima partindo dos conceitos de coesão e de coerência. Contudo,
podemos acrescentar que outros processos inerentes aos princípios dos conhecimentos lingüísticos, de
áreas que os constituem e/ou afins, estando “fora do âmbito da gramática normativa“ encontravam-se,
igualmente e na maioria das vezes, alijados das salas de aula do nível elementar.
Nesse sentido, não se constitui novidade que, até hoje, na prática político-pedagógica com o
ensino fundamental, a fórmula mais bem acabada do ensino de língua materna reporte-se ao trabalho
com a gramática tradicional -GT-. O que não significa dizer que os conhecimentos lingüísticos não
estejam, de alguma foram, já adentrando o espaço desse nível de ensino, costurando as formas e tramas
deste tapete...
Essa entrada, no entanto, tem sido mais trabalhada em relação às séries finais do ensino
fundamental e ao ensino médio.Temos já reflexões bastante avançadas sobre a relação da língua
portuguesa com o seu ensino, apresentadas a partir de concepções que abarcam os conhecimentos
lingüísticos em suas múltiplas dimensões e visando, por vezes, práticas diferenciadas das tradicionais.
No entanto, quais estudos se dedicam a construir, a partir de outros parâmetros, a atualizar o
trabalho do professor dos anos iniciais do ensino fundamental com a língua materna? Que reflexões
podem despertar esses mestres ou futuros mestres para a importância dos conhecimentos lingüísticos
em sua prática cotidiana? Como apresentar-lhes outras tramas para o tapete?...
3. Reflexões sobre ensino de língua materna e tendências educacionais nos anos
iniciais: os contornos e cores que trançam o tapete
3.1. Os contornos do tapete
Se partirmos dos pressupostos de que “não se pode confundir o estudo da linguagem com a
gramática” (Britto, 1997, p.31) e de que “conhecer uma língua não é apenas conhecer as formas
engendradas pela gramática, mas também o valor social atribuído a elas” (Orlandi, 1987, p.102),
iniciamos esta parte de nossas reflexões por um outro patamar. E apresentamos uma primeira forma de
visualizar os possíveis contornos do tapete...
No entanto, é preciso lembrar que a discussão que essa reflexão encerra é relativamente nova
no interior dos institutos e faculdades de língua, e novíssima nos institutos e faculdades de educação,
centros de pesquisa e de formação na área (Britto, 1997). Em outras palavras, o debate acerca das
novas tendências no estudo dos fatos da língua ainda engatinha principalmente, constatamos, no que
tange a possibilidades metodológicas desses estudos interferirem no ensino de língua materna para os
anos iniciais do ensino fundamental.
Verificamos ainda que, na quase ausência de um corpo teórico consistente e acessível que
dinamize o debate para esse nível de ensino, aquelas possibilidades metodológicas tornam-se mais
distantes ainda. A trama do tapete não constrói um desenho harmonioso, em formato e cores...
Fundamentalmente, a primeira reflexão 4 nos leva, então, ao caminho de um primeiro princípio:
ao trabalhar com a língua5, é preciso lembrar, sempre, de sua função social. Ora, um princípio como este
revela outro olhar para esse objeto de estudo-ensino, que não pode descurar de correlacionar categorias
mais amplas como ideologia, poder, cidadania, mas que também precisa trazer para si categorias como
subjetividade(s), sujeito(s) e interação.
4
Referimo-nos à reflexão apresentada no parágrafo inicial desta seção, qual seja, a que coloca, como pressupostos,
que o ensino de língua não se encerra nos conhecimentos da gramática e que é preciso atribuir valor social ao uso
da língua, em suas diversas manifestações.
5 A expressão “trabalhar com a língua” refere-se a toda e qualquer prática – exercício com a língua materna
(oralidade, escrita, leitura) em qualquer situação educativa (formal, informal) ou social.
Acreditamos que a primeira reflexão, dando origem ao primeiro princípio, leva-nos a uma
indagação: Ensinar língua materna através da metalinguagem - como defendem Kato, Lemle e outros ou da linguagem em processo, através de atividades sociointeracionistas – opção defendida por Geraldi e
Franchi? Expondo esse debate, Britto esclarece :
A questão da metalinguagem é um dos grandes nós no debate sobre o
ensino de gramática. (...) Não se trata de negar a legitimidade da
metalinguagem, mas de entender que ela só pode funcionar como
instrumento efetivo e econômico de análise se aqueles que a manipulam
forem capazes de conhecer sua referencialidade e seus limites (p.121)
Geraldi, em texto clássico6, já apontava a dicotomia que acima apresentamos como questão, e
que Britto retoma em sua reflexão acerca do ensino de língua. Para o autor, ensinar língua refere-se a
um trabalho que leva em conta as relações existentes entre os seres humanos, suas histórias e o
processo de constituição da linguagem. Já ensinar através da metalinguagem é partir da análise de
conceitos que regem uma determinada possibilidade de se expressar através da linguagem verbal.
Todavia, o fato a assinalar é o de que ensinar a partir da metalinguagem pressupõe, então, que
“aqueles que a manipulam sejam capazes de conhecer sua referencialidade e seus limites”, o que
geralmente não acontece com o professor que trabalha com os AIEF, por motivos que incluem, inclusive,
o caso deste profissional não estar se licenciando/ser licenciado em Letras, mas sim em Pedagogia.
Trabalhar com a língua a partir da metalinguagem pressupõe um conjunto de conhecimentos,
ou seja, como afirma Geraldi (2001), “o estudo de regras e hipóteses de análise de problemas que
mesmo especialistas não estão seguros de como resolver”(p.45)...Estarão seguros para resolvê-los os
nossos professores dos AIEF, formados nos Cursos de Pedagogia? No entanto, é com esse instrumental
metalingüístico, se assim podemos denominá-lo, que esses professores vêm praticando o ensino de
língua, até porque foi assim que aprenderam... E esta é uma das formas da trama do tapete, se a
iniciarmos pelos lados...
Esta segunda reflexão abre-nos caminhos para o que consideramos como um segundo
princípio: utilizar a língua materna pressupõe conhecimentos sobre suas inúmeras possibilidades de uso.
Aparentemente, este princípio vai de encontro ao que vimos discutindo. Contudo, é preciso explicar que o
termo empregado – conhecimentos – não se refere somente a saberes científicos, específicos sobre uma
área; reporta, também, a possibilidades empíricas, a posturas e atos sobre a língua em processo. Assim
sendo, estamos levando em conta a amplitude do termo.
Acrescentamos ainda que, quando nos referimos a inúmeras possibilidades de uso, na verdade
estamos pensando em uma concepção de ensino de língua da qual participam as demais formas de
expressão humana; na qual interagem a heterogeneidade dos diferentes usos lingüísticos e a produção
discursiva que, individual, coletiviza-se nas interações que a determinam.
Uma terceira reflexão que queremos apresentar nos vem de Bagno (2001), ao ponderar sobre o
ensinar português ou o estudar brasileiro. A reflexão sobre esta alternância encontra-se tanto na
Introdução, quanto no primeiro e último capítulos da obra Português ou Brasileiro? Um convite à
pesquisa. Nos demais capítulos, o autor trabalha com alguns “problemas morfossintáticos e semânticos”,
explicitando como o ensino pode ser mais prazeroso e, ao mesmo tempo, mais reflexivo sobre a língua
que se fala, quando se parte para estudar brasileiro a partir de metodologia que leva em conta a
pesquisa.
Bagno (2001) afirma que ensinar português pressupõe inculcação de prescrições, consideradas
como “corretas”, através de um “modelo” pronto e acabado de língua que nos vêm de além-mar e que
estudar brasileiro, ao contrário, remete ao estudo da língua falada e escrita no Brasil; ao reconhecimento
de que “a linguagem é um vasto campo de interesse científico” em que, para se entrar, é preciso “munirse de teorias consistentes, de métodos de investigação criteriosos” (p.10).
Esta reflexão de Bagno nos conduz, assim, ao terceiro princípio: na educação formal, não se
aprende uma língua; estudam-se suas possibilidades de uso através da pesquisa, prática capaz de levar
Referimo-nos ao texto “Concepções de Linguagem e Ensino de Português” editado, pela primeira vez, no livro O
texto na sala de aula, da editora Assoeste, em 1987.
6
à apreensão dessa língua. Este princípio, assim constituído, nutre-se duplamente do pensamento do
autor. Em primeiro lugar, ao destacar o estudo da língua a partir de suas “possibilidades de uso”
estamos, na verdade, pensando nos constituintes que fazem da língua portuguesa uma língua nacional,
brasileira7.
Em segundo plano, ao destacar a pesquisa como metodologia de trabalho que capacita o
usuário da língua, na condição de estudante, a pensar sobre ela e a apreendê-la, tanto como objeto de
estudo, quanto como constituinte de sua própria cidadania, estamos apontando para a importância dessa
prática, em espaço específico. Utilizando mais uma vez Bagno (2002) e ainda Demo (1996), temos que
A pesquisa que nos interessa é a pesquisa científica, isto é, a
investigação feita com o objetivo expresso de obter conhecimento
específico e estruturado sobre um assunto preciso [...] Se quisermos que
nossos alunos tenham algum sucesso na sua atividade futura (...) é
fundamental e indispensável que aprendam a pesquisar. E só aprenderão
a pesquisar se os professores souberem ensinar (grifos nossos - p.18-21)
A proposta de educar pela pesquisa tem pelo menos quatro pressupostos
cruciais: - a convicção de que a educação pela pesquisa é a
especificidade mais própria da educação escolar e acadêmica; - o
reconhecimento de que o questionamento reconstrutivo com qualidade
formal e política é o cerne do processo de pesquisa; - a necessidade de
fazer da pesquisa atitude cotidiana no professor e no aluno; - e a
definição de educação como processo de formação da competência
histórica humana (grifos nossos - p.5)
Conforme podemos verificar, as duas citações destacam, não apenas a importância da
pesquisa, mas também sua adequação a um espaço específico – o da instituição educacional, o da
escola. Nesse sentido, nossos futuros professores dos AIEF têm sua preparação assegurada, ou seja, a
maioria das instituições de ensino superior preocupadas com a qualidade da formação desses alunos
possui uma gama de disciplinas, atividades e incentivos à pesquisa.
Assim sendo, esse futuro profissional conhece pesquisa minimamente, sabe como realizá-la,
pois essa prática faz parte de seu cotidiano acadêmico. No entanto, se o objeto de estudo for língua
materna, estarão esses mesmos alunos - professores preparados para assumir a empreitada? Saberão
como trançar cores para delinear o contorno do tapete?
3.2. As cores que trançam o tapete
Retornando ao ponto em que paramos na seção anterior, ou melhor, retomando a questão que
deixamos no ar, é preciso lembrar que o agente das reflexões que estabelecemos é um professor
formado nos Cursos de Pedagogia. Portanto, um profissional afeito às discussões pedagógicas, mas não
tão familiarizado com os debates epistemológicos pertencentes a outras áreas do conhecimento. Assim,
torna-se imprescindível estabelecer algumas pontes entre esse conhecer político-pedagógico, inerente à
Pedagogia, e o conhecer lingüístico, que relacionamos ao ensino de língua materna nos anos iniciais do
ensino fundamental.
Para realizarmos tal tarefa, entendemos que seja indispensável iniciar por uma reflexão já
tradicional nos Cursos de Pedagogia – o estudo das tendências educacionais. Nesse sentido, inquire
Cortella (1998):
Qual o sentido social do que fazemos? A resposta a essa questão está
na dependência da compreensão política que tivermos da finalidade de
7
A esse respeito ler, de Marcos Bagno, Português ou Brasileiro? Um convite à pesquisa, e A língua de Eulália, obras
citadas na Bibliografia.
nosso trabalho pedagógico, isto é, da concepção sobre a relação entre
Sociedade e Escola que adotarmos (p.130)
Tanto Cortella (1998) como Saviani (1991) e Libâneo (1995) 8 iniciam suas ponderações acerca
das tendências educacionais apresentando a estreita relação existente entre Educação e Sociedade.
Definindo mais o foco, os três autores passam dessa relação fundante para uma que lhe é complementar
– a que estabelece fortes elos entre as instituições escolares e as questões sociais, sejam elas políticoeconômicas ou culturais.
O estabelecimento dessas relações torna transparentes, em nossa visão, tanto o cotidiano
escolar como um todo, quanto as posturas pedagógicas que dele emergem. Situam-se nesse palco
tendências educacionais, alicerçadas por teorias que correspondem a visões sociais de mundo
ideológicas ou utópicas9. Teríamos, assim, teorias não críticas, liberais ou otimistas ingênuas; ou ainda,
em um segundo momento, as teorias denominadas de críticas, progressistas ou otimistas críticas 10.
As teorias do primeiro grupo – não críticas, liberais ou otimistas ingênuas – recebem essas
denominações por enxergarem Educação e Sociedade dentro de uma visão idílica, diriam uns; neutra,
apontariam outros; ou ideológica, pensamos nós. Tendo em vista que as tendências que abarcam
procuram colocar-se à margem da crítica sócio-cultural; apartam a escola dos debates engendrados pela
sociedade, e encerram suas atividades educativas no didatismo sem questionamento, acreditamos que
essas teorias – e as tendências por elas constituídas11 - cerram fileiras em uma visão social que baseia
suas ações na manutenção da ordem social vigente. Visão social de mundo ideológica, portanto.
No segundo grupo – teorias críticas, progressistas ou otimistas críticas – as teorias têm em
comum o fato de perceberem a função da educação e da escola na sociedade. Assim, não visualizam as
instituições escolares como redomas de vidro, protegidas dos problemas sociais que as cercam, o que
lhes faculta um poder crítico bem mais intenso. Nesse grupo, as tendências que emergiram 12, apostaram
na concretude de um trabalho político-pedagógico mais próximo de posturas críticas diante da realidade
e do conhecimento a ser construído, assim como de práticas educativas igualmente mais críticoemancipadoras.
Nesse sentido, podemos afirmar que as tendências educacionais pertencentes a este grupo de
teorias constituíram-se segundo uma visão social de mundo utópica pois, ao se construirem,
metodologicamente, por práticas educativas como dialogismo, cotidianeidade da pesquisa como
princípio científico e educativo e problematização de situações que levam em conta a realidade em que
se insere o estudante - seja criança, jovem, ou adulto, as tendências libertadora, libertária e crítico-social
dos conteúdos buscam uma realidade ainda não existente, estabelecendo função crítica e subversiva
para o trabalho educativo – que é, como já dissemos, também político.
Procurando, neste momento, relacionar as teorias e tendências educacionais acima
apresentadas às reflexões realizadas sobre o ensino de língua materna, parece-nos claro que esse
ensino, se baseado na gramática tradicional (GT) e nas metodologias que lhe servem de esteio,
aproxima-se das tendências pertencentes às teorias não críticas da educação. Já um ensino de língua
materna proposto a partir dos conhecimentos lingüísticos e das áreas que o constituem está,
logicamente, preso às teorias críticas da educação.
8
Saviani e Libâneo são autores representativos e clássicos no estudo das tendências educacionais. Cortella,
discípulo de Paulo Freire, escreveu obra interessante, cujo último capítulo dedica-se ao debate desse objeto.
9Referimo-nos a reflexão de Löwy, que estabelece as visões sociais de mundo como “conjuntos estruturados de
valores, representações, idéias e orientações cognitivas” que podem ser ideológicas, quando buscam a manutenção
do status quo, ou utópicas, quando exercem uma função crítica, subversiva, em relação a esse status quo (p.14)
10A denominação dada a cada grupo de teorias corresponde à abordagem de cada autor anteriormente citado, ou
seja, Saviani (teorias não críticas e críticas); Libâneo (teorias liberais e progressistas) e Cortella (otimismo ingênuo e
otimismo crítico).
11Referimo-nos às tendências tradicional, escolanovista e tecnicista que, no Brasil, desenvolveram concepções e
práticas pedagógicas com bastante ênfase até a década de 70 (século XX). Constituem ações que perduram, até
hoje, no ideário e na prática pedagógica brasileiras.
12Referimo-nos às tendências libertadora, libertária e crítico-social dos conteúdos que despontaram no Brasil, com
mais visibilidade, a partir da década de 80 e que disputam espaço, hoje, no cotidiano das práticas pedagógicas, com
as tendências pertencentes ao grupo das teorias não críticas.
A primeira relação – ensino de língua materna, conhecimentos gramaticais tradicionais e teorias
não críticas da educação – pode ser percebida em suas concepções e prática pedagógica. Ou seja, se
entendemos a língua como um objeto de estudo dissociado da realidade que a cerca; se
compreendemos o conhecimento e o trabalho pedagógico com a língua materna como pronto,
acomodado em dicionários e compêndios gramaticais, enlatado para o uso de estudantes e usuários; se
ainda visualizamos esse trabalho enquanto ato de comunicação e expressão, cujas possibilidades estão
dadas e precisam ser aprendidas, quais diferenças encontramos entre essas características e as que
constituem um posicionamento tradicional ou tecnicista?
Todavia, quando retomamos a segunda relação – ensino de língua materna, conhecimentos
lingüísticos e afins, e teorias críticas da educação – verificamos que seus pontos de convergência
apontam para natureza diferente da apresentada anteriormente.
Em outras palavras, voltamos a focalizar os três princípios que indicamos na seção anterior. A
função social da língua – primeiro princípio -, resgatada e alçada ao plano dos debates, estabelece
possibilidades metodológicas como o avanço do processo dialógico em sala de aula. Afinal, é na
constituição dessa função social que professor e estudantes podem se construir como sujeitos coletivos,
capazes de interações. Ao mesmo tempo, a consolidação desse processo metodológico aprofunda a
concepção de que a língua se constrói e se constitui no processo de interação com a realidade.
Quando pensamos na língua e sua utilização, a partir de conhecimentos que estão no cerne
desse uso – segundo princípio- estamos em consonância com uma concepção de língua que restaura
seu sentido epistemológico, indissociável, metodologicamente, da relação teoria-prática. Ao terceiro
princípio – escola e apreensão da língua – cabem os compromissos político-pedagógicos, centrados
metodologicamente na pesquisa como princípio científico-educativo e, em concepção, na visualização da
língua como um processo em que as pessoas captam, através de interações sociais, suas múltiplas
dimensões.
Ora, se analisarmos cuidadosamente as concepções instauradas, bem como as possibilidades
metodológicas de trabalho pedagógico verificamos que, em sua totalidade, essas ações e práticas
estabelecem vínculos indissociáveis com a natureza das tendências progressistas na educação. Paulo
Freire, mentor da tendência libertadora, por exemplo, nos leva a essa reflexão quando afirma que
O que me interessa agora, repito, é alinhar e discutir alguns saberes
fundamentais à prática educativo-crítica ou progressista e que, por isso
mesmo, devem ser conteúdos obrigatórios à organização programática
da formação docente [...] Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem
ensino (...) Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo
educo e me educo. [...] Por que não estabelecer uma necessária
“intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a
experiência social que eles têm como indivíduos? [...] É pensando
criticamente a prática de hoje que se pode melhorar a próxima prática. O
próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal
modo concreto que quase se confunda com a prática. [...] A questão que
se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da
avaliação enquanto instrumento da libertação, e não da domesticação.
Avaliação em que se estimule o falar a como caminho do falar com (grifos
nossos - págs. 24; 32-34; 43-44; 131)
Conforme podemos perceber através da longa citação, os elementos metodológicos básicos
daquela tendência libertadora estão propostos nos trechos selecionados. Ou seja, são eles, entre outros,
que alicerçam a teoria educacional crítica. São eles, também, que possibilitam o constituir de um ensino
mais crítico-emancipador, inclusive em termos de ensino de língua materna. São eles, finalmente, que
podem trançar cores, criando formas e contornos para nosso tapete...
4. Ensino de língua materna e formação de professores para os anos inicias do ensino
fundamental: o tapete e o tapeceiro
Eis a última parte de nossas reflexões, constituída a partir de muitas incertezas. Uma delas
ainda não foram explicitadas: Será importante, para o grupo presente a este III Seminário, a discussão
sobre formação do professor dos anos iniciais do ensino fundamental, no que tange ao ensino de língua
materna?
Segundo Geraldi (1998)
Na última década, os termos prático-reflexivo e ensino reflexivo tornaramse slogans de reformas do ensino e da formação de professoras e
professores em vários países. No entanto, propositalmente ou não, esta
“incorporação” tem ocorrido de forma bastante ou oportunamente confusa
na sua compreensão conceitual (p.249)
Concordamos com o ponto de vista da autora. No cotidiano dos Cursos de Pedagogia, é
comum ouvirem-se as expressões acima – professor reflexivo, ensino reflexivo, professor pesquisador de
sua própria prática -. Contudo, muitas vezes, esses termos vêm acompanhados apenas de reflexões e
práticas metodológicas13, não comportando fundamentos epistemológicos para com os quais a natureza
daquelas práticas deve contribuir. Em outras palavras, preocupa-nos o trabalho que enfoca o pedagógico
pelo pedagógico, sem os alicerces político-epistemológicos que o sustentam, principalmente quando
temos em mente as teorias críticas da educação.
Porque críticas, essas teorias são, ao mesmo tempo, político-pedagógicas e políticoepistemológicas. Todavia, essa posição não é consensual. Retornando às nossas reflexões iniciais,
lembremo-nos da fala de Evanildo Bechara: “lingüística é uma ciência, não tem função pedagógica” (p.1).
Ora, ao dicotomizar o fazer ciência e o fazer educação, o eminente gramático estabelece funções
totalmente diferentes para essas duas atividades sociais. E alinha-se ao grupo dos que discordam da
necessidade da ciência fazer-se educação. Inclusive em seu nível básico...
...Princípios fundamentais da ciência da linguagem; fatos lingüísticos cotidianos e princípios da
semântica14, devidamente articulados à reflexão teórico-prática, devem constituir o arcabouço teórico das
disciplinas referentes ao ensino da língua materna nos anos iniciais do ensino fundamental. Este o
formato mínimo do tapete que precisa ser tecido.
Possivelmente, aqueles rudimentos não serão suficientes para que esse futuro professor se
sinta seguro, ao trabalhar com turmas dos anos iniciais. No entanto, é um primeiro passo, a partir do qual
esse mesmo profissional poderá dar outros passos, em direção a um maior aprofundamento no campo
do ensino de língua materna, caso seja esse seu interesse.
E, acreditamos, relacionar os conhecimentos inerentes à sua área específica com aqueles que
são trabalhados no campo do ensino de língua materna o tornarão um tapeceiro mais comprometido com
os desenhos a aplicar na tapeçaria; com as cores a serem misturadas nos contornos desse mesmo
tapete.
BIBLIOGRAFIA
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2002, p.1 e 10.
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BAGNO, Marcos. A língua de Eulália - novela sociolingüística. São Paulo, Contexto, 2003.
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BRITTO, Luiz Percival Leme. A sombra do caos : ensino de língua X tradição gramatical. Campinas,
ALB/Mercado Aberto, 1997.
13
Não estamos menosprezando o trabalho com e sobre as metodologias. No entanto, alertamos para o fato de que a
metodologia, por si só, sem fundamentos epistemológicos que justifiquem sua existência, torna-se esqueleto sem
corpo e alma.
14 Sobre os princípios da semântica, ler Introdução à semântica, de Rodolfo Ilari, excelente obra para ser trabalhada
em Cursos de Pedagogia.
CORTELLA, Mário S. A escola e o conhecimento.Fundamentos epistemológicos e políticos. São Paulo,
Cortez, 1998.
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