4 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) ÉTICA COMO FUNDAMENTO FILOSÓFICO DO TRABALHO EDUCATIVO: Reflexões sobre valores universais, desenvolvimento moral e educação AMORIM, Ivair Fernandes de 1 RESUMO Este trabalho é uma discussão a respeito dos fundamentos do trabalho educativo, mais especificamente da fundamentação ética do trabalho educativo. Aborda o conceito de ética, assim como suas divisões por meio de revisão literária. Passando pela ética das virtudes de Aristóteles e se prendendo mais à ética do dever de Kant, parte para a compreensão dos estudos sobre desenvolvimento moral. São evocadas também as idéias de Piaget e Kohlberg. Relacionando a ética de Kant e as teorias de Piaget e Kohlberg este trabalho tem como objetivo propor uma educação moral que não vise transmitir conteúdos morais, mas sim elevar o nível de desenvolvimento moral dos educandos, por meio de uma abordagem qualitativa e com o método de pesquisa a partir de revisão literária. Palavras-chave: Julgamento Moral. Educação Moral. Desenvolvimento Moral. Ética. ABSTRACT This work is a discussion about the basis of educational work, more specifically of ethics base of educational work. Discusses the concept of ethics, as well as its divisions through literature review. Passing trough Aristóteles ethics of virtues and fixing more to Kant’s ethics of duty, depart from the comprehension of studies about moral development. Piaget’s and Kohlberg’s ideas are evoked too. Connecting Kant’s ethics and Piaget’s and Kohlberg’s. This paper aims to propose that moral education is not intended to convey moral content, but raising the level of moral development of students, through a qualitative approach and the method of research from literature review. Key words: Duty Judgment. Ethics. Moral Education. Moral Development. INTRODUÇÃO Este trabalho vem ao encontro do anseio atual das ciências da educação: fundamentar o trabalho educativo. Acreditamos que os esforços realizados neste 1 Doutor em Educação Escolar pela UNESP de Araraquara-SP. Licenciado em Pedagogia pela UNIFEV - Centro Universitário de Votuporanga. Atualmente é Pedagogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo Campus Votuporanga. E-mail: [email protected] http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 5 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) sentido são louváveis e de suma importância para o desenvolvimento da educação, em especial, em um país como o nosso onde a educação não tem o respaldo e valorização merecidos. Com o intuito de colaborar com a fundamentação do trabalho educativo e instigado pelas discussões realizadas na Disciplina: Fundamentos Filosóficos do Trabalho Educativo, coordenada pela Profa. Dra. Carlota Boto e vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Campus de Araraquara, realizamos este trabalho a fim de contribuir com as reflexões realizadas sobre ética e educação. Iniciaremos o trabalho com uma breve introdução ao conceito de ética e conseqüentemente às diferenças e às unidades propostas entre os conceitos de moral e ética. Feita esta explanação por meio de uma abordagem qualitativa e com o método de pesquisa a partir de revisão literária, falaremos das divisões existentes na ética. Partiremos então para a compreensão de dois autores clássicos indispensáveis para a compreensão da ética: Aristóteles e Kant. Aquele nos ajudará a compreender a ética das virtudes e este a ética do dever. Explanada as posições destes dois autores e evidenciada nossa preferência pela ética kantiana, partiremos a outra etapa do trabalho em que discorreremos sobre os estudos a respeito do desenvolvimento moral. Para tanto lançaremos mão das idéias de Piaget e Kohlberg. Por fim concluiremos este trabalho relacionando a ética do dever com a compreensão do desenvolvimento moral buscando demonstrar como a união destas concepções pode auxiliar a fundamentação ético-filosófica do trabalho educativo. ÉTICA COMO FUNDAMENTO FILOSÓFICO DO TRABALHO EDUCATIVO: Reflexões sobre valores universais, desenvolvimento moral e educação. Educar é uma atividade abrangente que ocorre cotidianamente de forma assistemática e sistemática. A ausência de sistematização no processo educativo se dá nas relações de convivência por meio da inter-relação social, em que recebemos e transmitimos conhecimentos de forma espontânea, dessa forma, adquirimos capacidades básicas. Um entre muitos exemplos de aprendizagem que se efetivam desta maneira é a aquisição da linguagem oral, que nos permite um convívio social e http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 6 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) nos lança à aquisição da escrita e de um novo tipo de conhecimento. Ao falarmos em escrita, referimo-nos ao conhecimento sistemático, que em contrapartida ao que foi dito desenvolve-se de forma intencional e programada visando objetivos educacionais claros e definidos. Sistematizar a educação faz com que esta seja um Trabalho Educativo. Ao partir desta simples diferenciação entre estas duas facetas da Educação é que delineia-se este trabalho. Trataremos aqui da educação que é intencional, que é fruto do trabalho educativo de pedagogos e educadores em geral. Deste ponto em diante adotaremos o termo Trabalho Educativo para indicar a atividade educacional sistemática e intencional. Quando tratamos de Trabalho Educativo, colocamos em pauta a atividade de profissionais (que podem atuar na parte administrativa ou diretamente ligados à docência) que apoiados por teorias pedagógicas, psicológicas, sociais, políticas e filosóficas cuidam da educação em seus vários níveis. Estes suportes teóricos são à base de todo o trabalho desenvolvido, ou seja, fundam toda a prática educacional e por isso são chamados de fundamentos. Podemos então afirmar que devido à complexidade da natureza humana faz-se necessária à educação uma fundamentação teórica vinda de diversas áreas científicas. No entanto, notamos que atualmente os fundamentos teóricos ocultam-se e não são muito evidentes àqueles profissionais que se dedicam à atividade docente, em especial aos que trabalham com os níveis de educação básica. Dessa forma é necessária uma constante reflexão acerca dos fundamentos do trabalho educativo para que haja uma resignificação da atividade do docente. É neste sentido que propomos neste trabalho a reflexão a respeito de um fundamento que me parece importantíssimo para o êxito educacional no contexto atual: a ética. Esta não é uma tarefa fácil e não se pretende esgotar a questão. Neste trabalho queremos apenas levantar alguns pontos sobre este tópico que possam propiciar uma reflexão proveitosa para a compreensão do trabalho educativo. Ao estabelecer tal propósito alguns questionamentos florescem a nossa mente: O que é ética? Quais os tipos de ética? Qual posicionamento ético tomar? Como fundar um trabalho ético aliado ao trabalho educativo? É possível pensar em uma educação moral? http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 7 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) De acordo com nossa capacidade teórico-prática procuraremos indicar caminhos para a solução destes questionamentos. 1. ÉTICA Antes de prosseguir devemos nos ater sobre alguns esclarecimentos sobre o termo Ética. É praticamente inevitável falar em Ética sem que se deslinde a superfície de nossa memória o termo Moral. Muitos entendem os dois termos como sinônimos, outros preferem distingui-los. Vejamos interessante explanação a este respeito encontrada no texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais (2000, p.69): Moral e ética, às vezes são palavras empregadas como sinônimos: conjuntos de princípios ou padrões de conduta. Ética pode também significar Filosofia da Moral, portanto, um pensamento reflexivo sobre os valores e as normas que regem as condutas humanas. Em outro sentido, ética pode referir-se a um conjunto de princípios e normas que um grupo estabelece para seu exercício profissional (por exemplo, os códigos de ética dos médicos, dos advogados, dos psicólogos, etc.). Em outro sentido, ainda, pode referir-se a uma distinção entre princípios que dão rumo ao pensar sem, de antemão, prescrever formas precisas de conduta (ética) e regras precisas e fechadas (moral). Finalmente, deve-se chamar a atenção para o fato de a palavra “moral” ter, para muitos, adquirido sentido pejorativo, associado a “moralismo”. Assim, muitos preferem associar à palavra ética aos valores e regras que prezam, querendo assim marcar diferenças com os moralistas. O sentido lexicográfico das palavras Ética e Moral, confirma a explanação dos PCN’s. Tanto a palavra moral quanto a palavra ética são definidas como conjunto de regras, valores e condutas em uma sociedade, no entanto, a sentido da palavra Ética aponta para uma significação que a palavra moral não contempla, é neste ponto que os PCN’s, os lexicógrafos e muitos autores designam a Ética como disciplina filosófica que reflete acerca dos princípios morais. É também opinião de autores renomados como Borges, Dall’Agnol e Dutra (2003, p. 06) afirmando que “a ética é a disciplina que procura responder às seguintes questões : como e por que julgamos que uma ação é moralmente correta? e que critérios devem orientar esse julgamento?”. E para complementar esta significação de Moral e Ética o estudioso do desenvolvimento moral La Taille (s/d), no vídeo: Desenvolvimento Moral: Princípios valores e sentimentos concorda que as duas palavras possam ser entendidas como http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 8 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) sinônimos, mas que a moral estaria mais próxima da obrigatoriedade e a ética da reflexão, chega a afirmar que Moral manda e a Ética reflete. Nesse trabalho não queremos defender uma ou outra definição de Ética, ou defini-la em detrimento da Moral. Portanto, entenderemos Ética e Moral como termos complementares, porém, abordaremos a Ética como disciplina reflexiva que deve permear todo o Trabalho Educativo fundamentando as bases de uma verdadeira Educação Moral. Borges, Dall’Agnol e Dutra (2003, p.7-8) dividem a Ética em: metaética, ética normativa e ética aplicada, conformo discorrem: [...] A ética normativa pretende responder a perguntas como “o que devemos fazer?” ou , de forma mais ampla, “qual a melhor forma de viver bem?”[...] [...] a metaética não pretende determinar o que devemos fazer, mas investiga a natureza dos princípios morais, indagando se são objetivos e absolutos os preceitos defendidos pelas diversas teorias, ou se são de fato inteligíveis, ou, ainda se podem ser verdadeiros esses princípios éticos num mundo sem Deus. A ética aplicada diz respeito à aplicação de princípios extraídos da ética normativa para a resolução de problemas éticos cotidianos, isto é, procura resolver problemas práticos de acordo como os princípios da ética normativa.[...] Acreditamos que para os objetivos propostos para este trabalho devemos nos ater sobre a ética normativa, pois uma Educação Moral deve dar condições para que o aluno saiba o que deve fazer e qual é a melhor forma de se viver bem. Vemos, neste caso, que as perguntas relativas à ética normativa são as mais adequadas a serem feitas durante um Trabalho Educativo. Utilizando ainda as reflexões de Borges, Dall’Agnol e Dutra, observa-se que a Ética Normativa também possui divisões: Éticas Teleológicas e Éticas Deontológicas. Podemos dividir as correntes da ética normativa em duas categorias: a ética teleológica e a ética deontológica. A primeira determina o que é correto de acordo com uma certa finalidade (télos) que se pretende atingir. Suas duas subdivisões principais são: a ética conseqüencialista, que se baseia nas conseqüências da ação, e a ética das virtudes, que considera o caráter moral ou virtuoso do indivíduo. A ética deontológica procura determinar o que é correto, não segundo uma finalidade a ser atingida, mas segundo as regras e as normas em que se fundamenta a ação. Uma das correntes mais importantes da ética deontológica é a ética Kantiana ou ética do dever. (BORGES et all. 2003, p. 8). http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 9 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Para melhor entender os rumos que este trabalho tomará, nos deteremos sobre as divisões da ética normativa e faremos uma explanação a respeito da ética das virtudes, fazendo breves alusões ao pensamento de seu ilustre doutrinador: Aristóteles. Em seguida discorremos sobre as idéias de Kant, ícone incontestável da ética do dever. 1.1. Aristóteles e a Ética das Virtudes A ética das virtudes é enquadrada no campo da ética normativa como uma corrente teleológica, ou seja, voltada à finalidade, ao télos. Aristóteles filósofo grego é pioneiro nesta abordagem filosófica e, que é, crucial ao entendimento da fundamentação ética do Trabalho Educativo. A obra intitulada O que é Ética? de Borges et al. (2003), nos diz a respeito da ética de virtudes: Pode-se dizer que o marco inicial da ética de virtudes é a doutrina moral que Aristóteles desenvolve na obra Ética a Nicômaco. A questão central da teoria aristotélica das virtudes alude ao que nós queremos em nossa vida indagando qual a finalidade das nossas ações. A resposta, ou seja, a justificativa para as nossas ações, é a busca da felicidade (eudaimonia). Essa felicidade de que fala Aristóteles não consiste em uma alegria momentânea nem em uma euforia efêmera, mas sim em um estado duradouro de satisfação. Aristóteles afirma que é preciso desconsiderar motivos pessoais e subjetivos para se alcançar a felicidade, pois o homem feliz é feliz apenas quando realiza bem a sua função (ergon) própria, a sua razão. Assim, o bem supremo constitui uma condição de bem estar duradouro, conquistada pela realização da racionalidade humana, que é a finalidade da vida virtuosa. Apenas o desenvolvimento da capacidade racional do ser humano poderá proporcionar-lhe uma vida plena. Esse desenvolvimento só é possível pela virtude, que é a excelência moral do ser humano (BORGES et al. 2003, p.11). A citação acima deixa claro que a moral Aristotélica busca a concretização de uma vida boa, o que consistiria em uma felicidade duradoura, ou seja, para Aristóteles o homem deveria ser ético para alcançar esta satisfação permanente. Dessa forma, as ações humanas são tomadas com o objetivo de alcançar esta finalidade. Serei ético para alcançar o bem-estar, minhas ações são norteadas de acordo com as conseqüências que vislumbro. Para que isto ocorra é necessária uma vida virtuosa, em que o homem prudente busca o equilíbrio por meio do cultivo de qualidades desejáveis as pessoas racionais: as virtudes. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 10 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Aristóteles deixa claro que a virtude não é inata do ser humano e que esta assim como a habilidade intelectual ou o trabalho artístico é adquirida pela prática. Um indivíduo se torna justo praticando a justiça, assim como o injusto assim se faz pela prática da injustiça. Ainda segundo este filósofo, os vícios e as virtudes se originam das mesmas fontes, no entanto os vícios se fundam sobre excessos ou deficiências e a virtude se firma sobre o equilíbrio que é chamada mediana. A virtude, portanto, é um estado mediano no sentido de que é ela apta a vida a mediana. Outrossim, o erro é multiforme (pois o mal é uma forma do ilimitado como conjecturam os pitagóricos, e o bem uma forma do limitado) ao passo que o êxito somente é possível de uma única maneira (razão pela qual é fácil falhar e difícil obter êxito – fácil errar o alvo e difícil acertá-lo); e com isso contemplamos uma razão adicional do porque o excesso e a deficiência são uma marca do vício e a observância da mediana uma marca da virtude ou seja: Simples é a bondade, múltipla a maldade (ARISTÓTELES 2002, p. 74). A virtude pode ser compreendida como a prática do equilíbrio, o homem justo, moralmente correto e portanto, virtuoso, não se excede nem falta em suas ações, ele busca pautar sua atitude de forma racional escolhendo uma atuação moderada e prudente que vise sempre um ponto médio, uma mediana. A grosso modo podemos afirmar que o homem virtuoso é o homem moderado e prudente. Em suma, podemos afirmar que a Ética Aristotélica é Teleológica, pois busca uma finalidade (télos) que constitui a satisfação duradoura, a verdadeira felicidade, que só pode ser concebida através de uma vida equilibrada e prudente, em que se busque a mediana em todas as ocasiões, buscando distanciar-nos dos excessos e deficiências para alcançarmos a virtude: forma racional de se viver uma vida boa. 1.2. Kant e a Ética do Dever A ética do dever tem em Kant um alicerce sólido, pois é ele que defende a existência de máximas universais. Isso é confirmado por Borges, Dall’Agnol e Dutra (2003, p. 12): A ética do dever, iniciada por Kant, pretende discriminar as regras do que é certo ou errado moralmente utilizando uma noção chamada imperativo categórico, segundo o qual a ação é moral se a regra da ação puder ser tomada como regra universal, ou seja, se puder ser observada e seguida por todos os seres humanos, sem contradição. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 11 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Para chegar à formulação dos imperativos categóricos Kant (1988), defende uma idéia contrária à filosofia moral aristotélica. Diz-nos que temperança, coragem, argúcia, prudência, entre outras virtudes consideradas moralmente louváveis não são via de regra totalmente boas se a vontade que as mover for de natureza torpe, podendo estas ditas virtudes servirem a objetivos incoerentes e assim moralmente indesejáveis. Neste ponto o filósofo alemão defende que apenas uma coisa pode ser considerada boa sem limitação: a boa vontade. A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é em si mesma e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas inclinações (KANT 1988, p.23). É isto que caracteriza a teoria de Kant como a ética do dever, pois ele despreza o valor moral de uma ação tomada com vistas a uma finalidade, não considera que um ato praticado em prol de uma conseqüência futura benéfica ou aprazível pode ser considerada boa, porque não foi movida por uma boa vontade e sim pela busca de certo objetivo. Somente a atitude tomada de acordo com a boa vontade pode ser considerada moral, pois busca o que é justo sem a interferência de inclinações de qualquer espécie, ou seja, sem que o indivíduo busque saciar qualquer um de seus anseios pessoais, sentimentais ou de qualquer natureza. E é nesse ponto que podemos inserir a noção de dever que para Kant é indissociável da noção de boa vontade, pois: [...] o conceito do Dever que contém em si o de boa vontade, posto que sob certas limitações e obstáculos subjectivos, limitações e obstáculos esses que, muito longe de ocultarem e tornarem irreconhecível a boa vontade, a fazem antes ressaltar por constante e brilhar com luz mais clara (KANT 1988, p.26). Ainda Kant (1998), defende que a ação moralmente correta é aquela guiada pelo dever, dever este que possui em si a boa vontade que é a única capaz de superar as inclinações. Logo, agir moralmente é fazer o que é devido e nem sempre o que é desejado. Aqui já podemos perceber um ponto polêmico da teoria Kantiana, pois um indivíduo que mantenha uma conduta moralmente correta de acordo com os deveres, mas o faça para que viva sem retaliações ou porque é vantajoso para ele http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 12 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) assim proceder, não estará sendo verdadeiramente moral, pois não ponderou seus atos pelo dever, mas sim por uma inclinação. Assim, pode-se agir de acordo com o dever, mas não pelo dever, o que desmerece o caráter moral da ação. Só é moralmente correto aquele que age pelo dever de acordo com a boa vontade. Podemos nos indagar: Como designar o dever? É possível prescrever o que é certo e moralmente correto? Kant (1988, p. 33), responde a este questionamento dizendo que “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal. Vemos um ponto chave da ética kantiana, a universalidade das ações morais. E é esta proposição que nos permite compreender os conceitos de imperativos hipotéticos e categóricos. Primeiramente Kant (1988, p.48) nos define imperativo como “a representação de um princípio objectivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se Imperativo. E também diferencia imperativos hipotéticos e imperativos categóricos. Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética- ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade de uma acção possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma acção como objectivamente necessária por si mesma sem relação com qualquer outra finalidade[...] O imperativo hipotético diz pois apenas que a ação é boa em vista de qualquer intenção possível ou real. No primeiro caso é um princípio problemático, no segundo um princípio assertórico-prático. O imperativo categórico, que declara a acção como obejctivamente necessária por si, independentemente de qualquer intenção, quer dizer sem qualquer finalidade, vale como princípio, apodíctico (prático) (KANT 1988, p.50-51). Podemos perceber que o imperativo da moralidade para Kant é o imperativo categórico, pois este é determinado por uma ação necessária em si, livre de inclinações ou intenções como no caso do imperativo hipotético. Vemos que na ética do dever de Kant, algumas ações que são tomadas de forma racional baseada nos imperativos categóricos que se constituem máximas universais são moralmente corretas e por isso preferíveis. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 13 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Nesse trabalho embora não rejeitemos a importância das idéias aristotélicas para o desenvolvimento da ética, adotaremos um viés kantiano, ou seja, nos basearemos na ética do dever que julga que existem atitudes que podem ser consideradas aplicáveis universalmente e devido a este caráter possuem uma validade moral e são mais desejáveis que aquelas que atendem apenas a inclinações. Proporemos que um trabalho educativo fundado na ética Kantiana visa propiciar aos alunos condições de julgar o que pode ou não pode ser universalizado no âmbito moral. Para tanto, baseados nas breves e incompletas considerações aqui realizadas sobre a teoria de Kant, iremos discorrer sobre algumas teorias que de certa forma influenciadas pela ética do dever propõem uma explanação sobre o desenvolvimento moral. Com base nas máximas universais de Kant e as teorias de desenvolvimento moral, tentaremos esboçar uma fundamentação ética do trabalho educativo. 2. DESENVOLVIMENTO MORAL Quando tratamos de educação, refletimos a respeito de um processo infindável de formação que nos acompanha durante toda nossa existência. Todavia, é fato que a educação nos primeiros anos de vida tem papel crucial para a constituição do ser humano. É no início de nossa vida, talvez na nossa primeira década de nossa existência que adquirimos conhecimentos e habilidades que propiciam nossa sobrevivência. Por isso e por outros fatores costumamos dizer que as crianças e adolescentes estão em fase de desenvolvimento. Aos profissionais da educação cabe buscar um entendimento cada vez mais profundo sobre o desenvolvimento dos seres humanos, para que haja interferências adequadas, cada uma a seu tempo, propiciando uma crescimento saudável para os jovens que se inserem em uma sociedade tão complexa. Muitos foram os estudos que se dedicaram a explicar e a entender em vários âmbitos o desenvolvimento humano. Embora este seja de natureza complexa e indivisível faremos aqui um recorte (unicamente para fins de compreensão e discussão do presente trabalho) tratando de um único aspecto do desenvolvimento: o desenvolvimento moral. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 14 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Creio que no meio acadêmico os teóricos que mais se dedicaram a este respeito são os que se debruçaram sobre estudos psicológicos. Em busca de uma maior compreensão do pensamento humano, pesquisaram a respeito da constituição da moralidade nas mentes jovens, evidenciando maneiras de como se forma a consciência moral. Yves de La Taille insigne estudioso do desenvolvimento moral ao prefaciar a obra de Josep Maria Puig (1998), a construção da personalidade moral contextualiza o que é aduzido pelo autor, dizendo que durante o Século Vinte, três teorias indicaram os caminhos para as pesquisas sobre moralidade: Freud e sua teoria psicanalítica, Skinner e sua teoria behaviorista e Piaget com o construtivismo. Seguindo a discussão proposta por La Taille (1988, p.09) vemos que: Para Freud, a instância psíquica responsável pelo sentimento de dever é o superego, que se forma durante as peripécias do complexo de Édipo (por volta dos cinco anos de idade). Para ele, a criança seria, por natureza, essencialmente anti-social porque está inclinada a sempre saciar seus desejos. Sua educação, e decorrente entrada no mundo da cultura, exige que ela renuncie a certos desejos (por exemplo, o desejo incestuoso). A moral é portanto, vista como repressora, indo de encontro às tendências “naturais” dos indivíduos.[...] Para Skinner o comportamento moral explica-se pela eficácia dos reforçadores sociais. A sociedade recompensa o que ela considera bom e castiga o que considera ruim, e este jogo de condicionamentos explica a presença ou a ausência de comportamentos morais.[...] Para Piaget, pelo contrário, a criança participa ativamente de seu desenvolvimento moral, pois é nas suas interações com a sociedade que ela constrói valores e regras. Nesse trabalho debruçaremos sobre a teoria construtivista de Piaget que buscou compreender as fases do desenvolvimento psíquico, para melhor entender a assimilação dos conteúdos morais. Em decorrência da escolha por Piaget, discutiremos a respeito das idéias de Lawrence Kohlberg: psicólogo que partindo dos mesmos preceitos que Jean Piaget melhor desenvolveu a noção de desenvolvimento moral. Pois: É com o construtivismo de Jean Piaget (1896-1980) e com o enfoque cognitivo-evolutivo de Kohlberg que aparece o papel do sujeito humano como agente do processo moral, como veremos a seguir. Focalizam esses autores não tanto o sentimento de culpa do real comportamento moral, mas o julgamento moral, o conhecimento do certo e do errado, o que a pessoa acha ou julga como certo ou errado (BIAGGIO 2006, p.21). http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 15 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) Vemos claramente que Piaget e Kohlberg são teóricos marcantes para a compreensão do desenvolvimento moral e, por conseguinte, para compreensão da moral e o reconhecimento da ética como fundamento ao trabalho educativo. 2.1. Jean Piaget: Moral Heterônoma e Moral Autônoma Piaget foi estudioso do desenvolvimento cognitivo e dedicou-se a compreender o pensamento lógico e o processo de aquisição do conhecimento, vejamos o que diz Biaggio (2006, p.21): Piaget dedicou a obra de praticamente uma vida inteira às investigações sobre como se processa o desenvolvimento cognitivo, como evoluem o pensamento e o conhecimento. Numa perspectiva construtivista, fala da interação entre estruturas cognitivas, biologicamente determinadas, e da estimulação ambiental. A parte mais conhecida de seu trabalho consiste na identificação de estágios universais pelos quais evolui o pensamento, numa seqüência invariante [...] Esses estágios são o sensório-motor, o pré-operacional, o de operações concretas e o de operações formais. Vemos neste trecho um esboço geral do cerne da teoria de Piaget na obra de Díaz-Aguado e Medrano (1999), a construção moral e educação: Uma aproximação construtivista para trabalhar os conteúdos transversais confirmou o que aqui foi citado. Díaz-Aguado e Medrano (1999), nos esclarecem que Piaget relacionou seus estudos sobre desenvolvimento lógico e consciência moral, logo, para se compreender esta há que se estabelecer os pontos comuns com aquele e verificar quais suas relações. Utilizando-se do método clínico e da teoria do jogo, Piaget determina a existência de dois tipos de moral: a moral heterônoma e a moral autônoma. E assim como no desenvolvimento cognitivo estabelece estágios de desenvolvimento moral, que levam da heteronomia a autonomia. Creio que primeiramente necessitamos compreender a distinção de heteronomia e autonomia para Piaget: a moral heterônoma, baseada na obediência, e a moral autônoma, baseada na igualdade; postulando que as relações com os companheiros são uma condição necessária para a autonomia. A relação com o adulto é fonte, pelo contrario, de respeito unilateral e heteronomia. Desse modo, neste tipo de relação, a criança ocupa sempre o mesmo papel, o de quem deve obedecer; papel que dificilmente pode intercambiar com o adulto. O descobrimento da justiça entre iguais permite à criança adquirir consciência da imperfeição da justiça do adulto, e o igualitário substitui os conceitos http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 16 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) de autoridade, obediência e expiação. Piaget identificou assim um importante conflito que desequilibra o conceito infantil da justiça, baseado em relações unilaterais de obediência e castigo, que são substituídas por relações recíprocas (DÍAZ-AGUADO; MEDRANO 1999, p. 20). Estamos diante de uma contribuição significativa de Jean Piaget. A heteronomia é necessária nos primeiros anos de vida, o adulto unilateralmente impõe regras e normas que são obedecidas pelas crianças, tal obediência deve-se ao fato de que o descumprimento das regras adultas gera castigos e penas aos infratores. Nesta fase a criança não compreende as regras ou a razão de sua existência, a aceitação de normas se dá apenas por receio as conseqüências. Este pensamento é sem dúvida designado aos primeiros estágios do desenvolvimento lógico e, portanto, também dos primeiros estágios de consciência moral, ao passo que o pensamento lógico e a consciência moral se desenvolvem quando as crianças adquirem estruturas cognitivas que interagem com o meio e que proporcionam uma reavaliação de suas posições. O infante começa a entender que as regras são necessárias para estabelecer patamares de igualdade e reciprocidade e não apenas para salvaguardar-se de expiações. Neste ponto é que Piaget propõe a moral autônoma, pois não é necessário mais que haja coerção externa, internamente o sujeito é capaz de proceder a um julgamento moral baseado em relações recíprocas. Vemos ainda, que este processo não ocorre magicamente de forma harmoniosa, assim como em toda teoria de Piaget este desenvolvimento ocorre em processo equilíbrio »desequilíbrio » equilíbrio. Como dissemos anteriormente Piaget estabelece estágios para o desenvolvimento cognitivo, pelos quais todos os seres humanos passariam de acordo com determinações etárias próprias a cada nível. Também para a prática de regras estabelece estágios de desenvolvimento, para tanto Piaget utiliza o jogo para estabelecer relações entre a consciência e prática. Vejamos o que é dito a respeito destes estágios: Com respeito à prática das regras, Piaget distingue quatro estágios sucessivos: 1) o estagio motor e individual (crianças abaixo de dois anos de idade), em que a pratica do jogo se caracteriza pela inexistência de regras e por uma atividade puramente manipulativa e individual; 2) o estágio egocêntrico (inicia-se nas crianças entre dois e cinco anos), no qual as crianças, ainda que brinquem juntas, não compartilham nem têm a atitude de compartilhar as regras de jogo – limitam-se a imitar os adultos, fazendo uso individual dos exemplos recebidos; 3) o estágio de cooperação nascente (aparece entre sete http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 17 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) ou oito anos), em que crianças tentam dominar seus companheiros de jogo mostrando-se preocupados pelo controle mútuo e iniciandose no uso titubeante de regras coletivas; 4) o estagio de codificação das regras (inicia-se entre os onze ou doze anos), no qual se manifestam plenamente as atitudes para codificar e discutir as regras que se aplicam ao jogo. Neste estágio as partidas de bola de gude se acham regulamentadas minuciosamente, e o código é respeitado sem vacilação pelos participantes (PUIG 1998, p.51). Já podemos compreender que Piaget é um marco na compreensão de desenvolvimento moral, pois estabeleceu uma explicação que relacionasse desenvolvimento lógico e consciência moral determinando estágios de desenvolvimento, para ambos, demonstrando que a moral que a princípio é externa devido a ausência de estruturas cognitivas para sua compreensão, passa por um processo evolutivo estágio a estágio a uma assimilação interna que busca atuar autonomamente para decidir o que é mais justo, baseada num parâmetro de reciprocidade e igualdade. Queremos fazer aqui uma importante ressalva feita por Yves de La Taille, que achamos de grande importância para a compreensão de educação moral. Piaget não acredita que os comportamentos morais sejam redutíveis a simples hábitos. Suas pesquisas o convenceram de que os valores e as regras passam pela consciência e de que é justamente a qualidade da assimilação racional destes que determina morais diferentes: a moral é heterônoma quando as regras são meramente legitimadas em função do prestígio de quem as impõe e entendidas ao pé da letra, e a moral é autônoma quando as regras são claramente compreendidas no seu espírito e legitimadas em razão de contratos feitos entre pessoas que se concebem como livres e iguais. Do ponto de vista educacional, em vez de propor uma pedagogia moral que privilegie a influência do adulto sobre a criança (assimetria que gera, justamente a heteronomia), Piaget aconselha promover relações de cooperação entre as crianças, relações que promovem a descentralização (e, em decorrência, maior apropriação racional) por serem baseadas no diálogo e no acordo (LA TAILLE, 1998, p.10). No trecho acima vemos que uma educação moral baseada nas idéias de Piaget visa superar a imposição heterônoma através de uma construção que se baseie no diálogo coletivo. Após compreender alguns aspectos importantes da teoria de Jean Piaget, passaremos a discutir as idéias daquele que de certa forma aprofundou seu pensamento: Lawrence Kohlberg. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 18 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) 2.2. Lawrence Kohlberg: Juízo moral Pré-convencional, Convencional e Pósconvencional É interessante que iniciemos a seção deste trabalho destinada as idéias de Kohlberg tomando conhecimento da diferenciação feita por Puig (1998), a respeito das idéias de Piaget e as do teórico em questão, embora admita que os dois tenham como ponto de partida para seus trabalhos a existência de diferentes etapas de desenvolvimento moral que são universais e regulares com base formal cognitiva. Vejamos o que é dito: Ainda que se sua contribuição possa ser entendida como continuação das principais idéias assinaladas por Piaget, há discrepâncias entre os dois autores em relação a vários aspectos. Em primeiro lugar Kohlberg utiliza o conceito de “estágio” para definir o processo de amadurecimento moral, enquanto Piaget se limita a considerar etapas, pois o conceito de estágio, tal como ele o entende, não se aplica ao âmbito da moral. Em segundo lugar, Piaget assinala duas etapas de desenvolvimento moral: a heteronômica e a autônoma, e considera que esta última pode ser atingida até os doze anos. Kohlberg, contudo, estabelece seis estágios no desenvolvimento do juízo moral e considera que o sexto estágio se completa, na melhor das hipóteses, ao redor dos vinte anos. Por último ambos os autores divergem na relação existente entre juízo e ação moral. Enquanto para Piaget a ação precede o juízo moral, sendo que este é uma tomada de consciência retardada em relação à ação moral, Kohlberg considera que o juízo é anterior à ação e dá sentido a ela. Apesar destas diferenças, podemos afirmar que o enfoque , a metodologia e os objetivos gerais desses autores coincidem (PUIG, 1998, p.54). Assim, podemos concluir que Piaget foi inaugurador dos estudos cognitivos relacionados à moral. No entanto, e salvo as divergências entre os dois teóricos, foi Kohlberg que levou adiante a fundamentação do que chamamos de enfoque cognitivo-evolutivo. Nesta perspectiva postula-se que o desenvolvimento produz mudanças que reestruturam o significado que é dado ao mundo, ou seja, o indivíduo passa a olhar o seu contexto de forma diferente, sendo que esta nova perspectiva é superior às anteriores. Em suma, os estágios finais do desenvolvimento são preferíveis aos iniciais, pois dão ao sujeito maior capacidade de julgar racionalmente o mundo ao seu redor. Ao lermos Puig (1998), Díaz-Aguado & Medrano (1999) e Biaggio (2006), constatamos que Kohlberg propõe três níveis para o desenvolvimento moral que são: nível pré-convencional, nível convencional e nível pós-convencional. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 19 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) No primeiro nível designado pré-convencional as regras são externas ao sujeito, ele as respeita devido ao receio da retaliação e dos castigos. O nível seguinte chamado de convencional contempla uma fase do desenvolvimento em que os indivíduos se preocupam com o coletivo, portanto, as regras são respeitadas para a manutenção da ordem social, tem-se um respeito muito grande à lei, que jamais deve ser infringida. No terceiro e último nível que recebe o nome de pósconvencional, existe uma orientação para a construção de princípios morais autônomos. O individuo que se encontra neste nível reconhece a existência de direitos universais e julga seus dilemas morais de uma perspectiva que vai além da organização social ou da obediência cega à lei. Um fator interessante é que Kohlberg subdivide os três níveis do desenvolvimento em estágios. O nível pré-convencional compreende os estágios um e dois, o nível convencional os estágios três e quatro e o nível pós-convencional os estágios cinco e seis. Díaz-Aguado & Medrano (1999) dizem que há três estágios de raciocínio, a saber: No nível pré-convencional: O estagio um (moralidade heterônoma) caracteriza-se por sua total unilateralidade. [...] Identifica o bem com a obediência do fraco ao forte e com o castigo do forte ao fraco. [...] O indivíduo do estágio um é incapaz de diferenciar perspectivas nos dilemas morais.[...] O sujeito do estágio dois (moralidade do intercâmbio) compreende que cada pessoa tem seus próprios interesses e que esses podem estar em conjunto com os demais. A descoberta de que cada um tem seus próprios interesses o leva a superar o absolutismo e ingênuo realismo do estágio anterior, fazendo-o adotar uma perspectiva moral hedonista e relativista, segundo a qual a forma melhor de resolver os conflitos é através de intercâmbios instrumentais diretos e concretos, tratando os interesses de cada indivíduo de forma estritamente igual (DÍAZ-AGUADO;MEDRANO, 1999, p.30). Nível convencional: No estágio terceiro (moralidade da normativa interpessoal) as perspectivas individuais em conflito reconhecidas no estágio anterior se coordenam a um nível mais complexo, adotando a perspectiva de uma terceira pessoa. Isso permite superar o individualismo instrumental e construir um conjunto de normas compartilhadas que se espera todos cumpram. Essas normas ou expectativas morais são a base para estabelecer relações de confiança mútua que transcendem os interesses e situações particulares (a diferença do estagio dois).[...] O indivíduo do estágio quatro (moralidade do sistema social) adota a perspectiva de um membro da sociedade baseada em uma http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 20 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) concepção do sistema social como um conjunto consistente de códigos e procedimentos que se aplicam imparcialmente a todos os seus membros, sistematizando assim as normas compartilhadas que no estágio três eram informais (DÍAZ-AGUADO;MEDRANO, 1999, p.30-31). E por fim no nível pós-convencional: A perspectiva no estágio cinco (moralidade dos direitos humanos) vai além da sociedade; é a de um agente moral racional que conhece valores e direitos universalizáveis que qualquer indivíduo racional poderia eleger para construir uma sociedade moral. Julga a validade das leis e sistemas sociais segundo o grau com que garantem esses direitos humanos universais. Orienta-se mais para a criação de uma sociedade ideal, definindo seus critérios, do que para a manutenção do sistema social. [...] O estagio sexto (que Kohlberg postulou como hipótese, mas sobre o qual não encontrou evidência empírica) caracteriza por adotar uma perspectiva sócio-moral que idealmente todos os seres humanos deveriam adotar para com os outros como pessoas livres, iguais e autônomas (DÍAZ-AGUADO;MEDRANO, 1999, p.31-32). Vemos que para Kohlberg o desenvolvimento moral evolui de um estágio inicial baseado na lei do mais forte até um estágio autônomo em que o sujeito reconhece valores e direitos universais e, por isso, pode pautar-se em uma conduta que seria ideal e moralmente desejável, buscando uma sociedade moralmente correta, mesmo que para isso seja necessário superar a organização social vigente. O interessante da teoria de Kohlberg é que os indivíduos dos estágios superiores são capazes de julgar além das regras socialmente prescritas, pois estas podem não ser justas e consequentemente ferir alguns direitos inalienáveis como a dignidade e a vida humana, por exemplo. Assim, o individuo que atinja o nível pósconvencional alcançaria a capacidade de julgar racionalmente os conflitos morais sem estar apegado às estruturas de poder ou coerção social. Este seria o tipo de julgamento moral que todos os indivíduos deveriam alcançar. Tendo esta visão, embora incompleta, da teoria de Kohlberg, consideramos suficiente para os objetivos deste trabalho, iniciaremos a etapa conclusiva, buscando evidenciar qual a relação que enxergamos entre a ética kantiana e o desenvolvimento moral (aqui ilustrado pelas teorias de Piaget e Kolberg), vislumbrando o que consistiria a fundamentação ética do trabalho educativo. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 21 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) CONCLUSÃO No início desse trabalho propomos que o objetivo era evidenciar a ética como importante fundamento para o trabalho educativo. Tendo entendido os conceitos de ética e moral, passamos rapidamente pela ética aristotélica que forneceu importantes bases para o desenvolvimento dos estudos morais e da filosofia em geral. No entanto, foi na ética kantiana que buscamos apoio para este trabalho. Kant é precursor da ética do dever, ele defende a idéia de que todos os indivíduos que agem com critério ético, agem conforme o dever. O dever é constituído por imperativos categóricos que constituem ações perfeitamente universalizáveis, pois não tem nenhuma finalidade imediata, mas são necessárias por si próprias e, portanto, obedecem ao preceito central na teoria kantiana, que diz que devemos agir de forma que todos possam proceder da mesma forma. Acredito que para nós educadores esta é uma perspectiva bastante plausível. Bom seria que todos nós educadores conseguíssemos dar aos nossos alunos condições teóricas e empíricas de agir segundo a ética kantiana, em que todos são respeitados em seus direitos primordiais, pois aquele que age de acordo com a máxima da ética do dever, jamais tomaria uma atitude que ferisse de forma torpe os direitos inalienáveis da pessoa humana. Além dessa constatação benéfica da ética kantiana, podemos apresentar um outro ponto que facilita a utilização pedagógica desta perspectiva: a facilidade de compreensão da máxima kantiana. Quando dizemos aos nossos alunos que não podem praticar atitudes que eles não gostariam que os outros praticassem compreendem rapidamente mesmo que de forma inconsciente o fundamento ético de Kant. Ninguém gostaria de ter sua dignidade ou sua vida ferida por uma atitude alheia, dessa forma fica fácil demonstrar de uma maneira sutil o que é ser ético, pois agir de forma ética é proceder de forma que não degrademos em outros aquilo que em nós não gostaríamos de ver degrado. Não queremos dizer aqui que basta dizer aos nossos educandos: não faça ao outro o que não queres que façam a ti, e de repente em um passe de mágica todos serão éticos e moralmente corretos. Embora seja a máxima kantiana de fácil compreensão, para que as mentes jovens, que por nossas mãos passam, adquiram uma conduta verdadeiramente ética é preciso que haja um trabalho consistente por parte dos profissionais da educação, objetivando propiciar a aquisição de um http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 22 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) aparato racional que dê condições a todos de operar de forma racional e autônoma na detecção e no julgamento do que é realmente moral, de quais são os direitos inalienáveis do ser humano e principalmente quais são as atitudes e valores que podem ser universalizados a todos sem restrição. Para que um educador compreenda toda a complexidade de uma educação moral é preciso compreender como ocorre nos indivíduos o desenvolvimento do raciocínio moral e é por isso que discorremos aqui sobre a teoria de Piaget e Kohlberg, porque somente compreendendo os níveis e estágios de desenvolvimento moral o educador poderá entender que: “[...] o propósito da educação, mais que transmitir informação moral, consiste em estimular os educandos a atingir os estágios seguintes do desenvolvimento moral.” (PUIG 1998, p.61) Não basta que digamos aos alunos isto é certo, aquilo é errado, isto pode, aquilo não pode, ao contrário devemos conduzi-los ao julgamento moral para que eles sejam capazes de determinar o que é certo ou errado, o que podem ou não realizar. O educador que compreende e detecta o nível de desenvolvimento moral que seu aluno possui, pode atuar de forma contundente por meio do diálogo, de situações hipotéticas, dos conteúdos disciplinares ou de qualquer ferramenta pedagógica que possua para intervir de forma a elevar seu aluno a estágios superiores de desenvolvimento. Portanto, defendemos aqui que é preciso que o educador busque não só se aprofundar nos conhecimentos científicos de sua disciplina específica ou nos ensinamentos da pedagogia, mas que junte a estes conhecimentos os preceitos filosóficos, para que compreenda o que é a ética, podendo assim desenvolver um trabalho educativo nela fundamentado. Acredito ainda que ao realizar um trabalho de educação moral que eleve o desenvolvimento e julgamento moral dos educandos, o educador estará contribuindo também para o desenvolvimento do gênero humano. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Bauru: Edipro, 2002. BIAGGIO, A. Lawrence Kohlberg: ética e educação moral. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2006. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/ 23 AMORIM, I. F. de., v. 05, nº 2, p. 04-23, JUL-DEZ, 2013. Revista Eletrônica “Diálogos Acadêmicos” (ISSN: 0486-6266) BORGES, M. de L. et al. Ética: tudo que você precisa saber sobre. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. DÍAZ-AGUADO, M. J.; MEDRANO, C. Construção moral e deducação: uma aproximação construtivista para trabalhar os conteúdos transversais. Bauru: EDUSC, 1999. LA-TAILLE, Y. de. Prefácio à edição brasileira. In: PUIG, Josep Maria. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática, 1998. LA-TAILLE, Y. de. Desenvolvimento moral: princípios, sentimentos, valores. São Paulo: ATTA/Mídia e Educação, s/d. KANT, l. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70. 1988. PUIG, J. M. A construção da personalidade moral. São Paulo: Ática, 1998. http://www.uniesp.edu.br/fnsa/revista/