Fioca, Demian. “Juros muito altos, por tempo demais”. São Paulo: Folha de São Paulo, 27 de julho de 2001. Jel: F Juros muito altos, por tempo demais Demian Fioca Em 2000 , o mundo encerrava o ano com crescimento de 4,7%, preços estáveis e juros baixos. Os EUA terminavam um quinquênio com crescimento anual médio de 4,3%. Foi um período excepcional. Em 2001, o PIB global tende a desacelerar para 2,0% a 2,5%. Em um mundo que cresce menos, as exportações do Brasil são contidas e o fluxo de investimentos dificilmente voltará aos recordes anteriores. Além disso, mesmo depois que a crise argentina passar, o crédito para a América Latina talvez não volte a ser tão abundante. Neste cenário mais adverso, é muito problemático ter uma dívida pública em crescimento, devido a juros excessivamente altos. É mais grave do que, por exemplo, estabilizar a inflação em 5%, 6% (acima das metas de 3,5% e 3,25% dos próximos dois anos), com juros reais mais baixos. Um bom critério de consistência da política econômica define o seguinte: a dívida pública se estabiliza quando 1) o saldo primário das contas públicas é zero e 2) a taxa de juros real iguala a taxa de crescimento do PIB. Esse equilíbrio corresponde também a um ponto de estabilidade e baixa tensão do que poderíamos chamar de "contrato social", pois o saldo primário zero significa que o Estado devolve à sociedade, em bens e serviços, exatamente o mesmo que retira em impostos. O que o saldo primário não inclui é o pagamento de juros. A dívida pública cresce. Mas a condição de que a taxa de juros real seja igual à taxa de crescimento do PIB faz com que a proporção dívida/ PIB seja estável -ambos crescem na mesma velocidade. Assim, se o Brasil pode crescer de 4% a 5% em média, uma política econômica bem-sucedida será aquela que conseguir levar os juros reais também a 4% ou 5%. Pode parecer um mero exercício. Mas, ao contrário, essa é talvez a questão macroeconômica hoje mais importante para o desenvolvimento e a estabilidade social e política do Brasil. A crise que agora a Argentina enfrenta é, em essência, uma fratura na confiança de que um país possa arcar com um serviço da dívida pública elevado demais para o seu ritmo de crescimento econômico. Não é incomum ouvir de alguns analistas que o problema está sempre resumido ao gasto da máquina pública. De fato, retoricamente, sempre se pode argumentar que basta o Estado utilizar 5%, 10%, 20% de sua arrecadação para pagar juros que assim as contas fecham. Mas não é tão simples. Juros altos transferem enormes recursos da atividade produtiva para o capital rentista, tiram riqueza do conjunto da sociedade para concentrá-la nos detentores da dívida pública. Criam, portanto, enormes tensões na economia e na sociedade. Ora, existe um limite para o grau de tensão a que se pode submeter o "contrato social", ou seja, para os termos nos quais se logra manter a coesão social necessária à estabilidade política e econômica. Talvez a redução unilateral de aposentadorias e de salários nominais, para reservar recursos ao pagamento de juros, seja esse limite na Argentina. Talvez ainda não (esperemos que o país se recupere). Mas tal limite certamente existe. No Brasil, enquanto essa tensão pôde ser adiada pela acelerada expansão da dívida pública, viveu-se como se não houvesse restrição orçamentária para a taxa de juros. Mas a dívida pública já saltou de R$ 153,2 bilhões em 1994 (30,4% do PIB de então) para R$ 618,5 bilhões em maio último (51,9% do PIB atual). Esse expediente está se esgotando. Ainda que não se cogitem restrições ou constrangimentos explícitos à gestão de curto prazo da política monetária, pois isso comprometeria a credibilidade do Banco Central e seu poder de controle da inflação, o debate econômico não pode se acomodar e supor que qualquer nível de taxa de juros é sempre satisfatório ou até inevitável. No período de câmbio administrado, defensores mais eloquentes daquele regime afirmavam que o nível de juros então praticado no Brasil era inexorável, pois seria consequência do tamanho da dívida pública, não da política cambial. Engano. A mudança para o regime de câmbio flutuante permitiu reduzir as taxas de juros reais à metade, apesar de a dívida, ao contrário, ter quase dobrado. O país passou de taxas de juros reais médias de 22% ao ano no período de 1995 a 1998 para um patamar de 10% anuais nos últimos 24 meses. A Coréia do Sul, que sofreu crise dramática em 1997, tem juros reais de 4,6%. A Rússia, que quebrou em 1998, em 2000 já tinha taxas reais para empréstimos de 3,5% ao ano. No Brasil, se todos os parâmetros de política econômica, metas de inflação, política comercial, gestão do crédito etc. forem considerados imutáveis (assim como era um tabu flutuar o câmbio), não haverá muito espaço, de fato, para discutir a taxa de juros. Se, no entanto, a restrição orçamentária para o serviço da dívida for encarada em sua real dimensão e a crise argentina puder antecipar essa exigência, então cabe reexaminar o que é necessário para adequar os demais parâmetros da política econômica à necessidade de reduzir os juros reais. No início de 1999, o BC antevia "taxa real de um dígito" para o fim de 2000. No final do ano passado, o "Relatório de Inflação" do BC indicava que os juros nominais tendiam a menos de 12% em dezembro de 2002. Essas perspectivas de breve queda dos juros reais proporcionavam o conforto de que, apesar de grave, a questão estava encaminhada. Mas o tempo passou e continuamos longe demais de taxas de juros sustentáveis. No novo cenário, um conjunto de parâmetros e metas de política econômica que continuem a exigir a manutenção de juros reais de 10% a 12% é perigoso para a estabilidade econômica do Brasil. Redesenhar um cenário que permita manter juros reais significativamente mais baixos é talvez a principal medida para evitar que o Brasil esteja vulnerável a um ambiente internacional que, nos próximos anos, provavelmente não será tão favorável quanto nos últimos.