MULHERES E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA Maria Luzia Miranda Álvares1 O lugar da participação política da mulher tem marcado os debates atuais, emergindo inúmeras interpretações sobre esse lugar. A invisibilização da presença desse gênero da participação no âmbito público levou à identificação de certas práticas exercidas no âmbito privado passando a se constituir este como um espaço de poder. Na verdade, ao explorar esse ângulo explicativo e visibilizador, percebe-se que é no “caminho da casa” que a mulher obriga-se a justificar as suas ausências do espaço formal da política. Considerando-o seu principal lugar de sobrevivências, vê com naturalidade a atividade doméstica como algo inerente à sua condição biológica e ao estado civil ao qual se insere, lugares nos quais são mantidos códigos que reforçam a versão tradicional da prática feminina, com a mulher sendo vista através de uma identidade de gênero dado pela maternidade. Justificam-se, com discursos afetivos, os prováveis motivos dessa condição. As raízes históricas do problema da hierarquia sexual da sociedade, que aponta para a separação entre espaço público/político e privado/doméstico, enrosca-se na questão da cidadania seletiva que tem excluído as mulheres da maioria de seus direitos civis e políticos. Essas novas questões em torno da identidade do homem e da mulher iniciou-se há dois séculos quando nasceram as democracias ocidentais e a luta pelo princípio de igualdade tornou-se medida para eliminar os sistemas de poder baseados numa hierarquia intersexos. O sistema de representação patriarcal enfraqueceu, sendo possível pensar na igualdade dos sexos 1 1 Doutora em Ciência Política/IUPERJ. Professora Associada 1.Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UFPA. Coordenadora do GEPEM/UFPA (filiado à REDOR-N/NE). 2 (Álvares & D'Incao, 1995). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 26 de agosto de 1789, como síntese política da Revolução Francesa, elaborou o documento que marcou o modelo de cidadania, fundador dos direitos de liberdade e igualdade modernos. Embora este modelo liberal tenha atravessado o Ocidente e seja considerado um fator revolucionário na luta pela cidadania, deve-se considerar que uma parte dos indivíduos foi subsumida pelo pretenso universalismo do texto: as mulheres. Em 1791, a francesa Olympe de Gouges denuncia essa exclusão, procurando reformular a Carta e redige a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em 17 artigos, onde reivindica o mesmo nível de tratamento para os dois sexos. Em 1792, a inglesa Mary Wollstonecraft lança as suas Vindications os the Rights os Woman. As duas pleiteiam uma "co-presença no terreno político (...) que vai na direção de uma complementaridade não mais entendida como justificação de uma relação desigual entre ambos, mas como possibilidade de uma relação igualitária mesmo que não necessariamente simétrica, baseada no fato de que a diferença de sexo não pode justificar a exclusão das mulheres do poder político e da cidadania social" (Groppi, 1995:14). Olympe de Gouges fora analfabeta até a idade adulta. Liderou as mulheres francesas na Revolução Francesa, reclamando além do direito de voto , o direito de exercerem um ofício, influindo nos debates e nas lutas de outras causas sociais. Propôs que fosse escolhido, para a França, através de referendum, um sistema de governo republicano federativo ou monárquico, sendo repelida por Marat e Robespierre. Foi denunciada pelo Procurador Chaummete, pelo delito de haver esquecido as virtudes de seu sexo, intrometendo-se nos assuntos da República. Presa, foi guilhotinada em 07 de novembro de 1791. (Cf. Tabak e Verucci, 1995:19). A luta por uma legitimação igualitária para a conquista da cidadania formal das mulheres tem sido um dos grandes compromissos do 3 movimento feminista internacional e do brasileiro, quer nas denúncias às discriminações e/ ou procurando estimular, através de inúmeras estratégias, o diálogo com o Estado, objetivando elaborar políticas públicas, visando atender as necessidades desse gênero. O resultado disso, no Brasil, tem sido uma gradual mudança das normas legais vigentes nas Cartas Constitucionais, desde as Ordenações Filipinas (elaboradas pelos portugueses, em 1603, e que deram suporte ao Código Civil brasileiro de 1917 ) até a Constituição de 1988. Nesta, a alteração na legislação civil incorporou um número considerável de propostas específicas, no que toca às relações de gênero, resultante dos debates dos grupos autônomos e ONGs de mulheres. A história revela que a luta das feministas brasileiras cultas vem desde o final do século XIX . Através dos jornais que editavam (“O Sexo feminino”, de Francisca Senhorinha da Motta Diniz) e das peças e revistas que criavam (Josefina Álvares de Azevedo, em 1891), apresentavam as brasileiras posições favoráveis à concessão ao voto feminino. Entretanto, nos debates da Constituição de 189l , membros do Parlamento consideravam o voto feminino uma “idéia anárquica, fatal, desastrada”, ou então argumentavam sobre “os cérebros infantis das mulheres, sua inferioridade mental e retardação evolutiva” (Hahner, 1981: 84-6). Se o artigo 70 dessa Constituição de 1891 declarava eleitores todos os cidadãos maiores de 21 anos que se alistassem na forma da lei, contudo, o termo cidadão só considerava enquanto tal, o homem e não o conjunto dos dois gêneros. Os legisladores haviam excluído a mulher, sem que isso estivesse explícito na Constituição, o mesmo ocorrendo em relação aos mendigos, religiosos, analfabetos e soldados. A polêmica em torno dessa questão, intensificou-se na década de 1920, a partir da atuação de um grupo de mulheres liderados por Bertha Lutz, conhecido como sufragista. A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino-FBPF, 4 fortaleceu o “lobby” nacional pelo direito do voto às mulheres, até a promulgação, em 1932, pelo então Presidente da República, Getúlio Vargas, do novo Código Eleitoral incorporado (até 1934) à Constituição de 1891. Essa nova lei determinava o voto secreto , facultando-o às mulheres, caso o desejassem, embora fosse um direito obrigatório para os homens. Ratificado pela Constituição de 1934, o direito do voto às mulheres tornouse dever de cidadania apenas para aquelas que exercessem uma função pública remunerada. A Constituição de 1946, revitalizada pelo processo de redemocratização após quase dez anos de ditadura Vargas eliminou o direito seletivo do voto feminino. Nas Constituições de 1967 (período da ditadura militar) e na de 1988 (período que marca uma nova fase de redemocratização depois de 29 anos de ditadura), as mulheres continuaram formalmente reconhecidas nos seus plenos direitos constitucionais e políticos. Na Carta de 1988, a igualdade política entre os dois gêneros tornou-se melhor explicitada, como se pode observar no inciso I do art. 5º: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.” A estratégia do movimento de mulheres presente nos debates para elaboração do documento, exigiu esclarecimentos para eliminar interpretações dúbias que porventura ocorressem nos termos da lei. Embora a luta pela igualdade de direitos, fosse materializadas no ato de votar e ser votada, não criou práticas de participação com direito à representação política, no mesmo nível da participação masculina. As razões para explicar essa desigualdade são encontradas nos argumentos que denunciam a domesticidade feminina e a presença massiva das mulheres nas tarefas domésticas, nos espaços privados do lar. O mundo da casa como um espaço da mulher tornou-se um dos fundamentos centrais da formação de estereótipos ligados à definição dos papéis sexuais dos modelos tradicionais de comportamento. A maioria das mulheres, aceita o 5 modelo tradicional, onde se inscrevem idéias, valores, conceitos e explicações científicas que indicam um comportamento feminino visto como específico do gênero. O sistema educacional precário também concorre, reforça e define as “carreiras” tradicionais para as mulheres. É só observarmos ainda hoje o maior número de mulheres numa dada profissão enquanto em outras é quase exclusiva a presença masculina. A difusão de mitos, tabus, estereótipos sociais e veiculados pela mídia, tem contribuído para o reforço aos modelos de comportamento esperados, configurando-se isto num peso considerável que leva ao afastamento da mulher das áreas ditas masculinas. O peso cultural que prescreve campos específicos de participação não se apresenta de forma absoluta, haja vista as rupturas que se evidenciam no espaço das práticas da representação política onde se observam mulheres parlamentares ou o número cada vez maior de eleitoras (cf. Tabak: 1983). Mas os estudos sobre comportamento eleitoralparlamentar silenciam sobre essa presença, o que dificulta saber o modo como essas mulheres atuam ou como escolhem seus(as) candidatos(as) ou se estão alinhadas aos partidos de esquerda ou de direita, ou se, ainda, estão aumentando os níveis de fragmentação parlamentar ou contribuindo no absenteísmo eleitoral. Os estereótipos contaminam sua imagem na política, vendo-se afirmações do tipo: mulher não sabe votar, não sabe se comportar numa representação parlamentar, não sabe falar em público, não gosta de política. O discurso é aprendido e inúmeras vezes vêem-se estas afirmações registradas nos depoimentos das próprias mulheres. A cidadania política das mulheres evidencia uma história de exclusão da representação parlamentar, fato político que tem sido sempre pensado de forma sexista. Essa exclusão configura-se mais como um comportamento naturalizado da mulher vista de fora do processo de representação política. O fato de denunciar essa ausência , procurando 6 saber as diferenças em torno dos percentuais de votantes masculinos e femininos , do número de cadeiras da representação parlamentar nas Assembléias Legislativas e Câmaras, das formas de intervenção no processo decisório, da opção por determinados partidos, tende a ser também um artifício político dos movimentos de mulheres para procurar inverter as condições de participação não só no âmbito da representação parlamentar mas para denunciar a exclusão feita nos estudos acadêmicos que valorizam determinados enfoques, silenciando outros. Subvertendo as normas pode-se chegar a saber o porquê de as mulheres não terem tido acesso aos espaços de decisão do poder político e/ ou quais as chances legais que elas têm para intervir no processo de elaboração das políticas públicas que repercutem nos mais variados âmbitos da sua vida cotidiana. Sem dúvida, a presença nos espaços de decisão política levará ao acesso às informações sobre as leis que se fazem nos gabinetes submetendo-as e oprimindo-as. Em contrapartida, encontrarão meios para modificar essas leis. A campanha “Mulheres Sem Medo do Poder” lançada pela Bancada Feminina do Parlamento Federal em 1996, levou essa discussão para o interior dos movimentos de mulheres que enfrentaram os discursos mais agressivos contra os 20% de candidaturas femininas previstos na Lei nº 9.100 de 29/09/95, Art. 11, § 3º, para o Legislativo municipal e incorporado ás eleições desse ano. Desde a década de 1970, vislumbra-se um maior número de mulheres candidatas a cargos proporcionais. Nesse período, o eleitorado feminino brasileiro cresceu consideravelmente, embora não tenha ocorrido o mesmo com o número de mulheres candidatas e/ ou ocupando cargos de representação parlamentar. Entre os fatores denunciados como responsável por isso estão o processo de centralização do poder executivo dos regimes autoritários que marcou certas fases da vida brasileira e a socialização política que “reforça a aceitação, por parte de milhares de mulheres, das 7 idéias, dos valores, dos conceitos, das explicações aparentemente “científicas” sobre o comportamento feminino, a capacidade intelectual, as características de personalidade, etc.” (Tabak, 1983: 57). Há outras explicações que apontam como causas, a questão estrutural da frágil democracia brasileira, onde “uma agenda política pressionada por seriíssimos problemas sociais, com uma presença ainda mais forte do clientelismo e do “coronelismo” político, com um sistema partidário anárquico e last but not least, com desigualdades sociais que excluem pobres, mulheres, negros, velhos, a participação política, no sentido clássico do termo está dominada por homens adultos de meia idade, brancos e proprietários” (Pinto, 1994:201). Estes pressupostos que pretendem explicar o fenômeno da “difícil igualdade” num tipo específico de participação política, a representação parlamentar, funcionam como hipóteses mais gerais do processo de exclusão denunciado. Particularmente, desenvolvem-se explicações calcadas em estudos preliminares já realizados sobre a questão. Sem dúvida, há o peso da sócio-cultura que submete a educação da mulher, embora a estrutura partidária também possa ser vista como um obstáculo. Se a representação parlamentar continuar na trama de ser vista como prática considerada “naturalmente” masculina, nega-se à mulher a possibilidade de ter presença nesses espaço. Esse discurso sacraliza a eterna sujeição, refazendo-se o mito da mulher submissa, “vítima da sociedade”. Se a investigação sobre essa baixa participação procurar ver não a “passividade” da mulher, mas o sexismo do espaço onde se realizam as práticas do poder político formal, vai emergir a ideologização da nãoparticipação da mulher como um fluxo contínuo desse espaço masculinizado, o que não vem a ser submissão. Este olhar possibilita uma outra resposta à baixa participação feminina na representação parlamentar, oferecendo à mulher um tempo de opção em adotar ou não práticas 8 institucionalizadas no âmbito da política. Ao desconstruir-se o esquema cultural, subverte-se o enfoque denunciador que aponta a submissão como o grande entrave à participação na representação parlamentar. Pode-se então apontar para a não -passividade feminina que reflete um pressuposto: mulher & política não apresentam uma relação de excludência. A exclusão poderá ser buscada no longo processo que a manteve de fora das práticas parlamentares, no Brasil, restringindo-a a espaços que determinavam um modelo clássico de comportamento. Da rua ao lar, ontem e hoje, os espaços e os fazeres perderam a referência. O momento é de mostrar a nós mesmas e aos outros que o que queremos transcende esse modelos. BIBLIOGRAFIA ÁLVARES, M. L. M. Saias, Laços & Ligas: construindo imagens e lutas (um estudo sobre as participação política e partidária das mulheres paraenses - 1910/ 1937) Belém: NAEA/ PLADES/ UFPA, 1990 (mimeo). _________________. As Saias, os Laços e as Ligas na Política Partidária Paraense. In: Ximenes, Tereza (Org.). Novos Paradigmas e realidade brasileira. Belém: UFPA/ NAEA, 1993. _________________. Rompendo Bloqueios. Modelos de submissão feminina e práticas (In) submissas no Pará nas décadas de 1910-1920. In: Anais do III Encontro REDOR Sobre Mulher e Gênero, Natal: UFRN-CCFLA, 1995. __________________. 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