O difícil pluralismo na economia O difícil pluralismo

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ECONOMIA Hegemonia forçada da teoria neoclássica começa a se desfazer no país
O difícil pluralismo
na economia
Luiz Augusto Estr
ella FFaria
aria
Estrella
Departamento de Ciências Econômicas,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
e Fundação de Economia e Estatística
[email protected]
O
conservadorismo é comum no pensamento
científico: novas teorias sempre tiveram dificuldade de se afirmar. Na economia, entretanto, essa
realidade adquiriu características exacerbadas. A
corrente neoclássica, dominante no pensamento econômico hoje, assumiu, nas últimas décadas do século 20, uma postura hegemonista, impedindo o debate e desqualificando as outras tendências. No mesmo período, o neoliberalismo tentava impor-se como
pensamento único, e as concepções neoclássicas prestaram a ele apoio decisivo, emprestando às suas posições políticas uma aura de verdade científica.
A ligação entre economia e ideologia liberal vem
das origens do pensamento econômico, mas recebeu
enorme impulso com a formação da escola neoclássica, após 1870. Rompendo com alguns princípios clássicos da economia, como a explicação do valor
das mercadorias pelo trabalho necessário à sua produção, seus adeptos interpretaram o sistema econômico como as leis da mecânica clássica descobertas
pelo inglês Isaac Newton (1642-1727) descreviam o
funcionamento do sistema solar: a massa e a energia
constantes de seus componentes produzem movimentos que se estabilizam em equilíbrio. Qualquer força
que interfira no funcionamento tido como natural do sistema, como o salário mínimo, compromete seu equilíbrio e piora seu deOs empresários
sempenho.
Ainda no século 19, entretanto, o
não têm a racionalidade
pensamento científico começou a
esperada (...) Mais imitam
perceber que estabilidade e equilíbrio eram apenas aparências no
o que os outros fazem
mundo real. Outro inglês, Charles
do que agem de acordo
Darwin (1809-1882), propôs, na
teoria da evolução, que a forma de
com expectativas
existir da matéria viva era um proracionais
cesso continuado de mudança. Na mesma época, o alemão Karl Marx (1818-1883)
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mostrou que as sociedades humanas seguiam um
mesmo padrão evolutivo, no qual relações de produção sucediam-se, dando lugar a novas formas de organização social. No começo do século 20, o também alemão Albert Einstein (1879-1955) nos fez
ver que toda a matéria estava em transformação e
que o próprio tempo tinha sua história – o universo
estático da mecânica newtoniana nunca existira.
Outro pensador alemão, Sigmund Freud (18561939), ao descobrir o inconsciente, ensinou que a
razão apenas dá formas educadas ao comportamento humano, o qual é dirigido pelas mesmas pulsões e
instintos que antes se pensava serem exclusivos dos
outros animais. Também alemão, Max Weber (18641920), ao revolucionar a sociologia, apontou a necessidade da adoção de uma pluralidade de enfoques
para interpretar e sistematizar os fatos sociais.
Ao longo do século 20, entretanto, os economistas filiados à tradição neoclássica permaneceram
alheios a essas descobertas, que mudaram radicalmente nossa visão do universo, de nosso mundo e de
nós mesmos. Continuaram a representar os fenômenos da produção e distribuição da riqueza como se
fizessem parte de um mundo encantado em que tudo
tende ao equilíbrio, em movimento retilíneo uniforme. Mesmo para quem discordasse das idéias de
Marx, por seu engajamento político, os trabalhos do
inglês John Maynard Keynes (1883-1946) e do italiano Piero Sraffa (1898-1983) abriram caminho
para um reencontro da economia com o pensamento
científico contemporâneo.
A teoria keynesiana nos mostra quão incertos são os
movimentos do sistema econômico. Os empresários
não têm a racionalidade esperada pelos neoclássicos.
Sob o impulso de suas ambições e temores, enfrentando circunstâncias desconhecidas, mais imitam o que
os outros fazem do que agem de acordo com expectativas racionais, a partir das quais calculariam resulta-
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dos possíveis de acordo com probabilidades conhecidas. Suas decisões são dirigidas por seu estado de ânimo e seguidamente provocam crises.
Por outro lado, uma grave inconsistência da teoria neoclássica foi revelada no episódio conhecido
como ‘a controvérsia do capital’. A partir das teses
de Sraffa publicadas em 1960 ficou demonstrado
que as explicações da teoria neoclássica para a produção (como se combinam capital e trabalho para a
criação de riqueza) e para a distribuição (que leis
governam a divisão do produto entre lucros e salários) eram inconsistentes, sendo sua validade restrita apenas a algumas circunstâncias.
Essas referências são suficientes para se fazer um
juízo da contribuição da teoria neoclássica (ou marginalista) ao pensamento econômico. O irrealismo
de suas hipóteses (como ‘todo comportamento visa
maximizar resultados de forma racional e é informado pelo perfeito conhecimento de tudo que seja
relevante’, ou ‘os fatores de produção capital e trabalho são simétricos e intercambiáveis em qualquer
circunstância’, entre outras) e a sua inconsistência
lógico-matemática, de que resultam previsões absurdas (como a possibilidade do retrocesso na escolha da técnica de produção), dão a essa teoria um
lugar modesto na cena científica. Assim como a
mecânica clássica tem aplicações em diversas áreas
da engenharia, as ferramentas baseadas no princípio marginal têm aplicações em diversas áreas da
análise econômica. Mas, nesta como naquela, a pretensão de representar o sistema econômico em sua
totalidade é não só arrogante, mas também falsa.
Surpreendente, no entanto, foi a reação dos adeptos do marginalismo ao debate. De um lado, trataram, como fez o inglês John Hicks (1904-1989), de
pasteurizar a revolução keynesiana na ‘síntese neoclássica’, forçando as novas proposições à condição
de equilíbrio. De outro, tentaram, sem sucesso, refutar a crítica à teoria do capital. Se, em um primeiro momento, ficaram constrangidos – o norte-americano Charles E. Ferguson (1927-) declarou manter
sua fé e Paul Samuelson (1915-), também norteamericano e prêmio Nobel, disse resignar-se a viver
com dor de cabeça –, em seguida partiram para o
contra-ataque com a terrível arma do silêncio. Já
que não podiam impedir que se falasse, como ordenara a Inquisição ao italiano Galileu Galilei (15641642), pois a obediência não é um princípio da ciência, passaram à perseguição. Usando as posições influentes de vários de seus adeptos, principalmente nos meios acadêmicos norte-americanos, sempre
que possível fecharam as portas de publicações, rejeitaram participações em congressos e tornaram
cátedras inacessíveis.
Em um movimento de autoproteção, refugiaramse cada vez mais na versão mais ‘dura’ de sua teoria,
aquela inspirada no economista francês Léon Walras
(1834-1910) e que nega a própria pergunta fundadora de nossa ciência: de onde vem
a riqueza e como é distribuída?
Nessa versão, a riqueza é um
As dificuldades
pressuposto e a distribuição
crescentes de explicar
resulta da tecnologia escolhida. Mais ainda, pretenderam
a realidade com a teoria
definir quais as questões
neoclássica reforçaram
relevantes e como deveriam
ser respondidas, arvorandoas iniciativas a favor
se em pensamento único e
do pluralismo
isolando-se das outras ciências, como a história, a sociologia
e a antropologia.
Tal clima impregnou as duas últimas
décadas, o que levou estudantes de Paris e Cambridge, recentemente, a rotularem essa versão da
economia como ciência autista, alienada da realidade e alheia aos avanços das outras disciplinas. As
dificuldades crescentes de explicar a realidade
com uso do instrumental neoclássico instigaram
novos caminhos e reforçaram as iniciativas a favor
do pluralismo. A releitura das contribuições dos
clássicos e o desabrochar de novas interpretações
vêm alargando o campo de ensino e pesquisa em
economia, em um movimento espraiado pelo mundo, com reflexo inclusive nas premiações Nobel, a
exemplo do norte-americano Joseph Stiglitz (1943-)
em 2001, ou do israelense Daniel Kahneman (1934-)
em 2002, que recusaram os pressupostos da informação perfeita e do comportamento racional.
No Brasil, o pluralismo foi reintroduzido no currículo nos anos 80, uma conquista das entidades
nacionais dos economistas, em um esforço para superar o atraso acadêmico causado pela censura da
ditadura militar. Infelizmente, a pretensão neoclássica de se tornar pensamento único adotou, também no caso brasileiro, a mesma postura hegemonista de seus mestres anglo-saxões. O resultado
foi um empobrecimento do conteúdo curricular e
um estreitamento da produção científica nos anos
90, em larga medida restrita à aplicação de modelos
extremamente estilizados à realidade nacional, com
resultados em muito dependentes das especificações
do próprio modelo.
A superação dessa situação vem sendo perseguida por diversas iniciativas recentes em defesa do
pluralismo nos meios acadêmicos nacionais, como
a diversificação dos cursos de pós-graduação e a fundação da Sociedade Brasileira de Economia Política, dando novo impulso a importantes áreas de especialização e animando o debate sobre a política
econômica adotada no país, fazendo ver que suas
alternativas são tão diversas quanto as correntes de
pensamento.
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novembro de 2003 • CIÊNCIA HOJE • 57
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