A filosofia da interculturalidade e o diálogo entre as culturas Neusa Vaz e Silva1 Introdução: Diante da heterogeneidade dos povos de nossa América, lugar de mundos e de vidas plurais, há uma necessidade de transformar, interculturalmente, nossas relações. Afora nosso grupo familiar, a academia é o espaço no qual temos a responsabilidade de promover ações interdiciplinares transformadoras; ações concretas e responsáveis pela emancipação do pensamento com vistas a colaborar para uma sociedade mais justa onde todos e todas tenham o reconhecimento de suas identidades e, como sujeitos autônomos possam, livremente, manifestarem suas formas de ser e de agir, observando os valores éticos universais do ser humano. A filosofia intercultural veio nos dar suporte epistêmico e metodológico nessa tarefa, uma vez que não se vincula a um modelo paradigmático, pois que se pauta por uma postura hermenêutica ciente de que se faz necesário deixar-se de operar com o modelo teórico-conceitual que, através dos tempos, vem servindo como paradigma interpretativo no filosofar. Com o objetivo de justificar o porquê praticar a filosofia na perspectiva intercultural, dividi meu texto em cinco itens: conceituação de cultura, interculturalidade, filosofia intercultural e diálogo. 1. Conceituação de cultura Face ao tema de nossa comunicação centrar-se na questão cultural, creio ser oportuno aclarar o sentido que darei a este termo uma vez que ele assume, ao longo da história, várias interpretações, o que nos mostra a mutação e a flutuação de seu conteúdo e demonstra que sua conceituação é passível de 1 Doutora em Filosofia ibero americana pela Universidad Centroamericana “Jose Simeón Cañas”de San Salvador/UCA – Integrante da Associação sul americana de filosofia e teologia interculturais/ASAFTI/ www.asafti.org - [email protected] 1 equívocos, o que ocasiona debates de caráter terminológico. 2 3 Pensar a Cultura dentro do atual contexto em que vivemos nos exige, fundamentalmente, compreender a complexidade das relações entre as diversas culturas; complexidade que também atravessa a própria análise teórica quando percebemos os inúmeros significados que o conceito de Cultura assume. Tomamos a concepção de cultura na perspectiva do filósofo Raúl Fornet -Betancourt.4 Em sua perspectiva, cultura é o processo concreto pelo qual uma comunidade humana determinada, organiza sua materialidade com base nos fins e valores que quer realizar. Fornet nos diz que não há cultura sem materialidade interpretada ou organizada por fins e valores representativos e específicos de uma sociedade ou etnia humana .5 É importante perceber que as culturas não são avaliadas pela altura dos seus valores espirituais ou pelo grau de formação intelectual de seus participantes. O que importa é questionar se nossas culturas estão em condições de oferecer a todas nossas relações e situações históricas, uma qualidade distinta e mais humana que a que nos dão as redes do mundo globalizado. Tomamos o sentido étnico-antropológico no qual cultura é tomada em seu sentido amplo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, direito, costumes e quaisquer outras atitudes e hábitos que o homem adquire como integrante de grupos sociais; formas de comportamento adquiridos ou transmitidos e que constituem o patrimônio singularizador dos grupos humanos, ou seja, tudo o que o homem há produzido para adaptar-se a seu entorno em suas relações com os demais. Considerando que não há culturas superiores nem inferiores, diferenciação produzida pela lógica da conquista e da dominação, felizmente sendo superada, senão culturas diferentes que 2 DIANA DE Valescar em sua obra Cultura,Multiculturalismo e Interculturalidad: hacia una racionalidad intercultural.Madrid:Covarrubias.2000,.analisa distintas conceituações de cultura. 3 Diana de Valescar Palanca (2000) comenta que entre os anos 1906 a 1916 encontramos cerca de 6 significados de Cultura. Este número cresce de uma forma espantosa entre os anos de 1920 e 1950 em que é possível encontrar 150 novos significados de Cultura. A pensadora destaca que a pluralidade de sentidos nos põe diante da dificuldade de falarmos sobre Cultura, incorrendo muitas vezes, em uma superficialidade teórica. Para tanto, Diana destaca alguns paradigmas que nortearam a preocupação teórica pela construção de uma concepção “forte” de cultura. Muitas vezes, Cultura aparece como sinônimo de tradição, isto é, como um traço que impõe unidade, define as fronteiras, visando perdurar e manter-se independente da heterogeneidade das experiências. Esta perspectiva coloca o desafio de pensarmos as inúmeras culturas que foram (e ainda são) violentadas, sofrendo o risco de desapareceram completamente da história. A vida de muitas pessoas, parece justamente depender do resgate dos traços culturais, daquilo que as identifica.. Outro paradigma é o denominado lingüístico fundante. Este paradigma leva em consideração os aspectos semânticos do conceito de Cultura. Inicialmente, a palavra cultura esteve associada à agricultura, do latim, colere, que significa cultivar. Com o passar do tempo, o cultivo da terra tornou-se metáfora para pensar o cultivo da alma. “Se observa que, tanto no caso latino como grego, a cultura é principalmente uma propriedade interior característica da personalidade, fazendo referencia a um crescimento progressivo – cultivação ou humanização” (PALANCA, obra citada, p.18-35). 4 Para nos aproximarmos da concepção de cultura em Raúl, necessitamos romper com a perspectiva da monoculturalidade própria da tradição ocidental-cristã. 5 VAZ e Silva,Neusa Teoria da Cultura de Darcy Ribeiro e a Filosofia Intercultural.S.L. :Nova Harmonia.2009 p 48. 2 representam visões diferentes de mundo, porque manifestas em espaços e tempos distintos, conclui-se que um determinado tipo de racionalidade não parece ser o único meio, nem o mais idôneo para uma relação com vistas a uma convivência solidária. Face à dominância da cultura ocidental, introjetada aos povos pelos processos civilizatórios, assimilamos uma forma de conceber a racionalidade como fator organizador da vida humana; Fornet-Betancourt nos desafia a superarmos essa concepção acerca da razão. Propõe-nos a historização do processo de constituição das formas de racionalidade vigentes. Orienta-nos acerca da “necessidade de revisálas desde um diálogo intercultural, aberto e sem pré-julgamentos de forma a trazer à tona o conteúdo monocultural das práticas do que fazer filosófico nas distintas culturas.” 6 Ou seja, o primeiro passo para um filosofar com base em uma contextualidade, é superar o marco referencial da razão sistemática e sistematizada. Para tanto, mister se faz considerar os modos de saber e de fazer dos grupos humanos, o que só se consegue em uma realidade de vida vivida e da historicidade. Exigência que pressupõe o modelo dialógico nas relações o qual considera a realidade e a existência humana inseparáveis do exercício do pensamento uma vez que são lugares de encontro, de relacionamento.7 Atentemos para o fato de que cada cultura tem vida própria e portanto qualquer aproximação cultural utilizando categorias de outra, pode resultar em uma violação. No entanto, as culturas não possuem outro instrumento de aproximação que não os seus próprios. “Não podemos saltar por cima de nossa sombra” nos diz Panikkar.8 Nessa compreensão, qualquer ação que envolva relações entre grupos humanos necessita ter como pressuposto fundamental a consciência e a informação de precisar os limites de interferência para que seja mantida a autonomia cultural e a correspondente organização social de seus povos, a fim de que a identidade étnica dos diferentes grupos humanos não seja ferida. A cultura não é algo artificial no homem como alguns querem crer, mas faz parte de sua própria natureza. Embora as culturas possam ser comunicáveis entre si, cada grupo humano possui a sua própria cultura. Dimensão tão natural, como algo inerente ao próprio ser humano. Daí que ferir a cultura de um povo é de certa forma feri-lo na carne, no mais íntimo de sua dignidade pessoal. Entretanto um aspecto importante a ser referido é que nenhuma cultura é totalmente homogenia. Constituem-se a partir de um patrimônio cultural herdado mas dentro do processo 6 Fornet-Betancourt.Revista Diálogo filosófico n.51 septiembre/diciembre 2001. Para um aprofundamento deste tema recomenda-se Teoria da cultura de Darcy Ribeiro e a Filosofia Intercultural de Neusa Vaz e Silva, Editora Nova Harmonia.2009. 8 Raimon Panikkar, La experiencia filosófica de la India. P.13 7 3 histórico natural vão se modificando incessantemente, restringindo-se ou ampliando-se, transformando-se pela incorporação de novos elementos. Mesmo em um mesmo grupo nem todos os seus integrantes pensam da mesma forma e atuam no mesmo sentido em todas as circunstancias. Dito de outra forma, toda cultura está sujeita às condições de evolução em um dinamismo permanente, o que ensejou, ao longo dos tempos, transformações tanto econômicas, como sociais e políticas. Esse processo desencadeado dentro dos grupos sociais, faz com que a história das culturas não seja estática, um vez que os grupos culturais são constituídos da soma das histórias de seus membros. Histórias que pressupõe uma matriz cultural específica, porém, abertas às influências no processo do exercício de vida de seus integrantes. Ponto 2. A interculturalidade A interculturalidade é um paradigma que nos apresenta uma nova maneira de interpretar nossa realidade histórica, sócio- cultural e inclusive vivencial, capaz de interferir no debate pedagógico, colaborando para uma convivência mais solidária entre os distintos seres humanos das distintas procedências. Vivemos um tempo no qual embora juntos, aproximados pela tecnologia, nem sempre em verdadeira comunicação. A interculturalidade supõe uma atitude frente ao outro desafiando-nos ao estabelecimento de uma convivência solidária. Razão porque colocamos a filosofia da interculturalidade como uma atitude hermenêutica que está relacionada com nossa própria identidade uma vez que se apóia na diversidade humana - cultural. Atitude que possibilita o estabelecimento de um diálogo aberto para reorganizar nossa vida social a partir da preservação e valoração da heterogeneidade de nossos povos. A interculturalidade é o marco teórico - prático que possibilita a integração da pluralidade. A interculturalidade objetiva a promoção da interação entre as diferenças por meio de encontros motivados por uma ação real e responsável com a valorização das diferentes culturas, das diferentes línguas e o reconhecimento do quão fecunda é a interação entre elas. A perspectiva intercultural nas relações supõe uma valorização mútua de parte das culturas que interatuam. Portanto, é exigência a cada uma delas a consciência de seus limites e a disposição de aprender da outra sem dissolver sua própria originalidade, enriquecendo-a e enriquecendo-se incessantemente. A interculturalidade se dá em um duplo movimento, querer entender e querer ser entendido. É acompanhada da disposição de retomar continuamente e em atitude de diálogo a própria visão e percepção do mundo. Outro aspecto ainda que deve ser referido é que a interculturalidade não significa somente a presença consentida de muitas culturas em uma sociedade nem tampouco o reconhecimento jurídico por parte do Estado, introduzindo a educação bilíngüe, por exemplo, em todos os níveis 4 escolares ou concedendo cotas nas escolas superiores para as minorias. Significa sim, a valorização das diferentes culturas e das línguas e, logicamente,o reconhecimento da fecunda interação entre elas. Citando Josef Estermann, afirmamos “até agora a filosofia dominante só se interpretou como filosofia dos dominadores, porém chega o momento em que lhe toca a urgência de colocarse a serviço dos dominados e a mudar o mundo desde baixo”.9 Ponto 3: Filosofia Intercultural: Tem que ficar claro quando falamos de filosofia intercultural que não se deve confundí-la com a filosofia da cultura10. A filosofia intercultural, ainda que também faça uma análise das culturas, não tem seu eixo de desenvolvimento nem sua preocupação central na análise das culturas em si ou no intuito de facilitar uma compreensão filosófica das culturas. Sua função está intimamente ligada, a uma concepção de ser humano, tanto na sua perspectiva ontológica como ao seu mundo relacional, uma vez que a ênfase de sua abordagem incide sobre os aspectos relacionados às relações entre as culturas, e, pelo fato de o ser humano ser um todo indissociável, a interferência sobre qualquer uma de suas dimensões vai atingir a totalidade de seu ser. Todos os povos e etnias têm o seu modo de viver e de conhecer o mundo. A filosofia intercultural orienta-se a partir da singularidade do processo histórico concreto, que dá a forma à identidade humana, mas embora partindo das singularidades, não se fecha em suas particularidades tradicionais, mas busca comunicar-se e entrar em relação com os outros. É uma proposta que nos convida a transformar o nosso filosofar em um saber que, mediado pela teoria e prática, aproxima os seres humanos e suas culturas ao mundo de hoje, para que esse mundo seja realmente nosso. Uma forma de fazer filosofia que não reduz sua tarefa ao estudo exegético do mundo textual que ela mesma há produzido, mas que transpassa o mundo dos textos para ocuparse com os contextos do mundo histórico dos humanos de hoje, nos ensina Fornet-Betancourt. É uma maneira de fazer e praticar a filosofia que brota do inédito. Trata-se de criar desde as potencialidades filosóficas que se vão historicizando em um ponto de vista comum, ou seja, não dominado, nem colonizado culturalmente por nenhuma tradição cultural. Uma filosofia que, superando os esquemas da filosofia comparada, aponta para a realização da filosofia no sentido de um processo aberto, no qual vão se convocando e aprendendo a conviver as experiências filosóficas de toda a humanidade. Ou seja, um processo polifônico onde se consegue a sintonia e a harmonia das diversas vozes no continuo aprender a partir de suas opiniões e experiências. 9 Josef Estermann, Revista Concordia,n.37 p.7. Ernst Cassirer. 10 5 A filosofia intercultural caracteriza-se por renunciar a qualquer operação que se embase em uma hermenêutica reducionista, apoiada em um só modelo teórico-conceitual que sirva de paradigma interpretativo. Ou seja, prefere entrar no processo de busca criadora que se estabelece na medida em que tem lugar a interpretação do próprio e do outro; vai brotando como resultado da interpelação comum, mútua, onde a voz de cada um é percebida ao mesmo tempo. Exige a descentralização da reflexão de todo possível centro predominante. Não é apenas antieurocêntrica, mas visa criticar a vinculação dependente exclusiva da filosofia com qualquer centro cultural. Assim ela critica qualquer força quer seja latino americana centrista, ou afro centrista. Sua visão é centrar a reflexão filosófica no momento da interconexão da intercomunicação; é abrir-se a uma razão interdiscursiva. O anti centrismo da filosofia intercultural, em síntese, busca salientar a dimensão crítica frente ao próprio, não sacralizar a nenhuma cultura, cedendo às tendências etnocêntricas. Parte-se da própria tradição cultural, mas sabendo-a e vivendo-a não como instalação absoluta, mas como trânsito e ponte para a intercomunicação. Ponto 4 – O diálogo A condição básica para a instauração da filosofia intercultural é a cultura do diálogo e do intercambio. O contexto que nos acolhe, designado de inúmeras formas, 11 marcado por uma multiplicidade de narrativas, uma sinfonia de vozes, uma diversidade de rostos e de expressões, por si só já se apresenta como espaço privilegiado para as relações interculturais pois estas supõe a diversidade e as diferenças, uma vez que o contraste é o que suscita processos de abertura, de indefinição, de contradição, exigências fundamentais para o diálogo. Onde impera a evidência e a certeza não há necessidade de discurso e de argumentação. O diálogo intercultural parte da situação contextual e se caracteriza pelo intercambio e interação entre os mundos contextuais situados. O diálogo é um exercício que versa sobre e entre situações de vida humana e não um mero intercambio de idéias abstratas. As contextualidades, ou seja, as situações justas e também as injustas oferecem a riqueza para o diálogo intercultural pois além de falarem desde um lugar, narram a própria experiência vivida. O filósofo Fornet- Betancourt afirma que “as contextualidades são topologia do humano”, ou seja, referem-se a sua forma e constituição e por isso sua recuperação é indispensável para refazer o mapa antropológico da humanidade em toda a sua diversidade. O diálogo intercultural supõe o rompimento da tendência de falar-se do humano em geral, da condição humana a partir do recurso de um sujeito transcendental mas desenhar a fragilidade 11 América Latina, Ibero América, Nuestra América, Aby Ayala, Pindorama,Patria Grande… 6 dos seres humanos vivos e concretos em sua corporalidade, na diversidade de situações em que vive, nas condições sociais, culturais, econômicas, desenvolvendo antropologias contextuais. Essa antropologia supõe uma revisão da questão da subjetividade humana, na medida em que deverá mostrar que o sujeito humano enquanto um ser corporal, vivo “de carne e osso”, jogado no mundo social, se faz pessoa (se personifica) dentro e a partir de sua respectiva contextualidade. O diálogo intercultural oferece pistas para que se superem as velhas dicotomias e antagonismos; não fomenta a derrubada da civilização ocidental, somente a coloca em seu lugar, ou seja, considera-a como um paradigma valioso e rico mas de nenhum modo o único nem como superior. Propõe que estendamos pontes pois não se pode mais nortear a vida por um único modelo. Ou seja, um questionamento mútuo para um enriquecimento mútuo pois a universalidade e a verdade não são características de um só paradigma cultural e civilizatório senão o resultado de um esforço intelectual, de uma busca em e através do diálogo entre tradições e modos de vida. O que se quer alcançar com a prática da interculturalidade é a articulação do diálogo intercultural a partir de práticas culturais concretas. Mais do que um diálogo entre culturas deve ser um diálogo de situações humanas. A interculturalidade, pois, deve promover a relação entre a diversidade de sujeitos humanos concretos, dentro da diversidade de mundos situados nos quais os seres humanos vivem e organizam a sua maneira situacional, suas necessidades e aspirações, promovendo a consciência dessa ação. O assunto do diálogo intercultural é dessa forma aproveitar o momento das relações entre sujeitos contextuais em situação, para elaborar pistas que permitam um melhor discernimento do que chamamos de subjetividade humana, dos processos de constituição da subjetividade e das formas de expressão ou de sua realização. Cito Fornet Betancourt: “O diálogo intercultural deve ser projetado como o espaço onde se discerne a bondade das necessidades e dos desejos, as memórias e os imaginários pelos quais se definem os sujeitos em e desde seus contextos de vida.” Em síntese, o diálogo intercultural é um diálogo de situações dado entre sujeitos concretos que falam de suas memórias e de seus planos, de suas necessidades e de seus desejos, de seus fracassos e de seus sonhos, ou seja, do estado real de sua condição humana em uma situação contextual específica. Segundo Fornet Betancourt, “somente anulando a cultura de submissão a um tipo de razão legisladora, será possível uma cultura orientada racionalmente de muitas formas o que vai permitir o surgimento de vozes liberadas para expressar as razões situadas permitindo um pensar e atuar intercultural.” Ou seja, somente será possível um movimento em favor das diferenças se 7 uma crítica dentro de todos os movimentos sociais, políticos , culturais, lutarem juntos pelo reconhecimento das diferenças. A filosofia intercultural tem como uma de suas metas a de promover uma crítica das críticas da razão filosófica dominante com a intenção de ultrapassar o horizonte crítico mediante a proposta de alternativas por meio de um processo aberto de consulta e de comunicação entre as distintas maneiras pelas quais a humanidade se articula, considerando suas preocupações, seus desejos, o que sabe e o que deseja saber, etc. A instauração, na nossa América, da promoção de uma cultura das razões em diálogo não é uma tarefa fácil. De acordo com Fornet-Betancourt, a idéia de uma razão filosófica transcultural, continuará tendo, em relação à cultura filosófica ocidental, um peso que desequilibra o diálogo.Com isso, as dúvidas sobre a validade racional dos modos com que as demais culturas se dão conta de sua condição humana e suas situações12 persistirá de certa forma. Raúl Fornet-Betancourt nos aponta alguns caminhos para atingir-se a proposta intercultural nas relações, que resumo em três exigências: Primeiro: busca do discernimento das memórias e dos projetos dos outros sujeitos com quem nos relacionamos. Segundo: fazer um contraste com nossas tradições e aspirações para decidir se nesse encontro fazemos ou não o caminho comum, ou seja, como traçamos um projeto humano capaz de engendrar encontros cada vez mais comunitários. Terceiro: alargar as possibilidades de criar comunidade como base para uma inter-subjetividade que é a manifestação da prática de convivência. Em síntese, tomar processos reais de solidariedade como lugar para refazer a subjetividade humana e suas expressões identitárias situacionais. Esse processo deve estar acompanhado de grupos interculturais de ação, com a meta de redescobrir, de redimensionar a categoria de grupo como um espaço de reunião de subjetividades que se recriam reciprocamente pela aliança que fundam e praticam, a partir do momento em que se reconhecem como grupo. Este processo de inter-subjetividade dado a partir da constituição da convivência e do comprometimento, é fundamental para a configuração de nossas referencias culturais de origem, bem como para a atualização de nossas identidades por meio das quais identificamos nossas diferenças. Na medida em que se alteram as relações dentro do exercício da inter-subjetividade se substituem do mesmo modo nossa atuação como sujeitos e as nossas 12 Fornet nos remete para as obras de Josef Estermann, de Carlos Lenkersdorf Filosofar em Clave tojo labal,Mex.2002, Hugo Moreno Introdução a Filosofia Indígena Riobamba. 1993 e Carlos Boerlegui . 8 relações com nossas culturas e identidades de origem. Essa dinâmica pode resultar no inicio de uma re-configuração e transformação de referenciais identitárias tradicionais, ou seja, o surgimento de uma convivência sem fronteiras. (comutarização) Considerando que a cultura dominante em qualquer campo da atividade humana veicula normalmente o poder, a opressão, a injustiça, uma vez que se apresenta como a cultura que está dada “sem mais”, é mister da interculturalidade, dada a sua orientação, ser fonte de inspiração e também veículo para a articulação de críticas contextuais à cultura dominante abrangendo duas dimensões: Primeiro, criticar ao que domina ou se impõe com a cultura dominante, como o pensamento único, o individualismo, a mercantilização das relações humanas, o consumismo, a desmemorização, bem como aos meios e instrumentos por meio dos quais o dominante se expande, como a mídia, a publicidade, a moda,etc. Nesta compreensão, a interculturalidade se apresenta como teoria e prática de alternativas capazes de romperem com o monólogo da cultura dominante, recuperando espaços para os seres humanos que são silenciados ou inviabilizados. Segundo, é a de que se mantenha a crítica intercultural das instituições internacionais controladas pela cultura dominante ocupando-se com as estratégias da globalização neoliberal considerando suas conseqüências especialmente para a diversidade cultural e a convivência plural. Trabalho interdisciplinar pois supõe uma crítica desde a pluralidade das cosmologias e das antropologias da humanidade acerca do tipo de ser humano que propõe a globalização do neoliberalismo. Terceiro, ter presente que as instituições de ensino superior são responsáveis, em grande medida, para a manutenção e o fortalecimento da cultura dominante, na medida em que os sistemas de investigação, de transmissão e de aplicação de conhecimentos está mais das vezes, a serviço de um modelo de desenvolvimento pautado pelo paradigma civilizatório homogeneizante que supõe a desarticulação das alternativas cognitivas e tecnológicas dos patrimônios culturais da humanidade. Basta lembrar o controle e a manipulação dos programas de financiamento dentro do sistema vigente sobre os projetos de investigação.Necessitamos, a partir da interculturalidade, fazer críticas contextuais da universidade para reformular seu sentido e sua função. Em um mundo intercultural, no qual humanidades partilham diversidades cognitivas e culturais, necessita-se de universidades contextuais vinculadas a suas regiões e aos saberes de suas comunidades. A diversidade cultural enfrenta reveses nos tempos em que estamos vivendo. Contexto que favorece ao risco de que a interculturalidade se converta apenas em um exercício acadêmico vazio. Faz-se necessário melhorar as condições de interculturalidade com projetos teóricos e práticos, ou seja, um comprometimento que encaminhe à ação. 9 Ponto 5: Como e porque praticar a filosofia na perspectiva da interculturalidade? Inicialmente se teria que colocar as definições de filosofia em comunicação, tentando aprender a ver o assunto da filosofia de fora de todas as conceituações, pois em nosso tempo, em que a história e a intelectualidade exigem uma transformação, o importante não é o conhecer muitas definições, mas aprender a ver os processos práticos. Destaco 4 passos fundamentais: Primeiro, acompanhar e deixar-se acompanhar,ou seja, participar dos processos que geram a sabedoria do mundo e da vida, elementos que dão sustentação ao cotidiano, pois somente pelo caminho do compartilhamento e do intercâmbio dos processos práticos pode-se dar a comunicação entre as filosofias. O que temos que aprender não são idéias, mas conteúdos que nos auxiliem a movimentarmo-nos nos contextos, capacitando-nos a lê-los e interpretá-los corretamente, numa perspectiva não-hegemônica. Segundo, não nos limitarmos a ler livros, mas também a compartilhar vidas, memória histórica e projetos de aspirações. Terceiro, considerar que quem está construindo o mundo hoje, dando-lhe uma configuração mundial, influenciando as culturas, é um sistema econômico capitalista, sistema que vem substituindo as dimensões sustentadoras de cultura por dimensões de consumo, de privatizações. Expressaríamos ainda, como uma quarta exigência a de que o trabalho pedagógico, em uma linha intercultural, tem uma dimensão política, na medida em que colabora na garantia de que, na convivência dos povos, a diversidade cultural seja considerada. É importante registrar que, como latino-americanos não podemos olvidar que quando falamos de filosofias estamos também nos referindo à sabedoria dos povos originários. Teoricamente, não seria necessário se fazer referência às filosofias dos povos originários, já que estamos nos referindo ao pensamento de todos os povos. No entanto, ante a concepção diríamos, “quase” inconsciente que carregamos, acerca da ausência de capacidade perceptiva desses povos, salientamos que, fazer filosofia em uma perspectiva intercultural, no Brasil e na América Latina, inclui uma relação comunicativa com o pensamento dos nossos povos autóctones o que no meu país nada ou muito pouco está sendo feito nesse sentido. Cabe, ainda, mencionar que fazer filosofia intercultural, atentando para sua ação pedagógica, supõe levar em conta os saberes orais, pois a oralidade carrega consigo uma leitura interpretativa do mundo, pautada em um marco de valores. A oralidade, como instrumento para 10 organizar a vida, tem uma importância significativa no processo pedagógico, uma vez que, enquanto na escola e na universidade se veiculam, predominantemente, os saberes que estão dentro do sistema, à conversação sanciona saberes, decide processos de juízo, ampliando o conhecimento e a capacidade da leitura do mundo da vida. O saber oral foi colocado em um plano secundário em nossas instituições de ensino, na medida em que as liberdades foram restringidas, pois, quando a sociedade estrutura-se em formas definidas, o texto é fundamental para a expansão da linha política sobre a qual se fundamentam as instâncias do poder, ou seja, o texto vai garantir o ensino daquilo que se supõe deva ser aprendido. A partir de minha experiência como educadora por longos anos no Brasil, constato que nossos sistemas educacionais se fundamentam em saberes estabelecidos13, e não em processos de pensamento, de discernimento da realidade. Com isso, não se quer condenar ao olvido o saber acumulado, mas lembrar que necessitamos considerar que a tradição também é dinâmica e que se forma no confronto com diferentes saberes. O ato pedagógico, dentro de uma proposta intercultural, deve, pois, proporcionar um diálogo com os diferentes tipos de saberes, procurando ver como os povos decidiram o que queriam saber, com o objetivo de redescobrir novas idéias de conhecimento. Darcy Ribeiro (1922-1997) antropólogo , sociólogo e pensador brasileiro nos ensina que as culturas, como resultado da ação intencional do homem, na sua busca permanente de sua forma humana de ser, não são estáticas. Os saberes, na verdade, não são saberes puros desenvolvidos em completo isolamento cultural. Não têm uma singularidade, mas são resultantes de um contexto que se constitui em comunicação com os membros de diferentes grupos humanos. Há todo um intercâmbio, um processo de comunicação anterior à fixação dos saberes. A interculturalidade, embora como nomenclatura seja recente no nosso contexto como processo, acompanha a história dos povos. No entanto, como proposta pedagógica, é recente. Encaminhando-nos para uma conclusão, reafirmamos o sentido que nesta orientação passa a adquirir a filosofia como um quê fazer potencialmente humano e, portanto, feito e cultivado em todas as culturas da humanidade através de uma pluralidade de formas de pensar e de expressar. Uma atividade que, de acordo com Raúl Fornet-Betancourt, “nasce em muitos lugares, se faz e se expressa em muitas línguas e é contextual”; atividade que se fundamenta no horizonte da alteridade, uma vez que se constrói, admitindo as distinções, articulando-se nos limites impostos pela dignidade do outro, em uma experiência fundada na disposição de um buscar contínuo e partilhado, mediante o diálogo, a visão e percepção do mundo. 13 O atual sistema de educação a distancia é uma comprovação disso. 11 Ponto 6: Diálogo de culturas em nosso contexto Concluindo, ressalto que falar em tipos de cultura é um tema delicado pois supõe classificação e dentro de uma perspectiva intercultural identificar culturas tendo como critério a comparação entre tipos de saber ou de formas de vida, pode encobrir uma ideologia que admite distinções valorativas entre os seres humanos, de acordo com o tipo de vida que lhes é permitido ou possível ser vivido, bem como uma classificação de saberes. Feita essa observação, podemos afirmar que o diálogo intercultural ainda é uma meta a ser implementada no Brasil. A partir de 1989 e 1990 iniciam-se publicações com vistas a um diálogo intercultural, no entanto tais textos são refletidos por grupos restritos de pensadores. Em 1995 começam a se organizar Congressos de filosofia Intercultural, embora a época não se tivesse um suporte teórico suficientemente elaborado que desse sustentação, especialmente, as questões hermenêuticas e metodológicas. É um desafio pioneiro de quem abre caminhos nunca antes percorridos e Fornet-Betancourt assume essa tarefa como um serviço a prestar aos que hoje buscam uma nova perspectiva para o que fazer filosófico. Tem- se que considerar que o encontro com a cultura do outro é um processo denso que deve nos levar a repensar a nossa própria cultura e a redescobrirmo-nos. A questão da revisão crítica do pensamento latino americano e do redescobrimento da América como lugar de mundos de vida e de pensamentos plurais continua em nosso país aspecto fundamental para a instauração de uma perspectiva intercultural. Nos últimos anos temos avançado em tentativas concretas com vistas a estimular e promover o diálogo intercultural. Somos um país constituído por povos que apresentam uma diversidade cultural imensa.Embora o povo brasileiro tenha se formado da fusão, predominantemente , da matriz indígena, da africana e da portuguesa a diversidade do contexto geográfico, com climas vegetação, topografia contrastantes, somadas à natureza das atividades desenvolvidas para a sobrevivência, bem como a dominância de um ou outro fator étnico, resultou em um país constituído por uma população diferente não só nos traços físicos, mas também nos hábitos, na forma de vida, na entonação lingüística, desenvolvendo em cada região identidades culturais distintas.Porém, apesar da diversidade verificamos um diálogo rico expresso, fundamentalmente nas artes, como na música, na pintura, na escultura, nos ritmos, espaços em que a solidariedade se faz presente unindo e convivendo as diferenças. A atual legislação educacional inseriu, recentemente, nos programas, o estudo da história dos povos afros; o Estado mantém escolas bilíngües para os descendentes de nossos povos originários. São atitudes louváveis mas apenas um primeiro passo para que a partir do conhecimento, quiçá venha a se estabelecer uma mudança de consciência com relação à 12 convivência e valoração cultural para que seja preservada a heterogeneidade de nossos povos. Entretanto, o que se percebe é que o nosso modo de pensar manifesta duas faces. Ao mesmo tempo em que enfatiza a pluralidade cultural e a diversidade étnica, como fontes para um renascimento de uma sociedade mais justa, não se consegue superar facilmente as dificuldades da exclusão social que historicamente marcou nossa sociedade. Ainda não se redescobriram nas culturas regionais suas sabedorias como fonte de universalidades. Toda a riqueza da perspectiva de que o ser humano, antes de ser um ente racional é um ente natural, um elemento que está relacionado aos fenômenos naturais em comunicação permanente com a natureza. Valores que, se estimulada à relação intercultural com essas culturas podem proporcionar uma vida mais humana e digna de ser vivida. Bibliografia: FORNET-BETANCOURT, Raúl. Transformación intercultural de la filosofía.Bilbau.Editorial Desclée de Brouwer.S.A.,2001. VAZ E SILVA, Neusa.Teoria da cultura de Darcy Ribeiro e a filosofia intercultural.São Leopoldo:Nova Harmonia.2009. VALESCAR , Diana. Cultura,Multiculturalismo e Interculturalidad: hacia una racionalidad intercultural.Madrid:Covarrubias.2000. 13