■ ANO 2 ■ Nº 6 TIRAGEM: OUTUBRO/2007 ■ 31 000 EXEMPLARES DARWINISMO SOCIAL DÁ AS CARAS NO ENEM José Arbex Jr. Editor geral de Mundo Charles Darwin A evolução e a diversidade dos seres vivos são resultado da seleção natural © Julia Margaret Cameron cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefício das gerações presentes e futuras.” A citação acima, extraída da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, adotada em 2001 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), serviu de base para a prova de redação do Enem deste ano, sob o título: “O desafio de se conviver com a diferença”. À primeira vista, a proposta do tema, em si mesma, constitui um hino ao entendimento entre os seres humanos, idéia reforçada por outra afirmação de seus autores: “Todos reconhecem a riqueza da diversidade no planeta. Mil aromas, cores, sabores, texturas, sons encantam as pessoas no mundo todo; nem todas, entretanto, conseguem conviver com as diferenças individuais e culturais. Nesse sentido, ser diferente já não parece tão encantador.” O problema é que a prova faz exatamente o contrário do que pretendem os seus proponentes: caminha, perigosamente, por veredas que conduzem ao racismo e, no limite, às idéias eugênicas tão caras a um certo Adolf, ao sustentar a existência de uma analogia entre a “diversidade biológica” natural e a “pluralidade de identidades” humana. A idéia é integralmente equivocada. Tem como base o positivismo cientificista do século XIX, mentalidade que permitiu o florescimento das teorias de Herbert Spencer e daquilo que hoje qualificamos como darwinismo social (termo popularizado, em 1944, pelo historiador Richard Hofstadter). Em 1859, o naturalista britânico Charles Darwin (1809 – 1882) revolucionou o mundo científico de sua época, ao publicar o livro A origem das espécies. Darwin explicava a evolução e a diversidade dos seres vivos por meio de um processo de seleção natural. Um grupo de cientistas evolucionistas, dos quais o mais conhecido, provavelmente, é Herbert Spencer, passou a defender a tese de que as “diferenças raciais” entre os seres humanos decorre do mesmo processo. Entre os humanos, venceriam os grupos mais preparados para enfrentar as adversidades naturais e a competição com outros grupos humanos (a expressão “sobrevivência dos mais aptos”, erradamente atribuída a Darwin, foi formulada por Spencer). Com isso, a ciência da época fornecia aos defensores do escravismo um belo argumento: os negros tinham mesmo que ser escravos, por pertencerem a uma raça situada em algum ponto inferior da escala evolutiva. Belo argumento, também, para justificar o imperialismo europeu: no encontro com outros povos, a sociedade européia, obviamente superior a todas as outras, era portadora de uma missão civilizatória. Mesmo pensadores revolucionários caíram na armadilha do eurocentrismo: Karl Marx elogiava o “progresso” levado a todos os cantos do mundo pela indústria capitalista. Essa fase da história é analisada, de maneira brilhante, por Edward Said, no livro Orientalismo, base para os estudos pós-coloniais contemporâneos. Herbert Spencer Reprodução A “ ■ Aplicou a teoria de Darwin às sociedades humanas, onde venceriam os “mais aptos” E pelo mesmo caminham enveredaram aqueles que, por exemplo, tentavam explicar a pobreza nos grandes centros urbanos formados pela revolução industrial: os mais aptos às novas condições de vida enriqueceram, ao passo que outros, não tão evoluídos, foram condenados à miséria, não por qualquer causa inerente ao capitalismo, mas por um processo de seleção natural. O mesmo vale para explicar as altas taxas de criminalidade nos centros urbanos: não eram as precárias condições de vida dos mais pobres que alimentavam o crime, mas sim causas naturais, explicadas pela teoria da evolução das espécies. Um exemplo fantástico desse tipo de raciocínio é oferecido pelo conde Arthur de Gobineau (1816 – 1882), escritor e diplomata francês que viveu certo tempo no Brasil. Amigo íntimo do imperador D. Pedro II, com que manteve correspondência até o fim da vida, escreve pérolas do tipo: “Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto.” Ou então: “A América do Sul, corrompida em seu sangue crioulo, não dispõe de qualquer meio, doravante, para deter o declínio dos mestiços de todas as variedades e de todas as classes. Sua decadência é irremediável.” E o darwinismo social serviu também de inspiração às “teorias” nazistas segundo as quais a sociedade humana funciona como um organismo, eventualmente atacado por “cânceres” e “tumores” que deveriam ser extirpados: arianos com “defeitos de nascimento”, judeus, ciganos, comunistas, socialistas etc. Não por acaso, a categoria profissional que mais quadros ofereceu ao nazismo foi a dos médicos, como esclarece Peter Cohen, no seu brilhante documentário “Arquitetura da destruição” (1989). Hitler, como se sabe, era vegetariano radical e amava a paisagem natural germânica, fonte de inspiração para seus discursos sobre higiene social e estética. Claro que não se trata, aqui, de condenar os vegetarianos nem os ecologistas, mas sim de advertir para o perigo embutido nas analogias equivocadas. Não há, simplesmente não há como comparar o mundo das forças cegas e caóticas que constitui o mundo natural aos processos políticos, econômicos, sociais e culturais que constituem as sociedades humanas. Por mais elevada que tenha sido a intenção dos examinadores do Enem – não se trata, aqui, de adivinhar os seus propósitos – o resultado foi um preocupante desastre. HISTÓRIA & CULTURA HISTÓRIA & CULTURA M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O “IRMÃOS NÃO BASTA?” Renato Mendes De Lisboa A tualmente a língua portuguesa é falada por 240 milhões de pessoas, é a 3ª língua mais falada no ocidente e a 6ª em número de falantes no planeta. Esta identidade lingüística é dividida por 8 países, a saber: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. É natural que a língua seja um dos principais fatores de união entre povos, é através dela que dividimos o conhecimento, e que compreendemos o mundo. A ministra da Cultura de Portugal e professora catedrática da Faculdade de Letras do Porto, Isabel Pires de Lima, sintetiza em um de seus textos publicados no Jornal de Letras de Lisboa, a importância da língua para o indivíduo e para um povo: “As mais elevadas capacidades intelectuais humanas só podem ser exercidas e exercitadas mediante o domínio pleno de um idioma, normalmente o materno. Do uso que fazemos da Língua, depende, em absoluto, a nossa capacidade de organizar o pensamento, de comunicar idéias, de expressar opiniões, entender conceitos, descodificar problemas, verbalizar sentimentos, compreender o outro. E ainda de nos inserirmos socialmente numa determinada comunidade, acedendo às suas regras, aos seus valores, à sua cultura”. Este importante patrimônio que é a língua possui formas diferentes de pronúncia e de escrita, consoante ao país onde é utilizada. A língua portuguesa possui duas ortografias distintas, a utilizada por Portugal e pelos países africanos, e a brasileira. Desde o início do século XX, filólogos, intelectuais, profissionais da escrita e políticos, tentam criar um acordo ortográfico para língua portuguesa. O principal objetivo é fazer com que os países de língua portuguesa utilizem uma mesma maneira de escrever as palavras, por meio de ajustes realizados nas grafias do português sul-americano e europeu. Existe uma grande distância entre a assinatura de um acordo e sua implementação; as alterações mobilizam dimensões históricas, políticas, ideológicas e econômicas. Traz à tona questões ligadas à afirmação de identidade cultural, hegemonias, conflitos de cultura, produção gráfica de livros e periódicos e especialmente dicionários. É importante ter em mente que existem especialistas brasileiros e portu- Anunciado acordo ortográfico no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa desperta polêmicas e paixões gueses a favor do acordo, mas existe um número ainda maior de opiniões desfavoráveis a tal simplificação. Antônio Houaiss (1915 – 1999) foi um dos maiores estudiosos brasileiros da língua portuguesa, antigo presidente da Academia Brasileira de Letras e Ministro da Cultura, além de principal negociador do acordo ortográfico. Ele escreveu: “Portugal, Brasil e os cinco países africanos de língua portuguesa reconhecem que a inexistência de uma única ortografia oficial traz não apenas dificuldades de natureza lingüística, mas também de natureza política. Daí o esforço desses países em efetivar o novo acordo”. Na época, intelectuais portugueses encaminharam um abaixo-assinado ao presidente e primeiroministro de Portugal, que dizia: “A língua tem como proprietários os seus utentes e não meia dúzia de sábios com direito a definir que Portugal escreva como o Brasil e vice-versa.” “Se o Brasil e Portugal são países irmãos como são os EUA e o Reino Unido, e se a ortografia é uma ‘epiderme’, por que é que há de passar pela cabeça de alguém torná-las gêmeas através da cirurgia plástica de um acordo? Irmãos não basta?” (Miguel Esteves Cardoso, jornalista e escritor português) Contra o mau sucedido acordo ortográfico de 1986, foi constituído o “Movimento Contra o Acordo Ortográfico em Portugal”, composto por intelectuais portugueses, entre eles a catedrática portuguesa e historiadora da gramática, Maria Leonor Buescu (1932-1999), que defende a diversidade e não a homogeneização: “Eu lamento que o esforço de análise, quase diria laboratorial, dos primeiros ortografistas portugueses venha agora a ser deitado para o lixo. Em 1536, o primeiro anotador da língua, Fernão de Oliveira, reconhece já que as letras do alfabeto não chegam por si próprias, para expressar a enorme riqueza sonora da língua e chega a propor a utilização de vogais gregas.” Harmonização ortográfica, pasteurização da língua, desacordo ortográfico, “golpe de estado” lingüístico, são formas, muitas vezes irônicas, de apelidar o polêmico documento. Alguns acreditam que se o acordo for ratificado por todos os países que falam português, irão desaparecer al- gumas das barreiras mais importantes que ainda existem em África contra a penetração brasileira. Nos países africanos é a ortografia portuguesa que se encontra profundamente enraizada, afinal é nela que sempre foi processada a criação cultural escrita; é nela que se faz a aprendizagem Museu da Língua Portuguesa, São Paulo Cronologia das uniões e das divisões ortográficas 1904 Aniceto dos Reis Gonçalves Viana publica em Lisboa a ortografia nacional, estudo que simplifica a ortografia da língua portuguesa. 1910 A Academia Brasileira de Letras adota uma simplificação ortográfica, mas como não tem obrigatoriedade legal, tem pouca repercussão no Brasil e nenhuma em Portugal. 1911 O governo português nomeia uma Comissão para tratar da reforma ortográfica. 1919 O Brasil volta a escrever com “ph” e “ch”, a pedido de Osório Duque Estrada, autor da letra do Hino Nacional. 1931 Firmado um instrumento de acordo entre a Academia das Ciências de Lisboa e a ABL para a unidade ortográfica. 1934 Após a Revolução Constitucionalista de 1932, Getúlio Vargas lança a Constituição em 1934, que extingue o acordo de 1931. 1943 Adotada a primeira convenção ortográfica entre Brasil e Portugal. 1945 Conferência Interacadêmica de Lisboa faz com que o governo português adote oficialmente o sistema acordado, praticado até os dias de hoje. O Brasil por sua vez, não obteve aprovação do Congresso Nacional, ficando desta forma com a ortografia e com o vocabulário ortográfico da ABL de 1943. 1971 O governo brasileiro, sob o comando do general Médici, abole o acento circunflexo e parte do uso dos tremas. 1986 Encontro dos sete países de língua portuguesa na ABL estabelece um acordo de unificação ortográfica que, por sua relativa radicalidade, principalmente em matéria de acentuação gráfica e de emprego do hífen, sofre muitas críticas, sobretudo em Portugal. 1990 A Academia de Ciências de Lisboa convoca um encontro homólogo com propostas de modificações na redação das inovações, para as quais todos os países dão suas aprovações. O acordo é assinado pelos representantes executivos dos sete países, contudo sua ratificação não aconteceu. 1998 Novo encontro entre os países para alteração no acordo com a criação do 1º protocolo modificativo, ratificado por Brasil e por Portugal somente. 2004 Acontece a Cúpula da CPLP em São Tomé e Príncipe e aprova-se um 2º protocolo modificativo, com o objetivo de acelerar a entrada em vigor do acordo. Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe ratificam o protocolo, desta forma o acordo pode ser implementado por todos os oito países membros da CPLP. 2007 OUTUBRO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA HISTÓRIA N G E A M& UN CULTURA D O PA N GHISTÓRIA E A M U N D& O PA CULTURA N G E A 2-HC Breve história da CPLP Atualmente observamos em todo o mundo, uma clara tendência nos países em se organizarem em blocos, comunidades e uniões. Interesses e objetivos comuns fazem com que os países se associem e a língua pode ser um destes. Em 1996 o Brasil criou juntamente com os países de língua portuguesa, a CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que naquela época eram sete, pois Timor-Leste ainda pertencia a Indonésia. As finalidades principais da CPLP, atualmente sob a presidência rotativa da GuinéBissau, são: concertação político diplomática; defender e promover a língua portuguesa na Lusofonia; mediar crises institucionais e políticas; e desenvolver cooperação técnica através das reuniões setoriais. A CPLP também possui uma vertente comercial onde existe um conselho, mas isto é algo independente, pois não é um órgão oficial. Em entrevista ao Mundo, o embaixador do Brasil junto a CPLP, Lauro Moreira, diz quais são suas expectativas para o futuro da comunidade: “Você tem dois países que se destacam, que são Brasil e Portugal. Em África, países com crescimento rápido como Angola e Moçambique, seguido por Cabo Verde, um país organizado. E existem países incipientes institucionalmente, como é o caso de Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Não podemos esperar nada do outro mundo. Tenho a sensação que os primeiros 10 anos foram os mais difíceis, acho que daqui para adiante, o processo de integração tende a acelerar. Os ganhos dos países africanos é enorme, Portugal se fortalece junto à União Européia, e o Brasil se integra ainda mais em África”. Embaixador critica conservadorismo luso Leia, em seguida, entrevista concedida por Lauro Moreira, embaixador do Brasil junto à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Biblioteca Nacional de Lisboa implementar a última versão do acordo de 1990. Em oposição está o Brasil, que tem todo o interesse em ver o maior número de pessoas utilizando às novas grafias, e já prepara a modificação da atual ortografia com a licitação dos livros didáticos até o fim deste ano. A analogia do jornalista e escritor português Miguel Esteves Cardoso faz com que avaliemos o real sentido de toda esta polêmica, “Se o Brasil e Portugal são países irmãos como são os EUA e o Reino Unido, e se a ortografia é uma ‘epiderme’, por que é que há de passar pela cabeça de alguém torná-las gêmeas através da cirurgia plástica de um acordo? Irmãos não basta?” © Lalo de Almeida/Folha Imagem escolar; é nela que fundamentalmente se continua a escrever. Sem sombra de dúvida o Brasil iria lucrar no aspecto comercial com a adoção do novo acordo por parte dos países Africanos, por intermédio de seu massivo e dinâmico mercado editorial que produz 400 milhões de livros por ano, e porventura com seus professores ensinando na África. Neste aspecto, Portugal não só se distanciaria culturalmente de suas ex-colônias africanas, mas também comercialmente. Com um universo tão grande de possibilidades e conseqüências – muitas delas ainda não imaginadas –, Portugal se retrai e defende o período de 10 anos para Mundo – Qual o sentido de uma unificação ortográfica, já que a médio e longo prazo a língua não será mais a mesma? Lauro Moreira – Em cada um dos países da CPLP a língua tem nuances diferentes, o português que se fala no Brasil, foneticamente é diferente do português que se fala em Portugal, e do ponto de vista léxico, há uma série de palavras que são diferentes também, isto é uma riqueza para língua. Empobrecimento é você ter a mesma palavra escrita de maneira diferente, dependendo da latitude onde você está escrevendo esta palavra. É lamentável você escrever “eléctrico” em Portugal e “elétrico” no Brasil, embora a pronúncia seja a mesma. O acordo pretende retirar a consoante muda do meio das palavras. Nós tendemos sempre a simplificar as coisas. Eu comprei uma edição do Almanaque Luso-brasileiro de Lembranças, edição de Camões, o “pai” da 1901, e está escrito na primeira página Almanach Lusolíngua portuguesa Brazileiro, você vê a quantidade de palavras com letras dobradas, escritas com “y” e com “ph” no lugar do efe. Com o passar do tempo, nós fomos simplificando a maneira de escrever. O que se pretende com esse acordo que foi assinado por todos os países, em 1990, é buscar a uniformização na maneira de escrever. Isto não vai manietá-la, não vai aprisioná-la, de maneira nenhuma. Mundo – Que benefícios o acordo traria? LM – Com o fato de simplificar, você já esta ajudando muito, até mesmo a alfabetização. O fato de termos uma língua unificada em termos ortográficos, permite simplesmente trocar livros. Você não tem dificuldade nenhuma em ler livros na ortografia portuguesa, mas acontece que se você coloca um livro destes na mão de uma criança, é um problema. Em ocasião de um debate que participei com o romancista angolano José Eduardo Agualusa, ele disse que o Brasil havia doado uma grande quantidade de livros infantis para o governo angolano, entretanto perceberam que não poderiam distribuí-los, pois estavam com uma ortografia diferente daquela adotada. Se a criança esta aprendendo que a palavra “tecto” se escrever com a consoante muda “c”, ela pega um livro brasileiro e vê que é “teto” sem a consoante, é problemático. Mundo – Os editores brasileiros seriam beneficiados com este acordo, em função de terem uma maior capacidade de resposta às mudanças? LM – O Brasil tem 190 milhões de habitantes, em princípio seria o país com maior dificuldade de adaptação. Portugal tem 10 milhões de habitantes, portanto teria menores dificuldades para poder colocar em vigor estas novas regras. Mundo – De que forma o acordo beneficiara a comunidade acadêmica? LM – O Brasil faz, por ano, 400 milhões de livros escolares. Seria fácil doar um milhão de livros escolares, mas a diferença de grafia não permite. Portugal poderia importar livros brasileiros, o Brasil poderia importar livros portugueses. Hoje em dia com a internet e a globalização toda, continuar havendo a divisão por problema de hífen, acento e consoante muda, não tem cabimento. Mundo – Existem estudos sobre o impacto que este acordo causará no mercado editorial destes países? LM – Não existem. Os livros atuais não serão tirados de circulação, durante algum tempo existirão duas grafias. Segundo, em um mês deve estar pronto um software que corrigirá de forma breve todos os arquivos e livros, colocando a ortografia nova. Portanto não vejo dificuldade. Mundo – O fato de Portugal assumir a presidência da CPLP no próximo ano, determina que implementarão o acordo ortográfico? LM – Não existe esta relação. Nós esperamos que Portugal implemente este acordo o mais rápido possível, para que ele ganhe o sentido que originalmente se lhe atribui. Por que senão passa a ser uma reforma unilateral, interna, brasileira, e não é isso que queremos. O que realmente nos preocupa é a declaração da ministra da Cultura de Portugal, que hoje parece uma posição oficial portuguesa, de que seriam necessários dez anos para colocar este acordo em vigor. Ora, somado aos 17 anos que já se passaram, são 27 anos, é um acordo que já nasce velho. OUTUBRO 2007 HC-3 HISTÓRIA PA N G E A M &UCULTURA N D O PA N G HISTÓRIA EAMUND & OCULTURA PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O m 1992, o então vice-presidente dos EUA (o presidente era Bush, pai), Dan Quayle, tomava parte, em Trenton, Nova Jersey, de uma competição escolar de spelling, ou seja, de “soletração”. Quando Quayle ditou a palavra inglesa correspondente a “batata”, o aluno William Figueroa, da 6ª série, grafou: potato. Estava certo, mas o vice-presidente julgou que faltava “uma coisinha” e fez o garoto acrescentar um e: potatoe. Quayle estava habituado às gafes, mas esta ele próprio definiria como “um momento do pior tipo”. Ortografia, de fato, é coisa séria e, como se vê, não é só no Brasil que ela causa dúvidas. Mas por que – terá pensando Quayle – tem de ser difícil? Fonologia e etimologia – Em tese, sistemas de escrita alfabéticos poderiam ser de maneira tal que a cada letra correspondesse a um único fonema (som da língua) e vice-versa. Esse foi o caso do português até o século 16. Todavia, o alargamento dos estudos clássicos fez que a ortografia se apoiasse não mais apenas na pronúncia, mas também na história. Ao lado da base fonológica, a escrita passou a incorporar também princípios etimológicos. Assim, por exemplo, o uso de s, c, ç ou ss não depende da pronúncia, mas da “origem” do vocábulo. Etimologia, porém, não é uma arte fácil, e somente no início do século 20, a partir dos estudos de Gonçalves Viana, a escrita foi apurando sua precisão histórica e tornando-se mais simples. O que não foi sem custo nem desgaste. Houve reformas ou tentativas de reforma em 1911, 15, 19, 24, 29, 31, 38… até que no começo dos anos 1940 a ortografia de Portugal e Brasil já não apresentava traços etimológicos do grego (theatro, pharmacia, mysterio), consoantes dobradas (anno, bello), grande parte das consoantes não pronunciadas (septe, lucto) e regularizara a acentuação gráfica. Ortografia não é língua – Embora semelhantes, a ortografia brasileira e a portuguesa apresentam diferenças que recobrem cerca de 4% do léxico total. Em 1945, um acordo firmado entre os dois países e adotado em Portugal nunca foi ratificado pelo Brasil. Nesse contexto, o atual Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa pretende unificar o sistema ortográfico empregado nos países lusófonos. Observe-se, porém, que ele não atua sobre a língua em si. Como é natural em se tratando de um idioma transcontinental, falado por mais Acordo Ortográfico busca unificar a escrita, mas respeita diferenças de pronúncia Paulo Bearzoti Filho c) d) Antônio Houaiss (19151999), um dos maiores estudiosos brasileiros da língua portuguesa, foi um dos arquitetos do acordo ortográfico Divulgação E COM AS MESMAS LETRAS e) f) g) h) i) de 200 milhões de pessoas, o português apresenta variações, mesmo em sua pronúncia considerada culta. Assim, os vocábulos de pronúncia divergente continuariam a ser grafados de maneira diferente. Se, por exemplo, em Portugal se diz Jugoslávia e, no Brasil, Iugoslávia, esse nome é grafado, lá, com J e, aqui, com I. A questão são as diferenças propriamente ortográficas. O nome do profissional que interpreta papéis dramáticos é pronunciado do mesmo modo no Brasil e em Portugal. Contudo, lá se grafa actor e, aqui, ator. É uma distinção puramente ortográfica, do tipo daquelas que, segundo os princípios do Acordo, não devem mais existir. Aplicado esse conceito, modifica-se cerca de 0,5% do léxico brasileiro e 1,6% do lusitano. Como as diferenças de pronúncia persistem, cerca de 2% do léxico total se mantém com dupla grafia. j) da presentes na grafia adotada em Portugal em vocábulos como acção ou Egipto. O uso de acento agudo ou circunflexo pode variar, nos casos de pronúncia diferente: Vênus, prêmio e matinê, no Brasil, mas Vénus, prémio e matiné, em Portugal. Os ditongos abertos éi e ói deixam de ser acentuados em palavras paroxítonas, como assembléia e heróico, agora assembleia e heroico. Contudo, esses ditongos continuam acentuados em vocábulos oxítonos ou monossílabos, como em anéis e heróis. Não são mais acentuadas as formas crêem, dêem, vêem, lêem e derivados. Não são mais acentuados os hiatos com duplo oo, como em vôo, enjôo. O trema não é mais utilizado (a não em certos estrangeirismos). Assim, seqüestro passa a sequestro. Não se empregam mais os acentos diferenciais da forma verbal pára e pélo e dos substantivos pólo e pêlo. Mantémse, porém, a distinção entre pôde e pode, e passa-se a aceitar, facultativamente, o acento em fôrma, para distingui-la de forma. Na chamada “regra do hiato”, não se acentuam mais as vogais i e u quando precedidas de um ditongo. Assim, feiura e baiuca, e não mais feiúra e baiúca. Há várias alterações nas regras (bastante complexas e confusas) para o emprego do hífen. Por exemplo, certos compostos perdem o hífen, como paraquedas e mandachuva. QUAIS SÃO AS MUDANÇAS Confira alguns pontos do novo Acordo Ortográfico: a) Na enunciação do alfabeto, passa-se a incluir as letras k, w e y. Na realidade, os dicionários já incluem essas letras, e seu uso não é alterado pelo Acordo. b) Eliminam-se as consoantes “mudas”, ain- A forma e a fôrma Embora elimine a maioria dos acentos diferenciais, o Novo Acordo oficializa a distinção entre fôrma e forma, adotada, por exemplo, pelo dicionário Aurélio, que havia sido abandonada em 1943. Ponto para o velho e heróico lexicógrafo, que, com razão, assinala que a extinção desse acento tornava incompreensíveis jogos de palavra como este, do poeta Manuel Bandeira: “Vai por cinqüenta anos / Que lhes dei a norma: / Reduzi sem danos / A fôrmas a forma”. Como se vê, as alterações são muitas, mas dizem respeito a áreas relativamente não nucleares do vocabulário. Se o Acordo for efetivamente implantado – repitamos: se for implantado –, será necessário reformular milhões de livros, todos teremos de reaprender algumas regras, e os revisores eletrônicos de textos perderão parcialmente sua validade. Mas a ortografia manterá dificuldades e pormenores que ainda exigirão certo preparo e muito cuidado para não passar pelo “momento do pior tipo” que tanto mal fez à carreira do jovem Dan Quayle. Num mundo em que escrita é poder, a ortografia nunca perde a majestade. Paulo Bearzoti Filho é professor de Língua Portuguesa do Curso Positivo, em Curitiba (PR) 2007 OUTUBRO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA HISTÓRIA N G E A M& UN CULTURA D O PA N GHISTÓRIA E A M U N D& O PA CULTURA N G E A 4-HC