A gestão do trabalho nos estabelecimentos de saúde: elementos para uma proposta* José Paranaguá de Santana** Introdução A operação dos serviços de saúde no Brasil apresenta uma série de deficiências cujas explicações devem ser buscadas em diferentes campos. Embora tais explicações exijam enfoque mais amplo, este trabalho abordará o aspecto de recursos humanos, especificamente no que diz respeito às formas de sua utilização no interior dos estabelecimentos de saúde, ou seja, às práticas de gerência do trabalho nesses serviços. Há um amplo consenso sobre a necessidade de superar entraves e limitações dos processos gerenciais de recursos humanos tradicionalmente adotados pelas instituições de saúde. Para isso, torna-se indispensável elaborar propostas e trabalhar sua viabilidade, buscando sempre a inovação e o aperfeiçoamento das práticas de administração do trabalho nos serviços de saúde. O objetivo deste artigo é contribuir para a discussão do tema a gestão do trabalho nos estabelecimentos de saúde, a partir da análise das características das organizações desse setor, apresentando uma proposta que aponte para a superação dos estrangulamentos que dificultam o alcance de patamares mais elevados de produtividade com qualidade nesses serviços. A organização dos serviços de saúde A análise das organizações de saúde é de fundamental importância para a abordagem do tema da gestão do trabalho, ou mesmo da gestão desses serviços como 1 um todo. Com base na interessante discussão dessa questão feita por Dussault, serão discutidas três perguntas cuja formulação pretendeu abarcar as diferentes dimensões consideradas por aquele autor: * Documento apresentado no Painel Gestão de Recursos Humanos, na II Conferência Nacional de Recursos Humanos de Saúde, Brasília, setembro de 1993. ** Consultor de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Organização Pan-Americana da Saúde Representação do Brasil. 1 DUSSAULT, J. A gestão dos serviços públicos de saúde: características e exigências. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p. 8-19, abr./jun., 1992. 388 CADRHU •quais são os elementos essenciais das organizações que produzem serviços de saúde? •quais os desafios atuais para a gestão dessas organizações? •qual a importância da gestão do trabalho na vida dessas organizações? Além das questões acima, interessa a abordagem de certas especificidades do trabalho em saúde, as quais constituem elementos de consideração indispensável para a compreensão do tema das relações de trabalho nesse setor, fornecendo, portanto, bases para a formulação de propostas e execução de qualquer intento gerencial. Característica dos serviços de saúde O sucesso de qualquer organização depende, em maior ou menor grau, do empenho de cada um dos seus integrantes. No caso das organizações de saúde, essa observação se aplica de modo radical, porque dependem, utilizando as expressões 2 de Dussault, “[...] de seus operadores, em primeiro lugar”, são “organizações profissionais” onde “[...] o saber e as habilidades são formalizadas através do processo de formação e as normas definidas pelas associações profissionais”. O significado prático do que foi dito acima encontra-se presente no cotidiano de todos que labutam nos estabelecimentos de saúde, tanto daqueles que realizam as atividades como dos que são responsáveis pela direção institucional. Os primeiros, os “operadores”, têm, muitas vezes, apenas uma difusa idéia dessa questão, mas seu comportamento efetivo não deixa dúvidas a esse respeito, na medida em que preservam, com todo zelo, os limites de autonomia possível em cada ato de seu trabalho. Os dirigentes, ainda quando não se apercebam formalmente daquele conceito, reconhecem que seu papel no desempenho final da organização é muito limitado, restringindo-se apenas à mobilização dos recursos e das condições mais adequadas possíveis para seu funcionamento. Quem decide a indicação de medicamentos, equipamentos e outros insumos? Quem administra seu uso? Como o faz? Quem poderia controlar sua aplicação adequada e econômica? Não há dúvida que as respostas apontarão os responsáveis pela execução direta das atividades, demonstrando que o verdadeiro controle de todo o processo produtivo depende dos diversos profissionais que operam os serviços, aqueles que estão ‘na ponta da linha’. Esse enfoque corresponde, sob a ótica da ciência administrativa, ao que tem sido analisado por outros autores, numa trilha mais influenciada pela economia política, constatando a relevância, ou melhor, a transcendência do trabalho no pro3 cesso de produção de serviços de saúde. 2 3 Op. cit., p. 11. NOGUEIRA, R.P. O Processo de Serviços de Saúde. Educación Médica y Salud, 1991. v. 25, n. 1, p. 15-27. 389 Texto de apoio/Unidade 3 Outra característica das organizações sanitárias ressaltada por Dussault decorre do fato de que os “serviços produzidos atendem a necessidades multidi4 mensionais e são difíceis de avaliar”. Essa questão vem ocupando as atenções de muita gente há muito tempo, tendo adquirido renovado interesse na era atual, em virtude de dois fatores fundamentais: a elevação da consciência individual e coletiva com relação a tais necessidades e o avanço dos direitos sociais quanto ao seu atendimento. A discussão sobre a adequação da oferta de serviços de saúde no contexto da modernidade das relações sociais passa a ter um participante destacado, o próprio usuário de tais serviços, tradicionalmente apelidado de paciente. Seus interesses passam a ser considerados de uma forma nova, especialmente porque vão sendo progressivamente assumidos e advogados pelos próprios usuários, ao mesmo tempo em que se reduz a intermediação historicamente feita pelos profissionais de saúde, mormente os médicos, que sempre se julgaram conhecedores das necessidades de seus pacientes e, portanto, advogados ou árbitros de seus interesses. Esses são tópicos atualíssimos para reflexão e debate no momento em que tanto se fala em gestão de qualidade total e das possibilidades de sua aplicação no campo dos serviços de saúde. No que se refere à avaliação dos serviços, mesmo as metodologias mais tradicionalmente aceitas, assentadas geralmente no enfoque epidemiológico ou estatístico, encontram críticas quanto à sua adequação às necessidades objetivas e específicas dos usuários ou quanto à sua utilidade para a prática cotidiana dos profissionais de saúde, no que diz respeito às decisões de diagnóstico e tratamento e avali5 ações de prognóstico. Conseqüência freqüente dessa “multidimensionalidade” das necessidades e das formas de atendê-las é o desencontro ou a falta de sintonia entre as necessidades de saúde e a oferta de serviços, disjunção que muitas vezes se expressa em conflito usuário-prestador, dimensão a seguir abordada sob um prisma adicional. A prestação de cuidados de saúde é, essencialmente, um serviço público, no sentido mais simples e objetivo de ser uma atividade de interesse do público, ou do povo, já que a todos interessa, num ou noutro momento da vida, valer-se de tais cuidados. Por ser um serviço, aí implicadas as dimensões de consumo e produção, pode-se dizer que sua realização é uma função que envolve múltiplos interesses, onde destacam-se, de um lado, aqueles das diferentes clientelas irmanadas pela motivação de seu consumo e, de outro, por ser um serviço complexo cuja oferta resulta da atuação de múltiplos agentes, também os interesses desses agentes todos, representados numa classificação simplificada pelos profissionais e pelos gestores dos serviços. 4 5 DUSSAULT, op. cit. p. 13. DIAMOND, G. A. e DENTON, T. A. Alternative Perspectives on the Biased Foundations of Medical Technology Assessment. Annals of Internal Medicine, 1993. v. 118, p. 445-464, 1993. 390 CADRHU A abordagem dessas dimensões da organização dos serviços de saúde nos leva a considerar uma das suas mais expressivas características: a presença de variados e, por vezes, divergentes interesses no campo da sua oferta e consumo. Para os objetivos deste texto, interessa destacar a presença e a importância dos três parceiros acima referidos (os usuários, os profissionais e os gestores), embora exista ainda uma série de outros interessados que, direta ou indiretamente, se fazem presentes no processo de produção-consumo de serviços de saúde, como os setores de fabricação e comercialização de produtos farmacêuticos e de equipamentos, o setor financeiro (através da venda de seguro-saúde ou outros planos assistenciais) ou mesmo o setor empresarial de saúde, já bastante desenvolvido em nosso País. É ainda interessante chamar a atenção, quanto às peculiaridades das organizações de serviços de saúde, para o caso em que os mesmos são oferecidos pelo poder público, quando, ainda no dizer de Dussault, “[...] dependem em maior grau do que as demais do ambiente sócio-político: seu quadro de funcionamento é regulado externamente à organização”, além de estarem expostas à “contaminação burocrática, isto é, o tipo de regulamento desenvolvido 6 na burocracia estatal”. Esses aspectos relativos à interferência de objetivos estranhos às organizações de saúde oriundos do próprio poder público, seja das direções políticas ou da burocracia governamental, merecem ser ressaltados pois ajudam a entender as limitações ou dificuldades para o desempenho gerencial nos estabelecimentos públicos. Desafios para a gestão dos serviços de saúde Há dois referenciais básicos para uma análise atual da questão gerencial na área de saúde em nosso País: a gravidade da crise de inoperância dos serviços de saúde ante o volume e as exigências de qualidade das demandas sociais e a fragilidade 7 dos paradigmas administrativos em uso nessas organizações. Com esse enfoque não se pretende fugir da velha discussão sobre a relevância das dimensões políticas sobre os aspectos técnicos do planejamento e operação dos serviços de saúde, mas apenas reconhecer uma situação cada dia mais evidente no cotidiano dos estabelecimentos de saúde: o crescimento da demanda por capacidade gerencial. O equacionamento dessa demanda por capacidade gerencial inclui, além do delineamento do perfil gerencial desejável e da implementação de estratégias de capacitação adequadas, a busca de novos paradigmas, isto é, a adoção de novos conceitos e novas práticas de gestão, destacando-se aqui os pontos que se referem à organização do trabalho. 6 7 DUSSAULT, op. cit., p. 13. Interessante discussão sobre esse assunto, focalizando a questão da gestão no setor público na América Latina, encontra-se em Kliksberg, B. A gerência na década de 90. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, 1988. v. 22, n. 1, p. 59-85, jan./mar. 391 Texto de apoio/Unidade 3 As questões relativas a recursos humanos representam um componente crítico para o delineamento de novos paradigmas gerenciais para os serviços de saúde, em especial na área pública. Todos reconhecem que o desempenho de qualquer organizacão depende do seu pessoal. Esse ponto é proclamado em alto e bom som por executivos de todos os setores, sendo muito conhecidas de todos os que trabalham no ramo da saúde as declarações com esse teor dos dirigentes institucionais, em especial no início de suas gestões. Contudo, medidas concretas e eficazes dificilmente são operacionalizadas, seja por falta ou timidez das decisões políticas, seja porque os esquemas tradicionais não correspondem à complexidade e ao dinamismo dos problemas vigentes. É exatamente por isso que se disse antes que esta é uma área crítica para a renovação das concepções e das práticas gerenciais. Ao 8 tratar desse ponto, vale citar Kliksberg a política de pessoal resulta na “[...] construção de um sistema administrativo amplo que inclua uma série de rotinas orientadas basicamente para o controle dos funcionários [...] Quando hoje sabemos que, além da logística, uma política efetiva de pessoal implica uma agenda diferente, que contemple temas como a motivação, a participação, a relação entre mercados de trabalho privado e público, o desenvolvimento planejado e contínuo dos recursos humanos, etc”. O que se quer dizer, afinal, é que a reversão do quadro de inoperância dos serviços de saúde, ao passar pela questão da gerência, não deve postergar a discussão e a implementação de medidas que levem em consideração os seguintes pontos: •reconhecimento do papel central dos profissionais na vida da organização, o que implica, no plano institucional, a prática da administração participativa e, no âmbito do processo de trabalho, a abertura de espaços para a criatividade e a iniciativa do próprio trabalhador, substituindo o controle no desempenho de atividades programadas por outrem pela responsabilização para com os objetivos e as práticas institucionais; •efetivação de mecanismos regulatórios da autonomia e do corporativismo dos profissionais, o que demanda ações e iniciativas dos gestores que extrapolam as fronteiras dos serviços de saúde, situando-se no campo das negociações com as estruturas do Estado e das organizações corporativas dos trabalhadores. São esses os requerimentos básicos da nova concepção gerencial para os serviços de saúde, naquilo que diz respeito à área de recursos humanos. Enquanto funções da estrutura organizacional, competem à sua direção e a todos os escalões administrativos, nunca reduzindo-se a uma responsabilidade setorizada da área ou do órgão de pessoal, nem tampouco restringindo-se à alçada de especialistas ou assessores em desenvolvimento de recursos humanos. 8 KLIKSBERG, op. cit. p. 70. 392 CADRHU Importância da gestão do trabalho Os argumentos considerados anteriormente atestam a importância do trabalho no processo de produção-consumo de serviços de saúde, o que, naturalmente, dispensaria delongas quanto à importância da sua gerência. O que se pretende neste tópico é discutir alguns aspectos da gestão do processo de trabalho que, com enorme freqüência, estão associados ao baixo desempenho das organizações de saúde. Quais são os objetivos da gerência de recursos humanos nos serviços de saúde? Talvez, ao invés de apresentar um elenco de afirmações, seja mais prudente, exercitando o método da problematização no trato dessa questão, abordá-la através de outras mais específicas: •quais as formas de intervenção para enfrentar as conseqüências deletérias da divisão do trabalho em saúde, que se expressam em desumanização e risco no atendimento, em alienação do trabalhador e em prejuízo ou desperdício para os serviços? •como buscar solução para os conflitos ocorrentes na produção dos serviços de saúde, resultantes da contradição entre interesses de usuários, trabalhadores e dirigentes/chefias nos serviços de saúde? •como contrabalançar a influência corporativa dos profissionais de saúde no dia-a-dia dos serviços, quando as estratégias de defesa dos seus interesses interferem com o atendimento daqueles que necessitam de tais serviços? •como estabelecer, consolidar e aperfeiçoar mecanismos e instrumentos que assegurem a relação entre o contrato de trabalho e a efetiva produção de serviços nos estabelecimentos de saúde, mormente no caso do setor público? •que medidas promover para estimular os trabalhadores a alcançarem seus próprios limites de desempenho, visando a melhoria da produtividade com qualidade na produção dos serviços de saúde? Esse exercício de problematização nos permite chegar a uma síntese do que seriam os objetivos e, com isso, reconhecer a importância da gestão do trabalho em saúde como o processo destinado a: •evitar a desumanização e os riscos no atendimento associados à falta de compromisso e motivação dos profissionais; •mediar os conflitos de interesse que muitas vezes surgem nos ambientes de trabalho, tanto dentro da própria equipe profissional como com os usuários; •contribuir para o controle da produção e da qualidade do atendimento. Parte das dificuldades para a gestão adequada de recursos humanos nos serviços de saúde decorre da regulamentação do trabalho, que não considera as peculiaridades deste específico setor de atividades. Vejamos alguns exemplos: •o desempenho de ocupações nos serviços de saúde deveria implicar um compromisso com o atendimento de necessidades e interesses dos seus usuá- 393 Texto de apoio/Unidade 3 rios; entretanto não parece haver nada estabelecido nas regras do contrato de trabalho que possibilite a cobrança de tal compromisso, o que, em certa medida, respaldaria o cumprimento dos direitos sociais dos usuários, garantidos hoje pela própria Constituição Federal; •a instituição de certas medidas que visem a otimização do desempenho dos serviços, como o sistema de incentivos à produtividade, esbarra em restrições decorrentes da aplicação de princípios legais do contrato de trabalho, uma vez que não existe uma regulamentação que diferencie tais incentivos, percebíveis em condições específicas de desempenho no trabalho, de outras vantagens incorporáveis de forma permanente como direitos do trabalhador. Situações ilustrativas têm ocorrido praticamente em todas as oportunidades em que gestores de instituições públicas, buscando resolver um problema de inoperância dos serviços, implantaram algum tipo de incentivo funcional; após algum tempo, a percepção dessa vantagem desvincula-se do efetivo cumprimento da obrigação de desempenho que a originou, tornando-se parte indissociada da remuneração do emprego; • as práticas de controle do trabalho, destinadas a combater os efeitos deletérios da falta de coordenação e integração dos múltiplos trabalhadores envolvidos na prestação de serviços, não têm sido adotadas como rotina nos estabelecimentos de saúde ou, o que é ainda mais grave, não estão disponíveis enquanto métodos de supervisão, coordenação ou comando do processo de trabalho nos moldes em que este se desenvolve naqueles estabelecimentos. A questão central posta em discussão poderia sintetizar-se na pergunta: como tratar as relações de trabalho enquanto o objeto privilegiado da gestão de recursos 9 humanos na área da saúde? No campo teórico, ressalta a importância do tratamento do tema das relações de trabalho em duas diferentes disciplinas: enquanto relações trabalhistas, na área das ciências jurídicas e, enquanto relações de produção, na área da economia política. Esse enfoque tem importância mais analítica, apresentando visões polarizadas do tema em torno daquelas disciplinas. A visão mais totalizadora do tema deve considerá-lo em três abordagens complementares: •na dimensão econômica, enquanto relações de troca, isto é, a permuta entre “capacidade” de trabalho por salário (ou outra denominação que se dê à remuneração), onde capacidade de trabalho é entendida como seu potencial de utilidade, podendo ser designada simplesmente enquanto trabalho e tratada como uma mercadoria; •na dimensão político-ideológica, enquanto relações de poder e espaço de engendramento de conflitos, e, portanto, campo de possibilidades de enfrentamento entre os interesses do trabalho (ou do trabalhador, o dono de sua 9 A abordagem deste tema tomou como base discussões feitas com o professor Roberto Passos Nogueira durante a elaboração da Unidade IV do projeto CADRHU II – Capacitação em Desenvolvimento de Recursos Humanos de Saúde, 1992. 394 CADRHU própria capacidade de trabalho) e os objetivos institucionais (representados, no caso do serviço público de saúde, por seus dirigentes ou gestores); o que significa reconhecer uma singularidade dessa mercadoria, que é sua capacidade de desenvolver autonomia, isto é, de determinar seu preço, caracterizando o que se pode chamar uma “mercadoria consciente”; •na dimensão organizativa do processo produtivo, enquanto relações decorrentes da divisão do trabalho, ou seja, aquelas que se estabelecem, indispensavelmente, entre os diversos atores que interagem na “cadeia” de produção. De modo equivalente, a abordagem das relações de trabalho na perspectiva da gerência desdobra-se em três áreas: na negociação do preço do trabalho (essa “mercadoria consciente”), na interação com os trabalhadores e suas organizações e no enfrentamento dos efeitos da divisão do trabalho, correspondentes aos seguintes planos de atuação: •no campo da atividade econômica, especificamente, da dinâmica do mercado de trabalho do setor saúde, nos seus ramos privado e público; •no espaço das definições e ações jurídicas, desde a legislação até o cumprimento de suas obrigações (no caso da administração pública, exigência inarredável decorrente do princípio da legalidade que a preside), na interação com os trabalhadores, individualmente ou através de suas representações coletivas; •no âmbito do processo de trabalho, no trato das relações entre os integrantes da equipe de saúde, diferenciados pela natureza específica da contribuição de cada um no processo de trabalho, mas que devem integrar-se para bem realizar os objetivos finais da produção do serviço de saúde. A despeito da identidade conceitual de cada uma dessas áreas ou planos de ação, fica evidente sua complementariedade ou mesmo superposição quando se adota a ótica global do processo gerencial e seus objetivos. De tudo o que foi discutido, pode-se concluir que o reconhecimento da importância da gestão do trabalho tem por base o correto entendimento das dimensões acima apontadas, superando as práticas tradicionais de “uma série de rotinas orientadas basicamente para o controle dos funcionários”; e esse salto, essa mudança de paradigma, ainda não foi dado. Especificidades do trabalho em saúde O elemento central a ser considerado diz respeito à notável diferenciação entre as diversas categorias que integram o trabalhador coletivo de saúde, em termos de sua capacidade de ação nos planos referidos anteriormente: econômico, jurídico e operacional. O conceito de trabalhador coletivo em saúde tem sua utilidade como categoria de análise para entendimento dos mecanismos e formas de composição das 395 Texto de apoio/Unidade 3 parcelas de trabalho que entram na produção do resultado final esperado no processo de atendimento. O trabalhador coletivo é, pois, uma imagem que corresponde, enquanto agente do trabalho, ao produto final do serviço prestado ao usuário. Concretamente, tal agente coletivo é composto pelos vários trabalhadores que fazem parte de um processo produtivo, cuja característica marcante é a sua intensa divisão de trabalho. É portanto um conceito de aplicação prática no campo da gestão, em seus aspectos organizativos ou operacionais do processo produtivo. A projeção daquele conceito, de forma linear ou mecânica, para as dimensões político-ideológicas (econômicas e jurídicas) das relações de trabalho, tem provocado o surgimento de impasses ou situações de difícil superação, com respeito ao estabelecimento das regras do contrato de trabalho, em especial no caso do serviço público, envolvendo tanto a questão salarial como outras formas de retribuição do trabalho ou do tempo de serviço. Para ilustrar, ou mesmo comprovar, a propriedade dessa linha de argumentação, podem ser apontadas diversas expressões da diferenciação do trabalhador coletivo em saúde: •suas formas de organização: formação de categorias resultantes da divisão do trabalho (médico, enfermeiro, dentista, etc) ou por agrupamentos decorrentes da segmentação da oferta de empregos (associações de servidores dos setores público e privado, das diferentes modalidades assistenciais, etc); •seus diferentes graus de autonomia: categorias com ou sem antecedentes de organização liberal; profissões antecedentes ou posteriores ao processo de organização para produção em escala com divisão do trabalho (ou, dito de outra forma, da produção em moldes capitalistas); •suas distintas representações no imaginário social: tanto a imagem de cada profissão ou ocupação construída pela coletividade, como aquelas autoprojetadas pelos próprios trabalhadores; •suas formas de validação educacional e legal: categorias com ou sem regulamentação específica, incluindo-se, no último caso, ocupações que simplesmente executam funções atribuídas por delegação de outra categoria de trabalhador, a qual detém posição de superioridade hierárquica na divisão do trabalho; •seus estatutos corporativos: categorias com diferentes graus de controle, tanto do exercício profissional dos seus pares, quanto da abrangência do seu campo de atuação no espectro da divisão do trabalho. Outro componente a destacar refere-se ao elevado grau de divisão do trabalho que se observa na produção dos serviços de saúde e que tem resultado no surgimento e consolidação de novas categorias profissionais e ocupacionais. A força dessa tendência pode ser demonstrada a partir dos antecedentes históricos do processo de trabalho em saúde, marcado pela progressiva fragmentação, a qual vem se expandindo como conseqüência do desenvolvimento tecnológico. Ao que 396 CADRHU parece, essa tendência ainda orientará o movimento futuro das transformações do processo de trabalho em saúde. As considerações acima sugerem a seguinte reflexão: quais as implicações para a administração de recursos humanos de saúde que decorrem das peculiaridades da organização do trabalho, da constituição das profissões e do surgimento das ocupações nesse setor? No bojo dessa reflexão situam-se questões polêmicas e atuais sobre a regulação do trabalho em saúde, como isonomia salarial, jornada de trabalho, requisitos e atributos sociais do assalariamento, cujo tratamento foge ao escopo desse artigo (ver a discussão sobre o tema, especialmente o conceito de 10 regulação do trabalho, feita por Medici ). Ao chamar a atenção para esses aspectos, pretende-se apenas revelar mais uma faceta do novo paradigma de gestão do trabalho em saúde, ressaltando, assim, a necessidade do “salto” na sua direção. Proposta para a gestão do trabalho O enfrentamento dos desafios situados no campo da gestão do trabalho nos serviços de saúde requer ousadia de ação, não ficando restrito à abordagem analítica do tema ou à simples advertência de que é preciso buscar novos caminhos. É com 11 essa perspectiva que se apresenta uma proposta, cuja originalidade encontra-se no uso integrado de três estratégias de gestão: • responsabilização no trabalho; • incentivos à produtividade; • processo permanente de negociação coletiva do trabalho. O entendimento corrente sobre cada um dos termos acima pode ser tão diversificado que torna-se indispensável uma breve discussão sobre os mesmos. 10 Regulação do trabalho entendida como “[...] a combinação de normas de produção e normas de consumo, expressas no cotidiano através de taxas de exploração (ou taxa de mais valia); da duração/ extensão da jornada de trabalho; da organização e gerenciamento do processo de trabalho; das formas de remuneração do trabalho (salário por peça, mensalista, diarista, etc); da relação capital/ trabalho (ou composição orgânica do capital) e seus arranjos tecnológicos; dos requisitos sociais para o assalariamento (instrução, disciplina, disponibilidade de tempo, etc); e dos atributos sociais do assalariamento (estabilidade, padrões de consumo, direitos sociais incorporados por imposição do estatal ou por normas de conduta social, etc) vigentes em cada contexto.” In MEDICI, A.C. A regulação do trabalho no âmbito da saúde. Brasília, Organização Pan-Americana da Saúde/Representação do Brasil, 1993, cap. 4, p. 6. (Série Desenvolvimento de Recursos Humanos, nº 6). 11 Esta proposta resultou de reflexões e discussões realizadas durante a revisão/preparação do Projeto CADRHU II – Capacitação em Desenvolvimento de Recursos Humanos de Saúde, 1992. 397 Texto de apoio/Unidade 3 12 O conceito de responsabilização no trabalho implica a assunção, pelo trabalhador, no cotidiano de sua prática, de atitudes e compromissos efetivos com os objetivos ou com a missão institucional, o que significa dizer, no caso dos estabelecimento assistenciais, com as necessidades dos pacientes (ou, como seria mais adequado denominar, dos usuários). A responsabilização depende do desenvolvimento de relações de trabalho onde o referencial principal seja a satisfação do usuário. Para que se estabeleça esse pacto é indispensável uma série de posturas inovadoras no campo das práticas gerenciais dos serviços de saúde, buscando substituir o autoritarismo pela autoridade da coordenação democrática e superar a alienação pela participação consciente no processo de trabalho, em toda sua extensão e significado. O alcance de tais resultados passa, necessariamente, pela revisão do conceito e das práticas educativas nos serviços de saúde, já que os requerimentos fundamentais para essa abordagem são exatamente a formação e a educação continuada dos profissionais, num processo que assegure a implantação e a manutenção de uma nova cultura institucional voltada para os compromissos sociais da organização, isto é, para o atendimento do interesse público. A proposta de sistema de incentivos à produtividade define-se como o componente da estratégia gerencial constituído pelo conjunto de estímulos, financeiros ou não, que visam ajustar e otimizar os componentes do processo produtivo nos estabelecimentos de saúde, que é admiravelmente complexo e deve subordinar-se exclusivamente aos interesses dos usuários. Sua operacionalização implica os seguintes princípios básicos: •é um mecanismo de gratificação do trabalho que se estabelece a partir de uma remuneração básica, não sendo portanto substitutivo do salário; •sua aplicação só deve ocorrer a partir de um patamar de produção que é o rendimento do trabalho correspondente à remuneração básica, não podendo transformar-se numa gratificação permanente ou automática. A utilização de sistemas de incentivos à produtividade não deve jamais confundir-se com a lógica de mercado na produção de serviços de saúde nem assemelhar-se com a remuneração por unidades ou atos praticados. A direcionalidade desses sistemas deve, isto sim, apontar para objetivos relacionados à satisfação dos usuários e ao atendimento de necessidades de saúde epidemiologicamente determinadas (o que inclui as dimensões de cobertura e impacto dos serviços prestados). 12 Na concepção original dessa proposta de gestão do trabalho, apresentada na IX Conferência Nacional de Saúde, utilizou-se o conceito de supervisão enquanto instrumento da gerência, cujas aplicações práticas buscariam resgatar a integralidade do cuidado prestado, composto de trabalhos parcelados mas que devem constituir um resultado dotado de unicidade, só assim realizando sua utilidade para o usuário. A intenção era explorar a potencialidade gerencial da supervisão, contrapondo medidas ante as conseqüências nocivas da divisão técnica do trabalho, buscando evitar situações tantas vezes observadas nos serviços, onde o paciente sente-se ou, efetivamente, é maltratado, em termos de sua necessidade global de atendimento, a despeito de ter sido atendido por vários especialistas e tendo até recebido esses cuidados de modo zeloso e prestativo. A utilização atual do termo responsabilização prende-se à melhor adequação deste conceito aos objetivos pretendidos, englobando o que se buscaria associando as dimensões gerenciais e pedagógicas da supervisão. 398 CADRHU Vale advertir que o enfoque de incentivos à produtividade aqui considerado não tem nada a ver com as práticas que, sob essa denominação, têm sido adotadas em muitas experiências de gestão em instituições públicas nos últimos anos, onde os verdadeiros objetivos são a equiparação salarial entre diferentes vínculos de emprego (INAMPS e secretarias) ou compensações de defasagens na remuneração resultantes da perversa associação entre inflação e política de arrocho salarial. O terceiro componente, o processo permanente de negociação coletiva do trabalho, tem por base a experiência pioneira do Hospital do Instituto de Assistência Médica do Servidor Público do Estado de São Paulo (IAMSPE). O modelo ali implantado foi sendo organizado a partir do próprio desenvolvimento da experiência, tendo por base a concepção administrativa fundada em princípios democráticos e modernizadores de gestão e de defesa da coisa pública, bem como a disposição efetiva de gestores e trabalhadores para celebração de convênios coletivos de tra13 balho resultantes de negociação direta. Enquanto instrumento jurídico, a negociação coletiva do trabalho no serviço público está prevista na Lei Federal n.º 8.112/90, que institui o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas fede14 rais. Entretanto, a possibilidade de sua aplicação, no que diz respeito à negociação entre os trabalhadores e o Poder Público, ainda é uma questão polêmica que tem encontrado resistências na tradição das práticas jurídicas do direito público e 15 do trabalho. As principais limitações da aplicação da negociação coletiva no setor público vinculam-se aos princípios balizadores da Administração Pública, como a indisponibilidade e supremacia do interesse público e o princípio da legalidade; concretamente, levantam-se os argumentos de que a remuneração do trabalho e as despesas com pessoal no serviço público só podem ser definidas por lei. Tais obstáculos, todavia, podem ser equacionados a partir de uma visão inovadora que, sem desrespeitar ou pretender contornar a lei nem as boas práticas administrativas, propicie a criação e o desenvolvimento de bases jurídicas para o relacionamento entre trabalhador e gestor público. Maiores detalhes dessa valiosa experiência podem ser encontrados em: BRAGA, D. G. – Sistema permanente de negociação coletiva do trabalho no Iamspe: contratação coletiva inédita no setor público. Cadernos da CUT, n. 3 (jan. 1990), e BRAGA JÚNIOR, D. Negociação coletiva do trabalho no setor público: repercussões da sua aplicação nas atividades do Hospital do Servidor Público Estadual – uma análise de resultados. Cadernos da CUT, n. 4 (jul.set., 1990). 14 Extensa e convincente argumentação sobre a validade constitucional da aplicação do processo negocial entre servidores e poder público pode ser encontrado no estudo jurídico elaborado mediante consultoria à OPAS/OMS pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário: BUCCI, Maria Paula Dallari, FONSECA, Valéria Simões Lira. - Negociação coletiva do trabalho no serviço público. CEPEDISA-OPAS/ OMS, 1992. 15 A aplicação desse instituto jurídico-administrativo na esfera da administração pública federal encontra-se impedida por decisão do Supremo Tribunal Federal. Espera-se que o assunto seja claramente definido pelo Congresso Nacional, quando da Revisão Constitucional. 13 399 Texto de apoio/Unidade 3 O argumento essencial para adoção do processo permanente de negociação coletiva do trabalho nos serviços de saúde é o estabelecimento de procedimentos que possibilitem o exercício da administração pública participativa,16 não como um fim em si mesma, mas como estratégia de melhor servir ao povo. Após essa breve aproximação conceitual a cada um dos componentes, é possível retornar à análise da proposta em sua abrangência integradora, conforme referido anteriormente. O principal argumento para a aplicação dessa estratégia de gestão do trabalho nos serviços de saúde é a potencialidade dos efeitos da utilização sinérgica dos instrumentos apontados. A ninguém ocorreria negar as vantagens do processo de responsabilização no trabalho, voltado para a consecução de objetivos finais (qualidade do atendimento, ampliação da acessibilidade, etc) e administrativos (redução de custos, economia de insumos, cumprimento de carga horária, etc). Todos esses objetivos pressupõem o estabelecimento e cumprimento das normas ou regras do processo produtivo em saúde: •como executar as atividades e tarefas? •qual o papel de cada um no conjunto de atos, eventos e momentos que conformam o serviço prestado? •como fazer valer as normas e procedimentos definidos? As questões a serem equacionadas são: •quem decide tais normas e procedimentos? •como decide? •como avaliar a adequação dos objetivos administrativos à finalidade institucional de atender o interesse individual e coletivo dos usuários? A adoção de esquemas de incentivo à produtividade é ainda assunto polêmico, em decorrência de posturas ideológicas ou de argumentos menos doutrinários assentados em distorções de entendimento conceitual e metodológico. Entretanto, tem representado inegável contribuição para racionalização e eficiência do processo produtivo em todas as situações em que seu uso cercou-se de cuidados para evitar desvios e malefícios de ordem técnica ou ética na oferta dos serviços. Contudo, a forma e os meios de definir e implantar, revisar e atualizar os critérios e os objetivos a serem alcançados com o sistema de incentivos, devem refletir as características do processo produtivo dos serviços de saúde, marcado por relações de trabalho complexas e diversificadas. Aqui também aplicam-se as perguntas acima formuladas: quem decide? como decide? como avaliar sua adequação aos objetivos sociais? 16 Discussão de interesse sobre esse tema encontra-se em FURTADO, A. Bases sociais, técnicas e econômicas do trabalho em saúde: implicações para a gestão de recursos humanos. OPAS/OMS, Brasília, 1992. 47 p. mimeo. 400 CADRHU A instalação de processos de negociação permanente entre servidores e dirigentes institucionais, nos moldes do Sistema Permanente de Negociação Coletiva de Trabalho do IAMSPE, representa o terceiro ponto de apoio que assegura sustentação à estratégia de gestão proposta, na medida em que pode constituir-se foro adequado e efetivo para equacionar, além das questões aventadas acima, muitas outras pendências resultantes de conflitos no processo de trabalho nos serviços de saúde. A discussão acima realizada sobre os três pilares dessa estratégia integrada de gestão do trabalho não pretendeu esgotar o assunto, mas tão somente explicitar uma proposta a ser discutida e testada. Provavelmente a realização de experiências dessa natureza será difícil e trabalhosa, mas certamente terá grande impacto sobre o desempenho e a produtividade dos profissionais nos serviços de saúde, resultando em muitos benefícios como a melhoria da administração desses serviços e, conseqüentemente, da própria qualidade do atendimento às necessidades de saúde da população.