Brazilian Psychiatric Reform on Globalization Era: Challenges and

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O PROCESSO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO:
DESAFIOS E PERSPECTIVAS1
Brazilian Psychiatric Reform on Globalization Era: Challenges and
Perspectives
Lúcia Abelha2, Letícia Fortes Legay3 , Giovanni Lovisi4
RESUMO
Este estudo analisa as influências da globalização no sistema de saúde brasileiro e
no setor de saúde mental, diretamente subordinado ao sistema de saúde em geral.
É nesse contexto que a reforma psiquiátrica brasileira deve ser discutida. O Brasil
ainda está distante de uma assistência comunitária como a que já está em andamento
em outros países. O avanço da ideologia neoliberal e da globalização tende a agravar,
principalmente, a situação dos pacientes crônicos. A lógica de mercado nos sistemas
de saúde, representada pelo managed care, exige uma política de resultados, baseada
em evidências de eficácia, o que é muito difícil de ser objetivado no campo da saúde
mental. Uma verdadeira reforma psiquiátrica não pode estar desvinculada da
formulação da política geral de saúde e deve ser baseada na discussão ética das
dificuldades e necessidades dos indivíduos com transtornos mentais.
PALAVRAS CHAVE
Reforma psiquiátrica, desinstitucionalização, globalização, managed care
ABSTRACT
The present paper shows the globalization process and its influence in the Brazilian
Health Sytem and psychiatric reform. The mental health care in the community,
which is ongoing in many countries, is just beginning in Brazil. The neoliberal ideology
and globalization tend to worse psychiatric patients situation. Despite the fact that
managed care intends to obtain outcomes and efficacy evidences, this task is so difficult
to achieved in the mental health System. Then, the psychiatric reform can be better
understand under the health policy formulation, requiring ethical discussions about the
difficulties and needs of the psychiatric patients.
KEY WORDS
Pychiatric reform, deinstitutionalization, globalization, managed care
1
Este artigo é parte da tese de doutorado A Reforma Psiquiátrica e a Globalização: Perspectivas da
Desinstitucionalização Psiquiátrica no Brasil. Lúcia Abelha Lima. ENSP/FIOCRUZ, 1999.
2
Psiquiatra, Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas do IMAS Juliano Moreira. Doutora em Epidemiologia
Psiquiátrica ENSP/FIOCRUZ. Estrada Rodrigues Caldas 3400 – Rio de Janeiro – CEP: 22713-370
[email protected]
3
Epidemiologista, Professora Adjunta, Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva/UFRJ. Doutora em Saúde
Pública/Fac. Saúde Pública/ USP
4
Psiquiatra, Doutor em Saúde Pública - Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz.
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1. INTRODUÇÃO
No início do século, o número de habitantes mundial era de 1 bilhão de
indivíduos e atualmente é de aproximadamente 6 bilhões. O rápido avanço
tecnológico na área de atenção à saúde chegou a um ponto em que nenhum
país, mesmo os mais ricos, tem condições de oferecer todos os recursos
potencialmente disponíveis para todas as pessoas. Hoje a questão principal
não é mais a de “eficiência técnica” - oferecer os recursos mais avançados a
todos os usuários que necessitem - mas a da “eficiência alocada” - racionalização e priorização de ações em áreas determinadas. Trata-se muitas vezes
de escolher entre o bem estar de dois indivíduos (Williams, 1988).
Na área de saúde mental, tem sido uma preocupação adequar as
necessidades específicas do atendimento ao doente mental na comunidade
a uma política baseada na filosofia da assistência gerenciada (managed care)
e justificar investimentos, muitos deles sociais – Residências Terapêuticas - no
setor (Raftery, 1992). É cada vez maior a importância das associações
de auto-ajuda e das associações de familiares, de usuários e de
profissionais que atuam influenciando as leis e as políticas relacionadas
à saúde mental. (Smith, 1997).
O Brasil é um país de grandes desigualdades. O movimento dos
sem-teto e dos sem-terra avança, denunciando a crise econômica e
a falta de respostas do governo aos problemas sociais enquanto se
submete aos ditames de uma política econômica internacional
desfavorável e globalizada. O exército dos excluídos é engrossado
por minorias que não rendem e não interessam, entre eles os doentes
mentais graves. Os problemas sociais são gravíssimos e se misturam
a problemas de ordem psiquiátrica, em uma sociedade onde é alto o
risco de psiquiatrização da miséria ao mesmo tempo em que o aprimoramento dos recursos de intervenção que garantam um processo de
desinstitucionalização responsável, não é prioridade governamental.
Como conciliar as necessidades sociais da política comunitária de saúde
mental com a política econômica do neoliberalismo? Quais as perspectivas
do processo de reforma psiquiátrica no Brasil na era da globalização?
2. GLOBALIZAÇÃO
A globalização é um processo de integração de capitais, Estados e
fluxo de informações que, entretanto, não vem sendo capaz de
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universalizar a equidade, a justiça, o bem-estar e a participação dos
indivíduos nos destinos da humanidade (Abreu, 1995).
O êxito inicial do neoliberalismo em alguns países do primeiro
mundo foi baseado na fragilização dos pactos sociais democráticos que
tornaram viáveis o surgimento do welfare state, que é uma realidade até
a década de 70. A partir de então, um outro processo econômico, o
neoliberalismo começa a avançar por todo o mundo. Os principais
atores que defenderam e garantiram sua instalação (sindicatos, partidos
políticos, etc.), já não apresentam a mesma força anterior. Tudo que
possa impedir e restringir a liberdade do capital é desmantelado pela
ideologia neoliberal.
O neoliberalismo provoca definitivamente o divórcio, dos compromissos sociais duramente conquistados através desse século,
entre a necessidade de produzir e a necessidade social do trabalho.
O contraditório se estabelece e o abismo entre pobres e ricos aumenta.
O mercado global adquire um tamanho e uma volatilidade jamais
observada na história do capitalismo. Para crescer, o país necessita de
investimento estrangeiro, e para que isto aconteça deve se ajustar às
regras dos banqueiros internacionais. A globalização pode produzir o
bem ou o mal das economias nacionais quase instantaneamente.
(Arruda & Boff, 2001).
No mercado globalizado, um produtor compra matéria prima
onde é mais barata, fabrica onde a mão de obra é menos organizada,
aproveita as vantagens das brechas fiscais e vende em mercado mais
lucrativo. Surge um mercado único, impulsionado pelo avanço
tecnológico e da informática, aumentando de forma alucinante a
velocidade da comunicação de dados, do transporte e da distribuição
de bens (Fisher et al., 1992).
As economias nacionais perderam sua importância absoluta e a
economia se internacionalizou. O sistema de crédito não é mais
controlado pelos bancos nacionais. No passado as grandes decisões
econômicas estavam nas mãos do governo, hoje estão nas mãos das
empresas. A globalização criou uma contradição estrutural: Mercado x
Estado. O Estado, marcado pela privatização, perde capital, pagando
juros e salvando empresas. As receitas públicas diminuem, restringindo
conseqüentemente o investimento no welfare state.
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Para ser competitivo, o país precisa de uma força de trabalho
educada e treinada, que se adapte à nova realidade. Os países em
desenvolvimento fazem suas reformas educacionais segundo a orientação
do capital internacional. Atende ao que o Banco Mundial estabelece
como viável para os países pobres: redução de custos, necessidade de
equidade e aumento de competitividade. (Lampert, 1998).
O Human Development Report (ONU, 1999) mostra que a globalização
aumentou as desigualdades sociais. O relatório diz que 1/5 da
população mundial detém:
• 86% do PIB;
• 82% dos mercados de exportação
• 62% dos investimentos diretos estrangeiros
• 74% das linhas telefônicas.
Ao lado do enorme benefício conseguido com o avanço tecnológico e a
rapidez da comunicação, na globalização, ouve um aumento vertiginoso da
miséria nos países que não possuem acumulação interna de capital, conhecimento tecnológico, ou qualquer base industrial, como é o caso de grande
parte da Ásia, da África e da América Latina. Com certeza, a globalização
oferece enormes oportunidades para o avanço da humanidade e nunca o
progresso tecnológico foi tão veloz. Entretanto a desigualdade vem crescendo
em muitos países desde o início da década de 80 (Arruda & Boff, 2001).
Segundo o relatório do PNUD (2003), o PIB per capita dos 10% mais
ricos é 32,93 vezes maior do que a dos 40% mais pobres e os 20% mais
pobres ficam com 1.9% da renda, enquanto que os 20% mais ricos
ficam com 67,11%.
Com a difusão do pensamento neoliberal e o avanço da globalização,
a filosofia do gasto controlado, otimizando o atendimento nos serviços
de saúde, muitas vezes em prejuízo da qualidade, vem sendo a tônica
hegemônica do discurso oficial, mesmo nos países com a medicina
socializada (McPake & Mills, 2000).
3. A
CRISE NOS SISTEMAS DE SAÚDE
Nos países desenvolvidos, a crise geral do estado e a hegemonia
neoliberal, na década de 80, acarretaram mudanças profundas no setor saúde.
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Essas mudanças foram difundidas e estimuladas pelos organismos
internacionais - como a OECD e o Banco Mundial. A crise dos
sistemas de saúde em geral, nessa década, aconteceu principalmente
devido ao aumento do gasto sanitário (Almeida, 1997).
O discurso neoliberal pregava as reformas como inevitáveis e as
exigências macroeconômicas eram a contenção dos custos e o controle
do crescimento do défit público. O efeito real das políticas de contenção
de custos e da reforma sanitária tem sido a exacerbação do estrito
controle estatal - e do setor privado nos EUA - tanto a macro como a
micro nível de desempenho dos serviços de saúde e da autonomia
profissional, o que se constitui em um paradoxo da intervenção neoliberal
que prega a livre concorrência de mercado (Almeida, 1997; Enthoven
& Kronick, 1989; Fiori, 1992).
Na América Latina, neste mesmo período, observou-se uma queda
no gasto público destinado aos sistemas de serviços de saúde, a partir
da crise fiscal, particularmente em relação ao investimento em infraestrutura, com significativas conseqüências na deterioração dos serviços
financiados com recursos públicos. No final dos anos 80, com o objetivo
de aliviar as pressões sociais contra as políticas de ajuste estrutural
patrocinadas pelo FMI, o Banco Mundial criou um fundo e anunciou
sua entrada ativa no processo de reformulação das políticas setoriais. O
documento Financing Health Care: an agenda for reform (Banco Mundial,
1989) enquadrava o financiamento das reformas sanitárias no elenco de
condições negociadas nas bases dos ajustes econômicos, isto é, advogava
a diminuição do papel do Estado e a superioridade do mercado no
financiamento e na oferta de serviços de saúde (Almeida, 1995).
A discussão sobre o financiamento do sistema, ou seja, se este deve
ser público ou privado, permanece como pano de fundo nas discussões.
Assistimos a uma gradativa privatização da saúde, com o desmantelamento
do setor público, fruto da falta de investimento do governo nas diversas
formas de assistência à saúde, e a um avanço dos seguros saúde como
forma de garantia de um melhor atendimento. Isso é particularmente
grave em países da periferia como o nosso (Pardes et al., 1979; Fisher
et al., 1992; Mushell, 1996).
O setor de saúde mental é diretamente subordinado ao sistema de
saúde em geral, e a qualidade do atendimento em seus serviços depende
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diretamente das regras de financiamento estabelecidas. Em função da
crise fiscal nos sistemas de saúde, os pacientes dependentes de seguros
saúde têm seus benefícios reduzidos. E mais grave ainda, os pacientes
psiquiátricos crônicos freqüentemente não são segurados, portanto,
é mais provável que dependam do setor público (Minkin et al.,1994).
Diversos países da Europa e os EUA efetuaram uma mudança
radical na assistência à saúde mental a partir da década de 60. Grande
parte dos pacientes psiquiátricos foram desinstitucionalizados, passando
a ter prioridade o tratamento na comunidade. O desenvolvimento da
reforma psiquiátrica e os problemas enfrentados, em maior ou menor
grau, em diversos países, variam de acordo com a política de saúde
mental vigente em cada um deles (Glover & Petrila, 1994).
Na Inglaterra, o National Health Service (NHS) garante um acesso
geral e igualitário ao sistema, sendo a implementação das várias
modalidades de atendimento (de ambulatórios a cirurgias), responsabilidade financeira do governo (Rogers & Pilgrim, 2001). Já nos
EUA, vigora o sistema de seguro saúde, inserido em uma economia
de mercado, pouco regulado pelo governo, combinando o atendimento ao tipo de seguro do paciente. Este quadro é agravado pela
pouca cobertura oferecida pelas várias seguradoras aos pacientes
com distúrbios mentais (Marcos, 1989; Sharfstein et al., 1993). Nos
países da Europa ocidental, em geral, embora a maioria dos países
tenha o sistema baseado em seguros saúde, estes são regulados pelo
governo e oferecem um nível razoável de acesso.
No Brasil, a discussão da reforma psiquiátrica vem perigosamente
aliada a uma prática de fechamento de leitos, principalmente públicos,
sem que se ofereçam alternativas reais de atendimento comunitário aos
pacientes (Lima & Teixeira, 1994).
4. ASSISTÊNCIA
MÉDICA GERENCIADA
(MANAGED CARE)
A assistência médica gerenciada pode ser definida como a maneira
pela qual uma organização assume a responsabilidade por todos os
cuidados de saúde necessários a um indivíduo em troca de um
pagamento determinado, ou como um conjunto de técnicas oferecidas
por custo limitado e qualidade crescente. Procura obter os máximos
resultados aos menores custos, tendo como limite esses últimos. O Banco
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Mundial acredita que a assistência médica gerenciada tem muito a
oferecer e muitas organizações americanas especializadas em managed care
já operam fora dos EUA (Smith, 1997).
Nenhum sistema de saúde é estável e, no mundo desenvolvido,
os limites do welfare state estão sendo rompidos, exaurindo os
métodos tradicionais de contenção de custos e experimentando
uma demanda e uma sofisticação crescentes. Os governos têm cada
vez menos disponibilidade para investimento no setor social.
Estamos, portanto, disputando palmo a palmo parcas verbas de
investimento público (Fassin & Jeanée, 1994). Mesmo países como
a Inglaterra, com sistema de saúde universalizado e hierarquizado
(NHS) vivem a pressão do managed care, já tendo sofrido alterações
que procuram otimizar, do ponto de vista econômico, o atendimento
(Robinson, 1996).
O avanço da globalização e a filosofia da assistência médica gerenciada
vêm exigindo um esforço das autoridades de saúde no sentido de
apresentar resultados que justifiquem o investimento financeiro nos
diversos programas de saúde, tanto no Brasil como em outros países, ao
mesmo tempo em que incentivam cortes na área dos programas sociais.
A globalização permite uma rapidez na comunicação e portanto um
avanço extraordinário na troca de recursos tecnológicos, mas por
outro lado, produz um contingente cada vez maior de excluídos, sem
nenhuma possibilidade de acesso a esses recursos (Fiori, 1992; Tyrer,
1998; Weil, 1991).
No Brasil, embora se tenha um sistema nacional de saúde (SUS) sistema estatal, descentralizado e formalmente com garantia universal
de acesso - criado desde 1989, na prática ele está longe disso; convive-se
com um sistema que mistura assistência pública com seguro saúde,
ambos permanentemente em crise, com preponderância do setor privado. Em 1993, cerca de 73% dos gastos públicos com saúde foram
investidos na compra de serviços do setor privado (Cohn, 1994; Lima
& Teixeira, 1994).
As seguradoras de saúde privadas dominam cada vez mais o mercado brasileiro, abrangendo hoje cerca de 30 a 35 milhões de pessoas.
Esse mercado cresce na mesma proporção em que o atendimento no
setor público se deteriora, afastando-se cada vez mais da filosofia inicial
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do SUS, na qual o setor privado atuaria de forma complementar
(Faveret & Oliveira, 1990).
O sistema de saúde com o qual convivemos atualmente no Brasil,
embora em teoria se assemelhe bastante ao NHS inglês, na prática vem
cada vez mais, e de forma assustadora diante de nossa realidade social,
assemelhando-se ao sistema de saúde dos EUA.
5. A
REFORMA PSIQUIÁTRICA
A política da assistência médica gerenciada apresenta-se como uma
ameaça velada à qualidade da assistência comunitária ao doente mental.
(Dauncey, 1992; Fogel, 1993). É um fenômeno que vem dominando
o mercado médico, privado e público e afetando profundamente o
curso e a distribuição dos serviços de saúde.
As novas propostas de distribuição de serviços, que podem ser
vistas como um efeito colateral do managed care, precipitaram várias
questões éticas relacionadas à qualidade de atenção e qualidade de
vida dos pacientes (Bachrach, 1995). Um dentre os mais graves efeitos
colaterais é a transferência de pacientes clinicamente instáveis e que
precisam de cuidados emergenciais de um hospital clínico para outro
psiquiátrico, por motivos econômicos, é conhecido como dumpping
(Lazarus, 1994). Os pacientes que não têm seguro saúde são os que
têm mais probabilidade de sofrerem dumping. Os pacientes psiquiátricos
têm este risco particularmente aumentado por terem uma alta incidência
de doença clínica concomitante, e o setor público é o alvo preferido
para transferências.
Outra questão ética importante, diz respeito às internações
involuntárias. Em um sistema de saúde como o americano, muitas vezes
é criado um conflito entre o julgamento clínico do provedor e o
interesse financeiro do pagador (Petrila, 1995). Pacientes mais resistentes
ao tratamento podem ainda não apresentar melhoras do quadro
psiquiátrico quando o limite do prazo de internação de seu plano de
saúde terminar, provavelmente receberão alta mesmo assim, e o
possível efeito terapêutico de sua internação involuntária será nenhum.
Da mesma forma, a responsabilidade pelo tratamento do paciente pode
ser transferida para outro serviço, provavelmente para o setor público,
se este for considerado um paciente caro ou difícil.
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Em todas as definições de assistência médica gerenciada estão
implícitos os objetivos:
1. Conter custos;
2. Limitar o acesso e a escolha pelo paciente a uma rede definida
de serviços de saúde;
3. Negociar compensações para os provedores;
4. Assegurar a viabilidade e responsabilidade do sistema de saúde.
O tratamento do paciente crônico representa um dos maiores
desafios para as reformas no setor de saúde mental. O distúrbio mental
crônico é um tipo de distúrbio que requer intervenção contínua e as
deficiências persistentes requerem suporte social e cuidados do serviço
social. Num sistema de saúde que disputa financiamentos escassos, é
importante observar como estas reformas afetam estes doentes.
No passado, a inadequada destinação de recursos para esta população
se baseava na falsa crença de que não havia esperança de mudança
significativa na qualidade de vida destes pacientes. Atualmente, os avanços
na área dos psicofármacos e na área de reabilitação psicossocial têm
demonstrado que esse pessimismo não procede (Lamb & Peele, 1984).
O desenho e a avaliação de qualquer proposta de financiamento
no setor de saúde deve considerar o quanto esta proposta contempla
as necessidades dos doentes mentais crônicos. Os cuidados com a
saúde dessas pessoas se modificaram bastante nas últimas décadas, de
maneira que eles têm hoje um tipo de assistência que envolve
Residências Terapêuticas, acompanhamento de casos (case management),
núcleos de atenção diários (CAPS, NAPS, hospitais dia) e outros
serviços auxiliares.
A assistência médica gerenciada teria, entretanto, alguns aspectos
positivos como a inovação observada nos novos padrões de prática, a
aliança entre provedores, assim como uma maior participação dos
pacientes nas decisões de tratamento. Um de seus principais aspectos
positivos foi o aumento do conhecimento a respeito da necessidade de
critérios válidos para o encaminhamento dos pacientes e para a avaliação
dos resultados, assim como da necessidade de medidas realistas sobre
a qualidade da atenção prestada e da qualidade de vida dos pacientes.
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Em outras palavras, permitiu a ordenação de dados para planejar
melhor a assistência aos doentes mentais.
Como poderiam indivíduos que necessitam de atenção contínua,
especialmente aqueles que estiveram tradicionalmente sob a responsabilidade do setor público, ser tratados nestas novas condições? A
experiência com as organizações de managed care (como as HMO
americanas) demonstrou claramente que os provedores que trabalham
sob o sistema de capitação têm fortes incentivos para racionalizar os
cuidados, transferindo a responsabilidade dos pacientes mais caros para
o setor público. Pessoas com doenças graves, tanto físicas como mentais,
têm um maior risco de exclusão nos serviços essenciais de um sistema
de saúde baseado na competição gerenciada (Koyanagi et al., 1993).
Apesar de ser um conceito forjado no setor privado, o setor público
cada vez mais se interessa por ele. Este interesse acontece principalmente
em função do aumento da demanda de serviços, da diminuição dos
recursos públicos a serem gastos no setor social e na fragmentação dos
serviços de saúde que acompanhou a transferência do atendimento
centrado no hospital para o atendimento na comunidade.
O managed care, no setor público de saúde mental, pode ser definido
como a organização de uma distribuição de serviços acessível e
responsável, desenhada para consolidar e flexibilizar recursos, assim
como disponibilizar serviços de saúde mental abrangentes, contínuos,
custo-efetivos e eficientes para determinados indivíduos em suas casas
na comunidade (Hoge et al., 1984).
Nos últimos 30 anos, com o movimento de desinstitucionalização
psiquiátrica, o atendimento aos pacientes foi se deslocando do hospital
para a comunidade nos países desenvolvidos. Em alguns, como na
Inglaterra, esse movimento se deu de forma gradual e baseada em um
desenvolvimento consistente de alternativas à internação. Em outros,
como nos EUA, a desospitalização foi radical, provocando alguns
efeitos colaterais graves como o surgimento de grandes percentuais de
doentes mentais entre os homeless (Rossi et al., 1987; Roth & Bean,
1986). Além disso temos observado o desenvolvimento crescente de
uma atenção psiquiátrica dominada por gerentes, em sistemas de saúde
cada vez mais dominados por forças de mercado. Embora a transferência
dos cuidados para a comunidade tenha sido inicialmente motivada por
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questões clínicas e sociológicas, agora parecem ser basicamente motivadas
por questões financeiras (Tyrer, 1998).
A maior parte dos recursos na área de saúde mental é consumida pelo
tratamento hospitalar. Em tempos de restrição econômica, quando é
difícil conseguir recursos para novos investimentos, é natural que os
gerentes vejam com simpatia a transferência de recursos dos hospitais
para a comunidade. Entretanto, quando outras questões são levadas em
conta nos cálculos de custo do tratamento na comunidade, tais como a
maior demanda de pacientes graves em relação às equipes comunitárias e
o maior custo da assistência a este grupo, embora pequeno, de pacientes,
a vantagem financeira da assistência comunitária desaparece (Hafner, 1987).
Desta forma, em um mercado cada vez mais competitivo, o planejamento das ações de saúde fica cada vez mais distanciado do profissional
que atua na ponta do sistema, diretamente em contato com o paciente,
e passa a ser definido por gerentes nem sempre afinados com as reais
necessidades dos pacientes.
Alguns aspectos do managed care, embora não sejam previstos ou
planejados, têm o potencial de influenciar a vida dos pacientes crônicos.
Esses pacientes têm menos oportunidades no dia-a-dia, , tendo mais
chances de se tornarem sem-teto e são mais vulneráveis ao fracasso
profissional, ao suicídio e a eventos catastróficos. Além do mais,
dependem de alternativas mais complexas de atendimento na comunidade,
como residências protegidas, programas de reabilitação psicossocial e
suporte social adequado, o que significa aumento de custos.
Segundo Sabin (1997), em um mundo perfeito a sociedade seria
rica o suficiente para prover cuidados de saúde a todos e nós não
seríamos obrigados a definir prioridades e fazer escolhas difíceis pela
racionalização. Os problemas devem ser discutidos abertamente e não
podem ser evitados. A verdadeira questão é como conduzir este processo
de forma ética em um sistema que propõe uma prática baseada em
evidências (evidence-based).
No Brasil surge, no final da década de 70, o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), em época de grande efervescência
política, na retomada da luta pelos direitos civis suprimidos pela
ditadura militar (Amarante, 1997). O MTSM surge a partir de uma
série de denúncias dos profissionais da área a respeito das péssimas
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condições em que eram tratados os pacientes nos hospitais psiquiátricos.
A Reforma Psiquiátrica e o processo de desinstitucionalização começaram a ser discutidos a partir desse movimento, que tinha como bandeira
principal a luta contra a privatização da saúde, dada as particularidades
e deformações do sistema psiquiátrico brasileiro.
A reforma Psiquiátrica no Brasil vem sendo feita principalmente às
custas de uma redução cada vez maior dos leitos psiquiátricos. Esta
redução vem se acelerando a cada dia, principalmente em relação aos
leitos públicos ao mesmo tempo em que há um abandono destas
unidades no que diz respeito aos recursos humanos, sem que os serviços
na comunidade alternativos à internação sejam criados em número
suficiente. Muitas vezes a saída dos hospitais se traduz não em uma
nova forma de tratamento, mas em uma mera transinstitucionalização
(Bandeira, 1991; Morgado & Lima, 1994, 1995).
6. CONCLUSÃO
O movimento de reforma psiquiátrica no mundo inteiro teve e tem
como princípio o respeito aos direitos humanos e condições dignas de
atendimento nos hospitais. Na verdade o que foi observado é que, em
vários países, a criação de serviços alternativos na comunidade não
substituiu completamente o hospital, mesmo que seja para um número
bem pequeno de pacientes (Hafner, 1987). Por outro lado, os pacientes
graves que conseguem se manter na comunidade requerem uma série
de cuidados, tais como moradia, terapia ocupacional, transporte, visitas
domiciliares, etc., que faz com que estes custos, diretos e indiretos sejam
elevados. Isto é, a implantação de uma genuína rede de serviços
comunitários e a melhoria dos hospitais existentes em termos de recursos
humanos adequados e diminuição de número de leitos por unidade
significa aumentar os custos e, na maioria das vezes, significa gastar o
dobro do que se gastava antes (Raftery, 1992; Leff, 1993; Davies &
Drummond, 1994; Frank et al., 1994).
Além disso, o complemento dessas ações, que é a construção de
alternativas à internação psiquiátricas na comunidade, entra em contradição com a intenção de conter custos.
As alternativas ao hospital psiquiátrico envolvem a construção de
centros de atenção diários, centros de atendimento de emergência 24 h,
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com recursos humanos em número adequado às necessidades de um
serviço que se propõe a evitar internações mais prolongadas. E, principalmente, o atendimento integrado na comunidade pressupõe a construção de Residências Terapêuticas que, dependendo do grau de autonomia dos pacientes, vão desde moradias estabelecidas nas proximidades dos hospitais, até moradias na comunidade. Além disso, é indispensável uma ampla rede ambulatorial.
A grande questão, entretanto, não é se o racionamento ou a
priorização dos recursos sejam realmente necessários, mas como conduzir
o processo eticamente. É preciso que a determinação de prioridades e
o racionamento de recursos sejam feitos e discutidos abertamente, se
não puderem ser evitados.
Não se pode ficar indiferente às forças da globalização e do
neoliberalismo. O prejuízos sociais são altíssimos. Seu efeito é
devastador, principalmente em relação àqueles que não se adequam
às suas necessidades de produção. Que nós pelo menos tenhamos a
clareza de evitar o encantamento cego pelas promessas de um sistema
de saúde equilibrado e forjado na economia de mercado e a
coragem de partir em defesa de uma discussão ética e política como
norte de uma reforma psiquiátrica que repudie firmemente qualquer
tipo de exclusão.
*Agradecimentos: Ao professor Anastácio Morgado pelas importantes contribuições a
este trabalho.
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