bases tomistas para a compreensão da educação judaico-cristã

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 PARTICIPAÇÃO, COMUNHÃO E ABSTINÊNCIA: BASES TOMISTAS PARA A
COMPREENSÃO DA EDUCAÇÃO JUDAICO-CRISTÃ
PARTICIPATION, COMMUNION AND ABSTINENCE: THOMISTIC BASES FOR
THE UNDERSTENDING OF THE JUDEO-CHRISTIAN EDUCATION
Adnilson José da Silva i
Universidade Estadual do Centro-Oeste, UNICENTRO – Guarapuava (PR)
Resumo: A educação se consolida quando altera e/ou refina atitudes conferindo identidade
aos sujeitos. Na educação judaico-cristã destaca-se a atitude da comunhão e da abstinência, a
qual possui carga axiológica que identifica os seus praticantes. Neste artigo se aborda como a
doutrina da participação e aspectos da psicologia aristotélica ressignificados por Tomás de
Aquino explicam os fundamentos da educação na tradição judaico-cristã.
Palavras-chave:, Tomás de Aquino, psicologia aristotélica, educação judaico-cristã.
Abstract: Education is consolidated when you modify and/or refine attitudes conferring
identity to the subjects. In Judeo-Christian education what stands out is the attitude of
communion and abstinence, which has axiological load that identifies its practioners. This
paper approaches how the doctrine of participation and aspects of Aristotelic psychology
reinterpreted by Thomas Aquinas explains the foundations of the education on the JudeoChristian history.
Key words: Thomas Aquinas, Aristotelic psychology, Judeo-Christian education
Introdução
A ação de comer vincula-se diretamente à necessidade de nutrição. Todavia,
diferentemente do que se verifica entre os animais, para os seres humanos esta ação pode se
revestir de valores e sentidos variados. Pessoas não comem apenas para nutrir-se, mas para
degustar combinações de temperos, para comemorar fatos felizes, para reforçar laços afetivos,
para confirmar identidades e por um sem número de razões culturais e axiológicas que
justificam estudos em diversas áreas que vão da antropologia à gastronomia em diversos
setores acadêmicos. Da mesma maneira, a decisão por não comer ou por não beber, mesmo
sob o risco de prejuízos à nutrição do corpo, pode se revestir de algum valor e se pautar por
objetivos comemorativos, afetivos, religiosos ou outros.
Neste artigo se procura enfocar esta questão no âmbito da Filosofia da Educação,
posto que os sentidos e razões culturais e espirituais que são atribuídos ao ato de comer e/ou
ao ato de não comer dependem de ações pedagógicas para que os iniciados os compreendam e
os pratiquem superando os objetivos e efeitos nutricionais e fruitivos que são vinculados a tais
atos. A educação sempre se pauta por teleologias coletivas e estas incluem o delineamento e a
consolidação de identidades assentadas em símbolos e valores, e por este motivo procura-se
nas práticas da comunhão e da abstinência, realizadas ao longo da tradição judaico-cristã, os
fundamentos que proporcionam a conversão de atos banais como comer ou não comer em
atitudes sagradas mediante a internalização de valores por processos pedagógicos.
A reflexão que ora se propõe se pautará por conceitos que vertebram as bases da
educação judaico-cristã voltada para formação de praticantes e partícipes de maneiras rituais e
penitenciais de alimentação, sendo estas as formas sagradas que assumem os atos de comer e
de não comer no contexto religioso em tela. A tradição judaico-cristã será sintetizada a partir
de fontes bíblicas e nela será identificada, à luz de teorias e de bases doutrinais de Tomás de
Aquino e de Aristóteles, a continuidade dos processos pedagógicos que garantiram a
permanência de valores ligados às práticas sagradas de alimentação e à consequente
consolidação das identidades judaica e cristã. Como é objetivo deste artigo, será dado ênfase
aos fundamentos filosóficos que norteiam e que explicam o processo pedagógico acima
referido.
Tendo em vista que todo projeto pedagógico se desenvolve considerando um modelo
antropológico, é necessário considerar de antemão como Tomás de Aquino concebeu o ser
humano e sua capacidade de apreender a verdade e de praticar os atos de comer e de não
comer em perspectiva sagrada.
A alma humana e o seu alimento
Tomás de Aquino viveu entre 1225 e 1274, em um período caracterizado por uma
maior disseminação do pensamento de Aristóteles (384 – 322 a.C.) no ocidente e pela
concomitante admissão da filosofia aristotélica entre importantes pensadores cristãos. De
acordo com Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, Tomás de Aquino foi um dedicado
estudioso de Aristóteles, tanto que procedeu “(...) uma vastíssima operação de análise da obra
aristotélica que lhe permitiu, por um lado, fixar o quanto possível o sentido do texto de
Aristóteles e, por outro, ter um conhecimento excepcional daquele que era denominado na
época O Filósofo” (NASCIMENTO, 2003, p.56). É, portanto, no pensamento de Aristóteles e
em passagens da Suma teológica que se pode encontrar referências importantes para se
compreender os fundamentos tomistas da educação e como tais fundamentos permitem a
compreensão sobre como são formados sujeitos partícipes e observantes no milenar contexto
judaico-cristão. Em tais referenciais e em bibliografia complementar serão estudados os
conceitos de participação e de potências da alma, no sentido de dar conta da compreensão
conceitual do pensamento de Tomás de Aquino para posterior leitura da educação judaicocristã.
Em seu tratado intitulado De Anima, Aristóteles observa que a vida se mantém graças
a funções permanentes e combinadas que vão desde a nutrição até a tomada de decisões e
afirma, com base nisto, que a alma deve ter capacidades ou potências referentes a tais
funções. (GARDEIL, 1967, p. 29-30) Segundo Giovanni Reale e Dario Antiseri, para o
Estagirita
(...) os fenômenos e funções fundamentais da vida são: a) de caráter vegetativo,
como nascimento, nutrição e crescimento; b) de caráter sensitivo-motor, como
sensação e movimento; c) como conhecimento, deliberação e escolha. Assim sendo,
por essas razões, Aristóteles introduz a distinção entre a) “alma vegetativa”, b)
“alma sensitiva” e c) “alma intelectiva” ou racional. (...) Para possuir a alma racional
o homem deve possuir as outras duas; da mesma forma, pra possuir a alma sensitiva,
o animal deve possuir a vegetativa; no entanto, é possível possuir a alma vegetativa
sem possuir as almas sucessivas. (REALE e ANTISERI, 1990, p. 198)
No que concerne à concepção de ser humano, Tomás de Aquino fundamenta-se
no que Aristóteles escreveu sobre a psiché sendo, portanto, um defensor da unicidade da alma.
Conforme observa H. D. Gardeil,
No homem, em particular, se falamos da alma vegetativa e da alma sensitiva ao lado
da espiritual, é preciso reconhecer que só esta última é uma entidade independente
exercendo as funções das outras duas. Sôbre este ponto S. Tomás permanece muito
firme face aos que, em seu tempo, sustentavam a pluralidade das almas ou das
formas substanciais. (GARDEIL, 1967, p.37, com normas ortográficas de então)
Tendo em vista que “As plantas possuem só a alma vegetativa, os animais a vegetativa
e a sensitiva, ao passo que os homens a vegetativa, a sensitiva e a racional” (REALE e
ANTISERI, 1990, p. 198), e que à alma vegetativa está vinculada a necessidade e a potência
de nutrição e que à alma sensitiva se refere a potência de sentir o prazer da degustação,
coloca-se para a alma intelectiva ou racional o problema de decidir com primazia sobre as
demais a respeito de realizar ou de não realizar as ações de comer e de beber, bem como sobre
a maneira de fazê-lo. Sobre isto, Tomás de Aquino afirma na Suma teológica que “as
potências intelectivas são anteriores às potências sensitivas, razão porque elas as governam e
as comandam. Da mesma maneira, as potências sensitivas são anteriores às potências da alma
vegetativa” (I, q. 77, a. 4, s.c.). Isto explica porque a ação de comer, entre sujeitos não
famintos, tende a se estimular mais pelo prazer do paladar do que pela necessidade de
nutrição. Por outro lado, ainda de acordo com Tomás de Aquino, “As potências vegetativas
são anteriores, na ordem da geração, às potências sensitivas. Assim, elas preparam o corpo
para que essas possam agir. Mesma relação entre as potências sensitivas e as potências
intelectivas” (I, q. 77, a. 4, s.c.). Esta asserção permite compreender pela qual entre famintos a
necessidade de nutrição tem primazia sobre o prazer do paladar: porque é preciso alimentar o
ser humano o suficiente para que, superado o seu estado famélico, as sensações do paladar
possam ser melhor fruídas.
A questão assim posta se restringe a um tema de psicologia racional. O problema se
amplia quando se procura saber as razões pelas quais uma pessoa em uso de suas potências
intelectivas ou racionais decide não comer ou não beber, ou ainda, em alimentar-se seguindo
determinadas prescrições ao arrepio do que demandam as suas potências vegetativa e
sensitiva. Uma resposta simplista seria porque isto lhe tem algum valor. Mas, em contexto
judaico-cristão, como tais valores se constituíram e, mais do que isso, como Tomás de Aquino
permite compreender o processo de sedimentação e de segura disseminação de tais valores
desde os tempos mosaicos ao ponto de servirem de fundamento axiológico para a educação
voltada à comunhão e à abstinência e à consequente salvação das almas?
Sabendo de antemão que as atitudes relacionadas a alimentar-se e a não alimentar-se,
para além de seus determinismos biológicos, são motivadas por convicções e crenças
aprendidas através de processos e recursos pedagógicos convém, antes de se verificar o
posicionamento de Tomás de Aquino frente a esta questão e sua contribuição para a
compreensão desta pedagogia, revisar a história das práticas sagradas de alimentação e de
abstinência desde Moisés.
Comunhão e abstinência na tradição judaico-cristã
A sacralização dos atos de comer e de não comer são anteriores ao cristianismo e nele
se instalam pela tradição judaica. O antigo testamento é repleto de descrições, de justificativas
e de prescrições referentes à alimentação que foram direcionadas ao povo hebreu. Tais
abordagens e citações se vinculam invariavelmente ao reforço dos laços afetivos e sociais, ao
fortalecimento da identidade coletiva e à preservação dos hebreus frente ao que consideravam
impuro.
Chama a atenção o fato de que nenhum projeto pedagógico consegue lograr êxito em
âmbito coletivo se não contar com materializações textuais de suas propostas, e que os livros
sagrados do antigo testamento assumem esta função e formato material como referenciais
pedagógicos para a educação do povo hebreu. O livro do Êxodo, cuja redação foi concluída
por Moisés por volta de 1.500 a.C 1 ., apresenta as prescrições que embasam toda a cultura
milenar do comer sagrado. Lê-se no Êxodo que o próprio Deus instruiu o povo para que
(...) cada um de vós tome um cordeiro por família, um cordeiro por casa. Se a
família for pequena demais para um cordeiro, então o tomará em comum com seu
vizinho mais próximo, segundo o número de pessoas, calculando-se o que cada um
pode comer. O animal será sem defeito, macho, de um ano; podereis tomar tanto um
cordeiro como um cabrito. E o guardareis até o décimo quarto dia deste mês; então
toda a assembléia de Israel o imolará no crepúsculo. Naquela noite comerão a carne
assada no fogo com pães sem fermento e ervas amargas. Nada comereis dele que
seja cru, ou cozido, mas será assado no fogo completamente com a cabeça, as pernas
e as entranhas. Nada deixareis dele até pela manhã; se sobrar alguma coisa, queimálo-eis no fogo. (Ex. 12, 3-10)
Observa-se que as práticas alimentares sagradas são repletas de detalhes que as
diferenciam das refeições banais, como datas e horários, quantidades e ingredientes. Entre
estes últimos destaca-se o cordeiro pascal que deve ser sem defeito, em alusão a pureza e
perfeição. Merece atenção também a recomendação para que as famílias se reúnam em um
mesmo espaço e/ou pratiquem a sua ceia em um único momento, o que deixa clara a
preocupação em se dar ao ato um caráter de comunhão.
1
Para referência sobre as datas de conclusão de redação dos livros bíblicos aqui citados utilizou-se a Biblioteca
Bíblica On-Line, disponível em http://bibliotecabiblica.blogspot.com, com acesso em 13 de fevereiro de 2010. Adiante, Moisés deixa claro que o pertencimento ao grupo social e, portanto, a própria
identidade de hebreu fica condicionada à observância da sua prescrição divina: “Comereis pão
sem fermento durante sete dias. Logo ao primeiro dia tirareis de vossas casas o fermento, pois
todo o que comer pão fermentado dede o primeiro dia até o sétimo, será cortado de Israel”
(Ex. 12, 15). Novamente o ato de comer, no tempo pascal, conforme a prescrição bíblica, se
apresenta como distintivo dos hebreus quando se impõe que naquela refeição “nenhum
estrangeiro comerá ela; todo escravo adquirido a preço de dinheiro, e que tiverdes
circuncidado, comerá dela, mas nem o estrangeiro, nem o mercenário comerão dela” (Ex. 12,
43-45).
A insistência nas práticas alimentares sagradas continua em outros livros do antigo
testamento, o que revela que a iniciativa de se manter prescrições comportamentais escritas
surtia o efeito educativo esperado. No Levítico, escrito por volta de 1490 a.C., e em Números,
cuja redação se concluiu em 1473 a.C., ambos escritos por Moisés, as orientações se repetem
de maneira inalterada.
Há em todas estas prescrições um evidente paralelo com a passagem do Livro do
Gênesis em que Adão e Eva desobedeceram a ordem divina e comeram a maçã proibida (Gen.
3, 1-13). Considerando que o Gênesis também foi escrito por Moisés, este profeta se apresenta
como utilizador de textos escritos como recurso para esclarecer didaticamente a seus
interlocutores quais seriam as consequencias da desobediência à mesa: a exclusão, com
requintes de condenação, do grupo social e a pecha de pecador. Mas cabe ressaltar que tal
exclusão social não tem um significado jurídico, mas, mais do que isto, um significado
sagrado de condenação eterna bem ilustrada pela pena de expulsão do paraíso que fora
aplicada a Adão e Eva.
A força dessa pedagogia mosaica se comprova pela permanência da observância
referente à comunhão e à abstinência inicialmente durante a história dos hebreus e, depois,
durante a história do cristianismo. Em livros do novo testamento há, para além de novas
narrativas e descrições, também novas orientações didáticas para participação e identificação
em uma páscoa atualizada pelo discurso de Jesus Cristo.
A identidade dos cristãos se define, novamente, à mesa. Os evangelhos de Mateus, de
Marcos, de Lucas e de João descrevem o que se chamou de instituição da eucaristia, a qual se
deu quando Jesus, identificando-se com o cordeiro pascal (Ex. 12, 3-7),
(...) tomou o pão, benzeu-o, partiu-o e o deu aos discípulos, dizendo: “Tomai e
comei, isto é o meu corpo”. Tomou depois o cálice, rendeu graças e deu-lho,
dizendo: “Bebei dele todos, porque isto é o meu sangue, o sangue da Nova Aliança,
derramado por muitos homens em remissão dos pecados”. (Mt. 26, 26-28)
Mais uma vez o convite para que todos tomem parte da refeição simbólica remete à
preocupação com o caráter comunitário, de comunhão, já presente entre as prescrições
mosaicas.
O correspondente a Moisés no período neotestamentário, no que diz respeito à
utilização de textos para orientação e educação dos fiéis, é o apóstolo Paulo de Tarso. Em sua
primeira carta aos moradores de Corinto, após repetir a descrição da instituição da eucaristia
tal qual se lê nos evangelhos, Paulo apresenta as novas condições e atitudes para que as
pessoas comunguem da identidade de cristãos. As prescrições paulinas começam com uma
advertência: “(...) todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será
culpável do Corpo e do Sangue do Senhor” (ICor. 11, 27).
Esta indignidade a que se refere Paulo de Tarso remonta ao pecado da desobediência
de Adão e de Eva e à inobservância dos preceitos mosaicos para a ceia pascal, tendo, portanto,
na culpa o elemento característico da impureza e da corrupção. A participação na comunhão
ou no comer simbólico será prova visível de pureza e de incorruptibilidade. Por sua vez, a
abstinência será ato de bom senso por parte de impuros e de corrompidos.
Por volta do ano 80, ou seja, cerca de 25 anos após Paulo escrever suas duas cartas aos
coríntios, Lucas afirma no livro dos Atos dos Apóstolos que as recomendações referentes às
refeições comuns e ritualísticas cumpriram sua função entre os cristãos, da mesma forma que
haviam alcançado êxito entre os judeus veterotestamentários: “Perseveraram eles na doutrina
dos Apóstolos, nas reuniões em comum, na fração do pão e nas orações. (...) Unidos de
coração, freqüentavam todos os dias o templo. Partiam o pão nas casas e tomavam a comida
com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e cativando a simpatia de todo o povo. E
o Senhor cada dia lhes juntava outros, que estavam a caminho da salvação” (At. 2, 42. 46-47).
Aqui, a expressão “singeleza de coração” denota a incorruptibilidade, a pureza e a
observância necessárias à comunhão fraterna, descrevendo assim um traço que é ao mesmo
tempo um adjetivo e um objetivo para a identidade de cristão.
Com enfoque na prática da abstinência, nota-se que esta se faz evidente desde os
textos de Moisés: quando o próprio Deus proibira Adão e Eva de comerem “do fruto da
árvore que está no meio do jardim” (Gen. 3, 3), quando o Senhor ditara que do cordeiro pascal
“Nada comereis dele que seja cru ou cozido” (Ex. 12, 9) e quando impusera dos alimentados
fermentados que “Comereis pão sem fermento durante sete dias” (Ex. 12, 15). Já nos textos
evangélicos a abstinência de alimentos não recebe tamanha ênfase, sendo ampliada a
orientação para a prática da penitência. Um valorizador desta prática é João Batista (Mt. 3, 2.
8. 11), que associava a penitência ao batismo. Ele foi seguido por Pedro (At. 2, 38) e por
Paulo (Rm. 2, 4), para os quais os cristãos, pelo fato de serem batizados, deviam acatar a
ordem geral de penitenciarem-se por abstinências e de outras formas, conforme os textos
sagrados e de acordo com prescrições vinculadas a pureza de pensamentos e a práticas de
caridade.
Atualmente, entre os judeus as tradições permanecem com pouquíssimas alterações.
Todavia, entre os cristãos, desde o século XV há uma constante orientação para a observância
de algumas práticas específicas, as quais acabaram por se fazer presentes em diversos
catecismos e chegam até nós como os cinco mandamentos da Igreja 2 , entre os quais estão o de
“Comungar ao menos uma vez pela Páscoa da Ressurreição” e o de “Jejuar e abster-se de
carne quando manda a Santa Madre Igreja” que são, respectivamente, o terceiro e o quarto
mandamento. Vinculados ao calendário e aos rituais romanos da igreja católica, o terceiro e o
quarto mandamentos da igreja geralmente são observados sem muitas explicações sobre seus
sentidos, suas cargas axiológicas e sua tradição histórica, mas sempre com a advertência da
possibilidade de culpabilidade, pelo pecado de inobservância, aos seus descumpridores.
A utilização dos textos bíblicos como recursos educativos para as práticas da
comunhão e da penitência perdura por mais de dois mil anos de cultura cristã. Considerandose os anos que transcorreram desde os textos de Moisés, somam aproximadamente 3.500 anos
de orientações e prescrições vinculadas à sacralização dos atos e comer e de não comer. Há
cerca de quinhentos anos, os cinco mandamentos da Igreja compõem uma fórmula de fácil
memorização e, também por sua brevidade, foram largamente reproduzidos em textos
impressos constituindo-se como importante materialização didática para a educação de
católicos.
2
Os Cinco Mandamentos da Igreja não foram revogados por João Paulo II na promulgação do Catecismo da
Igreja Católica, em 1992, e além disso foram confirmados com pequenas atualizações no quanto mandamento,
referente ao dízimo, pelo Papa Bento XVI em 2005. Tomás de Aquino: salvação por participação inteligente
A contribuição de Tomás de Aquino para a compreensão do tema da comunhão e da
penitência não se deve a um exercício gratuito de filosofia em que o Aquinate considerou
aspectos psicológicos e antropológicos do pensamento aristotélico. Todo o fantástico trabalho
de reflexão de Tomás de Aquino foi motivado e significado por sua fé católica e por sua
esperança na salvação eterna para todos os homens. Isto revela o aspecto pedagógico do fruto
do seu trabalho, porquanto se trata de uma fundamentação consistente para um propósito de
educação universal guiado pelos valores do cristianismo e que prevê práticas axiologicamente
significadas (comunhão e penitência) e seus efeitos de médio prazo (a identificação e a coesão
dos cristãos) e de longo prazo (a salvação da humanidade). Mas as teorizações e Tomás de
Aquino não permitem entender os fenômenos de educação e de fidelidade religiosa apenas
entre os católicos, pois há para além da mesa e das práticas alimentares sagradas dos cristãos
um princípio basilar presente desde Moisés: o de participação. Conforme breve e profunda
proposição na Suma teológica, no pensamento tomista e no círculo cristão católico este
princípio se consolida como doutrina da participação (I, q. 6, a. 4, rep), no entanto o seu valor
teórico permite a sua utilização para a compreensão das práticas sagradas de comunhão e de
abstinência como princípio educativo em toda a tradição judaico-cristã.
A participação é a ação de tomar parte de algo, de fazer parte de um grupo ou de um
movimento. (LAUAND e SPROVIERO, 1999, p. 56) Na tradição da comunhão religiosa
desde Moisés, os escolhidos de Deus são chamados a tomar parte de um projeto e a fazer
parte da nação dos escolhidos, e isto se simboliza no ato de cada um tomar a sua parte no
banquete festivo participando dele pela aceitação da lei divina e pelo comportamento ritual.
Mas convém lembrar que as práticas de participação não se reduzem ao comungar de pratos
preparados em dias especiais e de maneiras ritualísticas, pois a ação de não comer
deliberadamente resolvida e em penitência das demandas vegetativas e sensitivas da alma
também é uma forma de participar, de fazer parte de uma ação coletiva e, mais do que isto, de
um valor coletivo que garante coesão e identidade ao grupo.
A doutrina da participação, como a entende Tomás de Aquino, sempre tem em Deus o
referencial primeiro. Trata-se de uma doutrina que aprofunda e explica o conceito de ser para
além da teoria de Aristóteles acerca da alma e de suas potências, mas sem negar o pensamento
aristotélico. Assim, segundo consta da Suma teológica, o homem, ser criado por Deus, é capaz
de atitudes boas porque Deus é Bom; destarte o homem é bom porque participa da Bondade
de Deus (I. q. 3, a. 4). Tendo em mente que o comportamento testemunhal de hebreus e de
cristãos quanto às formas sagradas de alimentação e de penitência são prescritas por Deus
através dos profetas (no antigo testamento), dos apóstolos (no novo testamento) e dos padres
da igreja (em encíclicas e catecismos modernos), a observância de tais preceitos se converte
em forma de participar, além de um grupo e de um projeto imanente, também da
transcendente vontade divina. Eis o que confere o caráter sagrado às práticas de comunhão e
de penitência por jejum e abstinência: a sua ligação (participação) com a vontade de Deus.
Ainda no bojo das preocupações com formas sagradas de se portar à mesa, convém
registrar que Tomás de Aquino dedicou-se ao tema do pecado enfocando as suas sete formas
capitais elencadas pelo papa Gregório Magno no século VI: soberba, vaidade, inveja, ira,
avareza, gula e luxúria. Para os propósitos deste artigo, convém verificar o que o Aquinate
considerou acerca da gula, posto que está diretamente relacionada às formas sagradas de
comunhão e de penitência por jejum e abstinência.
Entende-se que a gula é o vício da desmesura na alimentação e, embora sem relacionála às práticas historicamente sagradas de alimentar-se e de abster-se de alimentos, Tomás de
Aquino observa que a sua ocorrência incide de forma prejudicial sobre a potência intelectiva
ou racional da alma de cinco maneiras 3 , das quais destacam-se duas:
Em primeiro lugar, quanto à razão, cuja agudeza se torna obtusa pelo excesso de
quantidade ou de solicitude no comer, pois quando se perturbam as potências
inferiores corporais pelo consumo desordenado de alimentos também a razão fica
obstruída e, assim, o embotamento da inteligência é considerado filho da gula. Em
segundo lugar, há uma desordem nos atos da vontade, que ficam como que à deriva
pelo adormecimento de seu piloto, a razão. E assim surge a alegria néscia.
(AQUINO, 2001, p. 105, com destaques do original)
Observa-se que o cuidado com a razão mediante o cultivo do comedimento objetiva
um zelo com a potência primaz da alma, que é a intelectiva. Esta potência é justamente a que
torna os seres humanos mais análogos e partícipes das características divinas. Aqui o trabalho
de Tomás de Aquino revela um forte caráter pedagógico para além de prescrições, centrandose em uma estratégia de apelo à inteligência para preservação da consciência, o que garantirá
3
As cinco formas de prejuízo causado pela gula à alma intelectiva ou racional são denominadas por Tomás de
Aquino como filhas da gula: a alegria néscia, a expansividade debochada, a loquacidade desvairada, a imundície
e o embotamento da inteligência (AQUINO, 2001, p. 106). posteriormente as condições para a participação sagrada na comunhão. Essas condições
incluem a isenção de um estado néscio.
Diante do que aqui se expôs, fica claro que a observância dos fiéis é condição para a
sua participação dos projetos divinos. Todavia, os seres humanos participam de outra
característica divina, que é a de livre-arbítrio, o qual se vincula às potências espirituais da
inteligência e da vontade (LAUAND, 2001, p.16). Por este motivo podem decidir por não
comungar e por não fazer penitência isentando-se, assim, da identidade e do plano eterno que
são vinculados a tais práticas. É exatamente isto que parece justificar e até estimular as
práticas doutrinadoras e catequéticas que foram realizadas ao longo da história através dos
textos proféticos, das cartas apostólicas e dos catecismos católicos, quando estes recursos
apelaram à potência intelectiva para que exercesse a sua supremacia sobre as potências
sensitiva e vegetativa, mas que também se prevenisse contra tendências de natureza
axiológica que fossem contrárias aos desígnios de Deus, pois a sucumbência a tais tendências
parece ser mais perigosa do que as demandas do corpo (fome e apetites) e afastar mais
gravemente os fiéis de sua participação na identidade e no projeto coletivo 4 . Isto se torna mais
evidente quando se observa que aconteceram insistências e a atualizações nas prescrições para
a comunhão sagrada em quatro momentos históricos especialmente críticos para os projetos
judaicos e cristãos, depois que o povo hebreu partiu do Egito: por volta de 1473 a.C., quando
Moisés redigiu o Levítico para reforçar a obrigatoriedade de observância; por volta de 1490
a.C., quando Moisés redigiu Números para explicar porque, após alguns anos, ainda não
haviam chegado à terra prometida; em torno de 56 d. C., quando Paulo se esforçava para
disseminar as bases da igreja cristã; e no século XV quando começam a circular os primeiros
catecismos com os cinco mandamentos da igreja, em plena crise cultural em função da
valorização de valores laicos renascentistas. Foram, indubitavelmente, momentos de maior
apelo às consciências para que se mantivessem fiéis às prescrições sagradas.
Considerações finais
Ao longo da tradição judaico-cristã se reitera a importância da participação em atos
sagrados que reforçam laços sociais e conferem identidade aos seus praticantes. Entre tais atos
4
Sobre a afirmação da filosofia tomista no âmbito o catolicismo como fundamento educacional preventivo frente
a correntes e ideologias laicas, recomenda-se a leitura do artigo “Teleologia e mediação pedagógica tomista:
Leão XIII e Pio XII contra filosofias modernas” (SILVA, 2009). estão o de comer e o de abster-se de comida segundo recomendações que foram atribuídas à
vontade divina e que incluíram critérios de preparo, de prazos e de quantidades.
Identificou,se neste texto, como principal elemento de continuidade dos valores e das
práticas referentes à participação de ações de alimentação e de abstinência, o discurso
profético e apostólico, respectivamente no antigo e no novo testamento, e sua materialização e
reprodução escrita em livros, em cartas e mais recentemente em catecismos, os quais, aliados
a práticas de preleção e de efetiva observação preceitual, se constituem como estratégia
pedagógica para formação dos fiéis no judaísmo e no cristianismo em um período milenar. O
fundamento de tais recursos educacionais pode ser explicado, mesmo depois de milênios de
sua prática, pelo pensamento aristotélico-tomista, especificamente à luz do conceito tomista
de participação e da teoria das potências da alma.
Embasado no pensamento de Aristóteles, Tomás de Aquino atualizou as noções de ser
humano a partir do conceito de alma e de suas potências. Mediante os esforços envidados
neste artigo, entende-se que Tomás de Aquino proporcionou os meios filosóficos para a
compreensão de toda a pedagogia judaico-cristão vinculada às práticas alimentares sagradas,
que sempre valorizaram a inteligência como faculdade primaz em relação às necessidades e
apetites do corpo.
Pelo conceito tomista de participação e pela teoria aristotélico-tomista das potências
da alma identifica-se a potência intelectiva como a que mais proporciona aos seres humanos
participar de características divinas, como a inteligência e a vontade. Nesta ação se
compreende que as formas didáticas de educação para a comunhão/participação têm na
intelecção o ponto central para uma ação pedagógica de fortalecimento da consciência.
Fortalecidos em sua consciência, os seres humanos gozam da primazia de suas potências
intelectivas sobre as potências vegetativas e sensitivas tendo, desta maneira, melhores
condições para participar da vontade divina - da qual as formas sagradas de comer e de
penitência por jejum e abstinência são requisitos e representações materiais historicamente
consolidados.
Considerando que os conceitos presentes no pensamento de Tomás de Aquino não
servem apenas a propósitos doutrinários, mas também para o estudo acadêmico de
fundamentos da educação, a teoria aristotélico-tomista não apenas proporciona um sentido
teleológico para a educação de gerações vindouras de cristãos, mas comprova que os
fundamentos de tal sentido teleológico já estavam presentes em ações educativas desde pelo
menos 1.500 anos a.C.
Referências
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Vol. 1. São Paulo: Loyola, 2002.
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Vol. 2. São Paulo: Loyola, 2002.
AQUINO, Tomás de. Sobre o Ensino (De Magistro). Os Sete Pecados Capitais. Trad. Luiz
Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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Pedagogo. Mestre em Educação. Professor de Fundamentos Filosóficos da Educação e de Fundamentos
Filosóficos da Educação Brasileira do Departamento de Pedagogia da Universidade Estadual do Centro-Oeste do
Paraná – UNICENTRO, Campus Universitário Santa Cruz (Guarapuava – PR). E-mail:
[email protected]. 
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