OPINIÃO ÉTICA E CIÊNCIA BIOLÓGICA Olinto A. Pegoraro1 O título acima envolve especialmente a filosofia a ética a biologia e a biomedicina. Tentarei colocar uma maneira flexível de se encarar a ética para que ela tenha condições de diálogo entre estes saberes. 1. UMA ÉTICA FLEXÍVEL A filosofia, em geral, e a ética em particular, estudaram a existência humana sob ângulo da liberdade. Com muita propriedade, uma das definições mais aceitas do homem é que ele é sua liberdade. Somos uma existência livre e, por isso, única no contexto da natureza. Todos os outros seres vivos estão subordinados a leis biológicas que não podem controlar. O homem pela liberdade e inteligência, supera as leis da natureza; por exemplo, transcende a lei da gravidade quando fabrica aviões, quando faz transgênicos, quando, pela sua liberdade criadora, converte o mundo natural em um mundo de artefatos; ele constrói a ciência, cria obras de arte e interpreta o mundo de muitos modos pela filosofia. Mas a liberdade é perigosa. Por ela podemos destruir a natureza, matar pessoas e fazer guerras. Por isso, a liberdade não pode ser absoluta; ela precisa conviver com todos, o que significa aceitar normas de compatibilização. Disto se ocupa a ética, que nada mais é do que a orientação positiva da liberdade. Mas a ética é simplesmente um conjunto de normas que um sábio, um jurista ou um líder religioso inventaram e impuseram aos homens. A norma faz parte da ética sem perder seu nascedouro. 1.2 A ÉTICA ORIGINÁRIA Em primeiro lugar, a origem está na relação recíproca de duas pessoas livres, um eu e um tu. Esta relação gera comportamentos, 1 Filósofo, PHD - UERJ CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO CSC_NESC_MIOLO_Vxii_-_N1_022-EM.pmd 87 DE J A N E I R O , 12 (1): 87 - 92, 2004 – 5/1/2005, 12:55 87 OLINTO A. PEGORARO atitudes e ações que devem respeitar a dignidade e o valor dos dois seres humanos. Sobre a relação eu-tu a filosofia construir importantíssimos tratados de ética ao longo da história. Basta recordar Aristóteles, que construir a ética em cima de relações justas; Santo Agostinho baseou a ética na relação de amor; Kant centra a ética no respeito; Gilbert Hottois, em nossos dias, alarga o respeito, o amor, a justiça e a dignidade a todos os seres, propondo “a ética da solidariedade antropocósmica”. Assim, nasce a ética. Esta está sempre surgindo, sempre nova, porque sempre novas são as relações da reciprocidade humana. O segundo ângulo da ética é a sua fixação em normas, leis da cidadania, códigos profissionais e mandamentos religiosos. A finalidade da norma é delimitar, regular o exercício da liberdade. O médico é livre no exercício de sua profissão, mas sua liberdade subordina-se a um conjunto de normas que, ao longo da história, a experiência médica traçou. A norma não é um obstáculo, mas uma bússola norteadora da liberdade do medico ou de qualquer outro profissional. Os mandamentos bíblicos não visam cercear o homem, mas mostrar-lhe o caminho do melhor exercício da liberdade, com base na experiência histórica da humanidade. O terceiro ângulo da ética é a circularidade. Como vimos, a relação recíproca eu-tu gera comportamentos que se cristalizam na norma. Esta precisa retornar à sua origem, à relação eu-tu. Assim, fecha-se o círculo. Em outros termos, as normas dadas e datadas são superadas pelos novos eventos. Por isso, precisam re-novar-se, re-fazer-se à luz das novas relações humanas, das descobertas científicas dos novos avanços da técnica e da cultura. Então, a ética não está na verticalidade de uma norma dada do alto de uma autoridade (jurídica, profissional ou religiosa) aos seus súditos, mas na circularidade, como vimos acima. Esta é a proposta de uma ética flexível, mas que não é aquela que faz concessões fáceis, que enfraquece postulados face à ciência e à técnica. Pelo contrário, a ética flexível é aquela que discute, em igualdade de condições, com as outras formas de saber, para encontrar comportamentos éticos adequados à situação histórica contemporânea. Por exemplo, a ética nunca negociará seu horizonte de justiça, solidariedade e paz; sabe, porém, que existem muitos caminhos de se construir um mundo justo, solidário e uma história humana pacífica. Mantendo 88 – CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO CSC_NESC_MIOLO_Vxii_-_N1_022-EM.pmd 88 DE J A N E I R O , 12 (1): 87 - 92, 2004 5/1/2005, 12:55 ÉTICA E CIÊNCIA BIOLÓGICA firme seu horizonte, a ética dialoga com todas as formas de saber para encontrar os melhores caminhos de realizar estes objetivos maiores. À luz desta concepção ética, vamos agora discutir o candente problema da pesquisa científica com célula tronco. 2. ÉTICA E CÉLULAS TRONCO Que pode dizer a ética a respeito da pesquisa científica com células tronco? Terá o cientista a liberdade de destruir um embrião humano? Será lícito eliminar uma pessoa em formação em nome do avanço da ciência biológica? Na verdade, estas questões se resumem a duas: a primeira, quando começa a vida? A segunda, quando começa a pessoa? São duas questões muito diferentes entre si, mas convergentes. A primeira pergunta - quando começa a vida? - é dirigida aos cientistas em biogenética. Cabe a eles dizer se a vida começa no momento da fecundação do óvulo ou na implantação do embrião no útero, ou em outro momento cientificamente verificável. A segunda pergunta - quando começa a pessoa? - é dirigida à filosofia, à ética, ao direito, à religião e à política. Aqui, a resposta é mais complexa, porque depende de teorias filosóficas, jurídicas, religiosas e políticas, que muito dificilmente se entendem. Por exemplo, é secular a divergência entre a posição da filosofia e da religião cristã a este respeito. Para as Igrejas cristãs, em geral, a pessoa começa desde o instante da concepção. Desde este momento, o embrião tem dignidade o valor absoluto e é sujeito de todos os direitos humanos. Isto é, atribui-se ao feto respeito “como se fosse pessoa contituída”. Outro ponto essencial e comum às igrejas cristãs é a alma, realidade espiritual e racional. Sendo a alma espírito, não pode ser gerada pela energia biológica dos pais. Só Deus cria a alma e a infunde em cada embrião. Ele é o senhor absoluto da vida, só a ele cabe dá-la e tirá-la. Partindo destas premissas, as igrejas resistem a todas as pesquisas com embriões humanos e consideram crime, por exemplo, a pesquisa com células-tronco. A filosofia, por seu turno, defende duas posições principais a respeito de quando começa a pessoa humana: uma é clássica, elaborada no CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO CSC_NESC_MIOLO_Vxii_-_N1_022-EM.pmd 89 DE J A N E I R O , 12 (1): 87 - 92, 2004 – 5/1/2005, 12:55 89 OLINTO A. PEGORARO século VI pelo filósofo Severino Boécio. A segunda é contemporânea, construída sobre o conceito de existência. Comecemos pela teoria clássica de pessoa. A PESSOA COMO ESSÊNCIA Para Severino Boécio, a pessoa é uma essência dada e constituída toda inteira desde o inicio da concepção. Pessoa é uma natureza capaz de raciocínio: animal racional. Esta tese funde numa só as duas perguntas: quando começa a vida humana e quando começa a pessoa. A resposta será uma só: a pessoa começa quando começa a vida, no ato da concepção biológica. Onde há vida humana, ali há uma pessoa intocável e do mesmo valor e dignidade dos adultos. Esta teoria, que inspirou as igrejas cristãs, é chamada, hoje, de biologista, porque confunde uma realidade biológica com uma concepção metafísica. Com efeito, a personalidade é um conceito filosófico que atribuímos a alguém. Portanto, é uma teoria cultura. Já a questão do começo da vida é uma questão científica, laboratorial; é impossível explicar uma tese filosófica pela biologia e vice-versa. PESSOA EXISTENCIAL, TEMPORAL E RELACIONAL A filosofia contemporânea não define a pessoa a partir da essência racional mas considera a pessoa como uma existência em expansão; isto é. A pessoa não é dada desde o inicio, mas vai acontecendo, constituindo-se ao longo de toda a vida; nossa personalidade é constituída pela relações positivas familiares, sociais, culturais e podemos destruí-la pelas relações negativas. Por isso, para esta teoria, a pessoa é um processo de acontecer. Nunca terminamos de nos construir, porque a pessoa é uma realidade potencial que está sempre desenvolvendo e explicitando suas virtualidades. Uma importantíssima conclusão desta teoria é que, nas primeiras fases da vida embrionária, já temos vida humana, mas ainda não há ali uma pessoa que se construir5á ao longo de sua evolução. 3. CLONAGEM TERAPÊUTICA A teoria da personalidade relacional, existencial, temporal e potencial não tem dificuldade de dialogar com as pesquisas mais avançadas sobre o ser humano, como o mapeamento do genoma, a fecundação assistida, a clonagem 90 – CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO CSC_NESC_MIOLO_Vxii_-_N1_022-EM.pmd 90 DE J A N E I R O , 12 (1): 87 - 92, 2004 5/1/2005, 12:55 ÉTICA E CIÊNCIA BIOLÓGICA e a pesquisa com células tronco. Evidentemente, estas são células humanas que ainda não apresentam uma estrutura orgânica; são apenas células que começam a compor-se, conjugar-se. Disto nos informa a ciência biológica. O passo seguinte é ético-filosófico. Para a filosofia, para a qual não há uma estrutura orgânica mínima, muito menos haverá uma estrutura psicológica. Daí, tira-se uma conclusão ética fundamental: nas célulastronco ainda não há uma pessoa, mas apenas um projeto de pessoa, exatamente como na semente de laranja ainda não há laranjeira, a não ser em potencialidade. Uma segunda conclusão ética ainda mais importante, é que as célulastronco podem ser usadas para a pesquisa científica que visa beneficiar as pessoas e a humanidade. Por isso, a clonagem das células-tronco para fins terapêuticos justifica-se pela ciência e também pela avaliação ético-filosófica. 4. ÉTICA E ANENCEFALIA O Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão tão importante quanto polêmica ao autorizar a interrupção da gravidez em casos de anencefalia (feto sem cérebro) comprovados por laudo médico. Em geral, a posição do Supremo Tribunal foi saudada como um avanço jurídico pelo qual livra-se de grandes sofrimentos mulheres e famílias traumatizadas por uma gravidez anencefálica. Além de ser uma questão jurídica, a anencefalia é também um problema da biomedicina, da ética e das religiões, suscitando, por isso, calorosos debates e controvérsias. Senão vejamos. Do ponto de vista da ciência médica, há a clareza e a certeza de que o feto não terá nenhuma condição de viver fora do útero materno: todos os casos, literalmente todos, são cientificamente inviáveis. Esta informação é importante para a ética, que faz sua reflexão a partir dos fatos e dados objetivos. O que a ética pode dizer a anencefalia? Será lícito abortar o feto nestas condições? Não se elimina, assim, uma vida humana, uma pessoa? São estas perguntas que esperam da ética uma posição ponderada e sensata. Elas se resumem numa só: o que é este ser vivo anencefálico no seio de uma mulher? É preciso primeiro tentar dizer, definir o que esta realidade é, para depois sugerir uma posição ética. Parece honesto afirmar que não se trata de um ser da espécie animal, pois as características básicas do animal são sentir dor e prazer, sentimentos impossíveis num feto anencefálico, como a ciência CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO CSC_NESC_MIOLO_Vxii_-_N1_022-EM.pmd 91 DE J A N E I R O , 12 (1): 87 - 92, 2004 – 5/1/2005, 12:55 91 OLINTO A. PEGORARO constata. Também, é difícil classifica-lo como um ser da espécie humana, cuja característica essencial é a possibilidade de, a seu tempo, pensar, perguntar e tomar decisões, o que é impossível no caso de anencefalia. Poderia ser classificado como uma realidade meramente vegetativa? Portanto, é coerente deduzir que se trata de uma realidade inespecífica, isto é, de um ser indefinível. Pode ser entendido como ato falho na natureza que previa produzir um ser humano, mas, de fato, gerou uma realidade neutra, indecifrável: um erro da natureza. Se aceitarmos este modo de pensar, então se impõe uma conclusão fundamental: no feto anencefálico não temos pessoa. Neste caso, a ética sugere liberar a gestante de uma gravidez inconseqüente; poupam-se também os familiares de cuidados inúteis. Entretanto, a boa posição jurídica, os esclarecimentos da biomedicina e a interpretação ética servem apenas como auxílio à figura principal neste problema: a gestante, suas convicções, cultura e sua religião. Cabe a ela, juntamente com seus familiares, tomar a decisão final. Este respeito às pessoas é intrínseco, faz parte do cerne de qualquer boa concepção ética, científica e jurídica. Esses saberes não impõem o aborto; eles têm a função de esclarecer que quem o fizer em caso de anencefalia não comete crime. Em geral, as religiões discordam radicalmente de qualquer posição cientifica que defenda algum tipo de aborto. Duas são as razoes mais invocadas: a primeira diz que a religião está decisivamente a favor da vida e que, por isso, é sempre inaceitável o aborto; a segunda aponta para o perigo de se abrir um precedente pelo qual se justificarão outros casos de aborto, no futuro. Evidentemente, estas razões não convencem a todos. Com efeito, todas as teorias éticas são a favor da vida humana de qualidade. Não existem teorias éticas que liberem o aborto indiscriminadamente; nos casos em que o sugerem (como na anencefalia), o fazer com base em sólidas ponderações, com prudência, discernimento e bom senso. O perigo de se abrirem precedentes para outros casos de aborto parece um argumento frágil, que se refugia em hipóteses para o futuro. Por fim, uma visão global mais atenta à condição humana que ao sistema de princípios metafísicos sabe dialogar com o direito, a medicina, a ética e a religião, visando respostas, ainda que provisórias, às angústias e tristezas humanas especialmente fortes, como no caso da anencefalia. 92 – CADERNOS SAÚDE COLETIVA, RIO CSC_NESC_MIOLO_Vxii_-_N1_022-EM.pmd 92 DE J A N E I R O , 12 (1): 87 - 92, 2004 5/1/2005, 12:55