O PODER NACIONAL - SEUS TIPOS DE ESTRUTURA -1955 INTRODUÇÃO Hoje vamos estudar a mesma noção de Poder que tratamos em outra conferência na qual abordamos o Poder Nacional - Seus Móveis, Interesses e Aspirações; Realismo e Idealismo Políticos, agora sob outro aspecto interno. Diríamos melhor, sob o seu aspecto estrutural. Podemos dizer que, até aqui, a noção de Poder foi considerada tendo em vista, principalmente, a sua orientação para o exterior, isto é, a sua aplicação nos problemas da política externa; orientação para os fins do Estado, tais como eles se realizam através de uma ação ou de uma cooperação internacional. Agora, vamos considerar, sobretudo, o Poder em seu aspecto interno, tal como se forma dentro da comunidade política, tal como se define segundo as várias formas estruturais admissíveis. É portanto, o Poder como força permanente de comando na sociedade política o que interessa a esta dissertação. Não importa realmente que este Poder se dirija para a ação externa ou para a ação interna, já que não é possível, estruturalmente, diferenciar o Poder, conforme a sua orientação para os problemas exteriores ou para os problemas interiores, que ele é chamado a resolver. De um modo geral, sabemos que o Poder se exerce sobre os indivíduos que, isoladamente, compõem os grupos políticos e sobre os grupos que se acham inscritos na órbita do Estado, e que o Estado se inclina a seus fins gerais ou aos interesses particulares que ele mesmo procura prover. 143 *** Para lidarmos com esta noção é indispensável certa limitação do campo de estudo. Não podemos considerar aqui o Poder em todas as suas manifestações como fato social. Não podemos considerar o Poder sob todas as manifestações sociais em que se apresenta. Vamos considerar apenas o Poder como autoridade (primeira limitação) e o Poder tal como ele se exerce na sociedade política plenamente desenvolvida, que é o Estado moderno (segunda limitação). Essas duas limitações, a consideração do Poder apenas como autoridade e o seu exame apenas na sociedade política plenamente desenvolvida, que é o Estado moderno, deixam fora do campo do nosso estudo várias manifestações de Poder habitualmente analisados pelos sociólogos. Fica excluído desde logo o estudo do Poder como simples dominação. O conceito de Poder Autoridade é uma espécie de gênero mais amplo, no qual se incluem todas as formas sociais de dominação. A dominação dentro de um grupo social resulta de processos vários, como, por exemplo, da imposição de interesses econômicos pelas situações de monopólio. O sociólogo que mais se aplicou ao estudo do Poder e cujas ideias em torno deste problema parecem ter contribuído mais para uma boa sistematização das nações, Max Weber, inicia justamente a análise desse assunto pelo tratamento das formas sociais mais amplas de dominação. Uma delas é esta: a imposição de interesses econômicos pelo sistema de monopólio. Desde que uma ou várias entidades se encontrem numa situação de monopólio, esta situação lhes permite impor os seus 144 interesses sobre a comunidade onde se encontrem. As formas de dominação de mercado são, sob esse aspecto, formas de dominação monopolística. Não nos interessa aqui analisar em todas as suas formas o estabelecimento dessas situações de monopólio. Outra manifestação de Poder, como simples dominação, é a imposição de processos culturais, que se verifica no seio de um grupo social, quando um segmento dele consegue impor ao restante um processo cultural qualquer, que lhe seja próprio. Exemplo disto, encontramos na imposição da língua. Um segmento da sociedade impõe a sua língua aos segmentos restantes. São os casos em que um dialeto se eleva sobre os outros modos de falar daquele grupo e consegue assumir a forma de língua nacional. Algumas vezes, isso se realiza por meio de processos espontâneos, outras vezes, por processos coercitivos. Outro exemplo é o da imposição de uma religião, quando um segmento da sociedade impõe a sua religião, por quaisquer dos processos de proselitismo, aos segmentos restantes. Outro exemplo, a imposição do gosto. O gosto estético, normalmente, é imposto por um segmento da sociedade aos demais. E todas essas formas, através das quais os pontos de vista, os interesses e as perspectivas culturais de uma parte da sociedade se impõem às outras, cabem numa sociologia do Poder; mas são formas muito amplas e ficam, por este motivo, fora do âmbito das nossas considerações. *** Vamos tratar somente do Poder que se exerce sob a forma de autoridade e que se exerce sobre o grupo político mais evoluído, que é o Estado moderno. Por aí, também, 145 ficam excluídas as formas de autoridade que aparecem nos grupos pre-estatais, quer sejam a tribo, o clã, quer sejam outros semelhantes, e as formas de Poder que aparecem nos grupos intra-estatais, nos grupos que se inscrevem dentro do Estado. E hoje também surgem problemas de chefia, problemas de Poder Autoridade, que são resolvidos por outros critérios específicos. O Poder Autoridade na família, o Poder Autoridade nas sociedades civis e, até mesmo, o Poder Autoridade nas sociedades irregulares, seja qual for o seu objetivo, seja qual for a sua licitude. Nosso campo é, portanto, mais limitadamente o de estudo do Poder Estatal. O Poder de Comando, tal como ele se apresenta na comunidade política mais ampla, que é o Estado. É óbvio que só aparece uma sociologia do Poder Estatal, quando o Poder Estatal deixa de depender exclusivamente do seu Poder de coação. O estabelecimento da autoridade pela coação pura, a sua manutenção exclusivamente por meio da coação existe socialmente, mas ainda representa uma manifestação da autoridade a respeito da qual todo o estudo sociológico tem um caráter bastante rudimentar. LEGITIMIDADE O problema do Poder realmente apresenta toda a sua complexidade quando consideramos as condições de sua aceitação espontânea, isto é, os motivos, os fundamentos pelos quais uma determinada forma de Poder, uma determinada acumulação de Poder, em certos órgãos da sociedade, passa a ser aceita por toda essa sociedade, desenvolvendo, portanto, aquele fenômeno de aceitação coletiva, de obediência, que torna possível a continuidade do Poder. 146 Esse problema da aceitação, quando nós o analisamos de um ponto de vista jurídico, denomina-se melhor como problema da legitimidade. Porque normalmente o Poder que se aceita é o Poder legítimo, embora aquilo que constitui a legitimidade, aquilo que torna um determinado Poder legítimo e outro não possa variar, conforme o tipo desse Poder. Mas essa aceitação voluntária do Poder pela sociedade em que ele se exerce se traduz na consciência coletiva, no juízo sobre a sua legitimidade. A consciência coletiva, ao aceitar o Poder, reconhece nele um valor ético, jurídico, que se traduz no conceito de legitimidade. Portanto, um estudo dos tipos de Poder Estatal, em última análise, é um estudo sobre os fundamentos da sua aceitação ou sobre os seus tipos de legitimidade. Ninguém empreendeu melhor esse estudo do que Max Weber. A sua concepção, sobre este ponto, passou a muitos escritores e pode ser hoje tratada como uma teoria geral, perfeitamente compatível com muitas orientações sociológicas. Max Weber, analisando as estruturas do Poder, procurou determinar três tipos puros de Poder; ficando entendido que esses tipos em estado de pureza não existem talvez senão teoricamente, já que os exemplos históricos apresentam sempre, num grau maior ou menor, associações dos elementos característicos ou componentes desses tipos puros. Em todo caso, nas formas elementares do Poder, os tipos puros ou quase inteiramente puros aparecem. O primeiro tipo é o Poder tradicional; o segundo, o Poder burocrático, e o terceiro, o Poder carismático. 147 Todas as formas de aceitação do Poder se reduzem, em última análise, a uma dessas três modalidades que poderíamos chamar de investidura. *** O Poder tradicional encontra a sua exemplificação mais pura no patriarcalismo primitivo. E entre os grandes exemplos históricos de organização do Poder, aquele em que o predomínio desse tipo se faz sentir melhor é o feudalismo. O que caracteriza o Poder tradicional é que ele deriva a sua legitimidade da sua própria estabilidade no tempo. É a capacidade que tem todo organismo social de conservar a sua forma ao longo do tempo, de fazer com que essa forma sobreviva mesmo aos impulsos vitais que a criaram, que serve de motivação à consciência coletiva, para que esta aceite o Poder como legítimo. A consciência coletiva dá a sua aceitação, dá a sua obediência a um determinado Órgão do Poder, porque encontra, em momentos anteriores, a subsistência da mesma forma. Sua capacidade de comportamento residual é suficiente para a adesão voluntária e para a elaboração do sentimento da legitimidade. Todo tradicionalismo, em geral, corresponde à implantação de uma base econômica para o Poder. É sempre a capacidade que tem o órgão depositário do Poder de manter, durante um período prolongado, em suas mãos, certos instrumentos de controle econômico da sociedade, que lhe permite manter a sua forma e dar-lhe este conteúdo ideológico que o tradicionalismo vai depois fixar. É o caso do patriarcalismo, regime em que o patrimônio se concentra na disponibilidade do chefe. É o caso do feudalismo, isto é, de um regime político todo ele 148 baseado numa forma de exploração econômica agrária e de concentração do Poder, precisamente, nas mãos daqueles que detém o bem de produção por excelência: o solo. Note-se que, muito frequentemente, o Poder tradicional vaza a sua essência em outros moldes, que servem de veículo a esta estabilidade, a que o próprio Poder tradicional tende. Assim, é muito comum que os elementos sociais, em que o Poder se concentra, assumam as formas estamentais de casta, de classe dominante, de nobreza ou qualquer outra dos muitos exemplos que podemos encontrar nos casos históricos. E é também admissível que, algumas vezes, o Poder tradicional invoque os privilégios raciais, já que os privilégios raciais são extremamente favoráveis à afirmação de qualquer forma estável de dominação. *** O Poder burocrático é o Poder no qual encontramos o exemplo mais perfeito nas democracias. Aqui, em vez de um mecanismo de legitimidade, baseado na tradição, procura-se um mecanismo racional destinado a assegurar uma distribuição de funções dentro da sociedade e a fazer com que essa distribuição de funções, em vez de repousar sobre critérios variáveis, mutáveis, de aptidão pessoal, de merecimento ou de oportunidade, assuma um caráter estável, um caráter de fórmula, que funciona mudando de conteúdo, sem que, entretanto, se deixe de acreditar no sistema pelo qual este conteúdo é selecionado e transformado. Por conseguinte, todo regime burocrático é um regime de institucionalização do Poder. Em vez de o Poder permanecer nas mãos de um determinado segmento da sociedade, em virtude de uma razão qualquer, que lhe dá uma preferência absoluta, existe 149 um quadro institucional rígido, dentro do qual mudam os indivíduos, mudam os grupos, haurindo, entretanto, sua legitimidade (sua aceitabilidade pela sociedade) do fato de serem selecionados, escolhidos, revezados, através do quadro institucional que se fixou anteriormente. O nome burocrático, reservado por Weber a este tipo de Poder, nada tem de depreciativo. A burocratização está aí, no mesmo sentido do que poderíamos dizer: a institucionalização. Quer dizer, apenas, a substituição de um critério pessoal ou grupal, por um critério de fórmula, por um critério de instituição. Dentro dessa instituição, mudam indiferentemente as pessoas ou os grupos. O quadro institucional, isto é, a burocracia permanece. Tanto a forma tradicional como a forma burocrática de governo se apresentam como formas estáveis, isto é, como formas que pretendem durar. Sua capacidade de valerem como estruturas de Poder depende, precisamente, de sua aptidão para essa estabilidade. Se a burocracia se desintegrar, ao embate com novas realidades sociais, é a prova de que ela não estava formulada com o grau de automatismo suficiente para receber novas motivações conteudísticas. Do mesmo modo, se um regime, baseado na tradição, não resistir ao impacto de fatos novos, é porque ele não conquistou, nessa dimensão da continuidade, os elementos de resistência que lhe permitiriam atravessar novas posições sociais. Um e outro são feitos para durar, são tentativas de Poder estável. A associação entre o burocratismo e o tradicionalismo é constante. E certamente o exemplo mais conspícuo é o da democracia inglesa. Intensamente burocratizada, verdadeira democracia burocrática, com todas as características desse sistema, mas associando 150 elementos tradicionalistas que lhe permitem criar um equilíbrio de forças dentro do sistema. *** O terceiro tipo de poder, o carismático, afasta-se por completo desta característica. O exemplo histórico mais próximo que podemos encontrar é o da chefia religiosa em grupos primitivos. E pode-se dizer que mesmo as ideias de Weber, na concepção do carisma político, foram orientadas pelos estudos de um romanista, sobre a autoridade religiosa na Igreja primitiva. O que há de essencial no carisma é que aí a autoridade de um indivíduo sobre o grupo resulta de um vínculo subjetivo entre este indivíduo e o grupo, de um traço de confiança que não pode ser resolvido com base racional. O governo carismático é necessariamente um governo em que a autoridade se legitima por motivos de confiança íntima, de adesão do grupo dirigido à figura do seu dirigente. Nas sociedades religiosas primitivas, isso se soma, normalmente, à convicção de que o chefe dispõe de uma investidura sobrenatural. E a ideia de sobrenatural é admitida como uma realidade técnica, para esse tipo de grupo social. Na sociedade política evoluída, a autoridade carismática não se justifica com o critério da investidura sobrenatural, mas se justifica também com um motivo vocacional, com uma justificativa fundada nos próprios valores da personalidade do chefe, cuja aceitação decorre, exclusivamente, de um ato espontâneo de aceitação dos seus dirigidos. A forma por excelência do poder carismático é o cesarismo. Todo cesarismo é carismático, isto é, o que 151 seleciona a figura de César e o que determina a aceitação de sua autoridade por parte do grupo político que ele dirige não é nenhuma investidura institucional, como sucederia na burocracia. Não é nenhuma investidura tradicional, como sucederia nas formas de autoridade tradicional. É uma investidura pessoal, é uma relação entre o chefe como indivíduo e o grupo que aceita a sua autoridade. E o ato psicológico de aceitação dessa autoridade é um ato sintético, em que a comunidade reúne elementos de confiança, elementos emotivos, elementos de admiração de toda sorte, gerando um produto psicológico, que resiste à análise intelectual. A autoridade carismática apresenta-se sempre como uma forma extremamente rígida e extremamente eficaz de autoridade. Precisamente, porque ela não se fundamenta em nenhum motivo susceptível de análise e de revisão crítica. Do mesmo modo, a retirada da aceitação, a retirada da obediência ao César é um ato insusceptível de controle ou de retenção. O resultado é que o carisma sempre se apresenta aos regimes que nele se baseiam, como uma fase, como um estádio evolutivo do Poder. E a primeira preocupação desse tipo de autoridade é engendrar para si próprio, ou um tradicionalismo, ou uma burocracia. Quer dizer: o carisma encontra a sua estabilidade, não na sua própria economia, mas na sua capacidade de criar, em torno de si, um tipo de poder filiado a um daqueles outros tipos considerados e, de que ele, carisma, passa a ser, simplesmente, um instrumento, uma causa aproximativa. Isso é o que faz com que, normalmente, não exista governo carismático puro, numa sociedade politicamente evoluída. O governo carismático puro existe, momentaneamente, e logo se transforma em outro tipo em que aparecem associações, ou da forma tradicional, ou da forma burocrática. Um exemplo, sem dúvida, plenamente 152 aceitável, de um tipo composto, burocrático e carismático, foi o fascismo. O fascismo foi a maior tentativa de organização burocrática, partindo do carisma. Tomando o carisma como ponto de partida, para aceitação da autoridade dos chefes e construindo, daí para baixo, uma burocracia. É sabido que a estrutura política do estado fascista, na sua forma tecnicamente mais perfeita, que foi o estado alemão nazista, repousa sobre o que se chama o Führer Prinzip. O Princípio do Führer não é outra coisa senão a derivação da legitimidade, de cima para baixo. Em vez de, como sucede normalmente nas burocracias democráticas, derivar-se a legitimidade do Poder, de baixo para cima, isto é, partindo de segmentos sociais de maior amplitude, para segmentos sociais de menor amplitude, que se legitimam pela aceitação dos anteriores. No Estado organizado segundo o Führer Prinzip, cada autoridade deriva a sua investidura e, portanto, a sua legitimidade, da autoridade que lhe fica imediatamente superior. É esta autoridade que lhe confere a legitimidade. E, no topo do sistema, está o Führer, cuja investidura é carismática, isto é, cuja investidura não repousa em nenhum critério institucional ou tradicional, mas apenas numa aceitação sintética da sua chefia, pelo conjunto dos seus dirigentes. Uma associação entre o tradicionalismo e o carisma parece ter sido a fórmula para a qual tendeu o regime napoleônico. Em vez de burocratizar intensamente em torno de si, o critério de duração procurado pelo carisma Napoleônico foi a geração rápida de uma estrutura que se pudesse impor como tradicional. E para isso encontrou sua motivação nas formas sociais anteriores, que ainda davam vitalidade aos sistemas tradicionalistas, na consciência dos grupos sociais da época. 153 *** Tal é a análise dos tipos de poder, como nós a encontramos em Weber e que é de um grande préstimo para interpretação dos fatos políticos de que estamos tratando. *** Em todos aqueles tipos, entretanto, o que observamos é que a nossa preocupação é explicar a aceitação da autoridade já acumulada nos órgãos dirigentes da sociedade, pelo resto da sociedade. Estamos supondo que o Poder já se acumula nos órgãos dirigentes da sociedade, isto é, que o Poder já se acha investido nos órgãos que vão exercer, sobre as sociedades, as suas expressões autoritárias. E desejamos saber por que a sociedade os aceita como tais. Ora, há outra pesquisa, sem a qual não se completa o interesse da primeira. É que verificamos que, em toda sociedade, o Poder que se vai concentrar nos órgãos dirigentes, normalmente, lhes é transferido por determinados segmentos da sociedade, que se apresentam, assim, como fontes do Poder. Com exceção do governo carismático puro, em que, possivelmente, numa sociedade muito rudimentar, a investidura do Chefe pode resultar de um movimento quase humano e da consciência dos seus dirigidos, normalmente, a atribuição de Poder a um órgão dirigente provém de determinada parte da sociedade. Podemos admitir que, em certos casos, essas partes sejam maiorias ocasionais, mas não é comum. Normalmente, durante um período histórico considerado, são os mesmos segmentos da sociedade que comparecem 154 periodicamente, renovando ou assegurando a investidura dos seus órgãos dirigentes. Os órgãos dirigentes são criados, são alimentados, são mantidos, pela conexão em que se colocam com determinados segmentos da sociedade, que se apresentam como fontes do Poder. SEGMENTAÇÃO DA SOCIEDADE Não é possível estabelecermos uma teoria das fontes do Poder, sem uma prévia análise da segmentação da sociedade, o que leva, naturalmente, a um estudo perfunctório das classes e dos estamentos. Todos estes conceitos são susceptíveis de um emprego muito livre. Essas expressões podem ser usadas com uma grande amplitude, imprimindo, de cada vez, uma nuance conceitual diferente à palavra, na qual, para dar uma utilidade doutrinária a estes termos, é indispensável que limitemos um pouco a nossa liberdade de sentir com eles. *** Assim, a palavra classe, no uso que hoje dela fazemos, corresponde, geralmente, a uma segmentação econômica da sociedade. O fator econômico por excelência, segundo o qual classificamos as classes, é a sua forma de participação na produção, e esta é uma das heranças definitivas dos ensinamentos de Marx à sociologia moderna. Classificam-se esses segmentos sociais (as classes) de acordo com a modalidade de sua participação na produção. Note-se que essa modalidade de participação gera fatores qualitativos e fatores quantitativos, que imediatamente vão influir em toda a conduta social dos indivíduos que compõem a classe. 155 Dessa forma, se a classe participa da produção de um determinado modo, os bens econômicos vêm ter às suas mãos de um modo correspondente. Se a classe participa da produção, como detentora dos bens de produção, o produto do trabalho econômico dessa sociedade vem ter às suas mãos, sob a forma de lucro. Se ela participa da produção, como prestadora de trabalhos, vem ter às suas mãos sob a forma de salário e ainda pode vir sob a forma de renda, quando ela, sem participar diretamente da produção, do comum da produção, dispõe, entretanto, do controle econômico de determinados bens, utilizados por outros. Tudo isso determina a conduta social da classe, a posição dos seus interesses na sociedade em que ela se encontra. Podemos dizer que, entretanto, não é possível atingir uma apreciação da conduta social das classes, sem estabelecer certas subdivisões entre elas, decorrentes ou do nível de sua participação nos bens econômicos produzidos, ou da modalidade específica de cooperação, que a classe tem na produção desses bens. Uma divisão que, por exemplo, se impõe é a divisão em classe alta, média e baixa ou popular. Essa divisão corresponde, de maneira muito grosseira, à ideia de uma classe proprietária de bens de produção, de uma classe proprietária de bens de consumo ou de altos salários e de uma classe remunerada através de salários comuns. A conduta social dessas três classes difere necessariamente de maneira profunda. A classe proprietária de bens de produção apresenta, na sua conduta social, uma característica tão constante, tão homogênea, que hoje se prefere denominá-la, simplesmente, classe produtora, por oposição à classe que vive de salários ou de rendas, que hoje se costuma denominar classe consumidora. Não que esta não produza; produz como a primeira, e a primeira 156 consome como a segunda. Mas é que, na conduta social da primeira, a participação no processo produtivo representa uma motivação mais imperiosa do que os seus interesses de consumidora. Enquanto que, na segunda, os seus interesses de consumidora prevalecem sobre os interesses que podem ter naquele desenvolvimento e na manutenção da produção coletiva. Portanto, a oposição (classes produtoras e classes consumidoras) não significa que haja uma classe que só produz e outra que só consome; significa que há uma classe em que os problemas da produção prevalecem e motivam a conduta social e há uma classe em que os problemas do consumo prevalecem e motivam também a conduta social e coletiva. Ainda dentro de qualquer uma das classes sociais, encontramos diferenciações de alto interesse sociológico, decorrentes do tipo de sua ocupação profissional. Assim, por exemplo, nas classes produtoras, constitui uma diferenciação importante saber se a classe é agrária ou industrial, isto é, se os bens de produção, controlados por determinado grupo desta classe, são bens industriais, destinados à produção manufatureira etc. ou o solo. A conduta social de cada uma dessas subdivisões da classe proprietária de bens de produção reflete as diversas motivações dos seus problemas; e a própria diferenciação, em classes urbanas e classes rurais, gera uma conduta diversa em cada um desses agrupamentos. *** A divisão da sociedade em estamentos é muitas vezes de grande importância, mas vai nos interessar menos, dentro dos limites restritos em que nos devemos conter. Weber salienta que assim como a diferenciação em classes decorre essencialmente da participação dos indivíduos na 157 produção, a diferenciação em estamentos decorre de certos tipos de participação no consumo. Podemos dizer que a divisão estamental das sociedades é essencialmente uma divisão baseada no nível de vida, no tipo de vida dos indivíduos. Assim, podemos encontrar unidos no mesmo estamento indivíduos da classe proprietária de bens de produção e assalariados, bastando para isso, que pelo seu tipo de vida, pela sua participação no consumo dos bens, eles tenham a mesma forma de atividade. Os tipos estamentais são, em geral, tipos que tendem a representar, na sociedade, um grande fator de interpenetração entre as classes. Um exemplo típico de estamento, nós temos no que se chama a classe mundana, isto é, uma classe constituída por indivíduos que economicamente se classificam nas classes mais diversas, mas que têm como traço comum a convivência estamental, isto é, um determinado tipo de vida, um determinado tipo de convivência intensa, em torno dos mesmos hábitos, em torno de um mesmo padrão de valores. É sabido que a classificação estamental corresponde intimamente a essas ideias que nós denominamos, em sentido impróprio, ideias de clã, quer dizer, preconceitos, expressões verbais, hábitos mentais, características de um grupo, características de uma roda e que fazem com que os indivíduos que a ela pertencem, muitas vezes, se conduzam completamente fora do que seria a sua mentalidade de classe. O estamento, neste sentido, prepondera sobre a mentalidade de classe e motiva um tipo de conduta social, às vezes, totalmente discordante da posição econômica do indivíduo nas sociedades. *** 158 Desde o momento em que concebemos as sociedades como divididas em segmentos dessa natureza – insistimos em dizer que esta análise de segmentos poderia ir muito mais longe - nós compreendemos que a elaboração do Poder Político, do Poder Autoridade, dentro do grupo social, resulta de uma interação de todas essas classes e estamentos, uns sobre os outros. Todas as classes dispõem dos seus meios próprios de domínio. Meios de domínio econômicos - classes que dispõem de controles econômicos eficazes procuram, por meio deles, imprimir a predominância dos seus interesses na sociedade. Meios culturais - classes economicamente débeis, mas culturalmente muito aparelhadas conseguem exercer, sobre a sociedade, um controle muitas vezes superior ao que classes economicamente mais robustas alcançam. Pelo fato de já ter ocupado uma determinada soma de Poder Político, o homem continua a dispor de uma força residual, que lhe permite exercer uma ação de comando sobre as demais classes e sobre a sociedade. Esta não é, aliás, senão a definição do que se costuma chamar política profissional. Político profissional é aquele que, sem ter um fundamento econômico, nem fundamento social para dispor de uma parcela de comando da sociedade, mantém, entretanto, a sua participação nesse comando, graças aos resíduos das posições políticas ocupadas anteriormente, isto é, graças a uma conservação estamental. Tendo pertencido à atividade política, conserva-se no estamento e, pelas suas relações de grupo, mantém uma participação ativa na formação do Poder. Quando uma classe política dirigente vive exclusivamente da sua posição residual estamental, podemos dizer que se profissionalizou por completo, isto é, que ela deixou de encontrar raízes na sociedade de onde sai e que conserva o 159 seu poder apenas pela incapacidade de as demais classes organizarem um novo time político dirigente. Mas a verdade é que toda estruturação de Poder nada mais é do que a dinâmica dessas classes e estamentos. Deve-se, ainda aí, a Marx e a Engels, no seu livro sobre as origens da Família e do Estado, a concepção mais radical do Estado, como um produto do conflito de interesses de classes, dentro da sociedade. A concepção marxista do Estado leva à observação desse fato, dessas modalidades de inter-relação, a um esquematismo rígido, traduzindo a própria essência do Estado, exclusivamente no conflito de classes, em sua forma mais radical, que é o conflito entre a classe proprietária dos bens de produção e a classe do assalariado. Daí a impossibilidade, para o marxismo, de conceber, numa forma de sociedade isenta de luta de classes, uma sobrevivência do Estado. A abolição do Estado, na última etapa do comunismo, depois de vencido o período de transição de ditadura do proletariado, não pode deixar de ser uma decorrência da concepção marxista e leninista, de que o Estado nada mais é do que a fórmula jurídico-política, através da qual a classe proprietária dos bens de produção consegue motivar, de um modo permanente, o seu tipo de opressão sobre a classe assalariada. Dentro de uma concepção que, pelo contrário, veja o Estado como um resultado de entrechoque contínuo de todas as classes e estamentos que se formam na sociedade, é difícil conceber o desaparecimento do Estado, como uma etapa final de qualquer processo evolutivo. O provável é que, pelo contrário, o Estado represente sempre uma fórmula de equilíbrio e de compensação entre os deslocamentos de Poder que se vão operando entre as classes, à medida que cada uma delas acumula um determinado coeficiente de Poder e tende a preponderar 160 sobre as outras, nesse equilíbrio instável que continuamente se processa. O Estado se apresenta, então, com uma superestrutura jurídica destinada a conter esse conflito, a conter essas reações recíprocas, a dar-lhes disciplina, cedendo, naturalmente, em sua superestrutura, em suas fórmulas constitutivas, à medida que determinados interesses consigam avantajar-se aos outros e impor-lhes os seus interesses vitais, as suas ideologias. FONTES DO PODER Essa ideia de que determinadas classes ou segmentos da sociedade desempenham um papel preponderante na construção do Poder, isto é, na investidura dos órgãos dirigentes, nos permite fazer uma distinção entre fontes reais e fontes formais do Poder, frequentemente esquecida pelos que interpretam a estrutura do Estado de um ponto de vista exclusivamente jurídico. Na análise jurídica do Estado moderno, avulta o tratamento das fontes formais. Desde que nós consideremos o Estado, não de um ponto de vista exclusivamente jurídico, mas de um ponto de vista sociológico, nós nos damos conta de que, muitas vezes, poderíamos mesmo dizer que, quase sempre, essas fontes formais, de onde o Poder deriva, não coincidem com as suas fontes reais. Elas operam juridicamente, mas sob um impulso, sob a motivação, sob o comando de outras partes da sociedade, onde o Poder se acha como que armazenado. Há classes, há segmentos da sociedade, que são verdadeiras rochas armazenadoras do Poder. Ali, é que nós encontramos as reservas de autoridade, que são periodicamente delegadas a órgãos dirigentes, permitindo que o Estado atinja o seu funcionamento e os seus fins. Uma organização de Estado apresenta, talvez, o máximo em seu rendimento jurídico social, quando há, 161 entre as fontes reais e as fontes formais, senão uma perfeita identidade, pelo menos uma grande adequação. O completo desencontro entre as fontes reais e as fontes formais determina as chamadas crises institucionais. As instituições não funcionam. Sente-se a insinceridade do mecanismo do Estado. Todo o edifício do Poder Público, em sua aparência jurídica, revela a falta de conteúdo, pelo completo desencontro dos seus órgãos com aquilo que na sociedade efetivamente gera o Poder. Essas crises institucionais, às vezes, assumem grandes proporções e se resolvem ou catastroficamente, por meio de revoluções que liquidam as instituições, que dão origem a novos tipos de Poder que, gradualmente, se vão institucionalizando, ou então graças a grandes processos políticos de transformação da superestrutura. Algumas vezes esse processo de transformação é devido a uma parte da sociedade dotada de qualidades de liderança para tomar em suas mãos o Poder e operar as necessárias modificações, ou, então, à ação efetiva do homem de Estado; em qualquer dos casos, sem uma ruptura, pelo menos completa, da legalidade. *** O exemplo mais notável que podemos apontar, historicamente, de uma crise institucional resolvida pela ação do homem de Estado é a mudança de estrutura do Estado romano sob a ação de Augusto. É sabido que, nos últimos tempos da República, o Estado romano apresentava um desses casos típicos de completo desajustamento, entre as fontes formais do poder e as suas fontes reais. O Estado estendera a sua dominação a um grande número de territórios. Os interesses econômicos do Estado 162 já não eram mais os interesses de uma cidade dominando uma pequena área provincial, eram realmente os interesses de uma grande constelação de comunidades políticas, todas elas ligadas por um sistema comercial, por um sistema de interdependência. E ao mesmo tempo em que isso se passava, a força mantenedora daquela constelação em equilíbrio não podia deixar de ser a rocha armazenadora de um grande Poder que, entretanto, não tinha nenhuma tradução institucional no quadro das fontes formais do Poder. Essa fonte real era o Exército, pois que de sua ação dependia, naquele momento, a manutenção da constelação imperial. Contudo, as instituições continuavam a ser as de um Estado-Cidade. O resultado era a crise completa das instituições, a subserviência do Senado aos generais, isto é, o militarismo e a demagogia, a facilidade com que o povo encontrava pelo princípio carismático, os seus chefes. O aparecimento do princípio carismático corresponde às instituições que funcionam no vazio; é uma crise específica dos desajustamentos entre as fontes formais e as fontes reais. E o militarismo, no caso, traduzia o despojamento de autoridade dos órgãos formalmente legítimos, diante dos órgãos realmente idôneos. A capacidade de Augusto foi a de superar essa crise, fundando, sobre novas bases, o poder civil. Augusto foi, realmente, quem liquidou o militarismo. E liquidou-o como? Dando uma posição ao Exército nos quadros institucionais e permitindo que aquela fonte real do poder, que agia independentemente dos quadros institucionais, passasse a ser uma superestrutura, por meio da qual a sua influência chegava, dentro de uma proporção adequada, aos centros de decisão. E ele próprio, revestindo-se da tribunicia potestas, assumiu, de fato, o direito de controlar o Senado, constituindo-se numa investidura à demagogia. 163 Ao mesmo tempo em que, fundando a religião do imperador, isto é, fazendo da personalidade do imperador o objeto de um culto, encontrou, para a sua autoridade, um denominador comum a todos os territórios congregados no Império. Ao que, como é evidente, o pálido culto cívico em que consistia a religião romana era de tudo estritamente municipal e não poderia uni-los dentro de um mesmo sistema de ideias comuns. Isto se encontrou na divinização do imperador. Augusto salvou, assim, sobre uma base institucional, o Estado, no momento em que se proclamara a crise das instituições e que o curto governo de Cesar não fora capaz de superar, já que Cesar representava, realmente, o apogeu da crise, sem os preliminares de suas soluções. Esse exemplo histórico é útil, porque nos dá uma ideia de jogo macroscópico da crise entre as fontes reais e as fontes do Poder. Note-se, entretanto, que, não considerando o processo histórico dessa grandeza, nós podemos encontrar muitos exemplos, na distinção entre as fontes reais e as fontes formais, dentro da estrutura do Estado Moderno, dentro dos tipos de funcionamento das instituições de que somos testemunhas. Vale a pena, descendo a exemplos que não oferecem tão amplo panorama demonstrativo, observar o modo por que, dentro de um Estado, o jogo entre as fontes reais e as fontes formais do poder opera-se, algumas vezes, através de expedientes, que, moralmente, não são aprovados, mas que a ética política acaba por sancionar, pela sua perfeita correspondência aos objetivos que os reais detentores do poder têm em mira. *** 164 Um exemplo que não pode deixar de nos interessar é o da própria sociedade brasileira, no fim do século XIX e começo do século XX. A quem estuda a sociedade brasileira daquela época, não pode deixar de surpreender, imediatamente, a clara diferenciação entre as fontes reais e as fontes formais do poder na época. A fonte real do poder, na sociedade brasileira, do fim do século XIX e do começo do século XX, era indiscutivelmente a classe agrária, isto é, a classe proprietária dos bens de produção, que desempenhava papel decisivo na estrutura econômica, por intermédio da qual se mantinha a sociedade. Era a classe produtora dos bens de exportação, cuja venda ao exterior possibilitava a manutenção do nível de vida, tanto do Estado, quanto dos particulares. A classe agrária brasileira representava uma pequena minoria, detentora efetiva do poder real. Entretanto, a fonte formal do poder, pela construção da democracia brasileira, sobre a base das doutrinas de sufrágio, era o eleitorado, eram as massas populares. Somente a técnica eleitoral da época permitia à classe agrária conservar, através do jogo das instituições formais, a manutenção de seu predomínio. Praticamente, era uma eleição de censo alto. Não se dizia que apenas determinados indivíduos eram dotados de poder de voto e que somente eles contribuíam com seu pronunciamento, para a construção do poder público, mas era o que se passava na realidade, por meio de um sistema eleitoral, que assegurava um extraordinário predomínio dos chefes locais, cada um deles ligado aos interesses da classe agrária de sua região. A divisão territorial do eleitorado, correspondente aos interesses da classe agrária, o sistema das chefias locais, confiado aos interesses da classe agrária, e a própria 165 flexibilidade do sistema eleitoral, facilitando o que se chamou no jargão político da época a eleição de bico de pena, tudo isso, nada mais era do que uma técnica de dominação da classe agrária, graças à qual ela mantinha o seu predomínio no Poder. Note-se que a única interrupção do controle da classe agrária sobre a vida brasileira ocorre na Proclamação da República. Mas essa interrupção é sempre destruída pelas voltas da classe agrária ao poder, com os grandes Presidentes do café e a reforma Campos Sales. É a reforma eleitoral de Campos Sales, isto é, seu mecanismo eleitoral, que garantiu, durante uma sucessão de quadriênios, a manutenção da oligarquia. Isso quer dizer que a classe agrária nunca realizou outra técnica senão a técnica eleitoral flexível, que permitia obter um governo altamente representativo, mas altamente representativo em relação às fontes reais do poder. *** Desejaria multiplicar um pouco os exemplos para que pudéssemos ver, através do exame da democracia inglesa, da ditadura soviética e das repúblicas americanas, o modo pelo qual se processa essa estruturação das fontes em reais e formais. Mas o tempo não o permite, de modo que vou limitar-me a uma pequena consideração sobre um aspecto, que me parece de grande interesse para nós. É o que diz respeito às repúblicas americanas. Uma característica da acumulação de poder, nas repúblicas americanas, é que ali se apresentam duas rochas armazenadoras do Poder, isto é, a classe proprietária dos bens de produção e o Exército. O papel do Exército no funcionamento do Estado, nas repúblicas americanas, é completamente diverso do papel 166 que ele desempenha em outros tipos de sociedade que nós observamos, em diferentes áreas europeias, e mesmo asiáticas. Ali o Exército se apresenta de duas formas. Podemos considerar um primeiro grupo de países e um segundo. É curioso observar que este papel é quase sempre do Exército e não da classe militar no seu conjunto, embora uma participação maior ou menor dos demais ramos da classe militar se verifique sempre. A participação na elaboração propriamente do Poder Público tem sido nas repúblicas americanas, quase sempre, uma situação específica do Exército. No primeiro grupo, nós encontramos os países onde o Exército desempenha um papel direto na constituição da autoridade política. Ele intervém, frequentemente, como órgão imediato de constituição do órgão dirigente. A transmissão do Poder, entre a fonte real do poder e o órgão dirigente que vai exercer sua autoridade sobre o país, se faz, digamos, num só tempo. Essas reiteradas intervenções assumem como sabemos, quase sempre, um caráter revolucionário, ou de revolução, pelo emprego da violência efetiva, da vis-effectiva; ou pelo emprego da vis-compulsiva, isto é, pelos pronunciamentos. Essas duas formas de exercício do Poder geram a constituição do órgão dirigente e suas renovações frequentes. É curioso observar que isso só sucede no país onde o Exército não logrou um alto grau de burocratização. Como toda instituição social, o Exército passa, dentro de seu destino de grupo, pelos mesmos fenômenos de constituição do poder Carismático, Burocrático ou Tradicional. Todos nós conhecemos os Exércitos, em que o poder Tradicional se traduz no predomínio de uma 167 determinada casta militar, que continuamente é a detentora da chefia, dentro daquele grupo. E conhecemos os Exércitos Carismáticos de que são exemplos esses exércitos que exercem uma função mais imediata na constituição do Poder. São os exércitos em que ainda se verifica, com frequência, a chefia de fortuna. Um chefe de fortuna consegue pelo seu poder Carismático empolgar o Exército e usá-lo ao sabor das motivações políticas. Isso é característico de todas as repúblicas americanas, onde os exércitos ainda não entraram em quadros institucionais. À medida que o Exército entra em quadros institucionais (para usarmos a expressão de acordo), à medida que ele se burocratiza, perde aquele papel de constituição direta de autoridade e passa a exercer um papel político potencial. Não desaparece a sua influência na vida política dessas repúblicas, mas o seu papel se torna estritamente potencial e quase que poderíamos dizer que se torna fiscal do sistema, no sentido de que suas intervenções só se fazem sentir nos momentos de ruptura das instituições, nos momentos de crise institucional. A crise institucional conduz ao pronunciamento do Exército, como numa estrutura que cede em suas partes superiores Uma estrutura mais rígida, que se mantém, intervém pelo dinamismo natural de sua constituição, para restabelecer o equilíbrio em crises momentâneas. Essa evolução política é uma evolução política muito característica dos países americanos. E é, sem dúvida alguma, uma evolução muito característica do nosso país. Talvez não se possa compreender bem esse papel político do Exército, pelo menos no que diz respeito ao nosso caso, sem explorarmos um pouco o assunto. E desejamos chamar a atenção dos senhores, embora infelizmente não possa fazê-lo com o desenvolvimento que a matéria requer, para 168 o seguinte ponto: o Exército Brasileiro, a classe militar no seu conjunto, mas principalmente o Exército, tem o seu comportamento, na sociedade brasileira, em grande parte influenciado pela profunda coincidência estrutural entre o Exército e a classe média. Faz parte da formação brasileira, faz parte das próprias origens da instituição militar entre nós, um curioso divórcio entre a classe agrária, que rege a vida política do país, como sua principal fonte real do poder, e a formação do Exército nos últimos decênios da monarquia, dentro de quadros institucionais permanentes. Os decênios finais da monarquia, os anos 70 e os 80 do século XIX, assistiram, entre nós, à floração de uma classe média, que até então não existia no país. Não surgiu como classe média robusta, tendo a característica por excelência da classe média, que é a propriedade de bens de consumo, porque a classe média em geral não é proprietária de bens de produção, mas é proprietária de bens de consumo, proprietária de casa própria, proprietária de bens relacionados diretamente com sua vida. Surgiu, entretanto, como uma classe urbana, empreendedora, orientada por determinados interesses industriosos; deve-se a ela, a criação das primeiras iniciativas industriais do país e as primeiras atividades que não se enquadravam rigidamente no esquema da sociedade agrária e exportadora de bens de produtos primários, nos anos que antecederam de perto a Proclamação da República. Essa classe média, alimentada inclusive por correntes estrangeiras e também desenvolvida sob a influência de outros fatores que, naquela época, se fizeram sentir no país, não poderia ter, sobre a vida brasileira, a menor influência, nem desempenhar algum papel construtivo no Estado 169 brasileiro, se não tivesse encontrado uma expressão institucional imediata, na formação do Exército Nacional. O Exército e a monarquia não se entenderam, porque o Exército e a classe agrária também não se entenderam. A classe agrária não contribuiu para a formação dos quadros do Exército Brasileiro, como sucedeu em outros países onde se desenvolveram tipos de classes militares estritamente aristocráticas. Pelo contrário, entre nós, foi a classe média que deu uma grande contribuição humana para a formação dos quadros militares. E permitiu, assim, que se constituísse sem impedimento social, independente por completo, em sua formação cultural e em seus interesses econômicos, do quadro institucional do Estado que desaparecia. O Exército não se solidarizou com a monarquia, como o Exército não se solidarizou com a Igreja, como o Exército não se solidarizou com nenhuma daquelas atividades ou daqueles moldes institucionais, que eram característicos do Estado monárquico. O Exército obteve, nos primeiros anos 70, a sua formação educacional própria; criou os seus centros próprios de educação, separando-se dos centros educacionais onde se formava a juventude da classe agrária, que eram as Faculdades de Direito. O Exército encontrou as suas motivações ideológicas nas ideias que eram revolucionárias para a época. E, por conseguinte, pôde modelar o movimento republicano, rigorosamente, como um movimento de libertação da classe média e de um novo espírito progressista, que, naquela época, começava a se delinear no país. Isso pôde ser sentido logo no início da administração republicana, e a administração republicana, violentamente inflacionária, foi toda ela uma administração de classe média. Toda ela uma administração de abertura de novas possibilidades e de expansionismo artificial para a 170 sociedade, inclusive, nos recursos extremos de que lançou mão, desviando os financiamentos tradicionais da classe agrária. Como se recordam, a monarquia desapareceu numa era de grande penúria de numerário, para encaminhar os novos recursos engendrados pelos novos planos de emissão para as iniciativas novas, para os empreendimentos desenquadrados daquele primitivo quadro social que desaparecia. Esta coincidência, entre a formação do Exército e a ascensão da classe média no país, fez com que, realmente, o papel permanente do Exército na evolução do regime democrático brasileiro tivesse este caráter que lhe é constante, de organismo tendente à destruição de privilégios, e que é uma característica profundamente esporádica, dentro do funcionamento das classes militares em geral, pois as classes militares em geral pertencem ao que há de mais conservador na estrutura de uma sociedade. E, portanto, entre nós, as classes militares pertencem não ao que há de mais conservador, mas, pelo contrário, ao que há de corretivo no mecanismo conservador da sociedade, pela sua intensificação de mentalidade como uso imperativo da classe média. A ESTRUTURA DO ESTADO DITATORIAL E A ESTRUTURA DO ESTADO DEMOCRÁTICO A diferença entre essas duas estruturas tem sido procurada sob muitos ângulos e por muitos autores. Era minha intenção expor a doutrina do Estado ditatorial, como Estado de transição, tal como a apresentou Lenine, no seu livro O Estado e a revolução. E mostrar as caracterizações do Estado democrático, como nós a vemos, por exemplo, na obra de Schumpeter sobre o capitalismo e a democracia. 171 Mas, vamos diretamente à nota diferencial que propomos. Em primeiro lugar, todos os esforços feitos para caracterização do Estado Democrático vêm sempre ao ponto de partida da Constituição do Poder Democrático. A ideia de que o poder democrático se constitui por um sistema de livre competição, assegurado através de um mecanismo, que é o mecanismo eleitoral do Estado, parece estar na base da maioria das opiniões, no que diz respeito à oposição entre o Estado Ditatorial e o Estado Democrático. Desse modo, o Estado Ditatorial se apresenta, quase sempre, sob uma forma de autoridade usurpada. O Estado Democrático apresenta-se como uma forma de autoridade constituída através de uma concepção entre os governados. Essa colocação, que serviu durante muito tempo de critério discriminativo, pode hoje ser considerada imprestável. É imprestável, em primeiro lugar, porque não é exato que o Estado Ditatorial tenha suas raízes na usurpação. O Poder legitima-se sempre através de um sistema de derivação. Devido à solução de continuidade, a autoridade seguinte é que pode ser considerada uma autoridade de fato. Sua legitimação faz-se a posteriori. Ora, as mais típicas ditaduras do nosso tempo foram estabelecidas por processos legítimos. A ditadura hitlerista resultou da competição eleitoral. Daí em diante, a máquina do Estado, já estando a serviço do poder dirigente, não precisou, para transformar o Estado, de operar soluções de continuidade na cadeia das derivações. De modo que não é na origem do poder que nós devemos encontrar o critério diferenciador, mas precisamente no modo como ele funciona. Da mesma maneira que um Estado pode se estabelecer por um processo de usurpação e construir uma estrutura democrática, também pode estabelecer-se por 172 um processo legítimo e competitivo e fixar-se numa estrutura ditatorial. A melhor conceituação neste ponto, nós só podemos obter, partindo da ideia de que o Estado, para atingir os seus fins, promove duas ordens de iniciativas: iniciativa do próprio Estado, que nós podemos denominar, simplesmente, ação governamental; e iniciativa dos indivíduos e dos grupos, que se movem dentro do Estado, que podemos chamar ação individual. A ação individual desenvolve-se nos quadros sistemáticos do Estado, contra a ação do Estado e se desenvolve, dentro também desses quadros, com o que ele autolimita o seu Poder. Surge, porém, necessariamente, na economia de qualquer Estado, o conflito possível entre a ação governamental e a ação individual. Se os fins da coletividade política se perseguem, através de ações de indivíduos e de ações do Poder Público, é frequente, é natural, é inevitável que, algumas vezes, entre a ação dos indivíduos e a ação governamental, exista um antagonismo. Qual a técnica de superação desse antagonismo, pois que esse antagonismo necessariamente tem de ser superado? É aí que nós vamos encontrar a diferença conceitual profunda, entre a estrutura democrática e a ditatorial. No regime democrático, toda a construção do edifício do Estado obedece ao propósito de encontrar uma técnica para proteger eventualmente o indivíduo contra o seu governo. A possibilidade de que no conflito, entre a ação individual e a ação governamental, o interesse a prevalecer seja do indivíduo, deixa antever a necessidade de protegêla contra o eventual predomínio da ação governamental sobre ele. As técnicas com as quais se procura atingir esse resultado variam. Podem ser mais eficazes ou menos 173 eficazes; quando forem muito pouco eficazes, diremos que o contingente democrático naquele regime é baixo; quando forem muito eficazes, diremos que é mais elevado. Mas, em primeiro lugar, alinhemos a própria doutrina da divisão de Poderes, que, pelo que vemos no programa, os senhores já tiveram ocasião de examinar neste ciclo. A doutrina da divisão de Poderes nada mais é do que uma técnica para proteger a ação individual, perante a ação governamental, em determinados casos. Para isso, divide a ação governamental, especializando-a para que ela própria tenha, na sua economia interna, um sistema de controle. As ações, os habeas-corpus, os mandados de segurança, os remédios judiciários, são técnicas democráticas para proteger a esfera de ação individual frente à ação governamental. A criação de um Poder Judiciário estável, colocado em condições de invulnerabilidade no quadro das instituições, é outra técnica democrática para proteger o indivíduo contra a ação governamental. E, finalmente, a obra-prima do sistema é a própria existência de uma declaração de direitos, isto é, o próprio fato de o Estado incorporar a afirmação de uma área dos direitos individuais intransponíveis. Com todos esses instrumentos jurídicos, o que se procura é dar à ação individual uma eventual proteção contra a ação do governo, devido à possibilidade de que a ação do governo não promova efetivamente o bem individual e social. A técnica totalitária repousa, neste ponto específico, sobre o princípio oposto. Sobre o princípio de que nada protege melhor o interesse do indivíduo do que a ação governamental. A ação governamental, pelo modo por que ela é estruturada, pelos motivos que a inspiram, pelas raízes do Poder Público, constitui, dentro de uma 174 concepção totalitária do Estado, a melhor e a mais eficiente proteção que se possa dar aos interesses individuais. Pretender que o interesse individual possa ter uma defesa própria contra a ação governamental é uma contradição no objeto, quer dizer, é conceituar alguma coisa que não se pode conceber, a não ser pela prévia alteração de todas as premissas desse raciocínio. Não há, por conseguinte, no chamado totalitarismo, um abuso de autoridade no sentido vulgar da palavra, no sentido valorativo dela. Não. Existe uma conceituação sincera do governo: a de que a estrutura de governo é um modo eficaz de proteger os interesses individuais e sociais e que, por conseguinte, toda atribuição de um ato de poder a um indivíduo, para lutar contra um Estado, longe de vir em favor desse indivíduo, vem contra os seus interesses últimos. Este é o ponto conceitual, em que, a meu ver, podemos fazer, com uma nitidez maior e com maior honestidade, a oposição entre as duas estruturas de governo. Houvesse mais tempo e iríamos tentar, através de exemplos mais numerosos, envolver as consequências dessa oposição, mostrando em que ponto ela prova a sua validade. 175