do texto completo

Propaganda
O PODER NACIONAL - SEUS TIPOS DE
ESTRUTURA -1955
INTRODUÇÃO
Hoje vamos estudar a mesma noção de Poder que
tratamos em outra conferência na qual abordamos o Poder
Nacional - Seus Móveis, Interesses e Aspirações; Realismo
e Idealismo Políticos, agora sob outro aspecto interno.
Diríamos melhor, sob o seu aspecto estrutural.
Podemos dizer que, até aqui, a noção de Poder foi
considerada tendo em vista, principalmente, a sua
orientação para o exterior, isto é, a sua aplicação nos
problemas da política externa; orientação para os fins do
Estado, tais como eles se realizam através de uma ação ou
de uma cooperação internacional.
Agora, vamos considerar, sobretudo, o Poder em seu
aspecto interno, tal como se forma dentro da comunidade
política, tal como se define segundo as várias formas
estruturais admissíveis.
É portanto, o Poder como força permanente de
comando na sociedade política o que interessa a esta
dissertação. Não importa realmente que este Poder se
dirija para a ação externa ou para a ação interna, já que não
é possível, estruturalmente, diferenciar o Poder, conforme
a sua orientação para os problemas exteriores ou para os
problemas interiores, que ele é chamado a resolver.
De um modo geral, sabemos que o Poder se exerce
sobre os indivíduos que, isoladamente, compõem os
grupos políticos e sobre os grupos que se acham inscritos
na órbita do Estado, e que o Estado se inclina a seus fins
gerais ou aos interesses particulares que ele mesmo
procura prover.
143
***
Para lidarmos com esta noção é indispensável certa
limitação do campo de estudo. Não podemos considerar
aqui o Poder em todas as suas manifestações como fato
social. Não podemos considerar o Poder sob todas as
manifestações sociais em que se apresenta. Vamos
considerar apenas o Poder como autoridade (primeira
limitação) e o Poder tal como ele se exerce na sociedade
política plenamente desenvolvida, que é o Estado moderno
(segunda limitação).
Essas duas limitações, a consideração do Poder
apenas como autoridade e o seu exame apenas na
sociedade política plenamente desenvolvida, que é o
Estado moderno, deixam fora do campo do nosso estudo
várias manifestações de Poder habitualmente analisados
pelos sociólogos. Fica excluído desde logo o estudo do
Poder como simples dominação.
O conceito de Poder Autoridade é uma espécie de
gênero mais amplo, no qual se incluem todas as formas
sociais de dominação. A dominação dentro de um grupo
social resulta de processos vários, como, por exemplo, da
imposição de interesses econômicos pelas situações de
monopólio.
O sociólogo que mais se aplicou ao estudo do Poder e
cujas ideias em torno deste problema parecem ter
contribuído mais para uma boa sistematização das nações,
Max Weber, inicia justamente a análise desse assunto pelo
tratamento das formas sociais mais amplas de dominação.
Uma delas é esta: a imposição de interesses
econômicos pelo sistema de monopólio. Desde que uma ou
várias entidades se encontrem numa situação de
monopólio, esta situação lhes permite impor os seus
144
interesses sobre a comunidade onde se encontrem. As
formas de dominação de mercado são, sob esse aspecto,
formas de dominação monopolística. Não nos interessa
aqui analisar em todas as suas formas o estabelecimento
dessas situações de monopólio.
Outra manifestação de Poder, como simples
dominação, é a imposição de processos culturais, que se
verifica no seio de um grupo social, quando um segmento
dele consegue impor ao restante um processo cultural
qualquer, que lhe seja próprio. Exemplo disto,
encontramos na imposição da língua. Um segmento da
sociedade impõe a sua língua aos segmentos restantes. São
os casos em que um dialeto se eleva sobre os outros modos
de falar daquele grupo e consegue assumir a forma de
língua nacional. Algumas vezes, isso se realiza por meio de
processos espontâneos, outras vezes, por processos
coercitivos.
Outro exemplo é o da imposição de uma religião,
quando um segmento da sociedade impõe a sua religião,
por quaisquer dos processos de proselitismo, aos
segmentos restantes. Outro exemplo, a imposição do gosto.
O gosto estético, normalmente, é imposto por um segmento
da sociedade aos demais. E todas essas formas, através das
quais os pontos de vista, os interesses e as perspectivas
culturais de uma parte da sociedade se impõem às outras,
cabem numa sociologia do Poder; mas são formas muito
amplas e ficam, por este motivo, fora do âmbito das nossas
considerações.
***
Vamos tratar somente do Poder que se exerce sob a
forma de autoridade e que se exerce sobre o grupo político
mais evoluído, que é o Estado moderno. Por aí, também,
145
ficam excluídas as formas de autoridade que aparecem nos
grupos pre-estatais, quer sejam a tribo, o clã, quer sejam
outros semelhantes, e as formas de Poder que aparecem
nos grupos intra-estatais, nos grupos que se inscrevem
dentro do Estado. E hoje também surgem problemas de
chefia, problemas de Poder Autoridade, que são resolvidos
por outros critérios específicos. O Poder Autoridade na
família, o Poder Autoridade nas sociedades civis e, até
mesmo, o Poder Autoridade nas sociedades irregulares,
seja qual for o seu objetivo, seja qual for a sua licitude.
Nosso campo é, portanto, mais limitadamente o de
estudo do Poder Estatal. O Poder de Comando, tal como ele
se apresenta na comunidade política mais ampla, que é o
Estado.
É óbvio que só aparece uma sociologia do Poder
Estatal, quando o Poder Estatal deixa de depender
exclusivamente do seu Poder de coação. O estabelecimento
da autoridade pela coação pura, a sua manutenção
exclusivamente por meio da coação existe socialmente,
mas ainda representa uma manifestação da autoridade a
respeito da qual todo o estudo sociológico tem um caráter
bastante rudimentar.
LEGITIMIDADE
O problema do Poder realmente apresenta toda a sua
complexidade quando consideramos as condições de sua
aceitação espontânea, isto é, os motivos, os fundamentos
pelos quais uma determinada forma de Poder, uma
determinada acumulação de Poder, em certos órgãos da
sociedade, passa a ser aceita por toda essa sociedade,
desenvolvendo, portanto, aquele fenômeno de aceitação
coletiva, de obediência, que torna possível a continuidade
do Poder.
146
Esse problema da aceitação, quando nós o
analisamos de um ponto de vista jurídico, denomina-se
melhor como problema da legitimidade. Porque
normalmente o Poder que se aceita é o Poder legítimo,
embora aquilo que constitui a legitimidade, aquilo que
torna um determinado Poder legítimo e outro não possa
variar, conforme o tipo desse Poder. Mas essa aceitação
voluntária do Poder pela sociedade em que ele se exerce se
traduz na consciência coletiva, no juízo sobre a sua
legitimidade.
A consciência coletiva, ao aceitar o Poder, reconhece
nele um valor ético, jurídico, que se traduz no conceito de
legitimidade. Portanto, um estudo dos tipos de Poder
Estatal, em última análise, é um estudo sobre os
fundamentos da sua aceitação ou sobre os seus tipos de
legitimidade.
Ninguém empreendeu melhor esse estudo do que
Max Weber. A sua concepção, sobre este ponto, passou a
muitos escritores e pode ser hoje tratada como uma teoria
geral, perfeitamente compatível com muitas orientações
sociológicas.
Max Weber, analisando as estruturas do Poder,
procurou determinar três tipos puros de Poder; ficando
entendido que esses tipos em estado de pureza não existem
talvez senão teoricamente, já que os exemplos históricos
apresentam sempre, num grau maior ou menor,
associações dos elementos característicos ou componentes
desses tipos puros. Em todo caso, nas formas elementares
do Poder, os tipos puros ou quase inteiramente puros
aparecem.
O primeiro tipo é o Poder tradicional; o segundo, o
Poder burocrático, e o terceiro, o Poder carismático.
147
Todas as formas de aceitação do Poder se reduzem,
em última análise, a uma dessas três modalidades que
poderíamos chamar de investidura.
***
O Poder tradicional encontra a sua exemplificação
mais pura no patriarcalismo primitivo. E entre os grandes
exemplos históricos de organização do Poder, aquele em
que o predomínio desse tipo se faz sentir melhor é o
feudalismo. O que caracteriza o Poder tradicional é que ele
deriva a sua legitimidade da sua própria estabilidade no
tempo. É a capacidade que tem todo organismo social de
conservar a sua forma ao longo do tempo, de fazer com que
essa forma sobreviva mesmo aos impulsos vitais que a
criaram, que serve de motivação à consciência coletiva,
para que esta aceite o Poder como legítimo.
A consciência coletiva dá a sua aceitação, dá a sua
obediência a um determinado Órgão do Poder, porque
encontra, em momentos anteriores, a subsistência da
mesma forma. Sua capacidade de comportamento residual
é suficiente para a adesão voluntária e para a elaboração
do sentimento da legitimidade.
Todo tradicionalismo, em geral, corresponde à
implantação de uma base econômica para o Poder.
É sempre a capacidade que tem o órgão depositário
do Poder de manter, durante um período prolongado, em
suas mãos, certos instrumentos de controle econômico da
sociedade, que lhe permite manter a sua forma e dar-lhe
este conteúdo ideológico que o tradicionalismo vai depois
fixar.
É o caso do patriarcalismo, regime em que o
patrimônio se concentra na disponibilidade do chefe. É o
caso do feudalismo, isto é, de um regime político todo ele
148
baseado numa forma de exploração econômica agrária e de
concentração do Poder, precisamente, nas mãos daqueles
que detém o bem de produção por excelência: o solo.
Note-se que, muito frequentemente, o Poder
tradicional vaza a sua essência em outros moldes, que
servem de veículo a esta estabilidade, a que o próprio
Poder tradicional tende. Assim, é muito comum que os
elementos sociais, em que o Poder se concentra, assumam
as formas estamentais de casta, de classe dominante, de
nobreza ou qualquer outra dos muitos exemplos que
podemos encontrar nos casos históricos. E é também
admissível que, algumas vezes, o Poder tradicional invoque
os privilégios raciais, já que os privilégios raciais são
extremamente favoráveis à afirmação de qualquer forma
estável de dominação.
***
O Poder burocrático é o Poder no qual encontramos
o exemplo mais perfeito nas democracias. Aqui, em vez de
um mecanismo de legitimidade, baseado na tradição,
procura-se um mecanismo racional destinado a assegurar
uma distribuição de funções dentro da sociedade e a fazer
com que essa distribuição de funções, em vez de repousar
sobre critérios variáveis, mutáveis, de aptidão pessoal, de
merecimento ou de oportunidade, assuma um caráter
estável, um caráter de fórmula, que funciona mudando de
conteúdo, sem que, entretanto, se deixe de acreditar no
sistema pelo qual este conteúdo é selecionado e
transformado. Por conseguinte, todo regime burocrático é
um regime de institucionalização do Poder.
Em vez de o Poder permanecer nas mãos de um
determinado segmento da sociedade, em virtude de uma
razão qualquer, que lhe dá uma preferência absoluta, existe
149
um quadro institucional rígido, dentro do qual mudam os
indivíduos, mudam os grupos, haurindo, entretanto, sua
legitimidade (sua aceitabilidade pela sociedade) do fato de
serem selecionados, escolhidos, revezados, através do
quadro institucional que se fixou anteriormente.
O nome burocrático, reservado por Weber a este tipo
de Poder, nada tem de depreciativo. A burocratização está
aí, no mesmo sentido do que poderíamos dizer: a
institucionalização. Quer dizer, apenas, a substituição de
um critério pessoal ou grupal, por um critério de fórmula,
por um critério de instituição. Dentro dessa instituição,
mudam indiferentemente as pessoas ou os grupos. O
quadro institucional, isto é, a burocracia permanece.
Tanto a forma tradicional como a forma burocrática
de governo se apresentam como formas estáveis, isto é,
como formas que pretendem durar. Sua capacidade de
valerem como estruturas de Poder depende, precisamente,
de sua aptidão para essa estabilidade. Se a burocracia se
desintegrar, ao embate com novas realidades sociais, é a
prova de que ela não estava formulada com o grau de
automatismo suficiente para receber novas motivações
conteudísticas.
Do mesmo modo, se um regime, baseado na tradição,
não resistir ao impacto de fatos novos, é porque ele não
conquistou, nessa dimensão da continuidade, os elementos
de resistência que lhe permitiriam atravessar novas
posições sociais. Um e outro são feitos para durar, são
tentativas de Poder estável.
A associação entre o burocratismo e o
tradicionalismo é constante. E certamente o exemplo mais
conspícuo é o da democracia inglesa. Intensamente
burocratizada, verdadeira democracia burocrática, com
todas as características desse sistema, mas associando
150
elementos tradicionalistas que lhe permitem criar um
equilíbrio de forças dentro do sistema.
***
O terceiro tipo de poder, o carismático, afasta-se por
completo desta característica.
O exemplo histórico mais próximo que podemos
encontrar é o da chefia religiosa em grupos primitivos. E
pode-se dizer que mesmo as ideias de Weber, na concepção
do carisma político, foram orientadas pelos estudos de um
romanista, sobre a autoridade religiosa na Igreja primitiva.
O que há de essencial no carisma é que aí a
autoridade de um indivíduo sobre o grupo resulta de um
vínculo subjetivo entre este indivíduo e o grupo, de um
traço de confiança que não pode ser resolvido com base
racional.
O governo carismático é necessariamente um
governo em que a autoridade se legitima por motivos de
confiança íntima, de adesão do grupo dirigido à figura do
seu dirigente. Nas sociedades religiosas primitivas, isso se
soma, normalmente, à convicção de que o chefe dispõe de
uma investidura sobrenatural. E a ideia de sobrenatural é
admitida como uma realidade técnica, para esse tipo de
grupo social.
Na sociedade política evoluída, a autoridade
carismática não se justifica com o critério da investidura
sobrenatural, mas se justifica também com um motivo
vocacional, com uma justificativa fundada nos próprios
valores da personalidade do chefe, cuja aceitação decorre,
exclusivamente, de um ato espontâneo de aceitação dos
seus dirigidos.
A forma por excelência do poder carismático é o
cesarismo. Todo cesarismo é carismático, isto é, o que
151
seleciona a figura de César e o que determina a aceitação
de sua autoridade por parte do grupo político que ele dirige
não é nenhuma investidura institucional, como sucederia
na burocracia. Não é nenhuma investidura tradicional,
como sucederia nas formas de autoridade tradicional. É
uma investidura pessoal, é uma relação entre o chefe como
indivíduo e o grupo que aceita a sua autoridade. E o ato
psicológico de aceitação dessa autoridade é um ato
sintético, em que a comunidade reúne elementos de
confiança, elementos emotivos, elementos de admiração de
toda sorte, gerando um produto psicológico, que resiste à
análise intelectual. A autoridade carismática apresenta-se
sempre como uma forma extremamente rígida e
extremamente eficaz de autoridade. Precisamente, porque
ela não se fundamenta em nenhum motivo susceptível de
análise e de revisão crítica.
Do mesmo modo, a retirada da aceitação, a retirada
da obediência ao César é um ato insusceptível de controle
ou de retenção. O resultado é que o carisma sempre se
apresenta aos regimes que nele se baseiam, como uma fase,
como um estádio evolutivo do Poder. E a primeira
preocupação desse tipo de autoridade é engendrar para si
próprio, ou um tradicionalismo, ou uma burocracia. Quer
dizer: o carisma encontra a sua estabilidade, não na sua
própria economia, mas na sua capacidade de criar, em
torno de si, um tipo de poder filiado a um daqueles outros
tipos considerados e, de que ele, carisma, passa a ser,
simplesmente, um instrumento, uma causa aproximativa.
Isso é o que faz com que, normalmente, não exista governo
carismático puro, numa sociedade politicamente evoluída.
O
governo
carismático
puro
existe,
momentaneamente, e logo se transforma em outro tipo em
que aparecem associações, ou da forma tradicional, ou da
forma burocrática. Um exemplo, sem dúvida, plenamente
152
aceitável, de um tipo composto, burocrático e carismático,
foi o fascismo.
O fascismo foi a maior tentativa de organização
burocrática, partindo do carisma. Tomando o carisma
como ponto de partida, para aceitação da autoridade dos
chefes e construindo, daí para baixo, uma burocracia. É
sabido que a estrutura política do estado fascista, na sua
forma tecnicamente mais perfeita, que foi o estado alemão
nazista, repousa sobre o que se chama o Führer Prinzip. O
Princípio do Führer não é outra coisa senão a derivação da
legitimidade, de cima para baixo. Em vez de, como sucede
normalmente nas burocracias democráticas, derivar-se a
legitimidade do Poder, de baixo para cima, isto é, partindo
de segmentos sociais de maior amplitude, para segmentos
sociais de menor amplitude, que se legitimam pela
aceitação dos anteriores. No Estado organizado segundo o
Führer Prinzip, cada autoridade deriva a sua investidura e,
portanto, a sua legitimidade, da autoridade que lhe fica
imediatamente superior. É esta autoridade que lhe confere
a legitimidade.
E, no topo do sistema, está o Führer, cuja investidura
é carismática, isto é, cuja investidura não repousa em
nenhum critério institucional ou tradicional, mas apenas
numa aceitação sintética da sua chefia, pelo conjunto dos
seus dirigentes.
Uma associação entre o tradicionalismo e o carisma
parece ter sido a fórmula para a qual tendeu o regime
napoleônico. Em vez de burocratizar intensamente em
torno de si, o critério de duração procurado pelo carisma
Napoleônico foi a geração rápida de uma estrutura que se
pudesse impor como tradicional. E para isso encontrou sua
motivação nas formas sociais anteriores, que ainda davam
vitalidade aos sistemas tradicionalistas, na consciência dos
grupos sociais da época.
153
***
Tal é a análise dos tipos de poder, como nós a
encontramos em Weber e que é de um grande préstimo
para interpretação dos fatos políticos de que estamos
tratando.
***
Em todos aqueles tipos, entretanto, o que
observamos é que a nossa preocupação é explicar a
aceitação da autoridade já acumulada nos órgãos
dirigentes da sociedade, pelo resto da sociedade. Estamos
supondo que o Poder já se acumula nos órgãos dirigentes
da sociedade, isto é, que o Poder já se acha investido nos
órgãos que vão exercer, sobre as sociedades, as suas
expressões autoritárias. E desejamos saber por que a
sociedade os aceita como tais. Ora, há outra pesquisa, sem
a qual não se completa o interesse da primeira. É que
verificamos que, em toda sociedade, o Poder que se vai
concentrar nos órgãos dirigentes, normalmente, lhes é
transferido por determinados segmentos da sociedade,
que se apresentam, assim, como fontes do Poder.
Com exceção do governo carismático puro, em que,
possivelmente, numa sociedade muito rudimentar, a
investidura do Chefe pode resultar de um movimento
quase humano e da consciência dos seus dirigidos,
normalmente, a atribuição de Poder a um órgão dirigente
provém de determinada parte da sociedade.
Podemos admitir que, em certos casos, essas partes
sejam maiorias ocasionais, mas não é comum.
Normalmente, durante um período histórico considerado,
são os mesmos segmentos da sociedade que comparecem
154
periodicamente, renovando ou assegurando a investidura
dos seus órgãos dirigentes. Os órgãos dirigentes são
criados, são alimentados, são mantidos, pela conexão em
que se colocam com determinados segmentos da
sociedade, que se apresentam como fontes do Poder.
SEGMENTAÇÃO DA SOCIEDADE
Não é possível estabelecermos uma teoria das fontes
do Poder, sem uma prévia análise da segmentação da
sociedade, o que leva, naturalmente, a um estudo
perfunctório das classes e dos estamentos.
Todos estes conceitos são susceptíveis de um
emprego muito livre. Essas expressões podem ser usadas
com uma grande amplitude, imprimindo, de cada vez, uma
nuance conceitual diferente à palavra, na qual, para dar
uma utilidade doutrinária a estes termos, é indispensável
que limitemos um pouco a nossa liberdade de sentir com
eles.
***
Assim, a palavra classe, no uso que hoje dela fazemos,
corresponde, geralmente, a uma segmentação econômica
da sociedade. O fator econômico por excelência, segundo o
qual classificamos as classes, é a sua forma de participação
na produção, e esta é uma das heranças definitivas dos
ensinamentos de Marx à sociologia moderna.
Classificam-se esses segmentos sociais (as classes)
de acordo com a modalidade de sua participação na
produção. Note-se que essa modalidade de participação
gera fatores qualitativos e fatores quantitativos, que
imediatamente vão influir em toda a conduta social dos
indivíduos que compõem a classe.
155
Dessa forma, se a classe participa da produção de um
determinado modo, os bens econômicos vêm ter às suas
mãos de um modo correspondente. Se a classe participa da
produção, como detentora dos bens de produção, o
produto do trabalho econômico dessa sociedade vem ter às
suas mãos, sob a forma de lucro. Se ela participa da
produção, como prestadora de trabalhos, vem ter às suas
mãos sob a forma de salário e ainda pode vir sob a forma
de renda, quando ela, sem participar diretamente da
produção, do comum da produção, dispõe, entretanto, do
controle econômico de determinados bens, utilizados por
outros.
Tudo isso determina a conduta social da classe, a
posição dos seus interesses na sociedade em que ela se
encontra. Podemos dizer que, entretanto, não é possível
atingir uma apreciação da conduta social das classes, sem
estabelecer certas subdivisões entre elas, decorrentes ou
do nível de sua participação nos bens econômicos
produzidos, ou da modalidade específica de cooperação,
que a classe tem na produção desses bens.
Uma divisão que, por exemplo, se impõe é a divisão
em classe alta, média e baixa ou popular. Essa divisão
corresponde, de maneira muito grosseira, à ideia de uma
classe proprietária de bens de produção, de uma classe
proprietária de bens de consumo ou de altos salários e de
uma classe remunerada através de salários comuns. A
conduta social dessas três classes difere necessariamente
de maneira profunda. A classe proprietária de bens de
produção apresenta, na sua conduta social, uma
característica tão constante, tão homogênea, que hoje se
prefere denominá-la, simplesmente, classe produtora, por
oposição à classe que vive de salários ou de rendas, que
hoje se costuma denominar classe consumidora. Não que
esta não produza; produz como a primeira, e a primeira
156
consome como a segunda. Mas é que, na conduta social da
primeira, a participação no processo produtivo representa
uma motivação mais imperiosa do que os seus interesses
de consumidora. Enquanto que, na segunda, os seus
interesses de consumidora prevalecem sobre os interesses
que podem ter naquele desenvolvimento e na manutenção
da produção coletiva. Portanto, a oposição (classes
produtoras e classes consumidoras) não significa que haja
uma classe que só produz e outra que só consome; significa
que há uma classe em que os problemas da produção
prevalecem e motivam a conduta social e há uma classe em
que os problemas do consumo prevalecem e motivam
também a conduta social e coletiva.
Ainda dentro de qualquer uma das classes sociais,
encontramos diferenciações de alto interesse sociológico,
decorrentes do tipo de sua ocupação profissional. Assim,
por exemplo, nas classes produtoras, constitui uma
diferenciação importante saber se a classe é agrária ou
industrial, isto é, se os bens de produção, controlados por
determinado grupo desta classe, são bens industriais,
destinados à produção manufatureira etc. ou o solo.
A conduta social de cada uma dessas subdivisões da
classe proprietária de bens de produção reflete as diversas
motivações dos seus problemas; e a própria diferenciação,
em classes urbanas e classes rurais, gera uma conduta
diversa em cada um desses agrupamentos.
***
A divisão da sociedade em estamentos é muitas vezes
de grande importância, mas vai nos interessar menos,
dentro dos limites restritos em que nos devemos conter.
Weber salienta que assim como a diferenciação em classes
decorre essencialmente da participação dos indivíduos na
157
produção, a diferenciação em estamentos decorre de
certos tipos de participação no consumo. Podemos dizer
que a divisão estamental das sociedades é essencialmente
uma divisão baseada no nível de vida, no tipo de vida dos
indivíduos.
Assim, podemos encontrar unidos no mesmo
estamento indivíduos da classe proprietária de bens de
produção e assalariados, bastando para isso, que pelo seu
tipo de vida, pela sua participação no consumo dos bens,
eles tenham a mesma forma de atividade.
Os tipos estamentais são, em geral, tipos que tendem
a representar, na sociedade, um grande fator de
interpenetração entre as classes. Um exemplo típico de
estamento, nós temos no que se chama a classe mundana,
isto é, uma classe constituída por indivíduos que
economicamente se classificam nas classes mais diversas,
mas que têm como traço comum a convivência estamental,
isto é, um determinado tipo de vida, um determinado tipo
de convivência intensa, em torno dos mesmos hábitos, em
torno de um mesmo padrão de valores.
É sabido que a classificação estamental corresponde
intimamente a essas ideias que nós denominamos, em
sentido impróprio, ideias de clã, quer dizer, preconceitos,
expressões verbais, hábitos mentais, características de um
grupo, características de uma roda e que fazem com que os
indivíduos que a ela pertencem, muitas vezes, se conduzam
completamente fora do que seria a sua mentalidade de
classe. O estamento, neste sentido, prepondera sobre a
mentalidade de classe e motiva um tipo de conduta social,
às vezes, totalmente discordante da posição econômica do
indivíduo nas sociedades.
***
158
Desde o momento em que concebemos as sociedades
como divididas em segmentos dessa natureza – insistimos
em dizer que esta análise de segmentos poderia ir muito
mais longe - nós compreendemos que a elaboração do
Poder Político, do Poder Autoridade, dentro do grupo
social, resulta de uma interação de todas essas classes e
estamentos, uns sobre os outros. Todas as classes dispõem
dos seus meios próprios de domínio. Meios de domínio
econômicos - classes que dispõem de controles econômicos
eficazes procuram, por meio deles, imprimir a
predominância dos seus interesses na sociedade. Meios
culturais - classes economicamente débeis, mas
culturalmente muito aparelhadas conseguem exercer,
sobre a sociedade, um controle muitas vezes superior ao
que classes economicamente mais robustas alcançam.
Pelo fato de já ter ocupado uma determinada soma de
Poder Político, o homem continua a dispor de uma força
residual, que lhe permite exercer uma ação de comando
sobre as demais classes e sobre a sociedade.
Esta não é, aliás, senão a definição do que se costuma
chamar política profissional. Político profissional é aquele
que, sem ter um fundamento econômico, nem fundamento
social para dispor de uma parcela de comando da
sociedade, mantém, entretanto, a sua participação nesse
comando, graças aos resíduos das posições políticas
ocupadas anteriormente, isto é, graças a uma conservação
estamental. Tendo pertencido à atividade política,
conserva-se no estamento e, pelas suas relações de grupo,
mantém uma participação ativa na formação do Poder.
Quando uma classe política dirigente vive exclusivamente
da sua posição residual estamental, podemos dizer que se
profissionalizou por completo, isto é, que ela deixou de
encontrar raízes na sociedade de onde sai e que conserva o
159
seu poder apenas pela incapacidade de as demais classes
organizarem um novo time político dirigente.
Mas a verdade é que toda estruturação de Poder nada
mais é do que a dinâmica dessas classes e estamentos.
Deve-se, ainda aí, a Marx e a Engels, no seu livro sobre as
origens da Família e do Estado, a concepção mais radical do
Estado, como um produto do conflito de interesses de
classes, dentro da sociedade. A concepção marxista do
Estado leva à observação desse fato, dessas modalidades
de inter-relação, a um esquematismo rígido, traduzindo a
própria essência do Estado, exclusivamente no conflito de
classes, em sua forma mais radical, que é o conflito entre a
classe proprietária dos bens de produção e a classe do
assalariado. Daí a impossibilidade, para o marxismo, de
conceber, numa forma de sociedade isenta de luta de
classes, uma sobrevivência do Estado.
A abolição do Estado, na última etapa do comunismo,
depois de vencido o período de transição de ditadura do
proletariado, não pode deixar de ser uma decorrência da
concepção marxista e leninista, de que o Estado nada mais
é do que a fórmula jurídico-política, através da qual a classe
proprietária dos bens de produção consegue motivar, de
um modo permanente, o seu tipo de opressão sobre a
classe assalariada.
Dentro de uma concepção que, pelo contrário, veja o
Estado como um resultado de entrechoque contínuo de
todas as classes e estamentos que se formam na sociedade,
é difícil conceber o desaparecimento do Estado, como uma
etapa final de qualquer processo evolutivo. O provável é
que, pelo contrário, o Estado represente sempre uma
fórmula de equilíbrio e de compensação entre os
deslocamentos de Poder que se vão operando entre as
classes, à medida que cada uma delas acumula um
determinado coeficiente de Poder e tende a preponderar
160
sobre as outras, nesse equilíbrio instável que
continuamente se processa. O Estado se apresenta, então,
com uma superestrutura jurídica destinada a conter esse
conflito, a conter essas reações recíprocas, a dar-lhes
disciplina, cedendo, naturalmente, em sua superestrutura,
em suas fórmulas constitutivas, à medida que
determinados interesses consigam avantajar-se aos outros
e impor-lhes os seus interesses vitais, as suas ideologias.
FONTES DO PODER
Essa ideia de que determinadas classes ou segmentos
da sociedade desempenham um papel preponderante na
construção do Poder, isto é, na investidura dos órgãos
dirigentes, nos permite fazer uma distinção entre fontes
reais e fontes formais do Poder, frequentemente esquecida
pelos que interpretam a estrutura do Estado de um ponto
de vista exclusivamente jurídico. Na análise jurídica do
Estado moderno, avulta o tratamento das fontes formais.
Desde que nós consideremos o Estado, não de um ponto de
vista exclusivamente jurídico, mas de um ponto de vista
sociológico, nós nos damos conta de que, muitas vezes,
poderíamos mesmo dizer que, quase sempre, essas fontes
formais, de onde o Poder deriva, não coincidem com as
suas fontes reais. Elas operam juridicamente, mas sob um
impulso, sob a motivação, sob o comando de outras partes
da sociedade, onde o Poder se acha como que armazenado.
Há classes, há segmentos da sociedade, que são
verdadeiras rochas armazenadoras do Poder. Ali, é que nós
encontramos as reservas de autoridade, que são
periodicamente delegadas a órgãos dirigentes, permitindo
que o Estado atinja o seu funcionamento e os seus fins.
Uma organização de Estado apresenta, talvez, o
máximo em seu rendimento jurídico social, quando há,
161
entre as fontes reais e as fontes formais, senão uma perfeita
identidade, pelo menos uma grande adequação.
O completo desencontro entre as fontes reais e as
fontes formais determina as chamadas crises
institucionais. As instituições não funcionam. Sente-se a
insinceridade do mecanismo do Estado. Todo o edifício do
Poder Público, em sua aparência jurídica, revela a falta de
conteúdo, pelo completo desencontro dos seus órgãos com
aquilo que na sociedade efetivamente gera o Poder. Essas
crises institucionais, às vezes, assumem grandes
proporções e se resolvem ou catastroficamente, por meio
de revoluções que liquidam as instituições, que dão origem
a novos tipos de Poder que, gradualmente, se vão
institucionalizando, ou então graças a grandes processos
políticos de transformação da superestrutura. Algumas
vezes esse processo de transformação é devido a uma parte
da sociedade dotada de qualidades de liderança para tomar
em suas mãos o Poder e operar as necessárias
modificações, ou, então, à ação efetiva do homem de
Estado; em qualquer dos casos, sem uma ruptura, pelo
menos completa, da legalidade.
***
O exemplo mais notável que podemos apontar,
historicamente, de uma crise institucional resolvida pela
ação do homem de Estado é a mudança de estrutura do
Estado romano sob a ação de Augusto. É sabido que, nos
últimos tempos da República, o Estado romano
apresentava um desses casos típicos de completo
desajustamento, entre as fontes formais do poder e as suas
fontes reais.
O Estado estendera a sua dominação a um grande
número de territórios. Os interesses econômicos do Estado
162
já não eram mais os interesses de uma cidade dominando
uma pequena área provincial, eram realmente os
interesses de uma grande constelação de comunidades
políticas, todas elas ligadas por um sistema comercial, por
um sistema de interdependência. E ao mesmo tempo em
que isso se passava, a força mantenedora daquela
constelação em equilíbrio não podia deixar de ser a rocha
armazenadora de um grande Poder que, entretanto, não
tinha nenhuma tradução institucional no quadro das fontes
formais do Poder.
Essa fonte real era o Exército, pois que de sua ação
dependia, naquele momento, a manutenção da constelação
imperial. Contudo, as instituições continuavam a ser as de
um Estado-Cidade. O resultado era a crise completa das
instituições, a subserviência do Senado aos generais, isto é,
o militarismo e a demagogia, a facilidade com que o povo
encontrava pelo princípio carismático, os seus chefes. O
aparecimento do princípio carismático corresponde às
instituições que funcionam no vazio; é uma crise específica
dos desajustamentos entre as fontes formais e as fontes
reais. E o militarismo, no caso, traduzia o despojamento de
autoridade dos órgãos formalmente legítimos, diante dos
órgãos realmente idôneos.
A capacidade de Augusto foi a de superar essa crise,
fundando, sobre novas bases, o poder civil. Augusto foi,
realmente, quem liquidou o militarismo. E liquidou-o
como? Dando uma posição ao Exército nos quadros
institucionais e permitindo que aquela fonte real do poder,
que agia independentemente dos quadros institucionais,
passasse a ser uma superestrutura, por meio da qual a sua
influência chegava, dentro de uma proporção adequada,
aos centros de decisão. E ele próprio, revestindo-se da
tribunicia potestas, assumiu, de fato, o direito de controlar
o Senado, constituindo-se numa investidura à demagogia.
163
Ao mesmo tempo em que, fundando a religião do
imperador, isto é, fazendo da personalidade do imperador
o objeto de um culto, encontrou, para a sua autoridade, um
denominador comum a todos os territórios congregados
no Império. Ao que, como é evidente, o pálido culto cívico
em que consistia a religião romana era de tudo
estritamente municipal e não poderia uni-los dentro de um
mesmo sistema de ideias comuns.
Isto se encontrou na divinização do imperador.
Augusto salvou, assim, sobre uma base institucional, o
Estado, no momento em que se proclamara a crise das
instituições e que o curto governo de Cesar não fora capaz
de superar, já que Cesar representava, realmente, o apogeu
da crise, sem os preliminares de suas soluções. Esse
exemplo histórico é útil, porque nos dá uma ideia de jogo
macroscópico da crise entre as fontes reais e as fontes do
Poder.
Note-se, entretanto, que, não considerando o
processo histórico dessa grandeza, nós podemos encontrar
muitos exemplos, na distinção entre as fontes reais e as
fontes formais, dentro da estrutura do Estado Moderno,
dentro dos tipos de funcionamento das instituições de que
somos testemunhas. Vale a pena, descendo a exemplos que
não oferecem tão amplo panorama demonstrativo,
observar o modo por que, dentro de um Estado, o jogo
entre as fontes reais e as fontes formais do poder opera-se,
algumas vezes, através de expedientes, que, moralmente,
não são aprovados, mas que a ética política acaba por
sancionar, pela sua perfeita correspondência aos objetivos
que os reais detentores do poder têm em mira.
***
164
Um exemplo que não pode deixar de nos interessar é
o da própria sociedade brasileira, no fim do século XIX e
começo do século XX.
A quem estuda a sociedade brasileira daquela época,
não pode deixar de surpreender, imediatamente, a clara
diferenciação entre as fontes reais e as fontes formais do
poder na época. A fonte real do poder, na sociedade
brasileira, do fim do século XIX e do começo do século XX,
era indiscutivelmente a classe agrária, isto é, a classe
proprietária dos bens de produção, que desempenhava
papel decisivo na estrutura econômica, por intermédio da
qual se mantinha a sociedade. Era a classe produtora dos
bens de exportação, cuja venda ao exterior possibilitava a
manutenção do nível de vida, tanto do Estado, quanto dos
particulares.
A classe agrária brasileira representava uma
pequena minoria, detentora efetiva do poder real.
Entretanto, a fonte formal do poder, pela construção da
democracia brasileira, sobre a base das doutrinas de
sufrágio, era o eleitorado, eram as massas populares.
Somente a técnica eleitoral da época permitia à classe
agrária conservar, através do jogo das instituições formais,
a manutenção de seu predomínio. Praticamente, era uma
eleição de censo alto. Não se dizia que apenas
determinados indivíduos eram dotados de poder de voto e
que somente eles contribuíam com seu pronunciamento,
para a construção do poder público, mas era o que se
passava na realidade, por meio de um sistema eleitoral, que
assegurava um extraordinário predomínio dos chefes
locais, cada um deles ligado aos interesses da classe agrária
de sua região.
A divisão territorial do eleitorado, correspondente
aos interesses da classe agrária, o sistema das chefias
locais, confiado aos interesses da classe agrária, e a própria
165
flexibilidade do sistema eleitoral, facilitando o que se
chamou no jargão político da época a eleição de bico de
pena, tudo isso, nada mais era do que uma técnica de
dominação da classe agrária, graças à qual ela mantinha o
seu predomínio no Poder. Note-se que a única interrupção
do controle da classe agrária sobre a vida brasileira ocorre
na Proclamação da República. Mas essa interrupção é
sempre destruída pelas voltas da classe agrária ao poder,
com os grandes Presidentes do café e a reforma Campos
Sales. É a reforma eleitoral de Campos Sales, isto é, seu
mecanismo eleitoral, que garantiu, durante uma sucessão
de quadriênios, a manutenção da oligarquia.
Isso quer dizer que a classe agrária nunca realizou
outra técnica senão a técnica eleitoral flexível, que permitia
obter um governo altamente representativo, mas
altamente representativo em relação às fontes reais do
poder.
***
Desejaria multiplicar um pouco os exemplos para
que pudéssemos ver, através do exame da democracia
inglesa, da ditadura soviética e das repúblicas americanas,
o modo pelo qual se processa essa estruturação das fontes
em reais e formais. Mas o tempo não o permite, de modo
que vou limitar-me a uma pequena consideração sobre um
aspecto, que me parece de grande interesse para nós. É o
que diz respeito às repúblicas americanas.
Uma característica da acumulação de poder, nas
repúblicas americanas, é que ali se apresentam duas rochas
armazenadoras do Poder, isto é, a classe proprietária dos
bens de produção e o Exército.
O papel do Exército no funcionamento do Estado, nas
repúblicas americanas, é completamente diverso do papel
166
que ele desempenha em outros tipos de sociedade que nós
observamos, em diferentes áreas europeias, e mesmo
asiáticas.
Ali o Exército se apresenta de duas formas. Podemos
considerar um primeiro grupo de países e um segundo. É
curioso observar que este papel é quase sempre do
Exército e não da classe militar no seu conjunto, embora
uma participação maior ou menor dos demais ramos da
classe militar se verifique sempre. A participação na
elaboração propriamente do Poder Público tem sido nas
repúblicas americanas, quase sempre, uma situação
específica do Exército.
No primeiro grupo, nós encontramos os países onde
o Exército desempenha um papel direto na constituição da
autoridade política. Ele intervém, frequentemente, como
órgão imediato de constituição do órgão dirigente. A
transmissão do Poder, entre a fonte real do poder e o órgão
dirigente que vai exercer sua autoridade sobre o país, se
faz, digamos, num só tempo. Essas reiteradas intervenções
assumem como sabemos, quase sempre, um caráter
revolucionário, ou de revolução, pelo emprego da violência
efetiva, da vis-effectiva; ou pelo emprego da vis-compulsiva,
isto é, pelos pronunciamentos.
Essas duas formas de exercício do Poder geram a
constituição do órgão dirigente e suas renovações
frequentes.
É curioso observar que isso só sucede no país onde o
Exército não logrou um alto grau de burocratização.
Como toda instituição social, o Exército passa, dentro
de seu destino de grupo, pelos mesmos fenômenos de
constituição do poder Carismático, Burocrático ou
Tradicional. Todos nós conhecemos os Exércitos, em que o
poder Tradicional se traduz no predomínio de uma
167
determinada casta militar, que continuamente é a
detentora da chefia, dentro daquele grupo.
E conhecemos os Exércitos Carismáticos de que são
exemplos esses exércitos que exercem uma função mais
imediata na constituição do Poder.
São os exércitos em que ainda se verifica, com
frequência, a chefia de fortuna. Um chefe de fortuna
consegue pelo seu poder Carismático empolgar o Exército
e usá-lo ao sabor das motivações políticas. Isso é
característico de todas as repúblicas americanas, onde os
exércitos ainda não entraram em quadros institucionais. À
medida que o Exército entra em quadros institucionais
(para usarmos a expressão de acordo), à medida que ele se
burocratiza, perde aquele papel de constituição direta de
autoridade e passa a exercer um papel político potencial.
Não desaparece a sua influência na vida política dessas
repúblicas, mas o seu papel se torna estritamente potencial
e quase que poderíamos dizer que se torna fiscal do
sistema, no sentido de que suas intervenções só se fazem
sentir nos momentos de ruptura das instituições, nos
momentos de crise institucional.
A crise institucional conduz ao pronunciamento do
Exército, como numa estrutura que cede em suas partes
superiores Uma estrutura mais rígida, que se mantém,
intervém pelo dinamismo natural de sua constituição, para
restabelecer o equilíbrio em crises momentâneas. Essa
evolução política é uma evolução política muito
característica dos países americanos. E é, sem dúvida
alguma, uma evolução muito característica do nosso país.
Talvez não se possa compreender bem esse papel político
do Exército, pelo menos no que diz respeito ao nosso caso,
sem explorarmos um pouco o assunto. E desejamos chamar
a atenção dos senhores, embora infelizmente não possa
fazê-lo com o desenvolvimento que a matéria requer, para
168
o seguinte ponto: o Exército Brasileiro, a classe militar no
seu conjunto, mas principalmente o Exército, tem o seu
comportamento, na sociedade brasileira, em grande parte
influenciado pela profunda coincidência estrutural entre o
Exército e a classe média.
Faz parte da formação brasileira, faz parte das
próprias origens da instituição militar entre nós, um
curioso divórcio entre a classe agrária, que rege a vida
política do país, como sua principal fonte real do poder, e a
formação do Exército nos últimos decênios da monarquia,
dentro de quadros institucionais permanentes.
Os decênios finais da monarquia, os anos 70 e os 80
do século XIX, assistiram, entre nós, à floração de uma
classe média, que até então não existia no país. Não surgiu
como classe média robusta, tendo a característica por
excelência da classe média, que é a propriedade de bens de
consumo, porque a classe média em geral não é
proprietária de bens de produção, mas é proprietária de
bens de consumo, proprietária de casa própria,
proprietária de bens relacionados diretamente com sua
vida.
Surgiu, entretanto, como uma classe urbana,
empreendedora, orientada por determinados interesses
industriosos; deve-se a ela, a criação das primeiras
iniciativas industriais do país e as primeiras atividades que
não se enquadravam rigidamente no esquema da
sociedade agrária e exportadora de bens de produtos
primários, nos anos que antecederam de perto a
Proclamação da República. Essa classe média, alimentada
inclusive por correntes estrangeiras e também
desenvolvida sob a influência de outros fatores que,
naquela época, se fizeram sentir no país, não poderia ter,
sobre a vida brasileira, a menor influência, nem
desempenhar algum papel construtivo no Estado
169
brasileiro, se não tivesse encontrado uma expressão
institucional imediata, na formação do Exército Nacional.
O Exército e a monarquia não se entenderam, porque
o Exército e a classe agrária também não se entenderam.
A classe agrária não contribuiu para a formação dos
quadros do Exército Brasileiro, como sucedeu em outros
países onde se desenvolveram tipos de classes militares
estritamente aristocráticas. Pelo contrário, entre nós, foi a
classe média que deu uma grande contribuição humana
para a formação dos quadros militares. E permitiu, assim,
que se constituísse sem impedimento social, independente
por completo, em sua formação cultural e em seus
interesses econômicos, do quadro institucional do Estado
que desaparecia. O Exército não se solidarizou com a
monarquia, como o Exército não se solidarizou com a
Igreja, como o Exército não se solidarizou com nenhuma
daquelas atividades ou daqueles moldes institucionais, que
eram característicos do Estado monárquico. O Exército
obteve, nos primeiros anos 70, a sua formação educacional
própria; criou os seus centros próprios de educação,
separando-se dos centros educacionais onde se formava a
juventude da classe agrária, que eram as Faculdades de
Direito.
O Exército encontrou as suas motivações ideológicas
nas ideias que eram revolucionárias para a época. E, por
conseguinte, pôde modelar o movimento republicano,
rigorosamente, como um movimento de libertação da
classe média e de um novo espírito progressista, que,
naquela época, começava a se delinear no país.
Isso pôde ser sentido logo no início da administração
republicana, e a administração republicana, violentamente
inflacionária, foi toda ela uma administração de classe
média. Toda ela uma administração de abertura de novas
possibilidades e de expansionismo artificial para a
170
sociedade, inclusive, nos recursos extremos de que lançou
mão, desviando os financiamentos tradicionais da classe
agrária. Como se recordam, a monarquia desapareceu
numa era de grande penúria de numerário, para
encaminhar os novos recursos engendrados pelos novos
planos de emissão para as iniciativas novas, para os
empreendimentos desenquadrados daquele primitivo
quadro social que desaparecia.
Esta coincidência, entre a formação do Exército e a
ascensão da classe média no país, fez com que, realmente,
o papel permanente do Exército na evolução do regime
democrático brasileiro tivesse este caráter que lhe é
constante, de organismo tendente à destruição de
privilégios, e que é uma característica profundamente
esporádica, dentro do funcionamento das classes militares
em geral, pois as classes militares em geral pertencem ao
que há de mais conservador na estrutura de uma
sociedade. E, portanto, entre nós, as classes militares
pertencem não ao que há de mais conservador, mas, pelo
contrário, ao que há de corretivo no mecanismo
conservador da sociedade, pela sua intensificação de
mentalidade como uso imperativo da classe média.
A ESTRUTURA DO ESTADO DITATORIAL E A
ESTRUTURA DO ESTADO DEMOCRÁTICO
A diferença entre essas duas estruturas tem sido
procurada sob muitos ângulos e por muitos autores. Era
minha intenção expor a doutrina do Estado ditatorial,
como Estado de transição, tal como a apresentou Lenine,
no seu livro O Estado e a revolução. E mostrar as
caracterizações do Estado democrático, como nós a vemos,
por exemplo, na obra de Schumpeter sobre o capitalismo e
a democracia.
171
Mas, vamos diretamente à nota diferencial que
propomos. Em primeiro lugar, todos os esforços feitos para
caracterização do Estado Democrático vêm sempre ao
ponto de partida da Constituição do Poder Democrático. A
ideia de que o poder democrático se constitui por um
sistema de livre competição, assegurado através de um
mecanismo, que é o mecanismo eleitoral do Estado, parece
estar na base da maioria das opiniões, no que diz respeito
à oposição entre o Estado Ditatorial e o Estado
Democrático.
Desse modo, o Estado Ditatorial se apresenta, quase
sempre, sob uma forma de autoridade usurpada. O Estado
Democrático apresenta-se como uma forma de autoridade
constituída através de uma concepção entre os
governados.
Essa colocação, que serviu durante muito tempo de
critério discriminativo, pode hoje ser considerada
imprestável. É imprestável, em primeiro lugar, porque não
é exato que o Estado Ditatorial tenha suas raízes na
usurpação. O Poder legitima-se sempre através de um
sistema de derivação. Devido à solução de continuidade, a
autoridade seguinte é que pode ser considerada uma
autoridade de fato. Sua legitimação faz-se a posteriori. Ora,
as mais típicas ditaduras do nosso tempo foram
estabelecidas por processos legítimos. A ditadura hitlerista
resultou da competição eleitoral. Daí em diante, a máquina
do Estado, já estando a serviço do poder dirigente, não
precisou, para transformar o Estado, de operar soluções de
continuidade na cadeia das derivações. De modo que não é
na origem do poder que nós devemos encontrar o critério
diferenciador, mas precisamente no modo como ele
funciona. Da mesma maneira que um Estado pode se
estabelecer por um processo de usurpação e construir uma
estrutura democrática, também pode estabelecer-se por
172
um processo legítimo e competitivo e fixar-se numa
estrutura ditatorial.
A melhor conceituação neste ponto, nós só podemos
obter, partindo da ideia de que o Estado, para atingir os
seus fins, promove duas ordens de iniciativas: iniciativa do
próprio Estado, que nós podemos denominar,
simplesmente, ação governamental; e iniciativa dos
indivíduos e dos grupos, que se movem dentro do Estado,
que podemos chamar ação individual.
A ação individual desenvolve-se nos quadros
sistemáticos do Estado, contra a ação do Estado e se
desenvolve, dentro também desses quadros, com o que ele
autolimita o seu Poder.
Surge, porém, necessariamente, na economia de
qualquer Estado, o conflito possível entre a ação
governamental e a ação individual. Se os fins da
coletividade política se perseguem, através de ações de
indivíduos e de ações do Poder Público, é frequente, é
natural, é inevitável que, algumas vezes, entre a ação dos
indivíduos e a ação governamental, exista um antagonismo.
Qual a técnica de superação desse antagonismo, pois que
esse antagonismo necessariamente tem de ser superado? É
aí que nós vamos encontrar a diferença conceitual
profunda, entre a estrutura democrática e a ditatorial.
No regime democrático, toda a construção do edifício
do Estado obedece ao propósito de encontrar uma técnica
para proteger eventualmente o indivíduo contra o seu
governo.
A possibilidade de que no conflito, entre a ação
individual e a ação governamental, o interesse a prevalecer
seja do indivíduo, deixa antever a necessidade de protegêla contra o eventual predomínio da ação governamental
sobre ele. As técnicas com as quais se procura atingir esse
resultado variam. Podem ser mais eficazes ou menos
173
eficazes; quando forem muito pouco eficazes, diremos que
o contingente democrático naquele regime é baixo; quando
forem muito eficazes, diremos que é mais elevado. Mas, em
primeiro lugar, alinhemos a própria doutrina da divisão de
Poderes, que, pelo que vemos no programa, os senhores já
tiveram ocasião de examinar neste ciclo.
A doutrina da divisão de Poderes nada mais é do que
uma técnica para proteger a ação individual, perante a ação
governamental, em determinados casos. Para isso, divide a
ação governamental, especializando-a para que ela própria
tenha, na sua economia interna, um sistema de controle. As
ações, os habeas-corpus, os mandados de segurança, os
remédios judiciários, são técnicas democráticas para
proteger a esfera de ação individual frente à ação
governamental.
A criação de um Poder Judiciário estável, colocado
em condições de invulnerabilidade no quadro das
instituições, é outra técnica democrática para proteger o
indivíduo contra a ação governamental.
E, finalmente, a obra-prima do sistema é a própria
existência de uma declaração de direitos, isto é, o próprio
fato de o Estado incorporar a afirmação de uma área dos
direitos individuais intransponíveis.
Com todos esses instrumentos jurídicos, o que se
procura é dar à ação individual uma eventual proteção
contra a ação do governo, devido à possibilidade de que a
ação do governo não promova efetivamente o bem
individual e social.
A técnica totalitária repousa, neste ponto específico,
sobre o princípio oposto. Sobre o princípio de que nada
protege melhor o interesse do indivíduo do que a ação
governamental. A ação governamental, pelo modo por que
ela é estruturada, pelos motivos que a inspiram, pelas
raízes do Poder Público, constitui, dentro de uma
174
concepção totalitária do Estado, a melhor e a mais eficiente
proteção que se possa dar aos interesses individuais.
Pretender que o interesse individual possa ter uma defesa
própria contra a ação governamental é uma contradição no
objeto, quer dizer, é conceituar alguma coisa que não se
pode conceber, a não ser pela prévia alteração de todas as
premissas desse raciocínio.
Não há, por conseguinte, no chamado totalitarismo,
um abuso de autoridade no sentido vulgar da palavra, no
sentido valorativo dela. Não. Existe uma conceituação
sincera do governo: a de que a estrutura de governo é um
modo eficaz de proteger os interesses individuais e sociais
e que, por conseguinte, toda atribuição de um ato de poder
a um indivíduo, para lutar contra um Estado, longe de vir
em favor desse indivíduo, vem contra os seus interesses
últimos. Este é o ponto conceitual, em que, a meu ver,
podemos fazer, com uma nitidez maior e com maior
honestidade, a oposição entre as duas estruturas de
governo.
Houvesse mais tempo e iríamos tentar, através de
exemplos mais numerosos, envolver as consequências
dessa oposição, mostrando em que ponto ela prova a sua
validade.
175
Download