“noVAs HermenÊutiCAs” pArA “noVos Direitos” ou não se põe

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“NOVAS HERMENÊUTICAS” PARA “NOVOS DIREITOS”
ou não se põe vinho novo em odres velhos
Jeferson Antonio Fernandes Bacelar
É doutorando em Direitos Fundamentais e Novos Direitos na UNESA-RJ, sob a
orientação do Prof. Dr. Vicente de Paulo Barretto. É Diretor do Instituto de Ciências Jurídicas, Coordenador-geral do Curso de Direito e Professor adjunto (graduação e pós-graduação) da Universidade da Amazônia – UNAMA.
Vicente de Paulo Barretto
Livre-docente em Filosofia pela PUCRJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESA-RJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Direito da UNISINOS. Decano da Escola de Direito da UNISINOS. Pós-doutor pela
Maison des Sciences de L´Homme, Paris. Professor visitante da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra.
Resumo
O texto discute o surgimento de novos direitos humanos/fundamentais resultantes
das demandas sociais contemporâneas. Reafirma que tais direitos, inicialmente negados,
são conquistados e reconhecidos com lutas intensas e constantes, mas que, ainda assim,
necessitam de fundamentação, o que exigiria saberes hermenêuticos, tanto jurídicos quanto filosóficos. Apresenta a alternativa hermenêutica amparada inicialmente na circularidade heideggeriana e gadameriana, que no âmbito jurídico, proporcionou a emergência
de um novo modelo interpretativo, superador do sistema subsuntivo, e que tem permitido o agregar de posturas exegéticas inovadoras às tradicionais, ampliando possibilidades
resolutivas de conflitos. No caso da hermenêutica jurídica, defende que deve garantir
tanto o surgimento como a efetivação dos direitos humanos/fundamentais. É quanto à
efetividade que aponta a insuficiência dos modelos eurocêntricos para o enfrentamento de
questões típicas da América Latina. Propõe, então, “novas hermenêuticas” para “novos direitos”, ou seja, modelos hermenêuticos latino-americanos que contribuam para oferecer
melhores condições para a emergência e maior grau de realização dos direitos humanos/
fundamentais, analisando propostas oferecidas por filósofos, com destaque para Enrique
Dussel (hermenêutica analética), Walter Mignolo (hermenêutica pluritópica) e Maurício
Beuchot (hermenêutica analógica).
Palavras-chave
Novos Direitos; Hermenêutica Jurídica; Pensamento Latino-americano.
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Resumen
El texto analiza el surgimiento de nuevos derechos humanos / fundamentales resultantes de las demandas sociales contemporáneas. Reafirma que tales derechos, no reconocido inicialmente, se ganan y se registran con luchas intensas y constantes, pero todavía
necesitan de justificación, lo que requeriría el conocimiento hermenéutico, tanto legales
como filosófico. Muestra la alternativa hermenéutica apoyado inicialmente en la circularidad de Heidegger y de Gadamer, que el marco jurídico, está representado en la aparición
de un nuevo modelo interpretativo, que superó al sistema de subsunción, y que ha permitido la adición de las actitudes exegéticas innovadoras a lo tradicional, ampliando las
posibilidades de resolución de conflictos. En el caso de la interpretación jurídica, sostiene
que debe garantizar tanto la apariencia como la realización de los derechos humanos/
fundamentales. Exactamente en la eficacia apunta al fracaso de los modelos eurocéntricos
para tratar las cuestiones típicas de América Latina. Propuso “nueva hermenéutica” a los
“nuevos derechos”, es decir, modelos latinoamericanos hermenéuticas que ayudan a proporcionar mejores condiciones para el surgimiento y mayor grado de realización de los
derechos humanos / fundamentales, analizando las propuestas ofrecidas por los filósofos,
especialmente Enrique Dussel (hermenéutica analéctica), Walter Mignolo (hermenéutica
pluritópica) y Mauricio Beuchot (hermenéutica analógica).
Palabras clave
Nuevos Derechos; Hermenéutica Jurídica; Pensamiento Latinoamericano.
1.Introdução
A dinâmica social avança quase na mesma velocidade das inovações tecnológicas. A
diferença é que não é patenteada com tanta rapidez como estas. Novos comportamentos,
novas relações sociais surgem, se consolidam, sofrem resistências, são negados, muitas
vezes criminalizados, mas subsistem. Até serem tolerados, aceitos, reconhecidos, sendo
que alguns chegam ao nível da institucionalização, outros não.
Se as novidades da tecnologia são esperadas, gerando uma ansiedade consumista que
festeja “um pouco mais do mesmo” como se fosse “grande descoberta”, no concernente
aos novos de direitos o processo é diferente, seja na expectativa seja na realização. A conquista por essas novas expressões de necessidades e demandas, outrora não legitimadas, é
o resultado de lutas persistentes, por vezes violentas, exigindo mobilização, determinação,
conscientização e sacrifícios.
Novos direitos se manifestam, quase sempre, para além do controle ou da iniciativa
estatal, nascendo como resultado das relações vivenciadas na sociedade/comunidade. São
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direitos que exigem, na linguagem de Wolkmer (2003) uma “nova” lógica, uma “nova”
justiça, para atender as demandas dos “novos sujeitos sociais”. Nesse cenário, “[...] a ênfase não estará no Estado ou no Mercado, mas agora na Sociedade Civil enquanto novo
espaço de resistência e de efetivação da pluralidade e das diferenças”. Para tanto é fundamental buscar “[...] novas formas plurais e alternativas de legitimação contra-hegemônica
à tradição formalista e dogmática do Direito” (WOLKMER, 2003).
É emblemático o pensamento de Bobbio (2004, p. 25) ao defender a historicidade
dos direitos do homem, destacando que são “[...] nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de
modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.
Na mesma senda explica Dussel (2010, p, 230) que direitos vigentes são aqueles aceitos pela coletividade na medida em que fundados em consenso político e social, gozando de legalidade e legitimidade, bem como protegidos pela coação estatal. Abrangeriam
tanto a Constituição quanto os direitos fundamentais, bem como todo o ordenamento
jurídico que substanciaria a atuação dos magistrados vinculados ao Judiciário. Por sua
vez, os novos direitos seriam aqueles ignorados pelo direito vigente, e, portanto, negados
e rejeitados pelo sistema das leis e pelo sistema de justiça. Destarte, quando se deflagra o
processo de reconhecimento dos novos direitos estaria em curso uma crise de legitimidade
que se não for identificada torna os juízes, por exemplo, em cúmplices de um “direito em
crise”, ainda que vigente (DUSSEL, 2010, p. 231).
Como se daria o reconhecimento e a superação desta crise? Qual seria sua origem?
O texto pretende discutir a decantada crise paradigmática e sua relação com o processo de reconhecimento e posterior efetivação dos novos direitos. A seguir avança na
temática da fundamentalidade dos direitos humanos, destacando a proposta do construtivismo ético de Santiago Nino. Por fim, oferece uma proposta (na verdade, mais de
uma) baseada na hermenêutica que pode tornar possível, no contexto latino-americano, a
construção de alternativas viáveis tanto à questão da fundamentação como da efetivação
de direitos.
2. A Crise Paradigmática e os Novos Direitos
Durante todo o século passado, mormente na segunda metade do mesmo, quando
novas descobertas científicas colocaram sob desconfiança uma série de pressupostos da
ciência moderna (construída a partir do século XVI), começou a se falar da crise do paradigma cartesiano e da emergência de novos paradigmas científicos. Tal discussão teve
como locus principal as ciências naturais, mas não alijou as ciências sociais. Pelo contrário,
a percepção que se tem é que a crise do paradigma nasceu e se desenvolveu a partir do
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não enquadramento das ciências sociais aos modelos rigorosos e pré-estabelecidos pelas
ciências naturais.
O modelo ou paradigma da ciência moderna se constitui sobre a base do cartesianismo, e tem como pressupostos principais o totalitarismo e a exclusão. Santos (2003,
p. 21), em seu discurso sobre as ciências explica que o modelo científico ainda dominante
“[...] nega caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos
seus princípios epistemológicos e pelas regras metodológicas”.
No palco das ciências sociais, que só foram alcançadas por esse modelo a partir
do século XIX, surgiram duas possibilidades de enquadramento: como física social, na
qual os fenômenos sociais seriam estudados como os “naturais”; ou como possuidora de
estatuto metodológico próprio. Ambos, contudo, mantendo o viés de subsidiariedade à
racionalidade das ciências naturais (SANTOS, 2003, p. 34-40).
Seria este, portanto, o paradigma dominante que está em crise.
No âmbito jurídico tal modelo se estabeleceu a partir do formalismo positivista, que
teve como apogeu o normativismo de Hans Kelsen. A Teoria Pura construiu o ideário
de um modelo exclusivista, tendo a norma positivada como fonte única e suficiente do
direito. Como se sabe as bases kelsenianas e as que se seguiram, (de)formaram gerações
de “operadores do Direito”, que buscavam na lei o ponto de partida e de chegada das
questões jurídicas.
É sabido, também, que o juspositivismo (kelseniano ou não) sempre sofreu severas
críticas, e, ainda assim, se estabeleceu e criou raízes profundas na cientificidade e na prática jurídica ocidental. Entretanto, nessa crise paradigmática, que atinge todas as esferas
do saber, é contra o pensamento positivista do direito que os principais questionamentos
são direcionados, propondo-se, de formas diversas, a superação dessa juridicidade quase
monopolista.
Impende esclarecer-se que o reconhecimento da crise do paradigma jurídico não
significa a substituição imediata ou instantânea de todos os pressupostos existentes, mesmo porque não se pode precisar o que se quer modificar ou descartar, qual o grau desta
superação, como a mesma se processará, etc. Daí porque Santos (2003, p, 59) afirma
que, na proposta do denominado paradigma emergente, o conhecimento é especulativo,
portanto, ainda está em construção.
Certo é, que surgem novos modelos de referência colocando o paradigma dominante
em crise e preparando as bases de novo(s) paradigma(s) que será (serão) estabelecido(s).
Se a posição de Santos (2003, p. 40) for concretizada, no sentido da crise paradigmática
ser profunda e irreversível, o que se verá daqui para frente será o aprofundamento da
insatisfação e da desesperança quanto ao modelo atualmente estudado (nas academias de
direito), vivenciado (na sociedade) e aplicado (nos tribunais) no campo da juridicidade,
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e, conseqüentemente, não se sabe quando, como e com qual teor, emergirá (se é que já
não emergiu) um ou mais modelos de racionalidade, que passem a satisfazer às demandas
da sociedade pós-moderna.
É inegável o fato de que passadas várias após décadas do início desse processo de
“superação” do positivismo jurídico, o máximo que parecer ter sido alcançado é um “neopositivismo”, ainda que alguns defendam a existência de um “pós-positivismo”. Ainda
assim, positivismo.
Para Dussel (2010, p. 232) é a consciência de necessidades não satisfeitas pelo direito vigente que produz a crise deste sistema. A seguir surge uma luta social que pode
demandar considerável tempo até que o “[...] nuevo derecho, en un primer momento
ilegal e ilegítimo para el derecho vigente presente, hasta que llegue a ser legal y legítimo
en el momento de un derecho vigente futuro”. De acordo com este filosofo argentino são
seis as fases para que um novo direito alcance reconhecimento, passando desde conscientização limitada quanto à existência do mesmo, na medida em que sua legitimidade é
aceita apenas por um determinado grupo, mas sem o amparo da legalidade; passando pelo
sofrimento de injustiças impostas às vitimas da negação, e à consequente luta (violenta)
para que a segurança da moral e da legalidade que respaldam o paradigma que parecia
eterno sejam destruídas; até se conquistar, primeiro a transformação da legitimidade crítica, considerada anti-hegemônica no passado, na nova legitimidade vigente, e por fim a
pretendida legalidade, suplantando a legitimidade e a legalidade anteriormente vigentes.
Segundo Bobbio (2004, p. 83), sob a perspectiva sociológica, a multiplicação ou
proliferação de direitos ocorre por três razões: o aumento da quantidades de bens que
passam a ser considerados merecedores de proteção e reconhecimento; a ampliação da
titularidade de direitos típicos a novos sujeitos de direitos; e a nova significância dada ao
ser humano, não mais sendo visto como um ser abstrato (ente genérico), mas sim como
um ser concreto, específico, o que geraria a ampliando de seu “status” individual.
Novos bens, novos sujeitos, novos status exigem, e continuarão exigindo, novos direitos. E se a legitimidade e legalidade dos mesmos é indispensável, da mesma forma sua
fundamentação e justificação.
3. Direitos “Descobertos” ou Novos Direitos: A Necessária Fundamentação
Como já se escreveu, os novos direitos são (como um dia foram os vigente) inicialmente negados. O processo de positivação sempre foi e ainda é um a posteriori. Se direitos
já reconhecidos há várias décadas ainda estão carentes de plena efetivação (se é que tal
ideal não seja uma utopia), para os novos o desafio é maior ainda. Daí que a formulação
de Bobbio (2004, p. 43) segundo a qual o “problema fundamental” dos direitos humanos
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não é de justificação e sim de proteção, o que negaria a relevância atual dos debates (e
embates) filosóficos, mostra-se equivocada.
Explica Barretto (2013, p. 251) que pensar como Bobbio é reduzir tanto a fundamentalidade como a efetividade dos direitos “[...] às soluções encontradas pelo direito
positivo, ignorando-se que a natureza desses direitos remete para a questão mais abrangente e complexa da moralidade e da racionalidade”. Assevera que é necessário que se
desenvolva verdadeira tarefa investigativa visando “[...] recuperar a dimensão fundacional
dessa categoria de direitos”.
Em certa medida, é isso que se deseja desenvolver na presente empreitada.
Destaca-se dentre tantas teorias que tentam oferecer fundamento aos novos direitos
o construtivismo ético, defendido na América Latina por Nino, em sua ética e direitos humanos. Fica assentado, nas ideias do referido jurista, que os direitos humanos estão entre
as maiores invenções da civilização moderna, o que os torna, em certa medida “artificiais”,
ou seja, “[...] são produtos do engenho humano, mesmo que possam depender de certos
fatos ‘naturais’”. (NINO, 2011, p. 20).
Nino denuncia que o atraso na promoção dos direitos humanos repousa na equivocada ideia (crença) que defende a positivação ou reconhecimento legal de tais direitos
como suficientes para que sejam assegurados. Assevera, que “A forma mais perversa e brutal dessa desconsideração “[...] envolve o cerne mesmo da máquina que detém o monopólio da coerção”, o que explica a falta de efeitos práticos, mesmo dos direitos que gozam
do reconhecimento legal (NINO, 2011, p. 21).
O desafio seria então, “[...] olhar para além desse reconhecimento necessário”, através do estabelecimento de uma “[...] consciência moral da humanidade que reconheça
o valor daqueles direitos e abomine qualquer ação que os desconsidera” (NINO, 2011,
p. 21). Somente assim, novos direitos (humanos e/ou fundamentais) poderão alcançar
padrões mínimos e aceitáveis de realização.
Segundo Nino haveria dois métodos para que a consciência moral se dissemine:
primeiro, a propaganda, que teria eficácia em curto prazo, mas que com o decorrer do
tempo relevaria sua fragilidade, e o segundo, o que denomina de “discussão racional”, que
condicionaria a mente humana a oferecer um tipo de resposta adequada à questão dos
direitos humanos (NINO, 2011, p. 22).
Neste contexto, surge uma dura crítica aos defensores de direitos humanos que “tentam evitar a discussão”, por suporem que é possível lutar pela observância dos mesmos,
sem ter que “[...] de enfrentar a questão mais incômoda das razões que a justificam moralmente”. Trata-se de um equívoco, pois sendo compromissos morais necessitam de razões
que os justifiquem, sob pena de ficarem indefesos diante dos que os rejeitam. Enfatiza que
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tais questões “[...] só podem ser resolvidas por meio da discussão racional no domínio da
filosofia moral” (NINO, 2011, p. 22).
É na metaética que Nino buscará o sumo para suas proposições. A metaética é uma
ética substantiva, manifesta-se na reflexão crítica sobre a justificação para princípios e
normas, e sobre a natureza dos mesmos. Para o jurista argentino a natureza dos seres
humanos é moral, são, portanto, “seres morais” que participam da discussão, reflexão e
argumentação morais. Os direitos humanos, por sua vez, se fundamentariam ou derivariam do discurso moral e da argumentação moral. Logo o reconhecimento e a proteção de
alguns direitos são consequência dessa moralidade, pelo que os próprios “direitos legais”
surgem como fruto de outros diretos que independem do “sistema legal”. Concluindo
que: “O respeito pelos direitos humanos é demandado mesmo quando nos deparamos
com sistemas legais que não os reconhecem, precisamente pelo fato de não reconhecê-los”
(NINO, 2011, p. 27).
Propõe uma versão particular do “construtivismo moral”, relacionada, mas diferente
daquelas defendidas por contemporâneos como J. Rawls, K. O. Apel e J. Habermas. O
construtivismo entende que a moral está fundada na racionalidade, assim questões como
“o que moralmente correto” não dependem de argumentos de autoridade (divindade ou
sociedade majoritária), nem admite o relativismo ético (inexistência da verdade), mas estarão fundamentadas na firme justificação presente na discussão, na deliberação e na argumentação racionais (discurso moral). Essencial neste diapasão distinguir-se moral social
(positiva) e moral crítica (ideal). A moral social alcançaria os juízos, princípios ou normas
morais que são defendidos ou aceitos pela maioria dos componentes de uma sociedade
determinado em um momento histórico determinado; enquanto a moral crítica (ideal)
se expressaria por intermédio de juízos, princípios ou normas morais às quais se chegou
como resultado de uma profunda e determinada reflexão ou de um discurso racional,
tendo pretensão de validez e aceitação universais. (NINO, 2011, p. 92-94).
Essa última perspectiva da moral crítica, qual seja, a busca pela universalidade é
problemática e objeto de contestação1. Para a presente pesquisa interessa, na senda inaugurada acima por Barreto, seu caráter reflexivo, portanto, filosófico.
Dussel (2010, p. 233) também analisa a relação entre os novos direitos e os direitos
humanos, e o surgimento dos mesmos. Segundo ele existem “direitos perenes”, que seriam aqueles cuja humanidade reconhece como universais e atemporais, por possuírem
uma “semelhança analógica intercultural”, aos quais se deve agregar novos direitos. Cita
o exemplo do direito de não ser torturado, afirmando que é um direito humano recente,
1 Na obra El Constructivismo Ético. Madrid: Centro de estudios constitucionales, 1989, p. 33-ss, Nino
apresenta as contestações do relativismo e do convensionalismo ou subjetivismo moral.
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“[...] pero es un ejemplo de nuevo derecho perenne”, ou seja, mesmo reconhecido recentemente, sob o prisma temporal, sempre foi um direito.
Retomando o confronto entre o direito vigente e os novos direitos, afirma Dussel
que “[…] siempre se revelarán nuevos derechos, y, por lo tanto, habrá una lucha por su
cumplimiento. La dialéctica entre el derecho vigente inacabado e imperfecto y la lucha
por los nuevos derechos será un proceso perenne, perpetuo de transformación” (DUSSEL, 2010, p. 234). E explica assim o que propõe:
La relación entre “nuevo derecho-derecho vigente futuro” es igualmente
de fundamentación. El nuevo derecho llega a ser vigente cuando alcanza
el grado de poder postivizarse en un nuevo sistema legal (desde la Constitución hasta el sistema completo de leyes) que debe ser transformado en
parte o como todo (esto último cuando se dicta una nueva Constitución).
“ (DUSSEL, 2010, p. 234)
Para Dussel, baseado em algumas ideias marxistas, é imperioso construir um sistema
aberto de direitos vigentes recepcionado dos novos direitos, que inevitavelmente irromperão, sem a necessidade de “lutas ferozes”, muitas vezes sacrificadoras de vidas, para que
sejam reconhecidos e implementados (DUSSEL, 2010, p. 235).
Defende-se aqui que tal processo, menos doloroso, passa obrigatoriamente por uma
perspectiva hermenêutica, jurídica, mas também filosófica.
4. A Alternativa Hermenêutica
Já se escreveu alhures que novos direitos são o resultado de um processo contínuo,
persistente e longo de lutas, até que alcancem legalidade e legitimidade. Sabe-se que em
muitos loci a dinâmica legiferante é lenta e insuficiente. A percepção que se tem é que a
velocidade das mudanças sociais é incomensuravelmente maior do que àquela implementada pelas estruturas estatais responsáveis pela criação do “direito novo”. Em contextos
sócio-jurídicos com essas características tanto o processo de atualização como de inovação
do direito se realiza com maior grau de eficácia pela atuação do Judiciário, ainda que
brotem diversas críticas quanto a um desmesurado ativismo judicial.
Neste sentido sobressai-se o papel que se designa à hermenêutica, como ciência da
interpretação. A hermenêutica sofreu grandes e diversas alterações nas ultimas décadas do
século passado. De um paradigma direcionado aos textos escritos e focado na elaboração
de métodos que pudessem abstrair das fontes textuais seu sentido e alcance, se transformou em uma manifestação do existir humano, segundo a qual, tudo e todos podem (e
devem) ser interpretados e re-interpretados, tendo na circularidade hermenêutica o grande fio condutor do processo contínuo e dinâmico da compreensão.
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No âmbito jurídico, deu-se a emergência de um novo modelo hermenêutico-interpretativo, que ocasionou a “desentronização” do sistema tradicional/subsuntivo de interpretar as leis, pautado na relação cartesiana/kantiana do sujeito/objeto, e estruturado em
fases, métodos e elementos. Esse paradigma emergente tem permitido que novas posturas
exegéticas sejam agregadas às tradicionais, ampliando as possibilidades interpretativas e
resolutivas, em um contexto contemporâneo no qual se destaca a complexidade das relações sociais e, consequentemente, das relações jurídicas.
No caso da hermenêutica jurídica, entende-se que o “novo” deve ser capaz de proporcionar interpretação/aplicação do direito condizente com as expectativas, demandas,
dilemas e crises da cidadania hodierna. Para tanto, precisa evoluir em suas formulações
e proposições práticas para além do silogismo subsumido, garantido tanto o surgimento (emergência) como a efetivação dos direitos humanos, bem como dos novos direitos
fundamentais.
Nessa temática é inegável o papel que coube (ou foi assumido) aos (pelos) filósofos
e jusfilósofos alemães na tratativa dos grandes temas filosófico-hermenêuticos, modernos
e contemporâneos. Segundo Palmer (1997), os quatro grandes teóricos da hermenêutica
são Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer, sendo que no século XX, os dois
últimos são verdadeiros referenciais teóricos.
Heidegger ofereceu ao mundo sua grande obra Ser e tempo ainda na primeira metade
do século XX. Para ele a questão central ou o problema da interpretação só poderia ser
dirimido ou enfrentado a partir da compreensão. Tal questão, que já havia sido colocada
anteriormente por Schleiermacher e Dilthey, foi conduzida a outro nível, na medida em
que propôs uma hermenêutica de faticidade, que superaria a aporia da metafísica, na
medida em que coloca o homem para fora de si mesmo e para dentro da compreensão do
ser (STEIN, 2002
É na busca por uma interpretação que fuja às limitações impostas pela filologia que
Heidegger tinha como indispensável o círculo hermenêutico, virtuoso e não vicioso. O
grande desafio seria entrar no círculo de modo adequado. Em Heidegger a ideia da circularidade estabeleceria uma antecipação ou pré-compreensão, que proporia e previamente
uma relação com o sentido, já conceituado anteriormente. O círculo descreveria a natureza da compreensão humana. Assim, sempre haveria uma antecipação de sentido do texto e
a compreensão buscaria aperfeiçoar a posição, visão e concepção prévias. O projeto prévio
deve ser tido como falível e sujeito a alterações e revisões, quando do aprofundamento
ou adequação do sentido originalmente estabelecido. O intérprete deveria estar aberto ao
encontrar no texto interpretando um algo novo, não percebido ou compreendido.
Mesmo sendo bastante e estudado como responsável pela ruptura filosófico-hermenêutica no século XX (hermeneutic turn), Heidegger enfrentou, pelo menos, dois revezes
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em sua trajetória de acadêmico. Na Europa foi acusado de servir ao nazismo alemão, o
que o teria levado, após a Segunda Guerra Mundial, à bancarrota acadêmica e ao ostracismo. A segunda questão levantada contra ele dizia respeito à enorme dificuldade em
entender/compreender a complexidade de suas formulações, o que não é negado nem por
seus mais experientes “interpretes” (tradutores?). Em ambos os casos, foi seu discípulo
Hans- Georg Gadamer quem o “remiu”.
Hans-G. Gadamer é “criador” da hermenêutica filosófica, herdeira de uma tradição
que foi retomada pelo romantismo de Schleirmacher, pelo historicismo de Dilthey, pela
fenomenologia de Husserl e pela filosofia existencialista de Heidegger. Todos esses autores, de uma forma ou de outra, influenciaram Gadamer, que com eles dialogou e de todos
discordou para elaborar “sua” filosofia hermenêutica, ou melhor, sua “hermenêutica filosófica”. A edição de “Verdade e método” em 1960 é, sem dúvida, um marco, verdadeiro
“ponto de mutação” dessa (para essa) nova forma de pensar o compreender, ou seja, desse
(para esse) novo paradigma hermenêutico.
No contexto brasileiro alguns estudos elevam o pensamento gadameriano a um caráter quase dogmático, outros distorcem seus fundamentos para justificar posturas anti-metódicas que se aproximam, com grande risco (no caso do Direito) de uma subjetividade
extremada e perigosa, que conduz a um inaceitável e “absoluto” relativismo. Nunes (2010,
p. 272), mesmo reconhecendo o brilhantismo e gigantismo da obra gadameriana, afirma
ser “movediço” o espectro da filosofia hermenêutica delineada em “Verdade e método”.
Nesta mesma senda, alerta Stein que: “[...] somos muitas vezes demasiadamente indulgentes com o rigor conceitual da linguagem, quando estamos diante de certas obras que
nos envolvem” (STEIN, 2011, p. 22).
Tudo isso pode indicar que, a leitura dessa obra requer “verdadeira” interpretação,
bem como, que, as aplicações práticas dadas às propostas ali contidas necessitam ser revestidas de cuidados, mormente no campo jurídico, que como poucas áreas do saber, regula
e modifica efetivamente a vida de pessoas e de grupo de pessoas.
Na obra gadameriana há vários temas que carecem de maior aprofundamento a partir das críticas levantadas por outros filósofos, com destaque para: o eurocentrismo de sua
hermenêutica filosófica, que não consideraria peculiaridades de múltiplas tradições; a falta
de critérios para a aplicação de suas proposições, o que conduziria a um perigoso relativismo; e até mesmo a ausência de uma abordagem explicita quanto aos direitos humanos.
Streck (2007, p. 217) afirma que o maior contributo de Gadamer para a hermenêutica jurídica é afirmar a impossibilidade de reproduzir sentido, o que transforma o
processo hermenêutico sempre reflexão/ação produtiva.
Contudo, será que a hermenêutica gadameriana, na sua essência, não perpetuaria
exatamente uma postura reprodutiva ao invés de produtiva?
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É nesse sentido que as hermenêuticas pensadas por filósofos latino-americanos parecem oferecer boas respostas e alternativas para suprir tais lacunas, sem que isso represente
um abandono do pensamento de Gadamer.
A existência deste eurocentrismo na filosofia e na hermenêutica gadamerianas deve,
minimamente, servir de alerta para possíveis e necessárias “adaptações” de suas proposições, em um mundo que tenta, influenciado pela globalização (que economicamente
parece insuperável, inquestionável e irreversível) ver todos como iguais. Não levando em
conta profundas diferenças existentes, algumas positivas (que devem ser mantidas e respeitadas) outras negativas (que devem ser enfrentadas e superadas).
5. “Novas Hermenêuticas” para “Novos Direitos”
No contexto da filosofia do direito, e, especialmente da hermenêutica jurídica contemporânea o estudo da “hermenêutica filosófica” é fundamental, mas as críticas direcionadas a ela não podem ser ignoradas, pois revelam limitações às potencialidades dessa
verdadeira “koinê” em que se transformou a hermenêutica. Assim, conclui-se, ainda que
parcialmente, que a matriz hermenêutico-filosófica proposta por Gadamer, com todas as
suas virtudes, não tem se mostrado suficiente para garantir maior efetividade aos novos
direitos.
Nessa direção, em busca de modelos de hermenêutica jurídica latino-americanos,
que contribuam para oferecer, entre outras virtudes, melhores condições para a emergência dos novos direitos fundamentais e maior grau de efetivação dos direitos humanos, pretende-se analisar propostas oferecidas por pensadores da América Latina, com
destaque para Enrique Dussel (hermenêutica analética), Walter Mignolo (hermenêutica
pluritópica) e Maurício Beuchot (hermenêutica analógica).
Haveria uma filosofia latino-americana ou brasileira? Haveria uma hermenêutica
originária da América Latina ou do Brasil? Seriam elas necessárias? São questões em aberto
que Dussel ajuda a encaminhar, sem impor respostas, mesmo porque, sua filosofia e ética
são “da libertação”.
A busca por uma filosofia latino-americana não é nova. A obra “¿Existe una filosofía
de nuestra América?”, cuja primeira edição data de 1968, da lavra do peruano Bondy, foi
obra-chave sobre a temática. A resposta de Bondy é negativa ao questionamento feito,
pois, segundo ele, a filosofia latino-americana era “inautêntica” e fundamentalmente imitativa. A pergunta ganhou eco em diversos países da América Latina com destaque para o
que pensou e escreveu o mexicano Zea em: La filosofía americana como filosofía sin más, de
1969. Analisando a questão da autoridade filosófica, bem como sua ideologia e cientificidade, Zea entende que a filosofia latino-americana deveria aspirar “[...] realizar el mundo
que la filosofía que le antecedió hizo patente como necesidad”. Assim, conclui: “No ya
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sólo una filosofía de nuestra América y para nuestra América, sino filosofia sin más del
hombre y para el hombre en donde quiera que éste se encuentre” (ZEA, 2010, p. 119).
Mignolo, referencial no pensamento denominado de “descolonial” ou “pós-colonial”, defende a tese da geopolítica do conhecimento ao afirma que qualquer história
sempre começa da Grécia, passa pelo Mediterrâneo e chega à Europa, pelo que, o resto do
mundo, fica fora dessa narrativa historiográfica, inclusive no campo filosófico. Na defesa
do que denomina “um paradigma outro” apregoa a necessária descontinuidade na história
da modernidade (contada desde a modernidade, europeia), e a introdução de um ponto
de vista oposto (MIGNOLO, 2002, p. 32).
No Brasil a temática não passou despercebida. Pensadores como Sérgio Buarque de
Holanda (Raízes do Brasil) e Celso Furtado (Formação econômica do Brasil/Formação
econômica da América Latina), refletiram e escreveram a respeito do processo de negação
europeia quando da colonização nas Américas.
Praxedes (2008), na tentativa de identificar e denunciar o eurocentrismo e o racismo
em autores e textos clássicos da filosofia e das ciências sociais, faz observações que merecem atenção e postura crítico-reflexiva. Sobre Hegel, em relação aos nativos americanos,
destaca a visão de superioridade do europeu, pois, para o filosofo alemão, caberia a este
incutir naqueles “uma dignidade própria”. Quanto ao negro e a África, Hegel demonstraria todo seu desprezo a ponto de declara que não havia o que tratar mais sobre o continente africano, pois “não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou
desenvolvimento para mostrar”. No âmbito político-sociológico demonstra como Comte
(Curso de filosofia positiva), Tocqueville (A democracia na América), Weber (A Ética protestante e o espírito do capitalismo), Durkheim (Da divisão do trabalho social, As formas
elementares da vida religiosa) e Marx (A dominação britânica na Índia” / “Resultados
futuros da dominação britânica na Índia), expressam racismo, sexismo e eurocentrismo,
nem sempre identificados/destacados quando se analisa essas obras, algumas verdadeiras
“referências” na academia brasileira. (Praxedes, 2008).
Maldonado-Torres (2009: 343) analisando o racismo, o eurocentrismo e o germanocentrismo de Heidegger informa que “racismo e o imperialismo epistémicos” são anteriores a este filósofo alemão, sendo “[...] parte intrínseca da modernidade ocidental”. E
mais, afirma que “A ideia de que as pessoas não conseguem sobreviver sem as conquistas
teóricas ou culturais da Europa é um dos mais importantes princípios da modernidade”.
E que tal logica é aplicada há séculos no mundo colonial, sendo que Heidegger apenas
intentou retomar tal tradição para, por intermédio do germanocentrismo, “[...] poder
fazer ao resto da Europa o que a Europa tinha feito a uma grande parte do globo (Maldonado-Torres, 2009: 343).
O racismo de Heidegger não seria biológico, e nem mesmo cultural, mas epistêmico.
Sendo que essa espécie de racismo desconsidera que certas pessoas ou grupos de pessoas
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tenham capacidade epistêmica. E esclarece: “Pode basear-se na metafisica ou na ontologia,
mas seus resultados acabam por ser os mesmos: evitar reconhecer os outros como seres
inteiramente humanos” (Maldonado-Torres, 2009: 345).
Praxedes (2008), autor supracitado, faz um alerta quanto a superação do eurocentrismo. Assevera que tal postura libertadora: “[...] não quer dizer que devemos ignorar
os códigos culturais, experiências e linguagens de origem européia”. O que ele defende
é que se desenvolva capacidade crítica para dimensioná-las adequadamente, “[...] como
formas particulares de expressão cultural de populações e grupos particulares, sem dúvida
relevantes, mas que não são superiores a nenhuma outra forma de expressão cultural dos
grupos humanos espalhados pelo mundo.”
Maldonado-Torres propõe a construção de uma “lógica da colonialidade”, que segue em parte Heidegger e Gadamer, contudo, “transgredindo as suas fronteiras e as suas
perspectivas eurocentradas”, introduzindo formas de pensar “[...] nascidas da experiencia
da colonização e da perseguição de diferentes subjectividades” (Maldonado-Torres, 2009:
363).
Aqui se revela a necessidade do diálogo ativo com a tradição, rompendo com qualquer conduta que se constitua recepção passiva.
Essas reflexões realizadas até aqui sobre a filosofia geral, servem, obviamente, tanto
para a filosofia do direito, como para os estudos hermenêuticos. Pelo simples fato de que
as fontes de onde emanam o pensamento jusfilosófico e hermenêutico são majoritariamente europeias, ou “do norte”, para se incluir os Estados Unidos da América.
É obvio que há pensadores e há produção jusfilosófica original na América Latina,
e no Brasil, mas a “aceitação” de suas teses ainda é residual, e muitas vezes categorizada
como “bibliografia complementar”.
Pretende-se assim conferir às formulações hermenêuticas originadas na América Latina papel de protagonismo. Adequando-se quando possível às propostas já existentes;
rompendo quando necessário com formas de pensar que tentam “marginalizar” ou inferiorizar o pensamento latino-americano; e assumindo sempre postura criativa e inovadora.
5.1. Epistemologias do Sul e Pensamento Descolonial: Por uma Nova Hermenêutica
Analisando a importante temática da fundamentação dos direitos humanos, Barretto (2013, p. 263) alerta que o discurso dominante de tais direitos subestima a contribuição latino-americana “[...] para a edificação do potencial emancipatória da modernidade”.
Sob tal perspectiva, tudo o que não é europeu ou estadunidense, no que concerne ao
tema, seria irrelevante.
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Mignolo baseado em sua ideia da América Latina formula as bases de uma “nova”
história do continente americano, ou melhor, “uma história que não está contada”, e que
requer a transformação na geografia da razão e do conhecimento. Nesse contexto crítico,
a própria ideia do que se considera América é “[...] una invención europea moderna limitada a la visión que los europeos tenían del mundo y de su propia historia” (MIGNOLO,
2007, p. 32-33). Destaca que a lógica da colonialidade, que denuncia, opera em quatro
domínios da experiência humana: econômico, político, social e epistêmico. Nesse último,
que mais interessa à pesquisa, estaria o projeto de controlar o conhecimento e a subjetividade (MIGNOLO, 2007, p. 36). Ao analisar o que denomina “poder de encantamento
do occidentalismo”, explica que consiste em uma “[...] privilegiada ubicación geohistórica, un privilegio atribuído por el Occidente a sí mismo porque existia em la creencia
hegemónica – cada vez más extendida – de que era superior en el plano racional, el religioso, el filosófico y el cientifico” (MIGNOLO, 2007, p. 61). Tal mentalidade respaldaria
(perpetuaria) a “distribución desigual del conocimiento”.
Quando reflete sobre os limites da epistemologia e sobre como seria pensar em uma
filosofia não influenciada pela matriz grega, redefinida nas universidades europeias, assevera que a filosofia se tornou uma característica da civilização ocidental e que se “[...]
transformo en la vara com la que se mide el ‘pensamiento’ y a la vez en el modelo de cómo
deben pensar lós seres humanos civilizados”. Segundo esta lógica: “Cuanto más abajo se
encuentra un pueblo, un país, una lengua o un subcontinente en la escala de la humanidad, menores serán para ellos las probabilidades de ‘pesar” (MIGNOLO, 2007, p. 131).
O locus do pensar filosófico é também preocupação de Maldonado-Torres, que denuncia a postura majoritária dos que consideram filosoficamente irrelevante o lugar geopolítico. A tendência a um “universalismo” filosófico na verdade revela como filósofos e
professores de filosofia afirmam raízes em uma única região espiritual: a Europa. (MALDONADO-TORRES, 2009, p. 338).
Costa, em texto que trata da afirmação e permanência da violação dos direitos humanos na América Latina, identifica as transformações na disposição dos direitos internos, ocorridos no final do século passado nessa região. Exemplifica os avanços pela “[...]
incorporação dos conteúdos das declarações de direitos às ordens jurídicas internas, o
fortalecimento e ampliação dos sistemas internacionais de proteção, o crescente reconhecimento dos mecanismos internacionais de proteção [...]”. Contudo, alerta que é um
movimento conflituoso, sendo um “[...] percurso sinuoso de idas e vindas e não se mostra
homogêneo, não se realiza da mesma forma em todos os países latino-americanos”. Além
disso, afirma que é necessário “[...] fortalecer a cultura de direitos e a criação de um novo
senso comum teórico de direitos, favorável à realização material dos direitos humanos”.
Esclarece que, nesse processo, faz–se necessário observar determinadas particularidades
culturais e históricas, que não devem ser confundidas com uma postura regionalista. Para
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ele, a simples atitude de se observar a história e a cultura: “[...] pode evitar a mera e perigosa recepção dos discursos dominantes e, sem dúvida, facilitar o diálogo, com a legitimação
de novos autores e de novos lugares da fala” (COSTA, 2010, p. 88).
Costa também esclarece que a “[...] base teórica do direito e do pensamento herdado
é no mínimo crítica para sustentar uma reflexão profunda acerca dos direitos humanos”,
porque “O pensamento jurídico hegemônico [...] implica um modelo categórico que não
se ajusta sem problemas à efetividade dos direitos humanos”, pelo que vaticina: “O fato,
pois, é que nossa experiência e nossos recursos teóricos são instrumentos insuficientes
para pensar o direito sobre a ótica da dignidade humana.” É necessário, portanto, refletir
sobre a conceituação e a fundamentação dos direitos humanos, pois a construção dos
mesmos “[...] requer a crítica constante sobre as fundações do pensamento que tornam
possíveis e aceitáveis as formas políticas e econômicas que afastam o ser humano de sua
dignidade. (COSTA, 2010, p. 88)
É sob o prisma crítico, reflexivo, teórico e fundamentador que as hermenêuticas propostas por Dussel, Mignolo e Beuchot podem se apresentar como propostas que levando
em conta as particularidades culturais e históricas da América Latina.
5.2.Hermenêuticas do Sul
Em um contexto permeado por muitas incertezas e quase nenhuma certeza, a hermenêutica tem se constituído na koiné (idioma comum) contemporânea. Tudo e todos
podem e devem ser interpretados. Inclusive os direitos, humanos e/ou fundamentais.
Santos destaca em seus diversos estudos sobre a epistemologia do Sul o que denomina “trabalho de tradução”, que seria um procedimento capaz de criar uma inteligibilidade
entre as diversas experiências do mundo, negando tanto o estatuto da exclusividade como
o estatuto da homogeniedade (SANTOS 2009, p. 137). Tal trabalho se projeta tanto em
relação aos saberes quanto em relação às práticas. E é no campo dos saberes que surge a
“hermenêutica diatópica”, que seria uma tarefa interpretativa realizada entre duas ou mais
culturas objetivando identificar preocupações iguais entre elas e as diferentes respostas que
oferecem (SANTOS, 2009, p. 137).
Propondo uma aplicação da hermenêutica diatópica aos direitos humanos e à dignidade humana, entende que somente com a absorção pelo contexto cultural local das
possibilidades e exigências emancipatórias torna-se possível tal tarefa. Assevera que:
A luta pelos direitos humanos e, em geral, pela defesa e promoção da
dignidade humana não é um mero exercício intelectual, é uma prática
que é fruto de uma entrega moral, afetiva e emocional baseada na incondicionalidade do inconformismo e da exigência de ação. Tal entrega só é
possível a partir de uma identificação profunda com postulados culturais
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inscritos na personalidade e nas formas básicas de socialização. Por esta
razão, a luta pelos direitos humanos ou pela dignidade humana nunca
será eficaz se for baseada em canibalização ou mimetismo cultural. Daí a
necessidade do diálogo intercultural e da hermenêutica diatópica (SANTOS, 2003b, p. 443-444).
O ponto de partida da proposta hermenêutica de Santos é a incompletude, que pode
(ou necessita) ser enriquecida pelo diálogo multi e pluricultural. A incompletude cultural
confronta-se com o universalismo e a ideia de uma “teoria geral” gerando o que denomina
“universalismo negativo”, ou seja, uma “[...] teoría general residual: una teoría general
sobre la imposibilidad de una teoría general (SANTOS, 2009, p. 139).
Conclui afirmando que o trabalho hermenêutico ou de tradução que pretende provocar se dá entre diferentes saberes não-hegemônicos, e que somente por intermédio de
uma inteligibilidade reciproca que gera agregação entre tais saberes é que se pode construir a necessária contra-hegemonia (SANTOS, 2009, p. 140).
Quando se aborda a questão da filosofia ou hermenêutica latino-americanas, mormente de matiz crítica, não se pode olvidar de Enrique Dussel, filósofo argentino que tem
uma extensa obra sobre o eurocentrismo e a respeito da necessidade de se construir uma
filosofia que seja, realmente, latino-americana, ou mestiça.
Em Filosofia da libertação Dussel revela que se inquietou com a leitura de Zea, que
afirmava que a América Latina localiza-se fora da história, e decidiu “[...] encontrar um
lugar para ela na História Mundial [...]” (DUSSEL, 1995, p. 14). Ao perceber o choque
entre os mundos europeu e ameríndio —sendo o segundo dominado e destruído pelo primeiro sob a justificativa da conquista­— estabeleceu um processo de crise com o modelo
apresentado por Ricoeur, pois este era “[...] adequado à hermenêutica de uma cultura¸
mas não tanto para o confronto assimétrico entre culturas diversas (uma dominadora e as
outras dominadas)”, nesse sentido assevera que: “Uma filosofia com a de Ricoeur precisaria de muitas novas distinções para dar conta da complexidade assimétrica da hermenêutica nos países periféricos do Sul” (DUSSEL, 1995, p. 17, 25).
Em Método de uma filosofia da libertação diz propor um pensar diferenciado ao que
até então se desenvolveu, pois para ele tanto os pós-hegelianos, com Feuerbach, Marx e
Kierkegaard, que realizaram a crítica à dialética hegeliana, como Levinas que tecia críticas
à ontologia de Heidegger, precisam ser superados a partir da América Latina, pois representariam “[...] a pré-história da filosofia latino-americana e o antecedente imediato de
nosso pensar latino-americano” (DUSSEL, 1986, p. 190) pelo que explica:
Não podíamos contar nem com o pensar europeu preponderante (de
Kant, Hegel ou Heidegger), porque nos incluem como “objeto” ou “coisa” em seu mundo; não podíamos partir daqueles que os imitam na América Latina, porque é filosofia inautêntica. Tampouco podíamos partir
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dos imitadores latino-americanos dos críticos de Hegel, porque igualmente eram inautênticos. (DUSSEL, 1986, p. 190).
É nesse contexto que constrói o que considera um método dialético positivo, que
denomina “analético”. Na tentativa de diferenciar sua proposição do método criado por
Hegel, explica: “O método dia-lético é a expansão dominadora da totalidade desde si; a
passagem da potencia para o ato de ‘o mesmo’. O método analético é a passagem ao justo
crescimento da totalidade desde o outro e para ‘servi-lo’ criativamente.” (DUSSEL, 1986,
p. 196).
Assim, o método analético, que parte da revelação do outro e pensa sua palavra,
seria “[...] a filosofia latino-americana, única e nova, a primeira realmente pós-moderna
e superadora da europeidade” (DUSSEL,1986, p. 197). Para Dussel a filosofia latino-americana que surge como um novo momento da história da filosofia humana, precisa ser
analógica, superadora da modernidade europeia, russa ou norte-americana, e antecessora
da filosofia africana e asiática pós-moderna. A filosofia do futuro seria: “[...] a filosofia dos
povos pobres, a filosofia da libertação humano-mundial”, no sentido de uma humanidade analógica, “[...] onde cada pessoa, cada povo ou nação, cada cultura possa, expressar
o que lhes é próprio na universalidade analógica que não é nem universalidade abstrata
[totalitarismo de uma particularismo abusivamente universalizado], nem a universalidade
concreta [consumação unívoca da dominação]).”(DUSSEL, 1986, p. 212).
Por sua vez Mignolo (2002, p. 32) defensor da tese da geopolítica do conhecimento
afirma que qualquer história sempre começa da Grécia, passa pelo Mediterrâneo e chega à
Europa, pelo que, o resto do mundo, fica fora dessa narrativa historiográfica, inclusive no
campo filosófico. Na defesa do que denomina “um paradigma outro” apregoa a necessária
descontinuidade na história da modernidade (contada desde a modernidade, europeia), e
a introdução de um ponto de vista oposto.
Em sua obra Histórias locais/projetos globais lança as bases da hermenêutica plutitópica, que segundo ele é necessária para indicar que a semiose colonial acontece ‟[...] no
entrelugar de conflitos de saberes e estruturas de poder”, pois tal hermenêutica deveria
revelar ao mesmo tempo as intenções entre a configuração acadêmica e disciplinar e a
posição social, étnica e sexual do sujeito da compreensão” (MIGNOLO, 2003, p. 40).
É perceptível que o pensamento jurídico, filosófico ou hermenêutico, brasileiro
ainda repousa sobre uma base majoritariamente monotópica, representada na figura do
“operador do direito”. A proposta pluritópica modificaria substancialmente essa forma de
pensar e agir no Direito.
Se Dussel e Mignolo cumpriram e ainda cumprem esse papel crítico, por vezes radical, de denunciar certa subserviência (imposta ou aceita) intelectual-filosófica dos latino-americanos, Maurício Beuchot parece ser um pensador que trouxe para si o desafio
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de romper com tal condição desfavorável, utilizando a filosofia e a hermenêutica jurídica
para tanto.
Beuchot é mexicano e sua obra tem alcançado repercussão mundial, por ser autor e
difusor de uma proposta hermenêutica diferenciada, que poderá vir a ser revolucionária,
na medida em que possui como uma de suas maiores virtudes o equilíbrio e a conciliação.
O livro fundamental da proposta beuchotiana é o Tratado de hermenéutica analógica.
O objetivo dessa “nova” hermenêutica seria duplo: primeiro, ampliar o campo de
validez das interpretações, restrito pelo univocismo; segundo, restringir e limitar o campo de validez das interpretações desmedidamente abertas pelo equivocismo. Não haveria
uma única interpretação válida, nem tão pouco interpretações infinitas, “[...], sino un
pequeño grupo de interpretaciones válidas, según jerarquía, que puedan ser medidas y
controladas con arreglo al texto y al autor” (BEUCHOT, 2000, p. 11).
Não se pode olvidar que, se a univocidade já esta superada em outras áreas do saber,
no Direito ainda há muitas frentes de resistência, amparadas e fundamentadas pela justificativa de maior segurança jurídica que a postura univoca parece oferecer. Tendências
equivocistas, tem se estabelecido nos últimos anos, com perspectiva de dominar o cenário
jurídico brasileiro no porvir, com destaque para a atuação dos tribunais superiores, precipuamente no concernente ao reconhecimento normativo dos princípios.
6.Conclusões
Constatada a insurgência de novos direitos busca-se seu reconhecimento e consequente efetivação. Diante da letargia dos meios tradicionais do Estado para realização
destes desideratos, mormente do Legislativo que, tradicionalmente, cumpria como protagonista tal missão, aponta-se o caminho hermenêutico como o mais adequado aos desafios contemporâneos.
A hermenêutica filosófica apresenta-se como instrumento inovador a proporcionar
os meios para se constituir (revelar, descortinar) direitos outrora negados, visto que a expressão clássica ou tradicional deste saber não permitiria tal amplitude, posto que baseada
na subsunção.
Contudo, no texto apresentam-se elementos de desconfiança quanto à versão mais
conhecida e difundida da hermenêutica filosófica (gadameriana), aquela derivada da filosofia hermenêutica (heideggeriana), por apresentar problemas essenciais ao refletir um
pensamento excludente e que se posta com superior aos demais: o eurocentrismo.
Este seria o “odre velho” desejoso de receber, e acreditando-se apto a conter, o “vinho
novo” (novos direitos).
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Ora, novos direitos pressupõem visão e perspectiva inclusivas, não exclusivas. Surgem em contextos diversos e diversificados. São especificidades e idiossincrasias culturais,
geográficas, econômicas, históricas que explicam o valor conferido a determinados direitos em uma localidade, região ou país que não geram a mesma postura ou demanda em
outros loci.
O eurocentrismo flerta com a globalização em uma de suas expressões mais nefastas:
a epistemológica. Tenta-se impor uma única maneira de pensar e de interpretar. Usa-se
o universalismo para aprofundar o desejo de enfrentar as diferenças com a imposição da
igualdade (formal), desconsiderando o caminho do respeito e da tolerância.
Dai que a busca por outros modelos que sejam alternativas viáveis à insuficiência do
eurocentrismo para o enfrentamento de questões típicas da América Latina, surge como
postura imperativa. “Novas hermenêuticas” para “novos direitos” é o que se propõe. Na
verdade são novos modelos hermenêuticos desde a latinoamérica que desejam contribuir
para a emergência e maior grau de realização de direitos fundamentais. São eles: hermenêutica diatópica, hermenêutica analética, hermenêutica pluritópica e hermenêutica
analógica.
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