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Uma Propedêutica para uma Discussão sobre
Pesquisa em História e Filosofia da Matemática
John A. Fossa
As presentes linhas pretendem ser uma espécie de propedêutica para a discussão do
grupo temático sobre pesquisa em história e epistemologia da matemática. Inicialmente,
tencionei fazer um levantamento sobre a literatura relacionada ao tema, especialmente a
produzida por pesquisadores da nossa comunidade brasileira de história da matemática. Logo vi,
porém, que, no tempo que me foi dado, dificilmente poderia contribuir com algo mais
contundente e, em qualquer caso, a tarefa proposta seria executada com muito mais presteza
pelo grupo todo. Assim, resolvi falar na minha própria voz, ou seja, refletir um pouco sobre a
minha própria experiência com o tema. O resultado é, sem dúvida, um texto idiossincrático, mas
mesmo assim, espero, seja do interesse dos membros do grupo como um ponto de partida.
Consoante com a resolução de falar sobre minha experiência com o tema, decidi
generalizar a discussão e falar não somente sobre a relação matemática / epistemologia, mas da
relação matemática / filosofia, no contexto da história da matemática, pois o ponto de vista mais
geral poderá propiciar discussões mais interessantes.
Três Invenções Gregas
Curiosamente, tanto a filosofia, quanto a matemática, são invenções dos gregos antigos e
os seus próprios nomes remontam aos primeiros pitagóricos. De fato, conta-se que foi o próprio
Pitágoras que cunhou o nome filosofia de duas palavras gregas, cuja significação é “amando a
sabedoria”. A origem do nome matemática é um pouco mais incerta, mas sabe-se que oriunda de
um verbo grego que significa, basicamente, “conhecer”. Uma das suas inflexões foi usada para se
referir, de modo geral, a qualquer disciplina (curso de instrução), e neste sentido, a mesma
significava “o que pode ser ensinado”. Mas, aparentemente, Arquitas, um pitagórico da segunda
geração, já usava a referida palavra para indicar as disciplinas matemáticas per si. Para ele, a
significação mais restrita quer dizer algo como “o que pode ser conhecido”.
Antes de Pitágoras havia, certamente, os precursores. O mito e a religião abordavam, de
forma pré-filosófica, temas que seriam importantes para a própria filosofia e, entre os gregos,
havia uma procura pelo archê, a matéria prima a partir da qual tudo seria feito e do que também
compor-se-ia o princípio de movimento. Credita-se a Pitágoras, porém, “um novo começo” na
filosofia, pois além do archê é necessário, para ele, procurar o lógos, ou seja, aquilo que faz o
mundo inteligível. Com isso, nasceu o projeto filosófico de elaborar uma explicação sistemática,
completa e absolutamente verdadeira do mundo em termos de princípios ontológicos e
epistemológicos. Logo em seguida, exortações moralistas foram substituídas por argumentos
críticos que visavam justificações éticas.
Similarmente ao que acontecia com a filosofia, a matemática também houve seus
precursores. Chamo, de modo geral, estes precursores de atividades protomatemáticas e entendo
por isto a grande matriz de atividades, centradas em números e operações com números, da qual
a matemática surgiria. Era, novamente, a preocupação com a justificativa de proposições
matemáticas que levou os pitagóricos à consciência da necessidade de demonstração e, logo em
seguida, à axiomatização, que caracteriza a matemática como ciência.
Ao contraste das duas invenções gregas já mencionadas, que parecem ser invenções sui
generis, há uma terceira que parece ter sido inventada, de forma independente, em várias
culturas. Trata-se da história (historiografia). Mais uma vez, pomos de lado os precursores (a
mitologia e a propaganda estatal) e caracterizamos a história como consistindo na tentativa de
elaborar explicações críticas de acontecimentos passados. Especificamente, temos, quando os
referidos acontecimentos têm a ver com a matemática, a história da matemática.
Há, como é conhecido, várias maneiras de conceber a história e deve ser bastante claro
que a maneira em que o historiador conceba a sua disciplina em termos gerais afetará a maneira
em que ele faz a história da matemática. Os seus propósitos, seus métodos e até o que admite
como evidência são todos determinados, explicitamente ou implicitamente, pela maneira em que
a história é concebida. Há, no entanto, pouca discussão explícita e profunda sobre a natureza da
história e de seus métodos na nossa comunidade. Isto provavelmente se deve ao fato de que não
somos, na grande maioria, primordialmente historiadores, mas chegamos à história da
matemática provenientes da própria matemática e/ou da Educação Matemática.
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Dado as observações do parágrafo anterior, poderemos sugerir a criação de uma
comissão interinstitucional para refletir sobre a natureza da história e apresentar, no próximo
SNHM, um relatório contendo, pelo menos, os seguintes itens:
1. uma sistematização da produção da nossa comunidade sobre a referida
problemática;
2. um estudo da produção das comunidades afins (a própria história, a
filosofia, etc.) sobre a mesma;
3. recomendações sobre como o referido assunto poderia ser abordado
junto aos alunos de pós-graduação que escrevam dissertações e teses
acerca da história da matemática.
Observamos que o terceiro item não prevê a criação de normas, mas apenas um elenco grande de
possibilidades que podem ser usadas como apoio didático pelos orientadores, os discentes e/ou
outros interessados.
Voltemos rapidamente aos primeiros pitagóricos para observar um fato importante. O
próprio Pitágoras teria localizado o lógos do mundo na matemática (“Tudo é número e
harmonia.”). Isto aponta para o grande, mas frequentemente despercebido, imbróglio de relações
e influências mútuas entre a filosofia e a matemática que deveria ser parte profunda da história
da matemática. Tecemos a seguir umas rápidas considerações sobre o mesmo.
Influências Filosóficas sobre a Matemática
O leigo poderá pensar que a matemática se importa exclusivamente com resultados
formais e, portanto, não seria afetada pelas convicções filosóficas dos seus praticantes. Esses
mesmos resultados formais, no entanto, significariam coisas diferentes para matemáticos com
visões filosóficas diferentes. Realistas tendam a pensar que os objetos matemáticos são entidades
independentes e que o conhecimento matemático é analítico e certo. Em contraste, há um
espectro grande de idealistas que negam a existência independente de objetos matemáticos e
caracterizam o conhecimento matemático em maneiras bastante diversas, tendo, em um
extremo, o sintético a priori dos kantianos e, em outro extremo, o revisionismo dos falibilistas.
A maneira de conceber os resultados, porém, não é a única influência filosófica sobre a
matemática, pois poderá também influenciar os objetivos e os métodos dos matemáticos. Alguns
positivistas, por exemplo, desenvolveram a “geometria do taxi” para combater o que
consideraram uma leviandade filosófica, enquanto a sua visão filosófica sobre a existência
matemática levou Brouwer a restringir os métodos aceitáveis de demonstração matemática.
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Ao contar a história da matemática, então, não é suficiente tentar recontar as proezas de
cada matemático e mostrar como eles se encaixam no desenvolvimento dessa ciência (de fato,
isto é frequentemente um projeto ilusório!). Devemos também procurar as razões filosóficas,
onde existem, para escolhas de definições e axiomas e para opções sobre métodos e níveis de
rigor. Devemos avaliar como os objetivos filosóficos ajudaram ou dificultaram as várias
teorizações matemáticas e como a filosofia dos seus praticantes foi, ou não, instrumental nos
desentendimentos, às vezes violentos, entre os matemáticos.
Influências Matemáticas sobre a Filosofia
Interessantemente, a matemática pode provocar problemas filosóficos tanto com seus
sucessos, quanto com seus insucessos. Por um lado, a descoberta de novas entidades
matemáticas, tais como os números irracionais, os negativos e os complexos, por exemplo,
causou muita perplexidade filosófica. O mesmo aconteceu com o desenvolvimento de outros
resultados formais, como a descoberta de geometrias não euclidianas. Por outro lado, a
inabilidade de contornar o problema do quinto postulado de Euclides e o surgimento dos
paradoxos da Teoria dos Conjuntos são exemplos de insucessos que abalaram a tranquilidade dos
filósofos.
Considerando o fato de que as duas disciplinas compartilham, pelo menos nas suas
origens, uma ansiedade referente à verdade, não deve ser surpreendente achar filósofos que
elaboraram seus escritos segundo o padrão desenvolvido pela matemática, como é o caso de
Spinoza, que tentou elaborar sua ética de forma axiomática. Mas, há casos de influência
matemática ainda maior. Mostrou-se, por exemplo, que a filosofia platônica é completamente
estruturada pela técnica de alegoria matemática. A técnica parte de uma estrutura matemática
interessante em si, que é então usada como uma heurística para o desenvolvimento da teoria
filosófica. No caso de Platão, a estrutura matemática usada é a da linha dividida.
Há outro caso bastante interessante para os nossos propósitos: o da restrição de Brouwer
em relação aos métodos de demonstração. Em face dos paradoxos da Teoria dos Conjuntos,
Brouwer propôs novos padrões de rigor e isto o levou a examinar o fundamento filosófico sobre a
questão da existência de entidades matemáticas. Assim, como já vimos, a questão filosófica
influenciou o desenvolvimento da sua matemática, enquanto o desenvolvimento da sua
matemática influenciou seus posicionamentos filosóficos. Quando haja influências mútuas
autorreforçantes desta maneira, o resultado poderá ser uma teoria sutil e poderosa.
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Assim, novamente, ao contar a história da matemática, não podemos abordá-la como se
fosse algo isolado e independente da cultura geral, mas devemos ressaltar o fato profundo de que
a matemática é uma criação cultural do homem e, portanto, que tem fortes relações com outras
partes da cultura humana.
O Papel Cultural da Matemática
Quando percebemos que a matemática é parte da cultura humana e que, portanto, se
relaciona com as outras partes dessa cultura, a questão da relação da matemática com a filosofia
poderá ser generalizada para incluir a questão da relação da matemática com X, onde X seja
qualquer outro recorte cultural. Nesse sentido, geralmente se substitui as ciências para X e às
vezes também se lembra do papel da geometria na perspectiva em arte, enquanto, para a
presente audiência, a relação da matemática com a educação quase nem precisa ser mencionada.
Mas, há muitas outras relações a serem investigadas. A etnomatemática, por exemplo, tem
mostrado o papel da matemática como componente da hierarquização de grupos sociais dentro
de várias sociedades e tem-se mostrado recentemente que a já mencionada técnica de alegoria
matemática também foi usada para estruturar peças teatrais (no caso, o ciclo de Édipo de
Sófocles).
Em vez de procurar analisar as relações matemática / X, no entanto, sugerimos que seria
mais interessante e mais proveitoso, do ponto de vista da história da matemática, investigar a
relação do conjunto matemática-contextualizada-por-uma-filosofia (ou, ao contrário, filosofiacontextualizada-por-uma-matemática) com as outras partes da cultura humana. Isto é, visto que a
matemática e a filosofia já são extremamente inter-relacionadas, podemos considerar, em cada
caso específico, a conjunção específica das duas como sendo uma unidade e, então, investigar
como a unidade interage com as outras partes da cultura. Ao fazer isto, teremos mais sucesso na
elaboração de uma história holística da matemática.
Algumas Perguntas Norteadoras
Nestas breves considerações, teci algumas reflexões sobre a relação profunda entre a
filosofia e a matemática, sobre como a história da matemática poderia articular essa relação e até
como a história da matemática poderia contribuir, de forma seminal, ao desenvolvimento de uma
história holística de grande alcance. Espero, como disse no primeiro parágrafo, que as referidas
considerações possam servir como um ponto de partida, no presente Seminário, verso um diálogo
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maior. Nesse sentido, relaciono também as seguintes perguntas formuladas pela Comissão
Científica do nosso evento:
1. Quais os modos de se fazer pesquisa em história e epistemologia da
matemática?
2. Como essas pesquisas podem contribuir para a formação acadêmica dos
nossos alunos?
3. Qual a importância de se desenvolver pesquisa conjunta entre
pesquisadores no país?
4. Como pensar a organização dos pesquisadores de modo a fortalecer as
pesquisas nesta área no país, nos próximos anos?
5. O que podemos fazer para que nossas pesquisas nesta área ganhem um
espaço internacional?
Naturalmente, essas perguntas também são pontos de partida. Dessa forma, talvez seja um
grande ganho se pudermos reformular, acrescentar e articular as perguntas de forma mais
perspícua para nortear nossas futuras discussões.
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