CAPÍTULO 1 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS CLARICE GORENSTEIN TANIA MARCOURAKIS Os psicofármacos distinguem-se dos outros tipos de medicamentos por obrigatoriamente atuarem no sistema nervoso central (SNC). Isso implica a necessidade de que eles e/ou seus metabólitos atravessem uma barreira adicional – a barreira hematencefálica. Os princípios básicos que determinam os demais processos, ou seja, absorção, distribuição, biotransformação e excreção, são essencialmente os mesmos que para os demais fármacos (Fig. 1.1). Alguns desses conceitos básicos de farmacologia serão brevemente revistos, com ênfase na sua aplicação em psicofarmacoterapia. ABSORÇÃO Todos os processos que ocorrem desde a administração de uma droga até sua eliminação envolvem a passagem através de barreiras representadas pelas membranas celulares. A absorção refere-se à passagem da droga do seu sítio de aplicação para a corrente sangüínea. Os principais mecanismos por meio dos quais os psicofármacos atravessam membranas são difusão aquosa e difusão lipídica. A difusão aquosa consiste na passagem através dos poros aquosos, o que ocorre principalmente em função do tamanho da molécula. As moléculas grandes difundem-se mais lentamente do que as pequenas. Como o peso molecular da maioria das drogas não varia muito, em geral é a passagem pelas barreiras não-aquosas que determina a velocidade de absorção.1,2 Para que ocorra a difusão lipídica, é necessário que a molécula seja lipossolúvel e esteja na forma não-ionizada. Como muitas drogas são ácidos ou bases fracas (os psicotrópicos em geral são bases fracas), elas se apresentam sob duas formas em equilíbrio dinâmico: não-dissociada (ou não-ionizada), e dissociada (ou ioni- PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS zada). Para a maioria das drogas, a lipossolubilidade da fração não-dissociada é suficiente para permitir considerável absorção. A proporção de moléculas que se encontra na forma não-ionizada, ou seja, o grau de dissociação, depende das propriedades físico-químicas da droga (que determinam seu pKa) e do pH do meio em que está dissolvida. Em conseqüência dessas propriedades, sabe-se que drogas de caráter ácido são mais bem absorvidas no estômago, enquanto as básicas tendem a ser absorvidas no intestino.3 Destaca-se, entre os vários fatores que modificam a velocidade de absorção, a influência da via de administração. A via endovenosa, embora possibilite um melhor controle da quantidade administrada e seja, sem dúvida, a via mais rápida para a obtenção de efeitos, apresenta risco de efeitos adversos ou de superdosagem relativa muito maior do que as demais vias. Efeitos tóxicos autonômicos e cardíacos podem ser observados com drogas como clorpromazina ou amitriptilina, cuja administração endovenosa deve ser feita com cautela.2 A via intramuscular, utilizada para sedação de pacientes agitados e para administração de neurolépticos de ação prolongada, permite a administração de volumes moderados de soluções, veículos oleosos (p. ex., enantato e decanoato de flufenazina) e soluções irritantes, o que já não é possível com injeções subcutâneas. Por outro lado, o diazepam administrado por via intramuscular resulta em absorção lenta e errática, com picos de concentração plasmática inferiores aos obtidos após administração oral, provavelmente devido à cristalização do fármaco no local da injeção. A via oral é a mais amplamente utilizada. A absorção se processa em toda a extensão do trato gastrintestinal, sendo o estômago e o intestino os locais de maior absorção. A absorção em cada local depende da variação de pH, da irrigação e de características anatômicas, bem como das propriedades físico-químicas do fármaco. Um dos fatores que favorece a absorção no intestino é a presença de microvilosidades altamente irrigadas, que proporcionam grande área de superfície.3 Qualquer fator que acelere o esvaziamento gástrico aumentará a velocidade de absorção da droga, tanto para drogas absorvidas a partir do estômago, porque o seu contato com a parede mucosa será favorecido, quanto para as absorvidas a partir do intestino, que o atingirão mais rapidamente. Assim, quando se deseja a rápida absorção de uma droga não-irritante da mucosa gástrica, esta deve ser administrada em jejum, enquanto para uma absorção mais lenta recomenda-se ingeri-la após as refeições. Para as drogas administradas por via oral, a formulação farmacêutica exerce grande influência na absorção. As soluções são as mais rapidamente absorvidas, enquanto cápsulas, comprimidos ou drágeas o são mais lentamente, porque dependem da velocidade de dissolução da forma sólida. Nem toda a concentração da droga ingerida chega à circulação geral. Para avaliar o quanto estará disponível no sítio de ação, determina-se a biodisponibilidade da formulação farmacêutica. O termo biodisponibilidade indica a fração de uma droga ingerida que tem acesso à circulação sangüínea. A biodisponibilidade pode ser baixa se a absorção for incompleta ou se a droga for metabolizada na parede do intestino ou do fígado antes de atingir a circulação sistêmica (metabolismo de primeira passagem).1 14 DISTRIBUIÇÃO A etapa seguinte à absorção é geralmente a distribuição da droga para os diversos tecidos. A velocidade de distribuição depende do grau de perfusão do órgão. O equilíbrio de distribuição é atingido mais facilmente nos tecidos que recebem grande circulação de fluidos (coração, cérebro, fígado) e mais lentamente nos órgãos pouco irrigados (ossos, unhas, dentes e gorduras).3 A água corpórea, que corresponde a aproximadamente 60% do peso do indivíduo, distribui-se por dois compartimentos funcionais principais: o líquido intracelular (40%) e o líquido extracelular (20%, sendo 15% intersticial e 5% vascular). O volume de distribuição aparente (Vd) de uma droga é o volume de fluido no qual ela está aparentemente distribuída. Portanto, a distribuição de uma droga depende do compartimento pelo qual ela se distribui. De um modo geral, as drogas que se distribuem pelo líquido extracelular e que exercem efeitos em membranas têm início de ação mais rápido do que aquelas que devem penetrar na célula para atuar. Dado que são lipossolúveis, a maioria dos psicofármacos distribui-se pela água corpórea total.2 A distribuição também é regulada pela ligação da droga às proteínas plasmáticas (principalmente albumina), o que torna a droga biologicamente inativa. A competição entre dois fármacos pela ligação às proteínas plasmáticas leva a um aumento de suas porções livres, o que pode determinar o aumento do efeito terapêutico e tóxico ou a ineficácia terapêutica.4 15 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS Figura 1.1 Etapas da droga no organismo após a administração. A droga pode também se acumular no tecido adiposo. Este constitui, aproximadamente, 15% do peso corpóreo, e seu volume é de cerca de 25% do volume de água total, representando, portanto, um grande compartimento não-polar do organismo. Uma molécula não-polar, com alto coeficiente de partição óleo/ água, tende a acumular-se consideravelmente no tecido adiposo, não exercendo ação farmacológica. O acúmulo em um determinado tecido pode prolongar a permanência da droga no organismo, como ocorre, por exemplo, após administração endovenosa de tiopental, que se acumula no tecido adiposo e sofre redistribuição.2 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS BARREIRA HEMATENCEFÁLICA Embora o cérebro represente apenas 2% do peso corpóreo de um indivíduo, ele recebe aproximadamente 16% do débito cardíaco. Devido ao seu alto suprimento sangüíneo, esperar-se-ia que as drogas passassem rapidamente da corrente circulatória para o espaço extracelular cerebral, mas isso não ocorre devido à restrição imposta pela barreira hematencefálica. Embora não verdadeiramente definida do ponto de vista anatômico, essa barreira caracteriza-se pela justaposição das células do endotélio dos capilares cerebrais. É provável que o arranjo característico das células pericapilares da glia também contribua para a lenta difusão dos ácidos e das bases orgânicas para o SNC. Além disso, a vascularização das diversas áreas cerebrais não é uniforme (p. ex., o córtex é mais vascularizado que a substância branca), e as drogas entram mais rapidamente nas áreas mais vascularizadas.2 Além da barreira hematencefálica, existe uma via indireta de passagem, que é a barreira hematoliquórica, constituída por células epiteliais do plexo coróide, que regulam o acesso de drogas ao líquido cerebrospinal. Os principais fatores que determinam a passagem das drogas pela barreira hematencefálica são semelhantes aos que interferem na sua passagem através do endotélio gastrintestinal para o sangue, ou seja, a lipossolubilidade, o grau de ionização e a ligação a proteínas plasmáticas. Quanto maior for a lipossolubilidade, mais facilmente a droga penetra no cérebro. A maioria dos psicofármacos são aminas secundárias ou terciárias que, sendo lipossolúveis, não encontram dificuldade na passagem para o cérebro. Para aumentar as concentrações cerebrais de substâncias com baixa lipossolubilidade, como a dopamina e a serotonina, é necessária a administração de seus precursores, L-dopa e L-triptofano, respectivamente, que atravessam a barreira. No caso de drogas polares, a velocidade de difusão para o SNC é determinada pela solubilidade da forma não-iônica.5 Em relação ao grau de ionização, sabe-se que apenas moléculas neutras são capazes de atravessar barreiras lipídicas e que, portanto, o transporte será tanto mais rápido quanto maior for a concentração de moléculas. Já a passagem dos íons é determinada pelo seu tamanho: íons pequenos, como o lítio, são capazes de atravessar os poros das membranas, enquanto íons maiores dependem da presença de algum tipo de transporte ativo. Substâncias altamente ionizadas, tais como as aminas quaternárias, são geralmente incapazes de penetrar no SNC. 16 BIOTRANSFORMAÇÃO Biotransformação ou metabolismo é o conjunto de alterações químicas que a droga sofre no organismo sob a ação de enzimas. O principal objetivo da biotransformação é facilitar a eliminação. A maioria das drogas tem alto coeficiente de partição óleo/água, isto é, são altamente lipossolúveis, o que favorece sua reabsorção pelos túbulos renais e aumenta seu tempo de permanência no organismo. Assim, drogas lipossolúveis são biotransformadas em compostos mais polares, passíveis de eliminação. Drogas de baixa lipossolubilidade ou altamente ionizadas, são excretadas in natura pelos rins (p. ex., barbital e lítio).3 Geralmente, a biotransformação transforma drogas ativas em metabólitos inativos (p. ex., haloperidol). Entretanto, os metabólitos também podem ser ativos (p. ex., desipramina, metabólito da imipramina), ou até mais ativos do que o composto original (p. ex., hidrato de cloral). A biotransformação ocorre principalmente no fígado, cujas enzimas localizamse na fração mitocôndrica (monoaminoxidase, MAO), na fração microssômica, responsável pela biotransformação das drogas lipossolúveis (sistema do citocromo P450, que participa principalmente de reações oxidativas e de algumas redutivas) e na fração solúvel (p. ex., desidrogenases, amidases, transferases). As principais reações químicas que as drogas sofrem por ação enzimática são: a) reações de fase I: oxidação, redução e hidrólise; b) reações de fase II: conjugação, que normalmente produz compostos inativos. Embora grande parte das reações oxidativas se processe nos microssomas hepáticos, estas também podem ocorrer em outros locais. Por exemplo, a enzima mitocondrial MAO é responsável 17 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS A ligação a proteínas plasmáticas limita a concentração da droga nos tecidos e no sítio de ação uma vez que apenas a fração não-ligada tem a capacidade de atravessar as membranas. Drogas altamente ligadas a proteínas plasmáticas tendem a penetrar no cérebro e no líquido cerebrospinal mais lentamente. A maioria dos psicofármacos apresenta alta taxa de ligação às proteínas plasmáticas e teciduais, e, portanto, pequenas alterações de sua fração livre, como em estados carenciais, devidos à desnutrição, por exemplo, ou no envelhecimento, podem levar à intensificação de seu efeito farmacológico.5 Como o líquido cerebrospinal normalmente não contém proteínas, toda droga aí presente encontra-se livre. Por outro lado, o cérebro é rico em proteínas, podendo haver intensa ligação protéica. Pequenas modificações na taxa de ligação podem levar a alterações importantes nas concentrações de droga biologicamente ativa em seus locais de ação. Vale ressaltar que recentemente foi identificada uma série de proteínas transportadoras de moléculas expressas nas membranas celulares, que tem conferido proteção ou toxicidade dependendo de sua localização (células intestinais, renais, hepáticas, placenta e endotélio cerebral) e do agente envolvido. Um exemplo é a MDR (multidrug resistant proteins) ou glicoproteína P, cuja superexpressão, geneticamente definida, na barreira hematencefálica pode ser um dos mecanismos que explica a resistência ao tratamento antiepiléptico em alguns pacientes.1 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS pela degradação oxidativa de dopamina, noradrenalina, serotonina e tiramina, existindo em vários órgãos e tecidos, como cérebro, fígado, rins, coração e plaquetas sangüíneas. Já o álcool etílico é oxidado, transformando-se em acetaldeído, principalmente pela álcool-desidrogenase e, em menor quantidade, pelas oxidases microssômicas.2 Enquanto as reações de redução e hidrólise não são comuns nos psicofármacos, as de conjugação são bastante freqüentes. Elas consistem na combinação da droga ou dos seus metabólitos com moléculas pequenas que existem no organismo, tais como o ácido glicurônico (glicuronidação), o ácido acético (acetilação), o ácido sulfúrico (sulfatação), os radicais metila (metilação), a glicina, etc. O objetivo dessas reações é tornar a droga menos lipossolúvel e mais facilmente excretável pela bile ou pelos rins. A acetilação de drogas como a fenelzina parece ser geneticamente determinada, sendo que pacientes que a acetilam rapidamente tendem a apresentar menor resposta terapêutica que os acetiladores lentos.2 Algumas drogas são eficazmente removidas da circulação pelo fígado e biotransformadas antes de atingir a circulação sistêmica. Este metabolismo de primeira passagem, ou metabolismo pré-sistêmico, exige doses maiores da droga quando ela é administrada por via oral. Por exemplo, mais de 80% de uma dose oral de cloropromazina pode ser metabolizada por esse processo, e calcula-se que a administração por via intramuscular resulte em níveis plasmáticos cinco vezes maiores que os obtidos com a mesma dose oral dessa substância. Drogas tais como imipramina, doxepina, levodopa e metilfenidato também sofrem o efeito da primeira passagem.5 Os avanços recentes em farmacologia molecular permitiram a caracterização, até o momento, de 267 famílias de citocromo P450, codificadas por mais de 5.000 genes.1 As isoenzimas do citocromo P450 são representadas pela sigla CYP, seguida de um algarismo que indica a família, uma letra que indica a subfamília e outro algarismo que indica o gene. Por exemplo, CYP3A2 significa a isoenzima 2 da família 3 e da subfamília A.3,6 Isoformas específicas de CYP são responsáveis pelo metabolismo dos diversos psicofármacos. Nem todos os indivíduos têm as mesmas enzimas do CYP450, o que explica a variabilidade individual na taxa de metabolismo das medicações. A subfamília 3A do citocromo P450 e as isoformas 3A3 e 3A4 (CYP3A3/4) são particularmente importantes em psicofarmacologia devido ao seu envolvimento no metabolismo de várias substâncias, como antidepressivos, benzodiazepínicos, bloqueadores de canais de cálcio e carbamazepina. A participação dos sistemas enzimáticos no metabolismo das diferentes drogas tem implicações na interação medicamentosa, como será explicado adiante.5 INDUÇÃO E INIBIÇÃO ENZIMÁTICA Algumas drogas são capazes de promover estimulação da atividade das enzimas hepáticas, particularmente pelo aumento da síntese de enzimas. A indução enzimática acelera a biotransformação de muitas drogas, diminuindo a intensidade e a duração de suas ações. O fenobarbital e a carbamazepina são exemplos de 18 EXCREÇÃO Os processos básicos mais importantes para a excreção renal de psicofármacos são a filtração glomerular e a reabsorção tubular. A filtração glomerular permite a eliminação de moléculas não muito grandes (peso molecular inferior a aproximadamente 20.000) e não-ligadas às proteínas plasmáticas. As substâncias lipossolúveis, após sofrerem filtração glomerular, são reabsorvidas por difusão passiva nos túbulos renais. A reabsorção tubular é altamente influenciada pelo pH urinário. Como ocorre na absorção, as formas não-ionizadas tendem a ser reabsorvidas pelos túbulos renais. Assim, ácidos fracos são excretados melhor em urina alcalina, e bases fracas, em urina ácida. Daí as vantagens de alcalinizar a urina de pacientes com superdosagem de barbitúricos e de usar cloreto de amônio para acidificar a urina de intoxicados por anfetamina.1 A excreção de drogas na bile e sua conseqüente reabsorção intestinal geram o chamado ciclo êntero-hepático, que é parcialmente responsável pela longa permanência de drogas como a cloropromazina no organismo. 19 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS drogas que possuem essa capacidade. A indução da CYP3A4 ocorre geralmente após alguns dias de tratamento e desaparece cerca de uma semana após a suspensão de seu uso. A conseqüência mais comum da indução enzimática é que várias drogas podem estimular seu próprio metabolismo, levando assim à ineficácia da medicação e à necessidade de aumento da dose para obtenção dos efeitos originais (tolerância). Como essas enzimas são inespecíficas, o uso de um indutor pode causar aceleração da biotransformação de outras drogas administradas concomitantemente. Em fumantes, por exemplo, pode ser necessário o ajuste da dose de drogas metabolizadas pela CYP1A2A, que é induzida pela nicotina.2 O fenômeno oposto é a inibição enzimática, que determina o acúmulo das substâncias degradadas pela enzima inibida. O exemplo mais típico em psiquiatria é o dos antidepressivos inibidores da MAO. Essas drogas, além de acarretarem acúmulo dos neurotransmissores, que são seus substratos naturais, potencializam os efeitos pressórios de aminas simpatomiméticas administradas, como descongestionantes nasais e broncodilatadores, ou ingeridas na alimentação, como é o caso da tiramina. A inibição da MAO intestinal e hepática leva ao acúmulo de tiramina, que libera noradrenalina da terminação nervosa, acarretando crises hipertensivas. Esse risco é minimizado pela contra-indicação de drogas de ação indireta e pela restrição dietética (alimentos ricos em tiramina, como queijos envelhecidos, arenque defumado, etc.).2 Com os inibidores reversíveis da MAO, como a moclobemida, essas interações são potencialmente muito menos perigosas. Outro exemplo de inibidor enzimático é o dissulfiram, que inibe a aldeidodesidrogenase, promovendo, assim, o acúmulo de aldeído acético, responsável pelas manifestações desagradáveis da ingestão de álcool. O sistema enzimático P450 também é alvo de inibição enzimática. Por exemplo, antidepressivos como a fluoxetina e a fluvoxamina inibem CYP3A3/4, aumentando a concentração de outros substratos da enzima, o que pode levar à intoxicação. Os psicofármacos podem também ser excretados no leite, mas seus efeitos no lactente são pouco conhecidos. Sabe-se, por exemplo, que o diazepam excretado dessa maneira pode produzir efeitos sedativos na criança. PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS DURAÇÃO DA AÇÃO Conforme já abordado, o início de ação das drogas depende da via de administração, da formulação farmacêutica, da velocidade de absorção e da passagem para o cérebro, que, por sua vez, depende, dentre outros fatores, da lipossolubilidade. Já a duração dos efeitos depende principalmente das meias-vidas de eliminação (β) da droga ou de seus metabólitos ativos. No caso de doses únicas de drogas muito lipossolúveis, a duração de ação é geralmente determinada pela meiavida de distribuição. Por exemplo, a meia-vida do diazepam, após atingir o pico de concentração no sangue, é rápida, e ele é extensivamente distribuído aos tecidos, o que pode resultar em uma curta duração do efeito após doses únicas.2 Por outro lado, quando a administração é repetida, a meia-vida de eliminação é que determinará a ocorrência ou não de acúmulo do fármaco e/ou de seus metabólitos. Drogas de meia-vida de eliminação curta, em geral, são completamente eliminadas antes da administração seguinte. Intervalos de administração inferiores a aproximadamente quatro vezes a meia-vida de eliminação (tempo necessário para a eliminação completa) provocarão acúmulo. Drogas de meia-vida curta são as que usualmente determinam fenômenos rebote, isto é, a expressão exagerada da condição original (insônia rebote, insônia de fim de noite, ansiedade diurna) e aquelas cuja síndrome de abstinência se manifesta mais rapidamente.5 Algumas drogas, como os inibidores da MAO, exercem efeitos muito mais prolongados do que sua meia-vida biológica. A tranilcipromina, por exemplo, tem uma meia-vida plasmática de apenas algumas horas, mas doses únicas de 10 mg desse composto promovem intensa inibição da atividade da MAO de plaquetas, que somente retorna aos valores pré-tratamento após mais de uma semana. Assim, quando se emprega o termo meia-vida, deve-se especificar meia-vida farmacológica (tempo necessário para que os efeitos de uma droga sejam reduzidos pela metade); meia-vida plasmática (tempo para que concentrações plasmáticas sejam reduzidas em 50%); e meia-vida biológica (tempo no qual as concentrações corpóreas totais de uma substância são reduzidas em 50%). FATORES QUE MODIFICAM O EFEITO DAS DROGAS Vários fatores intrínsecos e extrínsecos podem modificar os processos que ocorrem desde a administração até a eliminação das drogas, alterando, portanto, seu efeito. Entre os fatores intrínsecos (i.e., dependentes do organismo), destacam-se os constitucionais, ou seja, a variabilidade individual, os fatores genéticos e a idiossincrasia, bem como a idade, o peso e a composição corpórea. A variabilidade individual é responsável pela variação na intensidade dos efeitos observados com uma 20 21 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS determinada dose dentro de uma população. Os fatores genéticos são os principais determinantes da insensibilidade ou da sensibilidade exagerada a uma droga, decorrentes do aumento ou da diminuição da quantidade de enzimas de biotransformação. Uma resposta inesperada é chamada idiossincrasia e pode ser devida à ausência ou alteração genética de uma enzima.3 Diferenças genéticas podem afetar a resposta aos fármacos, já que são responsáveis por variações nas atividades de enzimas e transportadores envolvidos na absorção, na distribuição, no metabolismo e na excreção de drogas. A grande variabilidade genética (étnico-racial), decorrente do polimorfismo de diferentes isoformas do CYP, pode alterar a metabolização dos fármacos. Os polimorfismos podem também interferir no padrão de efeitos colaterais, como, por exemplo, o aumento de peso observado com antipsicóticos, que apresenta alta correlação com o dimorfismo na região promotora do receptor de serotonina 5-HT2C. Contribuem para o maior risco de discinesia tardia dos antipsicóticos típicos (como o haloperidol) os fatores ambientais (p. ex., o tabagismo) e o polimorfismo genético do receptor de dopamina (D3) e da isoforma CYP1A2 envolvida no seu metabolismo.5 A idade assume um papel importante, principalmente nos extremos, quando os sistemas enzimáticos responsáveis pela biotransformação não estão completamente desenvolvidos (recém-nascidos) ou quando a capacidade de excreção renal está diminuída (idosos). O peso e a constituição corpórea adquirem importância para indivíduos muito magros ou obesos, casos nos quais a proporção entre água e gordura é diferente da normal. Por exemplo, o obeso necessita de uma dose maior de drogas que se acumulam no tecido adiposo e menor de drogas que se distribuem preferencialmente no compartimento extracelular, pois seu volume de água é relativamente menor.3 Os fatores condicionais são os ligados a condições especiais do organismo, tais como estado patológico e psicológico. Entre os estados patológicos, destacamse as condições que podem interferir na biotransformação (p. ex., insuficiência hepática), na ligação das drogas a proteínas plasmáticas (p. ex., subnutrição), na distribuição (p. ex., edema e desidratação) e na excreção (p. ex., insuficiência renal, diarréia, acidose e alcalose).3 O estado emocional, por sua vez, pode modificar ou mesmo inverter os efeitos de uma droga. Por exemplo, a administração de um benzodiazepínico pode levar a um efeito ansiogênico paradoxal em um indivíduo que está muito ansioso e agitado. Além disso, na gravidez, a presença de quantidades anormais de hormônios pode interferir no efeito de algumas drogas. No caso particular dos psicofármacos, o efeito placebo, isto é, o efeito não atribuível à ação farmacológica, assume uma dimensão maior. Esse efeito inespecífico, presente na administração de qualquer medicamento, resulta, entre outros fatores, da interação médico-paciente e da expectativa do paciente em relação ao resultado do tratamento em termos de efeitos benéficos e colaterais. Estudos de neuroimagem em pacientes deprimidos demonstraram que, ao menos em parte, a remissão dos sintomas depressivos produzida pelo placebo é mediada pelas mesmas alterações cerebrais que as produzidas por antidepressivos ativos. Os fatores extrínsecos são os dependentes da droga, tais como suas características físico-químicas e sua formulação farmacêutica, e de suas condições de uso, ou seja, via de administração, dose, administração aguda ou crônica e interação com outras drogas.3 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS MECANISMOS DE AÇÃO Os psicofármacos, em última análise, interferem na neurotransmissão. É crescente o número de neurotransmissores ou neuromoduladores identificados no SNC (Tab. 1.1). Os principais neurotransmissores são as catecolaminas – noradrenalina (NA), adrenalina (A), dopamina (DA) –; as indolaminas – serotonina (5-HT), histamina (H) –; os aminoácidos excitatórios – glutamato e aspartato –; os aminoácidos inibitórios – ácido γ-aminobutírico (GABA) –; e o óxido nítrico (NO). Embora sua participação efetiva no mecanismo de ação dos psicofármacos não esteja totalmente estabelecida, aparentemente NA, 5-HT, DA e GABA são, provavelmente, os neurotransmissores mais envolvidos com a ação dessas drogas.1,2 É importante lembrar que os sistemas neurais que regulam a atividade do SNC formam interações complexas entre si. Os neurotransmissores que exercem funções excitatórias interagem com os que desempenham funções inibitórias, modulando as funções nervosas de forma balanceada. Conseqüentemente, qualquer manipulação que afete um ou mais componentes desses sistemas afeta o equilíbrio e manifesta-se por meio de alterações funcionais. Assim, dificilmente pode-se pensar de forma simplista e julgar que apenas uma determinada ação farmacológica é a responsável pelo efeito terapêutico de um psicofármaco.1,2 A alteração provocada por uma droga pode decorrer de uma ou de múltiplas ações em alguma das etapas ou processos que ocorrem nas terminações nervosas. Como as ações não são exclusivas, isto é, a maioria dos psicofármacos não possui uma ação seletiva, interagindo com múltiplos sistemas simultaneamente, aumenta a possibilidade de efeitos colaterais e a potencialidade das interações medicamentosas. Em relação ao seu local de ação na terminação nervosa, os mecanismos de ação de uma droga podem ser pré e pós-sinápticos (Fig. 1.2). Por meio da ação pré-sináptica, a droga vai interferir na regulação da liberação de um neurotransmissor. Desse modo, uma droga pode aumentar ou diminuir a síntese do neurotransmissor, sua liberação, sua estocagem, sua recaptação e sua biotransformação. A síntese pode ser aumentada pela maior disponibilidade de substratos ou cofatores, como é o caso da L-dopa, precursora da síntese de dopamina, ou pode ser diminuída pela administração de inibidores enzimáticos, tais como a p-clorofenilalanina, que bloqueia a síntese de serotonina. Certas substâncias podem ainda facilitar a liberação de neurotransmissores, tais como os psicoestimulantes anfetamina e fencanfamina, que aumentam a liberação de DA e de NA ou, ainda, inibir o armazenamento de neurotransmissores como, por exemplo, a reserpina. Os antidepressivos de primeira geração, tais como a tranilcipromina e a fenelzina, inibem irreversivelmente a MAO, e os tricíclicos, tais como a imipramina, a amitriptilina e a clomipramina, inibem a recaptação de NA e de 5-HT, em diferentes proporções. As gerações seguintes de antidepressivos são compostas por grupos heterogêneos de drogas que inibem 22 Tabela 1.1 NEUROTRANSMISSORES/NEUROMODULADORES DO SNC Peptídeos hipofisários Corticotrofina (ACTH) Hormônio do crescimento (GH) Lipotrofina Ocitocina Vasopressina Prolactina Neurocininas/taquicininas Substância P Neurocinina A Neurocinina B Aminoácidos Ácido gama-aminobutírico (GABA) Glicina Ácido glutâmico (glutamato) Ácido aspártico (aspartato) Peptídeos opióides Dinorfina β-endorfina Met-encefalina Leu-encefalina Hormônios circulantes Angiotensina Calcitonina Glucagon Insulina Leptina Fator natriurético atrial Estrógenos Endrógenos Progestinas Hormônios tireoideanos Gases Óxido nítrico (NO) Monóxido de carbono (CO) Outros peptídeos Bombesina Bradicinina Carnosina Neuropeptídeo Y Neurotensina Galanina PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS Aminas Serotonina (5-HT) Dopamina (DA) Norepinefrina (NE) Epinefrina Acetilcolina (Ach) Histamina Melatonina Feniletilamina Octopamina Hormônios intestinais Colecistocinina (CCK) Gastrina Motilina Secretina Peptídeo vasoativo intestinal Neurotransmissor lipídico Amandamida seletivamente a recaptação de 5-HT (fluoxetina, paroxetina, sertralina), de NA (reboxetina) e de DA (bupropiona), de NA e 5-HT (venlafaxina) ou que têm outros mecanismos de ação (p. ex., mirtazapina, nefazodona, trazodona).5 Qualquer alteração na liberação do neurotransmissor poderá interferir também nos mecanismos inibitórios de controle de sua concentração exercidos pelos autoreceptores pré-sinápticos. Esses receptores também podem ser diretamente esti23 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS Figura 1.2 Principais eventos sinápticos. mulados ou inibidos por substâncias como, por exemplo, a clonidina e a ioimbina, respectivamente. Em resumo, uma droga de ação pré-sináptica pode, por exemplo, promover um efeito excitatório quando, por meio de um ou mais dos mecanismos mencionados, aumenta a concentração de um neurotransmissor excitatório na fenda sináptica ou diminui a concentração de um neurotransmissor inibitório. Da mesma forma, a ação de um psicofármaco pode ocorrer em algum dos eventos pós-sinápticos. Mais uma vez, o efeito final vai depender da ativação ou da inibição de vias excitatórias ou inibitórias. A droga pode interferir na própria ligação do neurotransmissor a seus receptores ou nos mecanismos moleculares pelos quais o neurotransmissor produz alterações na membrana pós-sináptica (potencial de membrana ou segundo mensageiro), e pode, ainda, atuar diretamente nos receptores de um ou mais neurotransmissores.7 A ação pós-sináptica direta requer que a substância possua um grau de afinidade relativamente alto pelos receptores. Drogas que mimetizam a ação dos neurotransmissores endógenos nos seus receptores são denominadas agonistas. Os agonistas têm afinidade pelos receptores e a atividade intrínseca (ou eficácia), uma vez que sua interação determina um efeito. O agonista pode ser total, quando 24 25 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS exerce o efeito máximo, ocupando ou não 100% dos receptores disponíveis (p. ex., apomorfina, LSD e muscimol, que são exemplos de agonistas nos receptores de dopamina, serotonina e GABA, respectivamente). Já o agonista parcial, mesmo ocupando 100% dos receptores, produz efeito sempre menor do que o efeito máximo exercido pelo agonista total (p. ex., ação do aripiprazol nos receptores dopaminérgicos).1 As drogas também podem se ligar ao receptor e não desencadear nenhuma resposta (sem atividade intrínseca), sendo nesse caso denominadas antagonistas. Seu efeito resulta da inibição da ação do neurotransmissor ou de uma droga agonista, uma vez que elas impedem o acesso dessas substâncias aos receptores, como no caso de competir pela ocupação deles. Acredita-se que o efeito antipsicótico dos neurolépticos deva-se à sua ação antagonista nos receptores dopaminérgicos mesolímbicos preferencial por receptores D2 (clorpromazina, haloperidol, flufenazina, olanzapina, risperidona). Um efeito inibitório também pode ser observado com agonistas parciais, isto é, drogas que têm a capacidade de se ligar aos receptores (afinidade), porém cuja atividade intrínseca é menor do que a de um agonista forte. Existe ainda um grupo de substâncias que se ligam a receptores e promovem efeitos opostos aos dos agonistas. É o caso dos agonistas inversos (β-carbolinas), que atuam em receptores de benzodiazepínicos e induzem ansiedade, rigidez muscular, distúrbios de sono e convulsões. Esses efeitos são bloqueados tanto por agonistas como por antagonistas e constituem, até o momento, a única exceção na farmacologia de drogas que atuam em receptores.1 A primeira etapa na ação de uma droga em receptores específicos envolve a formação de um complexo droga-receptor reversível. Os receptores podem ser classificados em quatro tipos principais: os canais iônicos, os ligados à proteína G ou metabotrópicos, os que controlam diretamente sistemas enzimáticos (p. ex., receptor de insulina e de fatores de crescimento, ligados à tirosina quinase) e os intracelulares (p. ex., receptores para hormônios esteroidais e tireoideanos).7 O canal iônico acoplado ao receptor abre-se quando o receptor associado é ocupado por um agonista. Este é o caso dos benzodiazepínicos cujos receptores próprios formam um complexo molecular com os receptores GABAA e o ionóforo de cloro, modulando a freqüência de abertura do canal de cloro. Já os barbitúricos, por exemplo, modulam a função do canal de cloro pela ligação direta a um sítio do canal.7 Receptores de dopamina, serotonina e adrenérgicos, por sua vez, pertencem à família de receptores acoplados às proteínas G (assim denominadas devido à sua interação com os nucleotídeos guanínicos, GTP e GDP). Nesse caso, a ligação receptor-agonista desencadeia a ativação de uma proteína G localizada na face citoplasmática da membrana. A proteína G liga o receptor a uma via intracelular específica, dependente do tipo de proteína G presente: estimulatória (Gs), inibitória (Gi/o) ou ativadora do sistema fosfolipase C (Gq). A proteína G ativada altera a atividade de um elemento efetor (enzima ou canal iônico), que, por sua vez, altera a concentração do segundo mensageiro intracelular (p. ex., AMPc, diacilglicerol). Para o AMPc, a enzima efetora é a adenililciclase, uma proteína que converte ATP intracelular PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS em AMPc. A ativação do sistema AMPc pode ser feita a partir de diferentes sistemas de neurotransmissores e de diferentes tipos de receptores, sendo que as respostas variam de acordo com o tipo de proteína G ativada pelo receptor. Por exemplo, os receptores dopaminérgicos D1 e D2 estão acoplados a proteínas G que, respectivamente, ativam e inibem a adenililciclase. Os receptores β-adrenérgicos e serotoninérgicos 5-HT1 atuam através de uma proteína G estimulatória, ativando a formação de AMPc.7-10 Outro exemplo de sistema de segundo mensageiro é o fosfoinositídeo. Ele envolve receptores acoplados a proteínas G que ativam a fosfolipase C, uma enzima responsável pela formação de diacilglicerol e IP3 (1,4,5-trifosfato de inositol). O IP3 libera cálcio, que, por sua vez, gera uma série de estímulos, entre eles, a ativação da enzima responsável pela formação do óxido nítrico, a óxido nítrico sintase. A ativação da guanililciclase solúvel pelo óxido nítrico leva à formação do segundo mensageiro, GMPc. Um exemplo de receptor que atua por essa via é o 5-HT2 (Fig. 1.3).7-10 Um exemplo de psicofármaco que atua diretamente nos sistemas de segundos mensageiros é o lítio, que bloqueia a formação do fosfatidilinositol pela inibição Figura 1.3 Regulação da proteína G e dos segundos mensageiros em sistemas efetores celulares. (Adaptada de Rang; Dale, 1995.2) GMPc = guanina monosfato cíclico; AMPc = adenosina monosfato cíclico; IP3 = trifosfato de inositol; DAG = diacilglicerol; AA = ácido araquidônico; [CA+2] = cálcio intracelular; PKG = proteína quinase G; PKC = proteína quinase C; PKA = proteína quinase dependente de AMPc. 26 FENÔMENOS DE NEUROADAPTAÇÃO Sabe-se que a administração crônica de drogas leva a alterações adaptativas, por exemplo, nos receptores. Os receptores não só iniciam a regulação de uma função fisiológica ou bioquímica como também são alvos de controles regulatórios e homeostáticos. A contínua estimulação de um receptor por um agonista geralmente resulta em um estado de dessensibilização ou subsensibilidade (down-regulation), isto é, uma diminuição do efeito obtido em condições normais. Essa alteração de resposta pode envolver uma modificação do receptor, sua destruição ou diminuição de síntese ou, ainda, sua realocação na célula. A subsensibilidade é, muitas vezes, responsável pela tolerância observada após uso crônico.11 O contrário também é freqüentemente observado, ou seja, a hipersensibilidade do receptor quando exposto cronicamente a uma redução no nível de estimulação. Em alguns casos, essa hiper-reatividade decorre do aumento de síntese do receptor. A hipersensibilidade resultante do bloqueio prolongado de receptores dopaminérgicos parece estar envolvida no desenvolvimento da discinesia tardia observada no tratamento crônico com neurolépticos.11 27 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS da enzima inositol monofosfatase e pela modificação das respostas mediadas pelo sistema adenililciclase e AMPc.2 Apesar dos inúmeros estudos realizados e dos avanços obtidos, nenhuma descoberta foi capaz de explicar, de forma satisfatória, o mecanismo responsável pela ação terapêutica dos psicofármacos a partir do seu efeito agudo sobre os neurotransmissores ou das alterações na sensibilidade dos receptores produzidas após administração crônica (ver a seção a seguir, “Fenômenos de neuroadaptação”). Além disso, verificou-se que as alterações metabólicas e funcionais observadas inicialmente nos tratamentos agudos de animais na maioria das vezes não só não persistem após administração repetida como também são substituídas por alterações que podem, de fato, ser opostas às observadas agudamente.11 Passou-se, assim, a estudar as alterações moleculares (plasticidade), enfatizando as alterações intracelulares (pós-receptor) promovidas pelos psicofármacos. Essas alterações envolvem subunidades das diferentes proteínas G, os segundos mensageiros (AMPc, GMPc, fosfatidilinositol, diacilglicerol), as proteínas envolvidas na síntese e na liberação de neurotransmissores, os mensageiros gasosos intra e intercelulares (monóxido de carbono e óxido nítrico), os mecanismos de fosforilação protéica através do estudo das proteínas quinases dependentes destes segundos mensageiros (PKA, PKC e PKG) e das proteínas reguladoras de proteínas fosfatases, além dos fatores de transcrição e de receptores de corticosteróides que regulam a expressão gênica neural.11,12 Espera-se que a incorporação de técnicas sofisticadas, tais como as técnicas moleculares, o uso de marcadores genéticos e as técnicas de neuroimagem, auxiliem na elucidação dos mecanismos de ação dos psicofármacos, explicando por que drogas com ações bioquímicas agudas diferentes têm efeitos clínicos similares e, conseqüentemente, levando ao desenvolvimento de novas drogas mais eficazes e específicas.12 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS Os mecanismos de neuroadaptação têm sido relacionados não só com fenômenos de tolerância e de dependência, mas também vêm sendo propostos como subjacentes ao mecanismo de ação de muitos psicofármacos, além de estarem possivelmente implicados na fisiopatologia dos próprios transtornos psiquiátricos. Por exemplo, sabe-se que a administração crônica de muitos psicofármacos antidepressivos, ainda que não de todos, leva, entre outros resultados, ao desenvolvimento de subsensibilidade de receptores α2 pré-sinápticos e de receptores β-adrenérgicos e de hipersensibilidade de receptores α1. A diminuição na densidade e na função dos receptores β-adrenérgicos é temporalmente relacionada com o efeito clínico e é observada após administração prolongada de inibidores da MAO, tricíclicos, antidepressivos atípicos e eletrochoque. Os mecanismos subjacentes a essa subsensibilidade envolvem mecanismos de fosforilação do próprio receptor por proteínas quinases, como, por exemplo, a β-ARK (quinase do receptor β-adrenérgico), e o acoplamento de proteínas associadas, como a β-arrestina. Outro exemplo dessas alterações adaptativas envolve o sistema serotoninérgico. No tratamento agudo com antidepressivos que bloqueiam a recaptação de 5-HT, os auto-receptores inibitórios 5-HT1A, localizados nos corpos celulares dos neurônios serotoninérgicos no núcleo da rafe, estão expostos a uma concentração mais alta de 5-HT em função de seu bloqueio da recaptação. Em conseqüência disso, há uma diminuição no disparo neuronal e liberação de 5-HT. Já no tratamento prolongado, ocorre uma dessensibilização desses receptores, levando a um aumento na liberação de serotonina, que se correlaciona temporalmente com a melhora clínica. Tem sido proposto que esse efeito adaptativo está implicado na eficácia clínica desses compostos.11 Finalmente, é importante considerar que muitas dessas alterações envolvem a regulação da expressão gênica neural por meio de fatores de transcrição, tais como o CREB (proteína de ligação ao elemento de resposta ao AMPc), o Fos e o Jun, que modulam a atividade de proteínas celulares específicas.11-12 TOLERÂNCIA E DEPENDÊNCIA O uso continuado de uma droga pode levar a uma diminuição da resposta, levando à necessidade da administração de doses crescentes para a obtenção do efeito original. Esse fenômeno é chamado de tolerância. Ela pode ser inata, ou seja, uma sensibilidade preexistente, ou adquirida – neste caso, pode ser farmacocinética (metabólica) ou farmacodinâmica.2 A tolerância farmacocinética, conforme visto anteriormente, decorre da indução enzimática, com conseqüente aumento da biotransformação e diminuição da concentração do composto ativo no sangue. Por exemplo, a atividade das enzimas hepáticas aumenta após um período prolongado de consumo de álcool, acelerando sua eliminação.1 Já a tolerância farmacodinâmica depende dos fenômenos de neuroadaptação: ocorre por diminuição do número dos receptores ou da sensibilidade neuronal. 28 29 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS Por exemplo, os efeitos anoréxicos das anfetaminas, os efeitos analgésicos dos opióides e os efeitos sedativos dos benzodiazepínicos e do etanol podem diminuir de intensidade após administração crônica. Fatores ambientais também são capazes de desencadear um tipo de tolerância, conhecida como tolerância comportamental. Para um indivíduo habituado a consumir determinada droga em um mesmo ambiente, esta pode apresentar efeitos mais intensos quando administrada em um ambiente diferente. Além disso, vários psicofármacos apresentam tolerância cruzada com outras drogas da mesma classe farmacológica (opióides) ou entre compostos de efeitos semelhantes (barbitúricos e etanol). O fenômeno oposto à tolerância é a sensibilização, também conhecida como tolerância reversa, que determina um aumento da resposta inicial após administração crônica. Ocorre, por exemplo, com psicoestimulantes (cocaína, anfetamina), opióides e etanol. É possível que a sensiblização tenha um papel na manutenção da dependência, tornando os dependentes mais suscetíveis a recaídas, mesmo após longos períodos de descontinuação. A sensibilização é uma forma de plasticidade neuronal e está associada com mudanças neuroadaptativas no circuito da recompensa, decorrentes do uso crônico de drogas de abuso, sendo a dopamina o principal substrato neuronal envolvido nesse fenômeno.13 A dependência física consiste no estado de adaptação induzido pelo uso contínuo de uma droga e manifesta-se pelo aparecimento de síndrome de abstinência, isto é, um conjunto de sintomas que ocorrem quando da retirada absoluta ou relativa de uma substância psicoativa consumida de modo prolongado. A gravidade da síndrome de abstinência é variável e específica para cada droga ou conjunto de drogas. O conceito de dependência psíquica está ligado ao impulso psíquico que leva à administração da droga, geralmente para o indivíduo obter prazer com seu uso. O conceito dicotômico vem sendo abandonado, e a tendência atual é considerar a dependência como um fenômeno único. No DSM-IV14, a dependência é considerada como um conjunto de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos que indicam que o indivíduo continua a usar a substância, apesar dos problemas significativos decorrentes desse uso. Considera-se que a dependência esteja associada à ativação de sistemas de recompensa relacionados ao reforço positivo e negativo. De acordo com os princípios de reforço, a auto-administração de uma droga se mantém pelas suas conseqüências positivas, isto é, o prazer que ela proporciona, bem como por evitar as conseqüências negativas decorrentes de sua retirada, isto é, a síndrome de abstinência. As evidências experimentais sugerem que o sistema dopaminérgico mesolímbico e o hipotálamo lateral, via receptores dopaminérgicos e opióides, estejam envolvidos nos mecanismos de recompensa. Drogas que mantêm a auto-administração, tais como, anfetaminas, barbitúricos, cocaína, etanol, heroína e nicotina, promovem ativação do sistema dopaminérgico mesolímbico, aumentando a liberação de dopamina no nucleus acumbens.1 PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS INTERAÇÕES MEDICAMENTOSAS São bastante freqüentes as combinações de drogas para se obter a potenciação ou a diminuição da latência do efeito terapêutico, ou, ainda, para atingir um número maior de sintomas. Entretanto, muitas vezes essas interações não são benéficas, ou são mesmo potencialmente perigosas, devido a efeitos aditivos ou ao antagonismo entre os agentes. Por exemplo, em geral existe efeito aditivo entre os depressores do SNC, e combinações como as de barbitúricos e álcool podem ser letais.3 As interações basicamente ocorrem quando as drogas envolvidas atuam no mesmo sítio de ação (interação farmacodinâmica), podendo ocorrer sinergismo, potenciação ou antagonismo, ou quando elas se processam fora dos locais de ação, acarretando alterações na concentração de droga ao nível de seus receptores. Estas últimas podem ser farmacocinéticas, decorrentes de alteração na absorção, distribuição, biotransformação ou eliminação. Por exemplo, drogas que retardam o esvaziamento gástrico e a motilidade intestinal, como as que possuem efeitos anticolinérgicos, vão interferir na velocidade de absorção de outras drogas. A competição por ligação protéica e as alterações no metabolismo (ver biotransformação) por conseqüência da indução enzimática (barbitúricos), com diminuição da concentração plasmática da outra droga, e da inibição do metabolismo (inibidores da MAO), são alguns dos exemplos de como as drogas podem interagir quando administradas simultaneamente.3 No caso de drogas com faixa terapêutica estreita, as interações medicamentosas devem ser feitas com especial cautela por poderem desencadear efeitos tóxicos caso sua faixa terapêutica seja ultrapassada. O mais prudente é, sempre que possível, prescrever apenas um medicamento. É preferível aproveitar um efeito colateral sedativo para tratar a insônia associada a quadros psiquiátricos a prescrever um hipnótico para esse fim. Entretanto, muitas vezes a monoterapia pode não ser suficiente para a melhora adequada do paciente. Mais ainda, considerando a cronicidade da maioria dos transtornos psiquiátricos, é comum que ocorram quadros clínicos associados que necessitem de tratamentos específicos. Quando necessária, a administração concomitante de diferentes drogas deve ser cuidadosa para evitar as interações indesejáveis.2 REFERÊNCIAS 1. Brunton L, Lazo J, Parker K. Goodman & Gilman’s the pharmacological basis of therapeutics. 11th ed. New York: McGraw-Hill; 2006. 2. Rang HP, Dale MM, Ritter FM, Moore PK. Pharmacology. 5th ed. New York: Elsevier; 2004. 3. Oga S. Fundamentos de toxicologia. 3rd ed. São Paulo: Atheneu; 2007. 4. Gorenstein C, Marcourakis T. Princípios gerais. In: Cordas TA, Barreto OCO, editores. Interações medicamentosas. São Paulo: Lemos; 1998. p. 17-33. 30 5. Davis KL, Charney D, Coyle JT, Nemeroff C. Neuropsychopharmacology: the fifth generation of progress. Philadelphia: Lippincott; 2002. 6. Malhotra AK, Murphy GM JR, Kennedy JL. Pharmacogenetics of psychotropic drug response. 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