A ética do discurso de Habermas: fundamentação e aplicabilidade

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A ética do discurso de Habermas:
fundamentação e aplicabilidade
Danilo Persch*
Resumo: Habermas se propõe a enfrentar o seguinte desafio: como é possível, numa sociedade pluralista e multicultural, sociedades e pessoas
chegarem a um consenso sobre o que é certo e errado / bom e ruim?
Com o intuito de produzir uma resposta afirmativa para esta questão,
elaborou, junto com Karl-Otto Apel, o que se entende por ética do discurso, teoria que pode ser considerada como um programa de fundamentação moral. Apresentaremos algumas considerações gerais sobre
este programa na primeira parte do presente texto. Uma vez feitos os
esclarecimentos conceituais, procederemos então, num segundo momento, a uma análise mais detalhada, onde descreveremos o caminho
percorrido por Habermas para fundamentar a ética do discurso a partir
do princípio da Universalização. O objetivo é demonstrar como é possível, através de processos de entendimento, a validação de normas que
devem ser respeitadas por todos, inclusive pelos supostos céticos. Para
concluir levantaremos alguns pontos que dificultam uma efetiva aplicabilidade da ética do discurso.
Palavras-chave: Ética do discurso. Fundamentação. Universalização.
Consenso. Validade.
* Professor de Filosofia na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). ����
Doutorando em Filosofia na UFSCar, São Carlos, SP.
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Considerações introdutórias
Em que consiste a ética do discurso? O conceito “ética do discurso”
pode ser entendido como a união de dois conceitos em um só. Enquanto
a parte do “discurso” aponta para um elemento comunicativo, a parte
da “ética” aponta para o agir. A princípio essas duas coisas podem ser
trabalhadas separadamente. Habermas não faz esta separação, pois seu
intento é justamente demonstrar até que ponto é possível pensar numa
unidade entre o falar e o agir. O que está em jogo na ética do discurso
de Habermas não é uma ética para discursos, que diz como devemos
nos comunicar, mas conceber o processo comunicativo como uma ação.
Neste sentido, a ética do discurso pode ser considerada como ética geral,
assim como, por exemplo, a ética kantiana, o contratualismo, o utilitarismo, etc. O que tais éticas têm em comum é sua formulação e a posterior
fundamentação de um princípio superior.
Na ética do discurso de Habermas este princípio moral não é constituído por uma norma ou uma regra de ação que diz como necessariamente se deve agir em determinadas circunstâncias e situações, mas
fundamenta o princípio moral utilizando-se de uma metodologia mediante a qual se pode testar se as normas, regras de ação e máximas estão
realmente certas. Por outro lado, esta ética não diz que as pessoas sempre
devem agir motivadas por fundamentos racionais ou que sempre devem
procurar o consenso. Ela também não diz que necessariamente as convicções têm que ser resultantes do discurso. Mas ela diz o que significa o
fato de pessoas quererem entender suas convicções como certas e verdadeiras. Ela diz também porque se pode confiar naquilo que o consenso
determina como certo e verdadeiro.
Talvez tudo isso fique mais claro se concebermos que o fato de considerarmos determinada ação como moralmente certa ou errada depende de determinados argumentos que são usados para defender ou fundamentar (begründen) esta ação Habermas crê que as pessoas podem
ser motivadas para agir moralmente por meio de razões. Dessa forma,
pode-se representar a participação em um discurso prático como uma
forma de motivação para querer agir de acordo com o consenso resultante do discurso. Nesta perspectiva, o que diferencia a ética do discurso
de outras concepções de fundamentação moral é que ela procura os fundamentos para um bom agir na própria estrutura do discurso prático, ou
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melhor, no processo argumentativo. Neste sentido, para alguém provar
que uma ação é moralmente certa, tem que conseguir defender seu ponto de vista diante dos pontos de vista de todos os participantes do discurso. Dessa forma, um enunciado com o qual se pretende expressar uma
certeza ou verdade tem que ser defendido perante as críticas momentâneas e continuar aberto a futuras críticas. Os fundamentos considerados
certos sempre têm que ser testados por novos fundamentos, algo como
uma corrente ou uma rede. É evidente que esse processo (rede) tem que
ter um limite ou uma margem. O que demarca essa margem é justamente a aceitação, o entendimento, o consenso. Mas, cada consenso sempre
tem que ser encarado como temporário e falível, isto é, no futuro as pessoas poderão chegar a um consenso diferente do atual, ou considerar
errado o que atualmente for considerado como certo.
É importante notar também que as fundamentações usadas para
medir o teor de certeza das nossas convicções devem ser as mesmas que
são usadas para convencer os outros de que as convicções estão realmente certas. Além disso, as convicções podem mudar com o tempo, ou
seja, o que hoje é considerado bom e certo em outro momento (amanhã
ou depois) poderá ser considerado mau e errado. Isso significa que o
processo comunicativo (discurso) nunca pode ser considerado pronto e
acabado, mas intersubjetivo e mutável.
É importante observar ainda que na ética do discurso o moralmente certo não é determinado nem por Deus, nem por qualquer espécie de
autoridade estatal e nem pela natureza. O moralmente certo depende
sempre do acordo que as pessoas firmam entre si, ou seja, os humanos
são autônomos para elaborar as normas pelas quais querem orientar suas
ações. Aliás, Habermas sempre considerou a ética do discurso como uma
teoria de consenso pós-metafísica, independente de um Deus criador ou
de alguma autoridade.
A ética do discurso diz que o consenso é que determina o certo. No
entanto, este consenso nunca pode ser acrítico ou uma espécie de convênio
sem pretensões morais. Pelo contrário, o consenso tem que ser resultante
daquilo que Habermas denomina de fundamentos, e estes fundamentos
devem estar baseados em boas razões. Nesta perspectiva é possível visualizar uma diferença notória entre ética e política. Por exemplo, enquanto
na política se fala muito em pactos, na ética do discurso se fala somente
em consensos motivados de forma racional.
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A fundamentação da ética do discurso a partir do princípio da
Universalização
Habermas pensa que é possível fundamentar o princípio da Universalização que dá suporte à ética do discurso através de duas suposições:
“[...] que (a) as pretensões de validez normativas tenham um sentido
cognitivo e possam ser tratadas como pretensões de verdade, e que (b) a
fundamentação de normas e mandamentos exija a efetivação de um discurso real e em última instância não monológico” (HABERMAS, 1983,
p. 78).1 Dizer que as pretensões de validez têm um sentido cognitivo significa que os juízos morais, bem como as asserções normativas, podem
ser verdadeiros ou falsos. Neste sentido, é através do conceito ética do
discurso que Habermas pretende formular um fundamento moral que
sirva como critério para distinguir normas legítimas (ou ações certas)
de normas ilegítimas ou falsas. Este fundamento ou princípio moral é
o princípio da Universalização. A ética do discurso deve fundamentar
porque se deve reconhecer o princípio da Universalização, i. é, porque
quando se fazem juízos morais o uso desse princípio moral tem que necessariamente ser reconhecido como legítimo. A partir disso, pode-se levantar a seguinte pergunta: quais são os fundamentos a partir dos quais o
princípio da Universalização da ética do discurso pode ser reconhecido?
A fundamentação moral baseada no princípio da Universalização é
um fenômeno das sociedades modernas. Segundo Habermas, a partir da
modernidade, as tradições culturais se tornam reflexivas no sentido de
que os diversos projetos de vida em competição não mais se afirmarem
uns frente aos outros sem a comunicação. Diante deste fenômeno, todas
as nações e culturas são obrigadas a confrontar e justificar seus pontos
de vista morais, de forma argumentativa, perante pontos de vista morais
diferentes ou até contrários. Enfim, as condições de vida moderna não
deixam uma segunda alternativa (HABERMAS, 1991, p. 179-182).2
A tradução das obras originais é de nossa autoria.
Para Habermas a identidade moral moderna se forma a partir de três fontes que são:
a noção de amor de Deus enraizada na tradição cristã, onde Deus encarna a ideia de
bondade em que todas as criaturas participam; a noção iluminista de auto-responsabilidade do sujeito, que, graças à sua razão, é capaz de agir autonomamente, e a crença romântica na bondade da natureza, que encontra a sua manifestação nas produções
criativas da imaginação humana, ou seja, nas obras de arte (produtividade estética).
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A fundamentação do princípio da Universalização torna-se uma necessidade, uma vez que isso evita, por exemplo, que uma concepção moral
e de justiça baseada na tradição cultural do Ocidente seja considerada
melhor do que outras concepções morais. Neste sentido: “Torna-se necessário conseguir demonstrar que o nosso princípio moral não reflete
unicamente os preconceitos do habitante adulto da Europa central dos
nossos dias, de raça branca, sexo masculino e educação burguesa” (HABERMAS, 1991, p. 12). Se eventualmente isso acontecesse então teríamos
o que denomina de “falácia etnocêntrica” (HABERMAS, 1983, p. 88).
A partir destas considerações iniciais pode-se deduzir que o princípio em questão implica que as normas morais devem ser originadas de
forma apartidária e representar os interesses de todos os atingidos. Ou
seja: “A problematização específica da moral se desprende do ponto de
referência egocêntrico (ou etnocêntrico) do meu (ou nosso) contexto de
vida e reclama uma avaliação dos conflitos interpessoais sob o ponto de
vista do que todos poderiam querer em comum” (HABERMAS, 1991, p.
124). Nesta perspectiva: “O ponto de vista moral exige, porém, uma operação de generalização de máximas e de interesses controversos, o que força os intervenientes a transcenderem o contexto social e histórico da sua
forma de vida e da sua comunidade particular, e assumir a perspectiva de
todos os potenciais indivíduos em questão” (HABERMAS, 1991, p. 124).
Um aspecto que não pode ser ignorado nesta concepção de fundamentação moral é o seguinte: para Habermas o método discursivo não
retira a identidade do indivíduo. Num discurso argumentativo, o indivíduo se posiciona a partir da sua própria perspectiva, mas inserido num
contexto social. Dessa forma, o consenso que se procura no plano discursivo depende, por um lado, do sim ou do não de cada indivíduo e,
por outro lado, o indivíduo tem que superar sua perspectiva egocêntrica.
Enfim, para Habermas: “O método da formação discursiva da vontade
contempla a estreita relação entre ambos os aspectos – entre a autonomia dos indivíduos inalienáveis e a sua inserção em formas de vida partilhadas intersubjetivamente” (HABERMAS, 1991, p. 19). Já dentro do
processo de entendimento, as argumentações se dão com a intenção de
um convencimento recíproco, ou seja, o que se instaura numa práxis
argumentativa é numa concorrência pelos melhores argumentos.
Para proporcionar mais credibilidade à sua tese dos discursos argumentativos, Habermas buscou apoio nas teorias de K. O. Apel, prinFilosofazer. Passo Fundo, n. 35, jul./dez. 2009.
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cipalmente na utilização que este filósofo fez do conceito “contradição
performativa” (performativen Widerspruchs). Apel, para ilustrar o significado de contradições performativas, se baseia no exemplo do “Cogito
ergo sum” de Descartes. Neste sentido, com um enunciado do tipo: (1)
Eu não existo (aqui e agora), um falante está erguendo uma pretensão de
verdade. Ou seja, para Apel, a expressão de um ato de fala como este, inevitavelmente pressupõe a existência de um falante e essa existência pode
ser expressa pelo enunciado: (2) Eu existo (aqui e agora) (HABERMAS,
1983, p. 90-92).
A partir destas considerações de Apel, Habermas concluiu que a
contradição performativa consiste na impossibilidade de participantes
em discursos afirmarem uma coisa enquanto a negam de fato, ao mesmo
tempo. Ou seja, quando o cético afirma que é impossível fundamentar o
princípio da Universalização, ele está erguendo uma pretensão de verdade através da sua afirmação. Ao tentar afirmar que não é possível fundamento algum, o cético está justamente reconhecendo que sua afirmação
necessita de um fundamento. E se ele reconhece que sua afirmação é
fundamentada, aí ele se contradiz, pois havia acabado de afirmar que não
é possível fundamentar nada.
Por intermédio da contradição performativa, Habermas passa para
o cético o ônus da prova, já que o próprio cético tem de reconhecer que,
ao enunciar algo, levanta pretensões de validez. E, ao levantar pretensões
de validez, reconhece que está participando de um discurso, pois deve
argumentar, com base em razões, que sua expressão é válida e merece
ser reconhecida pelos demais participantes do discurso. Para resumir a
forma de refutação performativa do cético, Habermas usa da seguinte
passagem do texto de Apel.
Aquilo que não posso contestar sem cometer uma auto-contradição atual e, ao mesmo tempo, não posso fundamentar sem uma
petitio principii lógico-formal, pertence àquelas pressuposições
pragmático-transcendentais da argumentação, que é preciso ter
reconhecido desde sempre, se o jogo da linguagem da argumentação é para conservar seu sentido (HABERMAS, 1983, p. 92).3
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Esta citação se encontra também em APEL, Karl-Otto. ���������������������������
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Das Problem der philosophischen Letztbegründung im Lichte einer transzendentalen Sprachpragmatik. In: KANITSCHEIDER, B. (ed.), Sprache und Erkenntnis. Innsbruck, 1976, p. 55-82���������
.[Tradução espanhola em Estudios Filosóficos 36, n. 102, p. 251-299, 1987].
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O que Apel quer demonstrar é que qualquer pessoa que participa de
um processo de entendimento necessariamente tem que aceitar pressupostos normativos. “Argumentos pragmático-transcendentais prestam-se para recordar a todo aquele que realmente participa de argumentações, que por esta razão ele está participando de uma práxis normativa”
(HABERMAS, 1991, p. 186). A defesa de Apel do conceito de contradição performativa não deixou dúvidas a Habermas sobre a possibilidade
de uma fundamentação da ética, fato que fez com que levasse adiante a
ideia da possibilidade deste tipo de fundamentação moral. Neste sentido,
ele não abre mão das regras de argumentação, sempre pressupostas, que
são necessárias para a realização de um discurso, “e são estas que podem
ser derivadas de um modo pragmático-transcendental” (HABERMAS,
1983, p. 96). Mas, quais são estas regras? No livro Consciência moral e
agir comunicativo estas regras são descritas da seguinte forma:
(1.1) Nenhum falante pode se contradizer.
(1.2) Todo falante que aplicar um predicado F a um objeto a, tem
que estar disposto a aplicar F a qualquer outro objeto que se assemelhe a a sob todos os aspectos relevantes.
(1.3) Diferentes falantes não podem usar a mesma expressão em
sentidos diferentes.
(2.1) Todo falante só pode afirmar aquilo em que ele mesmo acredita.
(2.2) Quem atacar um enunciado ou norma que não for objeto da
discussão tem que indicar uma razão para isso.
(3.1) Todo sujeito capaz de falar e agir pode participar de discursos.
(3.2) a. Cada um pode problematizar qualquer afirmação.
b. Cada um pode introduzir qualquer afirmação no discurso.
c. Cada um pode expressar suas atitudes, desejos e necessidades.
(3.3) Nenhum falante pode ser impedido, mediante alguma coerção exercida dentro ou fora do discurso, de valer-se de seus direitos estabelecidos em (3.1) e (3.2) (Cf. HABERMAS, 1983, p.
98-100).4
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Em outro texto (mais recente) Habermas cita quatro qualidades que são indispensá���������������������������������������������������������������������������������
veis para que um processo argumentativo possa ser considerado legítimo e o consenso
racionalmente aceitável. São elas: (a) ninguém, que possa dar uma contribuição relevante, pode ser excluído da participação; (b) a todos será dada a mesma chance para
dar contribuições; (c) os participantes têm que acreditar naquilo que dizem; (d) a comunicação deve ser isenta de coações internas e externas, de tal forma que os posicionamentos de Sim/Não ante pretensões de validez criticáveis sejam motivados tão-somente pela força de convencimento das melhores razões” (HABERMAS, Jürgen. Eine
genealogische Betrachtung zum kognitiven Gehalt der Moral. In: Die Einbeziehung des
Anderen: Studien zur politischer Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p. 62).
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O que se pode deduzir a partir destas regras é que o discurso real
preserva a liberdade de direitos, bem como a dignidade pessoal de todos
os participantes. Resumidamente pode-se dizer que na ética do discurso os interesses dos indivíduos são contemplados no plano do interesse
geral. O intento de Habermas é demonstrar que os princípios morais baseados no discurso devem ser reconhecidos por todos os participantes
de um discurso prático, antes mesmo dos atores começarem o processo
de entendimento de onde resulta o consenso. Dito de outra forma, quando se argumenta, as regras do discurso já estão pressupostas, ou seja, o
participante do discurso (quer queira ou não) já reconheceu as regras
racionais. Por exemplo, quem faz uma pergunta ou afirma algo ou questiona uma ideia com pretensão de validez para si mesmo e para outros e
se oferece como membro co-responsável para a busca da verdade de um
enunciado (ou da correção de uma norma), pressupõe capacidade cognitiva para saber o que significa participar de um diálogo argumentativo.
No entanto, Habermas abandona a pretensão de uma “fundamentação última” (Letzbegründung), tese defendida por Apel, e em seu lugar
propõe uma fundamentação mais fraca. Nesta perspectiva de fundamentação “fraca” é que aparece o princípio da Universalização (U). Este princípio (U), que também pode ser entendido como regra de argumentação,
tem a seguinte formulação em Consciência moral e agir comunicativo:
(U) Toda norma válida tem que preencher a condição de que as
conseqüências e efeitos colaterais, que previsivelmente resultam
de sua observância universal para a satisfação dos interesses de
cada um, possam ser aceitas sem coação por todos os atingidos
(HABERMAS, 1983, p. 131).
Aqui é possível levantar a pergunta: o que Habermas realmente pretende, ou seja, qual é seu objetivo com o princípio da Universalização?
Seu objetivo é testar se as normas morais podem ser fundamentadas corretamente. E, para dar conta deste intuito, elaborou uma fórmula abreviada para a ética do discurso denominada como princípio Discursivo
(D), que tem a seguinte formulação:
[...] só podem reclamar validez, as normas que encontrarem (ou
possam encontrar) o consentimento de todos os atingidos enquanto participantes de um discurso prático (HABERMAS, 1983,
p. 103).
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Diante do princípio Discursivo (D) uma ética do discurso tem que
poder dizer como um consentimento pode ser dado, ou seja, com quais
regras argumentativas as normas de um discurso podem ser justificadas
a fim de que possam ser consideradas moralmente certas. O princípio
Discursivo (D) significa que o consenso é um acordo motivado por razões. Assim que, o consenso não pode ser entendido como um acerto
qualquer motivado racionalmente a partir de uma visão egocêntrica.
Por outro lado, (D) deixa em aberto o caminho pelo qual se pode visar
um comum acordo discursivo. Nesta perspectiva também se pode dizer
que (D) indica a condição a ser cumprida para que normas possam ser
consideradas válidas, caso possam ser fundamentadas. Por outro lado, o
princípio de Universalização (U) representa justamente essa condição,
ou seja, (U) é a regra que indica como as normas morais podem ser fundamentadas (HABERMAS, 1997, p. 59).
O objetivo de Habermas com o princípio da Universalização é introduzir uma regra de argumentação com a qual, em discursos práticos e com melhores fundamentos ou argumentos, se possa convencer os
outros participantes do diálogo. Mas, para fundamentar o princípio da
Universalização é necessário o princípio Discursivo, porque este já pressupõe (a priori) a possibilidade de uma formação consensual mediante
as regras discursivas que, se forem seguidas, resultam em atos ideais de
fala. Portanto, Habermas considera o princípio da Universalização como
um “princípio-ponte” e, se (U) pode ser implicado pelo princípio Discursivo (D), então a universalização de uma norma, que é o que determina sua validade e legitimidade, está fundamentada.
Habermas considera essencial que a fundamentação da ética do
discurso siga os passos de um programa de fundamentação que descreve, resumidamente, da seguinte maneira:
(1) a indicação de um princípio de universalização que funcione
como regra da argumentação;
(2) a identificação de pressupostos pragmáticos da argumentação
que sejam inevitáveis e tenham um conteúdo normativo;
(3) a exposição explícita desse conteúdo normativo, por exemplo,
sob a forma de regras do discurso; e
(4) a comprovação de que há uma relação de implicação material
entre (3) e (1) em conexão com a ideia de justificação de normas
(HABERMAS, 1983, p. 106).
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Estes passos também se deixam explicar de outra forma: se “[...] a
identificação de pressupostos pragmáticos da argumentação são inevitáveis e tem um caráter normativo” (2); se “[...] a exposição deste conteúdo
normativo se dá sob a forma de regras do discurso” (3), e se está presente a ideia de justificação de normas, “[...] então todos os que empreendem seriamente a tentativa de resgatar discursivamente pretensões de
validez normativas aceitam intuitivamente condições de procedimento
que equivalem a um reconhecimento implícito de ‘U’” (HABERMAS,
1983, p. 103). Dito de outra forma, de todas as regras do discurso que
foram mencionadas resulta: “[...] que uma norma controversa só pode
encontrar assentimento entre os participantes de um discurso prático, se
‘U’ é aceito” (HABERMAS, 1983, p. 103). Portanto, o passo (2) pode ser
considerado o primeiro verdadeiro e decisivo passo para a fundamentação de normas. Isso significa que, quando se argumenta (não importa
sobre qual assunto) não há como negar determinados standares pragmáticos. Habermas fundamenta a impossibilidade de negação destas
regras discursivas através de contradições performativas (performativen
Widerspruchs), na forma de um “procedimento maiêutico” (mäeutischen
Verfahren) que serve para:
(2a) chamar a atenção do cético, que apresenta uma objeção, para
pressupostos dos quais ele tem um saber intuitivo;
(2b) dar uma forma explícita a esse saber pré-teórico, de modo
que o cético possa reconhecer suas intuições na descrição dada; e
(2c) examinar com base em contra-exemplos a afirmação feita
pelo proponente da falta de alternativas para os pressupostos explicitados (HABERMAS, 1983, p. 107).
O seguimento dos passos do programa de fundamentação explicita
o entendimento daquilo que Habermas denomina de “fundamentação
fraca”, que substituiria a “fundamentação última” de Apel. A “fundamentação fraca” significa que as regras do discurso são seguras (ou infalíveis),
mas que a pretensão de universalidade que são associadas a essas regras
pode ser falível. Neste sentido, diz que: “A certeza com que praticamos
nosso saber das regras não se transfere para a verdade das propostas de
reconstrução das pressuposições hipoteticamente universais” (HABERMAS, 1983, p. 107). Mas, apesar de a “fundamentação fraca” ser falível,
Habermas pensa que a ética do discurso só tem a ganhar com ela, pois
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estaria concorrendo com outras éticas e, neste sentido, ao invés de dar
respostas diretas para as perguntas, estaria exercendo uma função esclarecedora. Tudo isso significa que a ética do discurso não é um critério ou
um fundamento para alguém agir moralmente. Tais critérios cada um só
pode procurar dentro de si mesmo. O que ela proporciona são critérios
normativos que possibilitam uma formação consensual.5
O princípio da Universalização permite demonstrar àqueles que de
forma argumentativa pretendem negar este princípio que necessariamente vão se contradizer. Num discurso real, por exemplo, o oponente,
ao tentar negar este princípio (U), pressupõe exatamente aquilo que tenta negar, que em outras palavras significa seguinte: quando o oponente
argumenta, está orientado para o entendimento, suas ações de linguagem
são comunicativas e por isso ele próprio já pressupõe regras discursivas.
No entanto, apesar de todas estas justificativas em favor do cognitivismo moral, restam dúvidas quanto ao convencimento do cético moral.
Também Habermas está muito ciente disso, pois ele mesmo diz que o cético radical “[...] pode pôr em dúvida a solidez da derivação pragmático-transcendental do princípio moral” (HABERMAS, 1983, p. 108). Como
o cético pode fazer isso? Habermas pensa que: “Um cético, que prevê que
pode ser pego em contradições performativas, recusará de antemão o
jogo do logro – e recusará toda e qualquer argumentação”. Dessa forma:
“O cético conseqüente retira do pragmático transcendental a base para
seus argumentos” (HABERMAS, 1983, p. 109). Nesse exemplo, ao saltar
fora da argumentação, o cético literalmente ignora o cognitivista. Por
sua vez: “o cognitivista, se persistir com suas reflexões, só poderá falar
sobre o cético, não mais com ele” (HABERMAS, 1983, p. 109). Tendo em
vista estas considerações, Habermas conclui o seguinte: “Que uma concepção cognitivista da moral é possível significa apenas que podemos saber como devemos regular legitimamente nossa vida em comum [...]”
(HABERMAS, 2004, p. 307).
Mas, qual deve ser a postura do teórico moral (cognitivista) diante
da postura de mudez do cético? Habermas não consegue apontar uma
saída convincente para este problema, mas não abandona sua posição
inicial. Que posição é esta? É a posição que ele já defendeu na Teoria do
agir comunicativo onde dizia que:
Na última parte do texto, quando discutiremos os problemas da aplicabilidade da ética
do discurso, esta questão da motivação para agir moralmente voltará à tona com maior
ênfase.
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Na ética filosófica não se pode considerar de nenhum modo que
as regras de ação associadas às pretensões de validez, às quais se
baseiam mandamentos e sentenças de dever, possam ser desempenhadas de forma discursiva em analogia com as pretensões de
verdade. Mas no cotidiano ninguém pode fazer referência à argumentações morais, sem intuitivamente partir do forte pressuposto de que no círculo dos afetados pode-se em princípio chegar a
um consenso fundamentado. [...] A esse saber intuitivo nós nos
apoiamos sempre que argumentamos moralmente; nestas pressuposições têm suas raízes o ‘moral point of view’. Mas isso ainda
não tem que significar que essa intuição leiga também seja justificada efetivamente; em todo caso, nesta pergunta ética fundamental, eu me inclino a uma posição cognitivista segundo a qual as
questões práticas podem em princípio ser decididas argumentativamente (HABERMAS, 1981, p. 39-40).
O cético, conforme Habermas, não conseguiu nada mais que renunciar à sua qualidade de participante da comunidade dos que argumentam.
A recusa do cético em participar de um processo argumentativo visando um consenso em hipótese alguma pode significar a negação de uma
forma de vida sócio-cultural na qual este mesmo cético vive. “Ele pode,
com uma palavra, renegar a moralidade, mas não a eticidade dos comportamentos vitais nas quais, por assim dizer, ele se mantém durante o
dia” (HABERMAS, 1983, p. 110). Enfim, o cético, por mais que queira,
não consegue desvencilhar-se da prática comunicativa do cotidiano, isso
pelo fato de simplesmente estar vivo. “Eis por que a recusa de argumentação do cético radical se revela como uma demonstração vazia” (HABERMAS, 1983 p. 110). Em outras palavras, isso significa dizer que: “A
prática comunicativa, mesmo ainda antes de toda a institucionalização,
não deixa possibilidade de escolha aos seus participantes [...]” (HABERMAS, 1991, p. 132-133), ou seja: “A opção cética de abandonar o jogo
de linguagem das expectativas, condenações e autocensuras morais fundamentadas existe apenas na reflexão filosófica, mas não na práxis: ela
destruiria a autocompreensão de sujeitos que agem comunicativamente”
(HABERMAS, 2004, p. 309). Neste mesmo sentido, mais adiante lê-se
que: “A continuação do agir comunicativo por meios discursivos pertence à forma de vida comunicacional em que nos encontramos sem possibilidade de troca” (HABERMAS, 2004, p. 310). Enfim, só há duas saídas
para um sujeito não participar do agir comunicativo: uma grave doença
mental ou o suicídio (HABERMAS, 1983, p. 110).
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O problema da aplicabilidade da ética do discurso (em conclusão)
Em relação à aplicabilidade da ética do discurso, as questões são do
tipo seguinte. É possível, em um mundo onde as pessoas agem (umas
mais outras menos) de forma imoral, colocar em prática a ética do discurso? Como a ética do discurso enfrenta o egoísmo das pessoas? Como
a ética do discurso lida com a problemática de uma possível falta de boa
vontade dos indivíduos pertencentes a uma comunidade moral no sentido de resolver dialogicamente os problemas do mundo da vida? Como
pôr em prática uma cultura do diálogo? Como contribuir eficazmente
para a solução pacífica de conflitos? De que modo incentivar um processo que busque o consenso numa sociedade onde as relações dos sujeitos
são muitas vezes desfiguradas pela corrupção, por interesses partidários
e de poder? Enfim, o problema da aplicabilidade da ética do discurso
pode ser resumido da seguinte forma: como fazer com que o conteúdo
expresso nos juízos normativos seja considerado um dever pelos participantes de discursos práticos.
A maior crítica que se pode fazer à ética do discurso, com a qual
concordamos, é formulada a partir da realidade, ou seja, dos casos em
que o consenso se impõe sobre a multiplicidade de argumentos e interesses mais como exceção do que como regra. Não se pode defender
ingenuamente que a expressão de opiniões e necessidades de cada um
dos integrantes em um discurso prático conduzirá sempre a uma solução
comum e universalizável. Com isso pretende-se dizer que não é fácil pôr
em prática a ética do discurso. Uma coisa é o homem ter “logos” (razão)
– aliás, isso todos tem –, outra coisa bem distinta é esperar que, por meio
de boas razões, todos queiram buscar acordos e se comprometer com
tais acordos, como é a proposta de Habermas. Em situações concretas
raramente as pessoas se sentam para dialogar, ou seja, raramente dialogam sem pretender convencer e até mesmo impor o seu ponto de vista
aos demais. Muito raramente a participação em reuniões é espontânea.
Normalmente se almeja obter algum tipo de benefício em decorrência
da participações em discursos práticos. Isso é perfeitamente visível nos
diálogos reais que se dão todos os dias no âmbito da política, da economia, das instâncias do poder judiciário, das reuniões de professores, etc.,
onde os falantes tratam de convencer os ouvintes com uma extraordiFilosofazer. Passo Fundo, n. 35, jul./dez. 2009.
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nária variedade de argumentos, sendo que quando o resultado não é o
esperado, facilmente se diz que uma das partes rompeu o diálogo ou que
não foram cumpridas condições mínimas esperadas.
Mas, o que diz Habermas sobre todos estes questionamentos e sobre a relação que existe entre a fundamentação e a aplicação de normas?
Ele mesmo concorda que no cotidiano das nossas vidas muitas vezes aparecem situações imprevisíveis, ou seja, sabe que o mundo real é muito
diferente do ideal discursivo. Aliás, reconhece que: “Discursos racionais
têm um caráter improvável e emergem como ilhas do oceano da práxis
cotidiana” (HABERMAS, 1991, p. 162). Apesar disso ele acredita que o
fato de normas estarem fundamentadas implica que elas podem ser seguidas por todos os endereçados. E, mesmo quando não são seguidas,
isso não significa que não tenham validade. “Mandamentos morais são
válidos, independente do destinatário conseguir ou não reunir forças
para também fazer o que é considerado correto” (HABERMAS, 1991,
p. 114). Dessa forma, por exemplo, uma lei que diz: “não se deve matar”,
continua tendo validade mesmo que diariamente pessoas sejam mortas. Enfim, para Habermas, uma norma, já em sua forma impessoal (por
exemplo: não se deve matar), ergue uma pretensão de validez independente de sua promulgação ou de seu uso.
Por isso, antes de fazer qualquer crítica à aplicabilidade da ética do
discurso é preciso lembrar que a racionalidade que está em jogo num
processo de entendimento é a racionalidade das regras argumentativas
do discurso mediante as quais normas morais podem ser fundamentadas. O teor universalista dessa fundamentação está justamente nas regras argumentativas válidas para todos e esta validade é independente
das pessoas que defendem tais regras. Sobre isso Habermas escreve que:
“O princípio moral assume apenas o papel de regra argumentativa para a
fundamentação de juízos morais; enquanto tal, não pode obrigar à participação em argumentações morais nem motivar para a observância de
visões morais” (HABERMAS, 1991, p. 135). Portanto, se as pessoas realmente agem como determinam as normas morais é uma questão mais
complexa. Aliás, para Habermas, a visão cognitivista da moral ensina
que as obrigações morais fundamentadas “[...] só possuem a fraca força
motivadora das boas razões” (HABERMAS, 1991, p. 135).6 Isso significa
Mais adiante, neste mesmo texto, Habermas complementa esta ideia dizendo que: “A
ligação interna entre normas e razões justificadoras forma a base racional da validade
de normas” (p. 144).
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que as obrigações são sempre somente contingentes, ou seja, as pessoas
podem agir de forma contrária ao que elas mesmas propuseram no consenso. Neste sentido, quando se estabelece um conflito entre interesses
individuais e interesses gerais, é a própria pessoa que tem que querer agir
conforme o que é do interesse de todos. O máximo que uma teoria como
a ética do discurso pode fazer é mostrar o procedimento que as pessoas
têm que seguir caso queiram resolver seus problemas morais. Mas as
razões não representam uma espécie de força compulsória no sentido de
conseguir direcionar o agir das pessoas.7
Mesmo com todas as ressalvas que põem em dúvida a aplicabilidade da ética do discurso, Habermas pensa que a comprovação transcendental em sentido fraco (conforme visto no texto) é suficiente para fundamentar a pretensão universalista de validade de um princípio moral.
Para ele: “Mais do que por via da argumentação, é através da socialização
em uma forma de vida que uma boa vontade é desperta e fomentada para
o princípio moral” (HABERMAS, 1991, p. 189). Neste sentido, para que
o princípio moral da ética do discurso seja posto em prática são necessárias as motivações (razões) no sentido de fazer com que os participantes
de uma comunidade moral queiram agir moralmente. Aliás, o objetivo
de Habermas é revitalizar a razão humana com o fim de reconstruir uma
ética universal. Para tanto, ele se apóia no projeto kantiano, mas não perde de vista o aspecto da intersubjetividade. Ou seja, para Habermas, a
moral implica a superação de interesses particulares e a participação em
um diálogo sem coerção, onde os participantes devem adotar o “ponto
de vista moral” e nunca seus interesses particulares. Dessa forma, o que
está em jogo neste tipo de fundamentação ética é uma concepção intersubjetivista de autonomia, sendo que “[...] o livre desenvolvimento da
personalidade de cada um depende da realização da liberdade de todos”
(HABERMAS, 1991, p. 24). Enfim, “Cada um de nós tem que poder se
colocar na posição de todos aqueles que seriam afetados pela realização
de uma ação problemática ou pela entrada em vigor de uma norma controversa” (HABERMAS, 1991, p. 153-154). Ou seja, a validade das normas sempre tem que ser entendida como um valor que é estabelecido
por nós e para nós.
O que aqui pode ser perguntado é o seguinte: existe alguma ética ou algum tipo de fundamentação moral infalível, isto é, que consegue obrigar uma pessoa a fazer aquilo que
é moralmente certo? Parece-me que neste sentido todos os tipos de fundamentação
ética são igualmente impotentes.
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Em outras palavras, a ética do discurso mostra que as pessoas precisam ser justas, sensíveis e tolerantes em relação à aplicação de normas
que convalidam em discursos práticos. Dessa forma, através de esforços
coletivos, entre movimentos sociais e políticos, é possível a institucionalização da ética do discurso. Isso é fácil? Não, não é. Todos sabem que
ainda hoje há muitos lugares nos quais instituições como Direito e, principalmente, a Política são tão viciadas a ponto de não permitirem uma
correta participação dos indivíduos em discursos práticos. Todos também sabem que a humanidade ainda precisa evoluir muito em termos
de democracia, justiça, liberdade, cidadania, etc. Mas é neste mundo real
que devemos pensar a ética. E, sobre este mundo real, Habermas diz o
seguinte: “Sem os testemunhos de uma ‘razão ainda assim existente’, se
bem que em fragmentos e estilhaços, não se teriam podido desenvolver,
em toda sua amplitude, as instituições morais que a ética do discurso
simplesmente conceitualiza” (HABERMAS, 1991, p. 26).
Outro ponto desta problemática da aplicabilidade da ética do discurso é o seguinte: os conteúdos avaliados e testados pelo princípio da
Universalização não são gerados pelos filósofos, mas pela vivência das
pessoas. Ou seja: “[...] a autocompreensão ético-existencial do indivíduo
e o esclarecimento ético-político de uma autocompreensão coletiva são
da competência dos afetados e não dos filósofos” (HABERMAS, 1991, p.
184). Aos filósofos compete apenas “[...] o recurso ao plano reflexivo de
uma análise do método, através do qual questões éticas podem ser respondidas em geral” (HABERMAS, 1991, p. 184-185). Isso significa que
os filósofos, em primeiro lugar, têm que ter consciência da sua própria
falibilidade e, em segundo lugar, a filosofia não pode mais ser considerada a “detentora das chaves” (HABERMAS, 2004, p. 319), que solucionam todos os problemas. Em discursos reais ou discursos conduzidos
legalmente, “O teórico da moral pode então se envolver na qualidade de
participante, ou eventualmente de especialista, mas não pode conduzir
estes discursos por si próprio” (HABERMAS, 1991, p. 46).
O que está relacionado aos filósofos também se aplica aos políticos.
Geralmente as reformas políticas são feitas dentro de uma ordem social.
Neste sentido, para Habermas, as atuais políticas nacionais e internacionais felizmente deixam pouco espaço para decisões heróicas de políticos solitários. O fato do poder do político ser normalmente legitimado
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democraticamente faz com que o político se sinta obrigado (em parte)
a agir conforme a vontade do povo. Enfim: “[...] a filosofia não retira a
responsabilidade prática de ninguém” (HABERMAS, 1991, p. 30), nem
dos próprios filósofos, nem dos políticos e nem de qualquer sujeito autônomo.
Disso tudo se pode concluir que Habermas vê apenas no uso correto da razão uma possível solução para os problemas éticos, sendo que
o uso certo da razão necessariamente implica a dialogicidade entre diferentes pontos de vista. Nela já está inserida a crítica ao racionalismo desenfreado, que pode levar a excessos técnicos e econômicos. Os fracassos
que eventualmente vierem ao mundo, provocados por um racionalismo
excessivo, devem ser corrigidos (extintos) pela mesma razão que os originou. Neste sentido, Habermas faz um esforço para pensar a razão, a
ética e o ser humano de forma positiva (afirmativa); não como resultado
do ressentimento e do niilismo ou dos fracassos e temores da subjetividade egoísta. Para quem pensa que o projeto moderno está incompleto e
que só pode se completar por si mesmo, a proposta da ética do discurso
é coerentemente otimista e esperançosa.
As considerações feitas aparecem sintetizados no seguinte texto do
próprio Habermas, surpreendentemente:
Para que nos libertemos dos grilhões de uma falsa e apenas presumível universalidade de princípios seletivamente esgotados e
aplicados de uma forma insensível ao contexto, sempre foi necessário, e ainda o é hoje em dia, movimentos sociais e lutas políticas, no sentido de podermos aprender, a partir das experiências
dolorosas e do sofrimento irreparável dos humilhados e ofendidos, dos feridos e violentados, que ninguém pode ser excluído em
nome do universalismo moral – nem as classes subprivilegiadas
nem as nações exploradas, nem as mulheres domesticadas nem
as minorias marginalizadas. Quem, em nome do universalismo,
exclui o Outro, que tem o direito a permanecer um estranho em
relação aos outros, atraiçoa os seus próprios princípios. Apenas
na libertação radical das histórias individuais de vidas e de formas de vida particulares é que se comprova o universalismo do
igual respeito por todos e da solidariedade para com tudo que
comporta a marca da humanidade (HABERMAS, 1991, p. 114).
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