UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO SEMI-ÁRIDO TATIANA ROHDE PAVAN SEQUESTRO CORNEAL FELINO: REVISÃO DE LITERATURA Porto Alegre - RS 2009 1 TATIANA ROHDE PAVAN SEQUESTRO CORNEAL FELINO: REVISÃO DE LITERATURA Monografia apresentada a Universidade Federal Rural do Semi-Árido – UFERSA, Departamento de Ciências Animais para obtenção do Título de Especialista em Clínica Médica de Pequenos Animais. Orientador: MV, MSc Angela Aguiar Franzen PORTO ALEGRE – RS 2009 2 TATIANA ROHDE PAVAN SEQUESTRO CORNEAL FELINO: REVISÃO DE LITERATURA Monografia apresentada a Universidade Federal Rural do Semi-Árido – UFERSA, Departamento de Ciências Animais para obtenção do Título de Especialista em Clínica Médica de Pequenos Animais. APROVAVA EM: ___/___/___ BANCA EXAMINADORA _______________________________________ Prof. Dr. Alexandre Rodrigues Silva (UFERSA) Presidente _____________________________________ Prof. Msc. Masahiko Ohi (UFPR) Primeiro Membro _____________________________________ Prof. Msc. Valéria Natascha Teixeira (Equalis) Segundo Membro 3 AGRADECIMENTOS A Deus, por me dar a vida, a vontade e a coragem para vencer esta jornada, e a oportunidade de evoluir a cada dia. A minha Orientadora, Angela Franzen, pelo incentivo, motivação e dedicação, fundamentais à realização deste trabalho. Aos meus pais, Valdir e Edit, pela educação e exemplo de vida. Sua referência foi fundamental para estruturação de meu ser e meu caráter. A minha irmã Thais, por sempre estar disposta a me ajudar e por sua amizade insubstituível. Aos meus colegas do curso de pós-graduação, pela amizade e companheirismo. A todos os professores e funcionários da Equalis pelas aulas memoráveis e horas agradáveis de aprendizado e lazer que me foram proporcionadas. 4 “O sábio não se senta para lamentarse, mas se põe alegremente em sua tarefa de consertar o dano feito.” William Shakespeare 5 RESUMO O sequestro corneal está entre as patologias oculares mais comuns em felinos e apresenta predileção para as raças braquicefálicas. Ao exame oftálmico nota-se uma área pigmentada dourada a enegrecida normalmente localizada na parte central da córnea e que restringe-se à metade anterior do estroma, podendo atingir a membrana de descemet. Desconforto e secreção ocular são sinais clínicos comuns. Dependendo da severidade da lesão, notam-se as seguintes condições: blefaroespasmo, dacriopo, enoftalmia e protusão da membrana nictante. Os parâmetros considerados para a seleção do tratamento dependem do grau de dor ocular e extensão e profundidade da lesão. O tempo de recuperação é reduzido consideravelmente se a lesão é removida cirurgicamente, por isso é geralmente o tratamento de escolha. Ceratectomia combinada a ceratoplastia, geralmente um retalho conjuntival com pedículo ou recobrimento mostram bons resultados. Palavras-chave: Oftalmologia, felino, córnea, sequestro 6 ABSTRACT Corneal sequestrum is an ocular pathology that is more frequent in cats and affects primarily brachicephalic breeds. At the ophthalmic exam is a pigmented area located generally at the central cornea and usually to the anterior stroma but it can involve the descemet’s membrane. Ocular discomfort and ocular discharge were common presenting sings. Depending upon the to seriousness of the lesion, note the following conditions: blepharism, dacryops, enophthalmos and procidentia of the membrane nictians. The parameters considered when selecting the therapy to be applied are generally degree of eye pain and extension and depth of the lesion. The time course is reduced considerably if the lesion is removed surgically, so this is usually the treatment of choice. Keratectomy combined with a graft, usually a conjunctival pedicle graft gives goods results. Keywords: Ophthalmology, feline, cornea, sequestrum 7 LISTA DE FIGURAS Figura 1: Sequestro corneal felino. Fonte: Msc. Angela Aguiar Franzen – Clínica 22 Veterinária Franzen …………………............................................................... Figura 2: Felino persa apresentando blefaroespasmo e epífora. Fonte: Msc. Angela Aguiar Franzen – Clínica Veterinária Franzen............................................... 25 Figura 3: Edema corneano perilesional em felino persa com sequestro corneal. Fonte: Herrera, 2008………………………………………………………………... 26 Figura 4: Sequestro corneal felino com intensa neovasculariazação corneana. Fonte: Serviço de Oftalmologia UNESP/Jaboticabal................................................. 27 Figura 5: Ceratectomia lamelar em sequestro corneal felino. Fonte: Serviço de Oftalmologia UNESP/Jaboticabal............................................................................... 29 Figura 6: Recobrimento com terceira pálpebra em felino persa. Fonte: Msc. Angela Aguiar Franzen – Clínica Veterinária Franzen ……………………............ 30 8 SUMÁRIO RESUMO............................................................................................. 05 1 INTRODUÇÃO.................................................................................... 09 2 OBJETIVOS........................................................................................ 10 3 REVISÃO DE LITERATURA.............................................................. 11 3.1 ANATOMIA E FISIOLOGIA OCULAR................................................. 11 3.1.1 Anatomia da Córnea........................................................................... 12 3.1.2 Fisiologia da Córnea............................................................................ 15 3.2 SEQUESTRO CORNEAL FELINO...................................................... 21 3.2.1 Etiologia............................................................................................... 22 3.2.2 Achados clínicos e diagnóstico........................................................... 23 3.2.3 Tratamento.......................................................................................... 27 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................ 33 5 REFERÊNCIAS................................................................................... 34 9 1. INTRODUÇÃO A oftalmologia constitui um importante ramo da Medicina Veterinária, sendo comum a ocorrência de afecções oculares relacionadas ou não a doenças sistêmicas. As patologias oftalmológicas em felinos apresentam grande importância na rotina clínica, na maioria das vezes relacionadas a doenças infecto-contagiosas. Com o avanço da oftalmologia veterinária deve-se dar mais atenção a pequenas alterações que na maioria das vezes, ou não são percebidas, ou não recebem a devida atenção. O sequestro corneal é uma patologia que acomete predominantemente os felinos. Ela é caracterizada pelo acúmulo de um estroma dessecado e degenerado na córnea, conferindo coloração escura, podendo variar entre uma área pigmentada dourada a enegrecida normalmente localizada na parte central da córnea (GLAZE e GELATT, 2003). A causa do sequestro corneal ainda é desconhecida, diversos fatores ou a interação deles vem sendo analisados. Entre os sinais clínicos mais comuns estão epífora e blefaroespasmo, além da lesão corneana focal de coloração pretoamarronzada, característica da doença (HERRERA, 2008). A escolha do tratamento desta patologia varia dependendo da fase da doença e da profundidade da lesão. O tratamento clínico deve ser evitado. A realização do tratamento cirúrgico consiste em ceratectomia e posterior ceratoplastia. Variadas técnicas de ceratoplastia são realizadas, conforme dito anteriormente, em função da fase e profundidade da lesão (GLAZE e GELATT, 2003). Para a realização da ceratoplastia, as opções são inúmeras. Os retalhos conjuntivais (180-360º e pediculados), o enxerto livre de Tenon, o enxerto corneoconjuntival deslizante, os enxertos córneos e os adesivos cirúrgicos apresentam igualmente a mesma função, porém não o mesmo resultado (RIIS, 2005) Este trabalho visa abordar e discutir tanto a etiologia quanto a escolha do tratamento, em relação à técnica de ceratoplastia utilizada no sequestro corneal felino, considerando o melhor resultado pós-operatório. 10 2. OBJETIVOS Este trabalho visa abordar e discutir a etilogia, evidenciando os fatores relacionados ao início da doença, como fatores predisponentes da espécie analisada e doenças anteriores ao desenvolvimento desta patologia. A escolha do tratamento deve ser avaliada conforme a apresentação da doença e evolução da mesma. Em relação à técnica de ceratoplastia utilizada no tratamento cirúrgico, a experiência do cirurgião e os equipamentos disponíveis são fatores cruciais. O presente trabalho aborda os diferentes tipos de ceratoplastias, considerando o melhor resultado pós-operatório. 11 3. REVISÃO DE LITERATURA 3.1 ANATOMIA E FISIOLOGIA OCULAR O olho é um órgão de grande complexidade, composto por estruturas com alto grau de especialização, para exercer sua função de conectar o organismo, mais especificamente o sistema nervoso central, ao meio ambiente (BARROS, 2008). O bulbo ocular é formado por três túnicas concêntricas, a túnica fibrosa, túnica vascular e túnica nervosa. A túnica fibrosa é a mais externa, sendo formada por: córnea e esclera. A túnica vascular é constituída pela úvea anterior e posterior formadas pela íris, corpo ciliar e coróide. A túnica nervosa é a camada mais interna do bulbo ocular no segmento posterior sendo formada pela retina e nervo óptico (FERREIRA et al., 2007). A córnea, estrutura que compõe a túnica fibrosa, é a parte mais anterior, transparente e avascular e com alto poder de refração, cuja transparência é vital para a passagem de luz e imagem de objetos que irão chegar até a retina (BARROS, 2008). A região de transição entre córnea e esclera é denominada limbo. A esclera é contígua à córnea e ambas tem composição semelhante, considerandose que a esclera constitui o maior componente em extensão da túnica fibrosa. Pode ser reconhecida como a porção esbranquiçada da túnica fibrosa, devido principalmente à disposição irregular e assimétrica das fibras de colágeno que constituem seu tecido (FERREIRA et al., 2007). Dentre as principais funções da túnica fibrosa está a proteção do conteúdo e meios transparentes internos e dar forma ao bulbo ocular. O limbo é uma linha pigmentada entre a córnea e a esclera. Apresenta uma elevada concentração de melanócitos e células tronco do epitélio da córnea (FERREIRA et al., 2007). A túnica vascular é constituída pela íris, corpo ciliar e coróide. A íris e o corpo ciliar localizam-se no segmento anterior do bulbo ocular e, em conjunto, são denominados de úvea anterior. A coróide situa-se no segmento posterior do bulbo ocular, entre a esclera e a retina, e pode ser também denominada de úvea posterior. Portanto úvea anterior e posterior formam a túnica vascular do olho (FERREIRA et al., 2007). A túnica vascular é uma membrana vascularizada e pigmentada, responsável pela remoção de catabólitos do bulbo ocular (BARROS, 2008). 12 A úvea anterior apresenta funções musculares especializadas e ainda é encarregada pela nutrição de estruturas intra-oculares (córnea, cristalino e a maioria dos tecidos adjacentes). É composta ainda por um tecido muito vascularizado e rico em células do sistema imune, principalmente linfócitos. A principal função da íris é a de regular a quantidade de luz que adentra o olho pela pupila como um esfíncter (FERREIRA et al., 2007). O corpo ciliar pode ser dividido em duas porções e está localizado entre a íris e a coróide, dentre suas funções estão, produção e drenagem do humor aquoso, acomodação do cristalino (apresenta processos ciliares onde se ancoram os ligamentos zonulares que suspendem e fixam o cristalino em sua posição anatômica) e forma a barreira sangue-humor aquoso. A coróide é altamente vascularizada, apresenta um alto fluxo sanguíneo e é responsável pelo fornecimento de nutrientes e oxigênio à retina (FERREIRA et al., 2007). A túnica nervosa é constituída pela retina e nervo óptico (II par de nervos cranianos) e representa a camada mais interna do bulbo ocular no segmento posterior (FERREIRA et al., 2007). A retina é composta por fotorreceptores (cones e bastonetes), que são responsáveis pela transformação de estímulos luminosos em elétricos (BARROS, 2008). Dessa forma sua função é sensorial e consiste na recepção de estímulos luminosos e transformando energia luminosa em energia elétrica (foto transdução) que é conduzida pelo nervo óptico ao tálamo e, em seguida, retransmitida ao córtex cerebral (FERREIRA et al., 2007). Fazem parte ainda do bulbo os meios transparentes como humor aquoso, o cristalino e o humor vítreo, que além da função de refração conferem aos olhos uma pressão interna mantendo sua forma (BARROS, 2008). 3.1.1 Anatomia da Córnea A córnea representa a porção anterior transparente da túnica fibrosa, que possui características especiais e diferenciadas em comparação a outros tecidos, como sua transparência e avascularidade (HERRERA, 2008). Histologicamente a córnea é formada por cinco camadas, sendo elas: epitélio pavimentoso estratificado não queratinizado, membrana basal, estroma, membrana de Descemet e endotélio 13 (FERREIRA et al., 2007); alguns autores como Slatter (2005) citam o filme lacrimal pré-corneano como parte integrante da superfície da córnea. Em espécies domésticas, o diâmetro horizontal da córnea é maior do que o diâmetro vertical; a espessura varia entre as espécies, mas é usualmente inferior a 1mm. Nos felinos pode-se dizer que esta é mais espessa centralmente (0,8 a 1,0mm) e mais fina conforme se aproxima do limbo (0,4 a 0,6mm) (KLEINER, 2008). O epitélio corneano é simples, escamoso e não-queratinizado, de espessura variável, com padrão básico de membrana basal, células epiteliais basais, células aladas e células superficias escamosas. Células basais contêm núcleo, mitocôndria e complexo de Golgi e são aderidas à membrana basal por hemidesmossomos que permite ainda a união do epitélio com o estroma. Com a divisão das células basais, células-filhas são forçadas em direção à superfície, tornando-se achatadas como células aladas e perdendo, gradualmente suas organelas. As células superficiais possuem projeções vilosas pequenas que ancoram a camada mucóide profunda do filme lacrimal pré-corneano (SLATTER, 2005). O estroma representa 90% da espessura corneal e é formado por fibrócitos, chamados de ceratócitos, dispostos de maneira ordenada formando camadas laminares superpostas. Todavia, estes ceratócitos possuem forma alongada com uma largura uniforme em toda sua longitude e se encontram posicionados paralelamente uns contra os outros em cada lâmina estromal. Esta disposição espacial é uma das características que mantêm a transparência corneal (HERRERA, 2008). Além dos ceratócitos o estroma é composto por colágeno e substância fundamental, as fibrilas colágenas paralelas formam folhas interlaçadas ou lamelas, com linfócitos entremeados, macrófagos e neutrófilos (SLATTER, 2005). Ferreira et al. (2007) citam que em condições normais, quase não há presença de células de defesa no estroma. Um espaçamento regular das fibrilas colágenas estromais além de manter a transparência corneana distingue o estroma do colágeno no tecido cicatricial e na esclera. As fibrilas colágenas, glicosaminoglicanos e glicoproteínas formam o suporte da estrutura corneana. O período de substituição do colágeno estromal varia com as espécies, mas pode se estender por anos. Ceratócitos são capazes de sintetizar colágeno, glicosaminoglicanos e mucoproteínas da substância fundamental e de transformar em fibrócitos e produzir colágeno não-transparente após a lesão (SLATTER, 2005). 14 A membrana de Descemet é uma camada delgada, homogênea e acelular que constitui uma verdadeira membrana basal para o endotélio, que a produz (HERRERA, 2008). Essa membrana basal do endotélio é estabelecida durante toda a vida, aumentando o espessamento com a idade (CRISPIN, 2002). A membrana de Descemet localiza-se posteriormente ao estroma e anteriormente ao endotélio. Ela é elástica e, se rompida, suas terminações se enrolam para o interior da câmara anterior. Eventualmente, as células endoteliais secretam uma nova membrana para preencher os pequenos defeitos produzidos por tais feridas penetrantes. A membrana de Descemet não se cora com o corante de fluoresceína e ela se apresenta como estrutura escura, transparente, salientada no centro da úlcera ou ferida corneana profunda. Tais feridas salientes estão em perigo de serem rompidas (SLATTER, 2005). O endotélio é a camada mais interna da córnea, entra em contato com a câmara anterior e tem um papel fisiológico na manutenção da transparência corneal (HERRERA, 2008). O endotélio é uma camada única de células poligonais, hexagonais em sua maioria, que reveste posteriormente a córnea (COLLIN; COLLIN, 1998; DOUGHTY, 1989). O endotélio se localiza posteriormente à membrana de Descemet, revestindo a câmara anterior (SLATTER, 2005). Através de microscopia eletrônica é possível notar pequenas microvilosidades e poros, e que a lateral de cada célula é interligada a outra. Em gatos jovens notou-se presença de notável pleomorfismo. A razão para este pleomorfismo não é conhecida, mas essa disposição celular pode ser resultado do aumento da atividade mitótica concomitante com o rápido crescimento corneal (SAMUELSON, 1991). Uma célula endotelial humana normal mede cinco µm de espessura e 18 a 20 µm de largura. Seu núcleo tem cerca de 7 µm de diâmetro, sendo achatado e oval (SVEDBERGH e BILL, 1972). A membrana celular endotelial posterior é coberta por um variado número de microvilosidades que se projetam entre 0,5 e 0,6 µm em direção à câmara anterior (DOUGHTY, 1989). Existem, em algumas células, oligocílios que se projetam 2 a 7 µm para o citoplasma posterior (GALLAGHER, 1982). Nas superfícies internas das membranas laterais e posteriores, encontram-se vesículas pinocíticas formadas pela invaginação da membrana celular. Estas vesículas destacam-se da membrana, atravessam o citoplasma e liberam o seu conteúdo no espaço entre as células 15 endoteliais. Sua formação é temperatura dependente e está relacionada com o transporte ativo de água e metabólitos (TUFT; COSTER, 1990). As células endoteliais estão separadas lateralmente por uma abertura de aproximadamente 30 µm, que é reduzida para 3 µm no local da junção gap, em direção à câmara anterior. As Junções tight unem as células no terço apical da célula. Quando as células são vistas da superfície posterior, há um padrão hexagonal com uma dobra marginal fina, mas histologicamente se observa que há extensas e irregulares interdigitações entre as células (TUFT; COSTER, 1990). A membrana celular de cada célula está em contato direto com a membrana de Descemet e, devido aos tipos de complexos juncionais presentes, as células endoteliais são facilmente deslocadas por lesões mecânicas (WARING et al., 1980). Uma banda circunferencial de filamentos localizados na junção apical pode facilitar a movimentação celular para cobrir defeitos endoteliais, e há ainda uma camada de glicoproteínas extracelular (TUFT; COSTER, 1990). 3.1.2 Fisiologia da Córnea A córnea é a superfície de refração óptica mais potente do olho, sendo transparente. Ambas, transparência e curvatura são mantidas pelas características anatômicas e celulares (SLATTER, 2005). A córnea pode sofrer alterações decorrentes da idade, de agentes químicos e físicos e de traumas, notadamente os que afligem o segmento anterior do bulbo do olho (WARING et al., 1982). Para Ferreira et al. (2007) alguns fatores considerados em conjunto conferem à córnea sua propriedade de transparência, sendo eles: • Diâmetro uniforme das fibras de colágeno que compõem o estroma da córnea, sua disposição simétrica em feixes paralelos, finamente organizados; • A presença de bombas de ATPases no endotélio, que acabam realizando uma função semelhante a um “dreno” do líquido intersticial do estroma da córnea, mantendo assim, a sua deturgescência e promovendo a transparência do tecido; • A ausência de vasos sanguíneos em todas as camadas que compõem a córnea; 16 • A presença de axônios de filamentos muito delgados e não mielinizados, principalmente em sua porção mais cranial (próximo ao endotélio da córnea). Muitos nervos subepiteliais do limbo adentram a córnea e distribuem-se radialmente no terço mais cranial do estroma. Sabe-se que todos esses nervos da córnea são ramos do nervo trigêmeo, V par de nervos cranianos. • O epitélio não queratinizado formado por aproximadamente seis camadas de células em constante renovação. A córnea tem uma porção externa com afinidade lipídica (epitélio), uma porção média com afinidade aquosa (estroma) e uma mais interna também com afinidade lipídica (endotélio), por isso permitem boa penetração de substâncias que existam nas formas ionizadas e não ionizadas de maneira equilibrada. Porém substâncias que são exclusivamente eletrólitos ou não eletrólitos não penetram na córnea cujo epitélio esteja íntegro. O epitélio conjuntival tem a mesma dinâmica (BARROS, 2008). Qualquer dano epitelial é reparado primeiramente pela membrana basal e posteriormente por mitose epitelial; e em caráter emergencial existe o reparo pelas células tronco localizadas no limbo. Células fagocitárias, particularmente leucócitos polimorfonucleares ganham acesso ao epitélio lesado via limbo e filme lacrimal précorneano. A renovação epitelial em um olho normal se dá após sete dias aproximadamente (CRISPIN, 2002). A manutenção das características de transparência e avascularidade são essenciais para a visão. A nutrição corneal se realiza através do intercâmbio de oxigênio e outras substâncias com a lágrima, humor aquoso e os capilares limbais (HERRERA, 2008). O metabolismo da glicose fornece a maioria da requisição energética dos tecidos corneanos. Cerca de dois terços são metabolizados pelo caminho Embden-Meyerhof e pelo ciclo de Krebs e o terço remanescente pela derivação monofosfato hexose. Em decorrência de a córnea ser avascular, oxigênio é disponível a partir de outras fontes: aquoso, filme lacrimal pré-corneano e atmosfera, plexo capilar límbico e capilares da conjuntiva palpebral (SLATTER, 2005). O endotélio recebe a maioria do oxigênio a partir do aquoso, mas o oxigênio atmosférico é a principal fonte para o remanescente da córnea. Por uma variedade processos, água tende a adentrar a córnea. O controle energia-dependente de água 17 ou manutenção do estado de deturgescência é importante para a transparência (SLATTER, 2005). A barreira hematorretiniana representada pelo endotélio dos capilares retinianos previne a movimentação de substâncias para dentro e fora da sua luz, perante a inexistência de fenestrações e a presença de tight junctions. O epitélio pigmentado da retina separa o conteúdo fluido da coróide da retina (BARROS, 2008). A cicatrização corneal tem sido amplamente estudada por sua importância no que se refere a procedimentos intra-oculares e as lesões endoteliais decorrentes. Em casos de comprometimento endotelial severo, ocorre edema acentuado com perda da transparência da córnea. Quando há perda celular com diminuição da densidade endotelial, as células sobreviventes preenchem as falhas resultantes, aumentando em tamanho e perdendo a sua regularidade e forma (TUFT; COSTER, 1990; WARING et al., 1982; YEE et al., 1987). Com o avançar da idade, o número de células endoteliais diminui. O endotélio é de particular relevância em casos de trauma durante cirurgia, mesmo que não perceptível, e inflamação reduz o número de células endoteliais (SLATTER, 2005). Segundo Samuelson (1991), com uma pequena população, essas células se espalham, aumentando e alterando sua forma, para compensar o aumento dos espaços. Entretanto, com a continuação desse processo, as células se tornam mais finas, resultando em incapacidade de resistir à perda celular. Isso é o que se conhece sobre a descompensação corneal, ocorrendo quando a densidade celular está entre 500 e 800 células/mm2, assim como a inabilidade em remover água do estroma segundo Samuelson (1991) e Slatter (2005). Conseqüentemente o endotélio diminui e a membrana de Descemet torna-se mais espessa com a idade (CRISPIN, 2002). As células do endotélio da córnea são provenientes da crista neural e, nos estágios iniciais da embriogênese, proliferam e formam uma monocamada composta por polígonos irregulares. No estágio seguinte a irregularidade celular é reduzida e as células adotam um tamanho uniforme e simétrico. Logo que a camada celular endotelial se completa, junções intercelulares começam a se formar (TUFT; COSTER, 1990). Em humanos existem entre 400 e 500 mil células, com uma densidade celular média de 3500 e 4000 células/mm² em recém-nascidos e 2500 células/mm² em adultos (SVEDBERGH; BILL, 1972). 18 Durante a vida a densidade celular reduz progressivamente. Em humanos, ocorre um rápido declínio no primeiro ano de vida devido ao aumento do diâmetro da córnea. Decorridos os primeiros anos de vida, a diminuição da celularidade passa a ser mais lenta e linear. Estima-se que, entre os 20 e 80 anos, ocorra uma diminuição média na densidade celular endotelial de 0,52% ao ano (TUFT e COSTER, 1990). Em contrapartida, a área celular média e a variação do tamanho das células endoteliais aumentam (LAULE et al., 1978). As alterações na densidade e forma celular, decorrentes do envelhecimento, têm sido observadas em seres humanos e em outros animais, incluindo macacos, ratos, cães e coelhos (GWIN et al., 1982; RODRIGUES et al., 2006; SVEDBERGH; BILL, 1972). O citoplasma das células endoteliais é rico em organelas, sugerindo transporte ativo e síntese de proteínas. Apresenta grande número de mitocôndrias, retículo endoplasmático liso e rugoso e um complexo de Golgi bem desenvolvido. Pigmentos são ocasionalmente vistos no citoplasma das células endoteliais (TUFT; COSTER, 1990). A abundância mitocondrial, retículo endoplasmático liso e rugoso, e a variedade de vesículas, incluindo vesículas pinocitóticas, indicam que as células endoteliais estão metabolicamente ativas. Existe uma perda gradual da forma hexagonal na população das células mais antigas, em função de uma concomitante diminuição da densidade epitelial (SAMUELSON, 1991). As células endoteliais apresentam capacidade mínima de replicação dependendo da idade e, quando o endotélio é perdido, o defeito é substituído pela migração de células adjacentes existentes (SLATTER, 2005). Conforme Ferreira et al. (2007), o endotélio é formado por células permanentes (não regenerativas) com intensa atividade metabólica, produz a membrana de Descemet e remove o líquido intersticial acumulado no estroma, deixando a córnea em estado de equilíbrio hídrico. O transporte de fluidos pelo endotélio depende do metabolismo aeróbico que pode ser reversivelmente inibido pelo resfriamento da córnea. As mitocôndrias fornecem a energia para dirigir o sistema, produzindo o ATP através do metabolismo da glicose. O oxigênio requerido é difundido para as células endoteliais, vindo da câmara anterior, sendo, em sua maioria, proveniente do filme lacrimal (TUFT; COSTER, 1990). 19 A permeabilidade endotelial está relacionada com o peso molecular de cada substância, mostrando que os solutos passam por difusão simples, através dos espaços teciduais, e reflete também o estado dos complexos juncionais desta camada celular, considerando-se que as junções gap são as principais barreiras contra a permeabilidade dos solutos (TUFT; COSTER, 1990). O bicarbonato necessário para o funcionamento da bomba endotelial provém do lado estromal do endotélio através de um fluxo destes íons para o humor aquoso. Este movimento é o substrato para a bomba endotelial, entretanto, sabe-se que o sódio e o potássio podem influenciar o transporte de fluídos. O número de sítios iônicos da bomba endotelial pode variar em determinadas situações, como em algumas distrofias corneanas (TUFT ; COSTER, 1990). O processo de regeneração endotelial é espécie dependente. Existem estudos em humanos, gatos, cães, suínos, coelhos e ratos que comprovam a assertiva (BEFANIS et al., 1981; HUANG et al., 1989; LANDSHMAN et al., 1988). Em gatos a capacidade de divisão mitótica é limitada e o processo de reparação endotelial ocorre por hipertrofia e migração celular (HUANG et al., 1989; LANDSHMAN et al, 1988). A reparação celular em felinos é mais lenta que em leporinos onde a divisão mitótica é bastante acentuada. As células endoteliais dos felinos têm capacidade de movimentação celular, que resulta em mudanças na morfologia celular até nas regiões distantes da área inicial da lesão. Devido ao fato de que estas características são estreitamente similares ao que ocorre em humanos, os gatos têm sido os melhores modelos para estudos de respostas a lesões endoteliais (HUANG et al., 1989; LANDSHMAN et al, 1988). Em humanos, durante a primeira fase de cicatrização da lesão, ocorrem mudanças drásticas na morfologia celular endotelial. As células que circundam a lesão sofrem alargamento e alongamento para cobrir o defeito. A densidade celular diminui em toda a córnea, concluindo-se que a cicatrização ocorre por mobilização das células remanescentes, sem proliferação significante (HUANG et al., 1989; LAING et al., 1976; LANDSHMAN et al, 1988).. Entretanto, Treffers (1982’apud LANDSHMAN et al., 1988) realizou um estudo em córneas humanas in vitro e in vivo e demonstrou, através de autoradiografia de timidina, que o endotélio corneal foi capaz de proliferação como parte da resposta à injúria em ambos os casos. Demonstrou, ainda, que a migração inicia imediatamente após a lesão ser criada; já a proliferação inicia aproximadamente 24 a 48 horas 20 depois e cessa assim que a ferida é recoberta, o que ocorre de 72 a 96 horas. Concluiu-se, portanto, que ocorreu síntese de DNA e, portanto, mitose nas células endoteliais. Considera-se, porém, que a capacidade de divisão mitótica das células do endotélio corneano humano é limitada em jovens e praticamente inexistente em adultos (HUANG et al., 1989; LAING et al., 1976; LANDSHMAN et al, 1988). A ausência de contínuas junções do tipo tight entre as células endoteliais permite livre passagem do humor aquoso para o estroma e, se estes fluidos entrarem em maior quantidade no estroma este poderá ficar turvo (TUFT; COSTER, 1990). Além disso, a transparência corneal é mantida mediante um complexo mecanismo anatomofisiológico que inclui principalmente a disposição estrutural das fibras colágenas do estroma, como já fora mencionado, e um estado de baixa hidratação estromal alcançado por meio da ação bombas localizadas no epitélio e no endotélio (HERRERA, 2008). Das camadas que compõem a córnea, o endotélio contribui sobremaneira para a manutenção da transparência e espessura (TUFT; COSTER, 1990). As células endotelias são os locais principais dessa “bomba de fluido”, a qual movimenta água do estroma para o aquoso contra o gradiente de pressão intra-ocular, forçando água para o interior da córnea. O epitélio também é essencial no controle do conteúdo de água do estroma. A interferência com o suprimento de oxigênio para o epitélio causa glicólise anaeróbica, formação de ácido lático e água, bem como edema corneano. A remoção de água do epitélio e endotélio é balanceada por uma tendência do colágeno e mucopolissacarídeos no estroma para atrair água. Tanto o endotélio quanto o epitélio contêm quantidades grandes de Na+ e K+ ativados pela ATPase, associados à bomba de sódio. Se o epitélio corneano é removido, água adentra o estroma a partir do filme pré-corneano, ocorrendo grave tumefação, até que uma nova camada do epitélio recubra a área e o equilíbrio de fluido seja restaurado. Fluido pode ser temporariamente removido da córnea pela irrigação com soluções hipertônicas, tais como solução ou pomada de NaCl a 5% (SLATTER, 2005). O mecanismo das bombas localizadas no endotélio é de grande importância, já que, se considerarmos que a córnea é uma estrutura naturalmente circundada por meios líquidos como são a lágrima e o humor aquoso, a eficiência no funcionamento deste sistema de bombas constitui o principal processo fisiológico que permite a transparência corneal (HERRERA, 2008). Em resumo, conforme o mesmo autor, a 21 bomba endotelial deve ser necessariamente mais eficiente que a epitelial já que deve trabalhar contra o gradiente de pressão intraocular. Por isto, a lesão endotelial ou, em menor medida, a epitelial resultam em edema corneal e perda da transparência. Nesse sentido Slatter (2005) cita que a perda do endotélio corneano, além da habilidade das células circunjacentes em compensarem, quase sempre causam edema corneano e opacidade permanentes. Em resumo, alterações na quantidade de água na córnea, disposição das fibras de colágeno, ausência de vasos sangüíneos e superfície óptica afetam a transparência corneana. O efeito da alteração de espaço entre as fibrilas de colágeno pode ser demonstrado prontamente pela pressão sobre o globo ocular. Isso aumenta a pressão intra-ocular, distorce a disposição regular das fibrilas e causa opacidade corneana. Quando a pressão é liberada, a transparência retorna. Esse mecanismo difere da opacidade no edema corneano por causa da pressão intra-ocular elevada (glaucoma), no qual os danos ao endotélio e pressão elevada causam aumento de água estromal (SLATTER, 2005). 3.2 SEQUESTRO CORNEAL FELINO O sequestro corneal foi descrito pela primeira vez em felinos, sendo uma doença comum na espécie. Ela é caracterizada pela degeneração de colágeno e acúmulo de um pigmento marrom (GLAZE; GELATT, 2003). Os mesmos autores, assim como Crispin (2002) e Glaze e Gelatt (1991) citam que a doença é única para o gato, porém já foi descrita em eqüinos (McLELLAN; ARCHER, 2000) e pela primeira vez em um cão, segundo relato de Bouhanna et al. (2008). A vascularização superficial da córnea é um achado importante nesta enfermidade e também costuma observarse um defeito epitelial na periferia da placa (HERRERA, 2008). Outros nomes para esta condição incluem ponto negro corneano, córnea negra, mumificação corneana e degeneração corneana focal (GLAZE; GELATT, 2003). Crispin (2002) cita ainda necrose corneana, ceratite negra, ceratite necrosante primária, lesão negra isolada e ceratite ulcerativa crônica. Sequestro corneano (Figura 1) ocorre em todas as raças, mas o Persa, o Himalaia, o Siamês e o Burmese parecem ser predispostos (GLAZE; GELATT, 2003). 22 Figura 1. Sequestro corneal felino. Fonte: Msc. Angela Aguiar Franzen – Clínica Veterinária Franzen A idade para a apresentação do sequestro corneal felino varia entre cinco meses a dezessete anos, considerando que a alta incidência da doença varia entre dois e sete anos de idade (STARTUP, 1988). 3.2.1 Etiologia A causa do sequestro corneal é desconhecida, mas hereditariedade, irritação ocular (entrópio, lagoftalmia e micro trauma corneano) e infecção com Herpesvírus felis tipo-1 têm sido propostas. O pigmento, que parece ser hidrossolúvel, pode ser passivamente absorvido pelo estroma danificado através das lágrimas, mas o pigmento no estroma de uma córnea aparentemente normal é sugestivo de que um papel patológico é também possível (GLAZE; GELATT, 2003). Além das possíveis etiologias citadas, Startup (1988) e Cullen et al. (1999) ainda relatam distrofia, alterações no filme lacrimal e na inervação corneana como possíveis causas. Stades et al. (1999) referem que um rompimento do centro do filme lacrimal muito rápido tenha um papel importante na ocorrência da doença. Foi proposto que uma alta concentração de catecolaminas na lágrima do gato possa ter algum papel no desenvolvimento da enfermidade (HERRERA, 2008). Concordando com Crispin (2002), que cita que o material do pigmento certamente é derivado do filme lacrimal, 23 no mesmo sentido, a formação do sequestro pode ser considerada uma complicação de cicatrização corneal após perda de epitélio ou estroma. O uso de cáusticos químicos com nitrato de prata e a tintura de iodo pode produzir sequestro corneal felino. O empregado prolongado de epinefrina no homem produz uma pigmentação similar ao sequestro corneal felino, mas não há relatos sobre o uso prolongado desta droga na bibliografia veterinária (HERRERA, 2008). Qualquer dano causado ao epitélio ou ao endotélio corneano por traumas, toxinas, agentes infecciosos ou doenças auto-imunes podem causar hidratação e opacidade iniciando uma doença corneana, e para Slatter (2005) a etiologia do sequestro corneal, em geral, se relaciona ao período posterior à doença corneana inflamatória ou ulceratite crônica. A infecção por Herpesvírus felis é uma causa frequente de ceratite inicial, sendo relacionado à grande parte dos casos de sequestro corneal, conforme Slatter (2005). Porém em estudo realizado por Cullen et al. (2005) comprovou-se que a apoptose pode ter um papel importante no seqüestro corneano felino independente da presença de DNA de agentes infecciosos como Herpesvírus, Toxoplasma gondi, Chlamydophila felis e Mycoplasma spp. No mesmo sentido, para Nasisse et al. (1998), a infecção por Herpesvírus felis não parece estar envolvida em casos de sequestro corneal nas raças Persa e Himalaia. O estudo realizado demonstrou que a prevalência de Herpesvírus felis detectado por reação em cadeia da polimerase foi significativamente mais baixa em gatos da raça Persa e Himalaia, quando comparados a prevalência do vírus em gatos de outras raças domésticas. 3.2.2 Achados clínicos e diagnóstico A lesão usualmente ocorre na córnea central ou paracentral, é circular ou oval, e invariavelmente é pigmentada. A intensidade da pigmentação, no entanto, é variável. Alguns casos têm uma coloração extremamente sutil do estroma superficial, outros envolvem uma lesão que é próxima do preto. Lesões castanhas podem estar cobertas por epitélio intacto, enquanto lesões mais escuras são ulceradas. Epitélio edemaciado, frouxo é freqüentemente visível na periferia da lesão também. A córnea tipicamente é afetada somente até o estroma médio, mas o sequestro pode se estender tão profundo quanto até a membrana de Descemet. Vascularização 24 corneana, edema estromal perilesional e inflamação são comuns com a cronicidade (GLAZE; GELATT, 2003). A lesão microscópica é uma área pobremente demarcada do estroma superficial axial que se torna levemente acelular e desenvolve uma pigmentação dourada que se intensifica e muda para marrom ou preto com o passar do tempo (KLEINER, 2008). Em córneas afetadas, mediante o uso de microscopia eletrônica, foi possível observar importantes modificações no epitélio, com vacúolos nas células basais. Estes vacúolos tinham material mielínico em seu interior similar ao observado nas alterações lisossomais secundárias aos defeitos da degradação de glucosaminoglicanos, presentes na mucopolissacaridose humana (HERRERA, 2008). O sequestro é composto por um estroma dessecado e degenerado. Histopatologicamente caracteriza-se pela presença de necroses nas lâminas estromais e a cor escura da placa se deve à dessecação, mais do que à presença de melanina ou hemossiderina. A necrose de coagulação estromal varia em profundidade, causando desconexão entre as lamínulas e favorecendo a queda espontânea. Não se observam células inflamatórias ou fibroblastos associados à placa. Uma zona inflamatória caracterizada por intensa vascularização e presença de células gigantes, macrófagos, linfócitos e células plasmáticas rodeia a placa (HERRERA, 2008). Glaze e Gelatt (1991) relatam a presença de neutrófilos em casos agudos e de macrófagos e células gigantes em casos crônicos. O pigmento pode surgir da glândula lacrimal ou da flora conjuntival. Qualquer que seja sua origem pode ser observado nas lágrimas. Esse pigmento pode manchar os pêlos ao redor dos olhos; ser absorvido em um papel higiênico e colorir densamente o contato se a úlcera de córnea for tratada com lente de contato flexível. As tentativas para identificar a composição do corante demonstraram que o pigmento é uma proteína (RIIS, 2002). Gemensky e Wilkie (2001) relatam a mineralização do sequestro corneal em alguns casos. No estudo realizado concluiu-se que a administração tópica de corticóide combinada a infecção por Herpesvírus felino tipo-1, resultou na mineralização do tecido necrótico do estroma. O exame histopatológico revelou necrose de coagulação na superfície estromal e mineralização com epitélio ulcerado. Sugere-se que qualidade ou quantidade anormais do filme lacrimal também pode ser a causa da degeneração e mineralização corneal (GEMENSKY; WILKIE, 2001). 25 Para Slatter (2005) os sinais clínicos mais comuns, além da lesão corneana focal e preto-amarronzada, são epífora e blefaroespasmo (Figura 2). Porém pode-se encontrar ainda úlcera de córnea, edema de córnea (Figura 3), neovascularização corneana (Figura 4) e pigmentação corneana (ORIÁ et al., 2001). Para Ketring (1994 apud HERRERA, 2008), o blefaroespasmo tem importância no desenvolvimento desta enfermidade, pois através de compressão corneal desvitalizaria o fundo da úlcera contribuindo para a formação da necrose estromal. A vascularização corneal intensa rodeando e delimitando o sequestro pode ser positiva ao teste de fluoresceína. A placa geralmente possui um aspecto crostoso e não cora com a fluoresceína, embora possa fazê-lo com a rosa de bengala (HERRERA, 2008). Figura 2. Felino persa apresentando blefaroespasmo e epífora. Fonte: Msc. Angela Aguiar Franzen – Clínica Veterinária Franzen. 26 Figura 3. Edema corneano perilesional em felino persa com sequestro corneal. Fonte: Herrera, 2008 A fluoresceína se emprega para determinar perda do epitélio corneal (erosão e ulceração de córnea), identificar defeitos corneais com saída de humor aquoso (teste de Seidel), para verificar a função de drenagem nasolacrimal, a integridade da barreira hemato-humor aquoso e os índices de produção de humor aquoso (fluorofotografia) e na angiografia do segmento posterior. O rosa de bengala é um corante oftálmico utilizado para delimitar o epitélio corneal e conjuntival carente do filme pré-corneal (HERRERA, 2008). O sequestro corneal pode se manter estável por anos, ou progredir rapidamente após dias ou semanas (FEATHERSTONE; SANSOM, 2004). Segundo Glaze e Gelatt (2003), histopatologicamente, os seqüestros são compostos de colágeno degenerado e fibroblastos, com uma zona ao redor de células inflamatórias. Featherstone, Franklin e Sansom (2004) comprovaram, pela primeira vez, através de microscopia óptica a presença de partículas de melanina nos tecidos corneanos obtidos de gatos com sequestro, provendo evidências laboratoriais que caracterizam a natureza da coloração tecidual como melanina. 27 Figura 4. Sequestro corneal felino com intensa neovasculariazação corneana. Fonte: Serviço de Oftalmologia UNESP/Jaboticabal 3.2.3 Tratamento A escolha do tratamento para sequestro corneal varia dependendo do estágio da doença e da profundidade da lesão. Um esforço deve ser realizado para identificar e corrigir qualquer causa base. Por causa de alguns sequestros superficiais poderem desprender-se espontaneamente, a abordagem conservadora de observação pode ser selecionada para estas lesões. Uma ceratectomia precoce, contudo, pode rapidamente aliviar o desconforto e prevenir que sequestro superficial torne-se profundo (GLAZE; GELATT, 2003). Jensen (1973), já citava que o tratamento tópico não era válido e apenas com a cirurgia poderia se obter o sucesso. Concordando com os autores citados, Pigatto (2008) afirma que mesmo que exista, em alguns casos, a possibilidade de desprendimento espontâneo do sequestro da córnea o tratamento clínico deve ser evitado, pois além do tratamento conservador não apresentar bons resultados a demora para o tratamento cirúrgico poderá levar a perda da visão devido à conjuntivalização da córnea ou perfuração ocular. Entretanto Dalla, Pisoni e Masetti (2007), indicam o tratamento farmacológico para lesões sem complicações como neovascularização ou lesões de natureza séptica, relatando sucesso nesse tipo de terapia em estudo realizado com 37 gatos com a doença. 28 No tratamento farmacológico proposto pelos autores citados anteriormente indica-se o uso de colírio com antibiótico de amplo espectro a cada 6 horas, colírio de lágrima artificial diariamente, colírio de acetilcisteína a cada 8 horas e suplementação alimentar com vitaminas, minerais e proteínas, além do uso obrigatório de colar elizabetano durante todo o tratamento. O período máximo do tratamento farmacológico foi de 30 dias. Riis (2002) recomenda a remoção do sequestro por meio de uma ceratectomia superficial (Figura 5), pois é difícil julgar a profundidade do sequestro antes da cirurgia. Por essa razão, a ceratectomia pode começar como procedimento superficial e finalizar como procedimento mais radical, caso a maior parte da espessura corneana precise ser removida. É necessário usar no mínimo uma ampliação de 4 vezes, um fórceps de cápsula e um bisturi pequeno arredondado. A incisão é dirigida sob o sequestro a partir do tecido corneano saudável logo ao lado externo dele (STADES et al., 1999). A placa é então solta do estroma abaixo utilizando movimentos de espátula, através de escavação lamelar, a separação da córnea é realizada além do limbo, em direção à conjuntiva. Após a retirada do sequestro, as bordas do ferimento são checadas para se ter certeza de que elas estão na córnea vital e que inclinam gradualmente, de modo a se justaporem na lacuna deixada pelo seqüestro excisado (RIIS, 2002). Jensen (1973) indica a remoção completa do tecido necrótico, discordando de Stades et al. (1999) e Walde et al. (1998) os quais afirmam que se a pigmentação quase se estende até a membrana de Descemet, é melhor não remover a parte mais profunda do sequestro, porque há risco de perfuração. Conforme Riis (2002) a remoção incompleta do pigmento estromal não tem consequências adversas em longo prazo. Um leve sombreado castanho pode ser a pior conseqüência remanescente, mas a cura ocorrerá. Esse pigmento irá ser removido espontaneamente ou irá subir para a superfície por granulação, podendo, então, ser removido em uma operação subseqüente. Em casos de sequestro de espessura total, o defeito deve ser preenchido por conjuntiva ou córnea de doador (STADES et al., 1999). Para a realização da ceratoplastia, as opções são inúmeras. Os retalhos conjuntivais (180-360º e pediculados), o enxerto livre de Tenon, o enxerto corneoconjuntival deslizante, os enxertos córneos e os adesivos cirúrgicos apresentam igualmente a mesma função. Se estiverem disponíveis córneas de doadores, as ceratoplastias tanto de espessura completa como lamelar dão 29 resultados pós-cirúrgicos que limpam as córneas centrais igual aos enxertos corneoconjuntivais deslizantes (RIIS, 2002). Os leucomas são em geral sequelas de enxertos de cápsula de Tenon, retalhos e colas (RIIS, 2005). Figura 5. Ceratectomia lamelar em sequestro corneal felino. Fonte: Serviço de Oftalmologia UNESP/Jaboticabal. Para Herrera (2008), dependendo da profundidade, a ceratectomia superficial, associada a diferentes técnicas de ceratoplastia para proporcionar suporte, é a forma mais apropriada de tratamento; para isto, pode ser empregada a transposição corneoconjuntival, que consiste na realização de um pedículo corneoconjuntival, o qual é deslizado até a zona onde foi realizada a ceratectomia. Tem sido descrita ainda a utilização de córneas canina ou felina congeladas ou submucosa de intestino delgado (HERRERA, 2008). O recobrimento com retalho conjuntival com pedículo é realizado da seguinte forma: a conjuntiva é liberada ao longo do limbo a uma distância de 10-15mm. A conjuntiva bulbar é liberada de modo que o retalho possa ficar sobre o defeito sem tensão. Somente a conjuntiva deve ser liberada, e não a cápsula de Tenon sob ela. Isso significa que as pontas das tesouras devem ficar visíveis sob a conjuntiva. A borda livre do retalho conjuntival é suturada à borda saudável do defeito com pontos simples separados com cerca de 1 mm de distância, utilizando nylon monofilamentar 8-0 ou 9-0 com agulha espatulada de 6-8 mm (STADES et al., 1999). No recobrimento com conjuntiva bulbar a conjuntiva é cortada ao longo do limbo por 360º e liberada da cápsula de Tenon. A conjuntiva na posição 12 e 6 horas é trazida juntamente e suturada com fio solto (seda ou nylon 5-0 ou 6-0). O 30 remanescente da conjuntiva é juntado com alguns pontos de modo que resulte em uma sutura médio-lateral. Esse método é mais simples que os dois primeiros e pode cobrir grandes defeitos, mas é menos específico e mais traumático (STADES et al., 1999). No recobrimento com a terceira pálpebra (Figura 6) realiza-se a passagem do fio seda através da membrana nictante, fixando o fio junto á pálpebra superior fechando o ponto sobre um tubo de silicone (WALDE et al., 1998). Figura 6. Recobrimento com terceira pálpebra em felino persa. Fonte: Msc. Angela Aguiar Franzen – Clínica Veterinária Franzen No recobrimento com enxerto corneano lamelar libera-se uma faixa lamelar da esclera incluído a conjuntiva que as cobre, e suturada ao defeito (nylon 9-0 ou 10-0) (STADES et al., 1999). O uso de transplante livre de córnea, considerando córnea doadora tanto felina quanto canina, é considerado um procedimento válido, em estudo realizado por Gimenez e Fariña (1998), com seis olhos de felinos da raça persa com sequestro corneano, não foi verificada a recorrência da lesão. No transplante livre de córnea uma parte penetrante total ou lamelar de uma córnea de doador pode ser usada para cobrir ou fechar o defeito. A córnea do doador é suturada com padrão contínuo (nylon 9-0 ou 10-0) (STADES et al., 1999). 31 Featherstone et al. (2001) relata o uso de submucosa de intestino delgado de suíno para recobrimento do defeito corneal, tendo resultado satisfatório em oito dos dez casos utilizados no estudo. A escolha da técnica cirúrgica utilizada segundo Glaze e Gelatt (2003), deve ser a cobertura do defeito da córnea através do enxerto corneoconjuntival deslizante, o qual proporciona uma maior transparência do que um enxerto conjuntival pediculado, isso se a ferida cirúrgica é mais profunda que metade da córnea. O sequestro pode recidivar após a cirurgia, especialmente se a excisão for incompleta ou a superfície corneana for deixada ulcerada. Relata-se que cobrir o local da ceratectomia com um enxerto corneoconjuntival ou conjuntival pediculado previne a recidiva do sequestro (GLAZE; GELATT, 2003). Featherstone e Sansom (2004) concluiram, através de um estudo com 64 casos, que os tratamentos com enxerto conjuntival, enxerto com submucosa intestinal e colocação de lentes de contato não obtiveram resultados satisfatórios, considerando a alta freqüência de complicações pós-operatórias e recidiva da doença. A transposição corneoconjuntival é um procedimento cirúrgico válido, com excelentes resultados estéticos e funcionais, concluíram Andrew, Tou e Brooks (2001) em estudo retrospectivo de 17 casos, com acompanhamento pós-operatório de 39 meses. Kleiner (2008) demonstrou em experimento realizado que a ceratectomia lamelar superficial com subsequente utilização de flap conjuntival 360º é uma técnica cirúrgica eficaz para o tratamento do sequestro corneal felino. Este procedimento resulta em um excelente resultado estético e de funcionabilidade visual em curto espaço de tempo e não se observaram recidivas nos casos operados. No período pré e pós-operatório inicial a midríase é indicada, de modo que se utiliza a atropina 1% num total de 3-5 dias geralmente (RIIS, 2002). A cultura e antibiograma do local cirúrgico devem ser realizados em todos os casos de ceratectomia. Os resultados muitos vezes são negativos, possivelmente em função da antibioticoterapia pré-cirúrgica. Os resultados positivos na cultura apresentam alta incidência de Micrococcus que, em geral, respondem a antibióticos como tobramicina ou ciprofloxacina. As pomadas são preferidas por sua longevidade. Os aloenxertos e os heteroenxertos devem ser tratados também com ciclosporina a 0,2% duas vezes ao dia durante três a seis meses, dependendo da aceitação do enxerto. Além das medicações acima, os corticosteróides tópicos 32 devem ser utilizados para a regressão da neovascularização assim que a cicatrização ocorrer (RIIS, 2002). Os antivirais tópicos, como idoxuridine devem ser empregados no período pósoperatório, em função da presença de agentes virais dificultarem a cicatrização. A infecção por Herpesvírus tipo 1 deve ser considerada, conforme estudo realizado por Nasisse et al (1998), o qual testou a presença do agente em felinos com seqüestro corneano através da técnica de reação em cadeia da polimerase (PCR), tendo resposta positiva em 55% dos animais testados. A instituição de um antiviral tópico, conforme Riis (2002) torna-se a primeira indicação, frente à irritação corneana e à confirmação de um processo ulcerativo. Além disso, as vacinas devem estar em dia para manter o título elevado. Os antivirais podem ser utilizados em conjunto com antibióticos. O tratamento pós-operatório é com pomada de antibiótico de amplo espectro, se houver evidência de uveíte anterior, a adição de pomada de atropina 1% 2-4 vezes ao dia é indicada. O preenchimento do defeito usualmente requer uma a quatro semanas. Eventual formação de cicatriz depende principalmente da profundidade do seqüestro prévio (STADES et al., 1999). 33 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O sequestro corneal é uma importante patologia ocular que acomete os felinos podendo levar a perda da visão pelo comprometimento da superfície ocular, assim como demais complicações da doença. Em relação à etiologia do sequestro corneal pode-se dizer que, em geral, se relaciona ao período posterior à doença corneana inflamatória ou ulceratite crônica, porém deve-se notar ainda a influência do filme lacrimal sobre a formação da lesão, tanto em relação a sua constituição normal, quanto à alteração na mesma. Quanto à composição do sequestro já se verificou a presença de material mielínico no interior dos vacúolos das células basais, assim como a presença de estroma dessecado e degenerado. O diagnóstico precoce e a escolha do tratamento adequado podem garantir um prognóstico favorável. A escolha do tratamento conservador não se mostra eficaz, sabendo-se que na maioria dos casos não apresenta bons resultados e ainda, a demora da realização do tratamento cirúrgico poderá comprometer os resultados da técnica cirúrgica utilizada. Nesse sentido o tratamento indicado é a realização de ceratectomia para a remoção da placa e posterior ceratoplastia. Quanto à escolha da técnica cirúrgica utilizada deve-se dar atenção à fase da doença assim como, a profundidade da lesão. A remoção do seqüestro deve ser realizada inicialmente através de ceratectomia superficial e dependendo da profundidade da lesão finalizar como procedimento mais profundo, porém se a pigmentação se estende até a membrana de Descemet, não se recomenda a remoção completa do seqüestro. Entre as técnicas de ceratoplastia mais utilizadas estão o retalho conjuntival 360º para casos de lesão mais profunda e recobrimento da lesão com a membrana da terceira pálpebra para lesões mais superficiais. Estas técnicas, em adição ao tratamento pós-operatório adequado resultam em ausência de recidiva do sequestro. A instituição de antiviral tópico torna-se indispensável no tratamento pósoperatório, sabendo-se que a presença de agentes virais dificulta a cicatrização. 34 REFERÊNCIAS ANDREW, S.E.; TOU, S.; BROOKS, D.E. Corneoconjunctival transposition for the treatment of feline corneal sequestra: a retrospective study of 17 cases (1990-1998). Veterinary Ophthalmology v.4, n.2, 107-111, Jun. 2001. 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