Estado de Exceção/ Giorgio Agamben

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Roteiro para uma primeira aproximação da noção
de Estado de Exceção — a partir de entrevistas de Giorgio
Agamben e do texto:
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo, Boitempo, 2004. Capítulo 1: “O
Estado de Exceção como Paradigma de Governo”)
“...Nós percebemos como é difícil entender essa nova
ordem mundial: contractors, detainees, UNLAWFULL
combatants, novas categorias de pessoas que não
existiam antes. Soldados de empresas privadas
interrogam soldados de organizações privadas num
campo de prisioneiros situado numa ilha para além da
lei.”
Gitmo: as novas regras da guerra
Historicamente, o estado de exceção não é um
direito especial (como o direito de guerra) mas é
uma suspensão da própria ordem jurídica. É um
termo comum na doutrina alemã, mas estranho às
doutrinas italiana e francesa, que preferem falar de
decretos de urgência e de estados de sítio. A doutrina
anglo-saxônica prefere falar em lei marcial e em
poderes emergenciais. A origem do estado de sítio
encontra-se no decreto de 8 de julho de 1791 na
Assembléia Constituinte Francesa, que distinguia entre
estado de paz, estado de guerra e, finalmente, estado
de sitio. No caso da América Latina, o estado de sítio
está associado à ditadura militar. Aparece como um
instrumento jurídico político de violência
constitucional.
Assim que Hitler assume o poder, ele
proclama, em 28 de fevereiro de 1933, o decreto em
favor da proteção do povo e do Estado. Esse decreto
suspende todos os artigos da Constituição de Weimar
que garantiam as liberdades individuais. Ele jamais foi
revogado, de modo que se pode, do ponto de vista
jurídico, considerar o conjunto do Terceiro Reich como
um estado de exceção que durou 12 anos. Desde
então, a criação deliberada de um estado de
emergência permanente tornou-se uma das práticas
essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive das
democracias.
Atualmente, diante do incessante avanço do que foi
definido como uma “guerra civil mundial”, o estado de
exceção tende cada vez mais a se apresentar como
o paradigma de governo dominante na política
contemporânea. Este deslocamento de uma
medida provisória e excepcional para uma técnica
de governo ameaça transformar radicalmente – e,
de fato, já transformou de modo muito
imperceptível—a estrutura e o sentido da distinção
tradicional entre os diversos tipos de constituição.
O estado de exceção apresenta-se, nessa
perspectiva, como um patamar de indeterminação
entre democracia e absolutismo.
>>> A significação profunda do estado de exceção
como uma estrutura original pela qual o direito inclui
em si o vivo por meio de sua própria suspensão se
revelou em toda a sua clareza com a “military order”
que o presidente dos Estados Unidos decretou em 13
de novembro de 2001. Tratava-se de submeter os não-
cidadãos suspeitos de atividades terroristas a
jurisdições especiais que incluíam sua “detenção
ilimitada” (”indefinite detention”) e sua transferência ao
controle de comissões militares.
O “USA Patriot Act” de 26 de outubro de 2001 já
autorizava o “attorney general” [procurador-geral da
República] a deter todo estrangeiro (”alien”) suspeito
de pôr em perigo a segurança nacional. Era preciso,
porém, que em sete dias esse estrangeiro fosse
expulso -ou então acusado de ter violado a lei de
imigração ou cometido outro delito.
A novidade da
ordem do presidente Bush foi apagar radicalmente o
estatuto jurídico desses indivíduos e de produzir assim
entidades que o direito não podia nem classificar nem
nomear. Não apenas os talebans capturados no
Afeganistão não podem gozar do estatuto de
prisioneiros de guerra pela Convenção de Genebra,
mas também não correspondem a nenhum caso de
imputação fixado pelas leis americanas: nem
prisioneiros nem acusados, mas simples “detainees”
(detidos), eles se acham submetidos a uma pura
dominação de fato, a uma detenção que não é apenas
indefinida num sentido temporal, mas também por sua
própria natureza, pois ela escapa completamente à lei
e a toda forma de controle judiciário. A única
comparação possível é com a situação dos judeus no
Lager nazista: juntamente com a cidadania, haviam
perdido toda identidade jurídica, mas conservavam
pelo menos a identidade de judeus. Com o “detainee”
de Guantánamo, a vida nua (cidadão desprovido de
qualquer direito) atinge sua indeterminação mais
extrema.
A tentativa mais rigorosa para construir uma teoria do
estado de exceção é a obra de Carl Schmitt.
Encontramo-la, basicamente, em seu livro “A Ditadura”
e na “Teologia Política”. Assim o estado de exceção
introduz no direito uma zona de anomia que,
segundo Schmitt, torna possível a ordenação
efetiva do real.
O estado de exceção define um
regime da lei no qual a norma vale, mas não se
aplica (porque não tem força), e atos que não
possuem o valor de lei adquirem sua força. Isso
significa que, no caso-limite, a força de lei flutua como
um elemento indeterminado que pode ser reivindicado
ora pela autoridade do Estado, ora pela autoridade de
uma organização revolucionária. O estado de exceção
é um espaço anômico, onde o que está em jogo é uma
força de lei sem lei. Essa força de lei é seguramente
um elemento místico, ou melhor, uma ficção pela
qual o direito tenta anexar a anomia. Mas como
compreender esse elemento místico, por meio do
qual a lei sobrevive a seu próprio apagamento e
age como uma pura força no estado de exceção?
Se queremos captar a natureza e a estrutura do
estado de exceção, precisamos primeiro compreender
o estatuto paradoxal dessa instituição jurídica que
consiste simplesmente em produzir um vazio jurídico,
em criar um espaço inteiramente privado de “ius”. O
estado de exceção não é uma ditadura, mas um
espaço vazio de direito. Na Constituição romana, o
ditador era uma figura específica de magistrado que
recebia seu poder de uma lei votada pelo povo. Ao
contrário, o “iustitium”, assim como o estado de
exceção moderno, não implica a criação de nenhuma
magistratura nova, mas unicamente a de uma zona de
anomia na qual todas as determinações jurídicas são
desativadas. De resto, a despeito de um lugar-comum,
nem Mussolini nem Hitler podem ser definidos
tecnicamente como ditadores. Hitler, em particular, era
o chanceler do Reich, legalmente nomeado pelo
presidente. O que caracteriza o regime nazista -e torna
também seu modelo tão perigoso- é que ele deixou
subsistir a Constituição de Weimar, acrescentando-lhe
uma segunda estrutura, juridicamente não-formalizada,
que só podia subsistir ao lado da primeira graças à
generalização do estado de exceção. Esse espaço
vazio de direito parece, por uma razão ou outra, tão
essencial à própria ordem jurídica que esta última deve
tentar por todos os meios assegurar uma relação com
o primeiro, como se, para garantir seu funcionamento,
o direito devesse necessariamente manter uma
relação com uma anomia. É precisamente nessa
perspectiva que devemos ler o debate que opôs, de
1928 a 1940, Walter Benjamin e Carl Schmitt sobre o
estado de exceção. Considera-se geralmente que o
ponto de partida do debate é a leitura que Benjamin
fez da “Teologia Política” em 1923, bem como o
conjunto das citações da teoria da soberania de
Schmitt em seu livro sobre o “Drama Barroco Alemão”.
O reconhecimento por Benjamin da influência de
Schmitt sobre seu pensamento foi sempre considerado
escandaloso. Sem entrar aqui no detalhe da
demonstração, creio poder inverter a acusação de
escândalo sugerindo que se leia a teoria schmittiana
da soberania como uma resposta à crítica que
Benjamin faz da violência.
O estado de exceção é
portanto o meio inventado por Schmitt para responder
à tese de Benjamin de uma violência pura. O
documento decisivo do dossiê Benjamin-Schmitt é
certamente a oitava das “Teses sobre o Conceito de
História”: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o
“estado de exceção” no qual vivemos é a regra.
Devemos chegar a uma concepção da história que
esteja à altura desse fato. Perceberemos então
claramente que nossa tarefa é produzir o estado de
exceção efetivo, e isso melhorará nossa posição na
luta contra o fascismo”.
Benjamin reformula a
oposição para voltá-la contra Schmitt: uma vez
cessada qualquer possibilidade de um estado de
exceção fictício no qual a exceção e a regra são
temporalmente e localmente distintas, o que é
doravante efetivo é o estado de exceção no qual
vivemos e que não poderíamos mais distinguir da
regra. Aqui, toda ficção de um vínculo entre violência e
direito desaparece: não há mais que uma zona de
anomia em que prevalece uma pura violência sem
nenhuma cobertura jurídica.
Assim, o sistema político do Ocidente parece ser uma
máquina dupla, fundada sobre a dialética entre dois
elementos heterogêneos e, de certo modo, antitéticos:
o “nomos” e a anomia, o direito e a violência pura, a lei
e as formas de vida, cuja articulação o estado de
exceção tem por vocação garantir. Enquanto esses
elementos permanecem separados, sua dialética pode
funcionar, mas quando eles tendem à indeterminação
recíproca e a coincidir num poder único de duas faces,
quando o estado de exceção se torna a regra, então o
sistema político se transforma num aparelho de morte.
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