DARWINISMO SOCIAL DÁ AS CARAS NO ENEM

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ANO 2
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Nº 6
TIRAGEM:
OUTUBRO/2007
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31 000 EXEMPLARES
DARWINISMO SOCIAL
DÁ AS CARAS NO ENEM
José Arbex Jr.
Editor geral de Mundo
Charles Darwin
A evolução e a
diversidade dos
seres vivos são
resultado da
seleção natural
© Julia Margaret Cameron
cultura adquire formas diversas através do tempo e
do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade
e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte
de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária
como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e
deve ser reconhecida e consolidada em benefício das gerações presentes e futuras.”
A citação acima, extraída da Declaração Universal
sobre a Diversidade Cultural, adotada em 2001 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (Unesco), serviu de base para a prova de redação do Enem deste ano, sob o título: “O desafio de se
conviver com a diferença”.
À primeira vista, a proposta do tema, em si mesma,
constitui um hino ao entendimento entre os seres humanos, idéia reforçada por outra afirmação de seus autores:
“Todos reconhecem a riqueza da diversidade no planeta.
Mil aromas, cores, sabores, texturas, sons encantam as pessoas no mundo todo; nem todas, entretanto, conseguem
conviver com as diferenças individuais e culturais. Nesse
sentido, ser diferente já não parece tão encantador.”
O problema é que a prova faz exatamente o contrário do
que pretendem os seus proponentes: caminha, perigosamente, por veredas que conduzem ao racismo e, no limite, às
idéias eugênicas tão caras a um certo Adolf, ao sustentar a
existência de uma analogia entre a “diversidade biológica”
natural e a “pluralidade de identidades” humana.
A idéia é integralmente equivocada. Tem como base
o positivismo cientificista do século XIX, mentalidade
que permitiu o florescimento das teorias de Herbert
Spencer e daquilo que hoje qualificamos como
darwinismo social (termo popularizado, em 1944, pelo
historiador Richard Hofstadter).
Em 1859, o naturalista britânico Charles Darwin
(1809 – 1882) revolucionou o mundo científico de sua
época, ao publicar o livro A origem das espécies. Darwin
explicava a evolução e a diversidade dos seres vivos por
meio de um processo de seleção natural. Um grupo de
cientistas evolucionistas, dos quais o mais conhecido,
provavelmente, é Herbert Spencer, passou a defender a
tese de que as “diferenças raciais” entre os seres humanos
decorre do mesmo processo.
Entre os humanos, venceriam os grupos mais preparados para enfrentar as adversidades naturais e a competição
com outros grupos humanos (a expressão “sobrevivência dos
mais aptos”, erradamente atribuída a Darwin, foi formulada por Spencer). Com isso, a ciência da época fornecia aos
defensores do escravismo um belo argumento: os negros tinham mesmo que ser escravos, por pertencerem a uma raça
situada em algum ponto inferior da escala evolutiva.
Belo argumento, também, para justificar o imperialismo europeu: no encontro com outros povos, a sociedade européia, obviamente superior a todas as outras, era
portadora de uma missão civilizatória. Mesmo pensadores revolucionários caíram na armadilha do
eurocentrismo: Karl Marx elogiava o “progresso” levado
a todos os cantos do mundo pela indústria capitalista.
Essa fase da história é analisada, de maneira brilhante,
por Edward Said, no livro Orientalismo, base para os estudos pós-coloniais contemporâneos.
Herbert Spencer
Reprodução
A
“
■
Aplicou a teoria
de Darwin às
sociedades
humanas, onde
venceriam os
“mais aptos”
E pelo mesmo caminham enveredaram aqueles que,
por exemplo, tentavam explicar a pobreza nos grandes centros urbanos formados pela revolução industrial: os mais
aptos às novas condições de vida enriqueceram, ao passo
que outros, não tão evoluídos, foram condenados à miséria, não por qualquer causa inerente ao capitalismo, mas
por um processo de seleção natural. O mesmo vale para
explicar as altas taxas de criminalidade nos centros urbanos: não eram as precárias condições de vida dos mais pobres que alimentavam o crime, mas sim causas naturais,
explicadas pela teoria da evolução das espécies.
Um exemplo fantástico desse tipo de raciocínio é oferecido pelo conde Arthur de Gobineau (1816 – 1882),
escritor e diplomata francês que viveu certo tempo no Brasil. Amigo íntimo do imperador D. Pedro II, com que
manteve correspondência até o fim da vida, escreve pérolas do tipo: “Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes da
carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes
baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto.” Ou então: “A América do Sul, corrompida em seu
sangue crioulo, não dispõe de qualquer meio, doravante,
para deter o declínio dos mestiços de todas as variedades e
de todas as classes. Sua decadência é irremediável.”
E o darwinismo social serviu também de inspiração às
“teorias” nazistas segundo as quais a sociedade humana
funciona como um organismo, eventualmente atacado por
“cânceres” e “tumores” que deveriam ser extirpados: arianos com “defeitos de nascimento”, judeus, ciganos, comunistas, socialistas etc. Não por acaso, a categoria profissional que mais quadros ofereceu ao nazismo foi a dos médicos, como esclarece Peter Cohen, no seu brilhante
documentário “Arquitetura da destruição” (1989).
Hitler, como se sabe, era vegetariano radical e amava a
paisagem natural germânica, fonte de inspiração para seus
discursos sobre higiene social e estética. Claro que não se
trata, aqui, de condenar os vegetarianos nem os ecologistas, mas sim de advertir para o perigo embutido nas analogias equivocadas. Não há, simplesmente não há como comparar o mundo das forças cegas e caóticas que constitui o
mundo natural aos processos políticos, econômicos, sociais e culturais que constituem as sociedades humanas.
Por mais elevada que tenha sido a intenção dos examinadores do Enem – não se trata, aqui, de adivinhar os seus
propósitos – o resultado foi um preocupante desastre.
HISTÓRIA & CULTURA HISTÓRIA & CULTURA M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
“IRMÃOS NÃO BASTA?”
Renato Mendes
De Lisboa
A
tualmente a língua portuguesa é falada por 240 milhões de pessoas, é a 3ª língua mais falada no ocidente e a 6ª em
número de falantes no planeta. Esta identidade lingüística é dividida por 8 países,
a saber: Angola, Brasil, Cabo Verde,
Guiné-Bissau, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. É natural que a língua seja um dos principais fatores de união
entre povos, é através dela que dividimos
o conhecimento, e que compreendemos
o mundo.
A ministra da Cultura de Portugal e
professora catedrática da Faculdade de
Letras do Porto, Isabel Pires de Lima, sintetiza em um de seus textos publicados no
Jornal de Letras de Lisboa, a importância
da língua para o indivíduo e para um povo:
“As mais elevadas capacidades intelectuais humanas só podem ser exercidas e exercitadas mediante o domínio pleno de um
idioma, normalmente o materno. Do uso
que fazemos da Língua, depende, em absoluto, a nossa capacidade de organizar o
pensamento, de comunicar idéias, de expressar opiniões, entender conceitos,
descodificar problemas, verbalizar sentimentos, compreender o outro. E ainda de
nos inserirmos socialmente numa determinada comunidade, acedendo às suas
regras, aos seus valores, à sua cultura”.
Este importante patrimônio que é a
língua possui formas diferentes de pronúncia e de escrita, consoante ao país onde é
utilizada. A língua portuguesa possui duas
ortografias distintas, a utilizada por Portugal e pelos países africanos, e a brasileira. Desde o início do século XX, filólogos,
intelectuais, profissionais da escrita e políticos, tentam criar um acordo ortográfico para língua portuguesa. O principal
objetivo é fazer com que os países de língua portuguesa utilizem uma mesma maneira de escrever as palavras, por meio de
ajustes realizados nas grafias do português
sul-americano e europeu.
Existe uma grande distância entre a
assinatura de um acordo e sua implementação; as alterações mobilizam dimensões
históricas, políticas, ideológicas e econômicas. Traz à tona questões ligadas à afirmação de identidade cultural, hegemonias,
conflitos de cultura, produção gráfica de
livros e periódicos e especialmente dicionários. É importante ter em mente que
existem especialistas brasileiros e portu-
Anunciado acordo ortográfico no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
desperta polêmicas e paixões
gueses a favor do acordo, mas existe um
número ainda maior de opiniões desfavoráveis a tal simplificação.
Antônio Houaiss (1915 – 1999) foi
um dos maiores estudiosos brasileiros da
língua portuguesa, antigo presidente da
Academia Brasileira de Letras e Ministro
da Cultura, além de principal negociador
do acordo ortográfico. Ele escreveu: “Portugal, Brasil e os cinco países africanos de
língua portuguesa reconhecem que a
inexistência de uma única ortografia oficial traz não apenas dificuldades de natureza lingüística, mas também de natureza
política. Daí o esforço desses países em
efetivar o novo acordo”. Na época, intelectuais portugueses encaminharam um
abaixo-assinado ao presidente e primeiroministro de Portugal, que dizia: “A língua
tem como proprietários os seus utentes e
não meia dúzia de sábios com direito a
definir que Portugal escreva como o Brasil e vice-versa.”
“Se o Brasil e Portugal são países
irmãos como são os EUA e o
Reino Unido, e se a ortografia é
uma ‘epiderme’, por que é que há
de passar pela cabeça de alguém
torná-las gêmeas através da
cirurgia plástica de um acordo?
Irmãos não basta?”
(Miguel Esteves Cardoso, jornalista e
escritor português)
Contra o mau sucedido acordo ortográfico de 1986, foi constituído o “Movimento Contra o Acordo Ortográfico em
Portugal”, composto por intelectuais portugueses, entre eles a catedrática portuguesa e historiadora da gramática, Maria
Leonor Buescu (1932-1999), que defende a diversidade e não a homogeneização:
“Eu lamento que o esforço de análise, quase diria laboratorial, dos primeiros
ortografistas portugueses venha agora a ser
deitado para o lixo. Em 1536, o primeiro
anotador da língua, Fernão de Oliveira,
reconhece já que as letras do alfabeto não
chegam por si próprias, para expressar a
enorme riqueza sonora da língua e chega
a propor a utilização de vogais gregas.”
Harmonização ortográfica, pasteurização da língua, desacordo ortográfico, “golpe de estado” lingüístico, são formas, muitas vezes irônicas, de apelidar o polêmico
documento. Alguns acreditam que se o
acordo for ratificado por todos os países
que falam português, irão desaparecer al-
gumas das barreiras mais importantes que
ainda existem em África contra a penetração brasileira. Nos países africanos é a ortografia portuguesa que se encontra profundamente enraizada, afinal é nela que
sempre foi processada a criação cultural
escrita; é nela que se faz a aprendizagem
Museu da
Língua
Portuguesa,
São Paulo
Cronologia das uniões e das
divisões ortográficas
1904 Aniceto dos Reis Gonçalves Viana publica em Lisboa a ortografia nacional, estudo que simplifica a ortografia da língua portuguesa.
1910 A Academia Brasileira de Letras adota uma simplificação ortográfica, mas como não
tem obrigatoriedade legal, tem pouca repercussão no Brasil e nenhuma em Portugal.
1911 O governo português nomeia uma Comissão para tratar da reforma ortográfica.
1919 O Brasil volta a escrever com “ph” e “ch”, a pedido de Osório Duque Estrada,
autor da letra do Hino Nacional.
1931 Firmado um instrumento de acordo entre a Academia das Ciências de Lisboa e a
ABL para a unidade ortográfica.
1934 Após a Revolução Constitucionalista de 1932, Getúlio Vargas lança a Constituição em 1934, que extingue o acordo de 1931.
1943 Adotada a primeira convenção ortográfica entre Brasil e Portugal.
1945 Conferência Interacadêmica de Lisboa faz com que o governo português adote
oficialmente o sistema acordado, praticado até os dias de hoje. O Brasil por sua
vez, não obteve aprovação do Congresso Nacional, ficando desta forma com a
ortografia e com o vocabulário ortográfico da ABL de 1943.
1971 O governo brasileiro, sob o comando do general Médici, abole o acento circunflexo e parte do uso dos tremas.
1986 Encontro dos sete países de língua portuguesa na ABL estabelece um acordo de
unificação ortográfica que, por sua relativa radicalidade, principalmente em
matéria de acentuação gráfica e de emprego do hífen, sofre muitas críticas, sobretudo em Portugal.
1990 A Academia de Ciências de Lisboa convoca um encontro homólogo com propostas de modificações na redação das inovações, para as quais todos os países
dão suas aprovações. O acordo é assinado pelos representantes executivos dos
sete países, contudo sua ratificação não aconteceu.
1998 Novo encontro entre os países para alteração no acordo com a criação do 1º
protocolo modificativo, ratificado por Brasil e por Portugal somente.
2004 Acontece a Cúpula da CPLP em São Tomé e Príncipe e aprova-se um 2º protocolo modificativo, com o objetivo de acelerar a entrada em vigor do acordo.
Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe ratificam o protocolo, desta forma o
acordo pode ser implementado por todos os oito países membros da CPLP.
2007 OUTUBRO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA
HISTÓRIA
N G E A M&
UN
CULTURA
D O PA N GHISTÓRIA
E A M U N D&
O PA
CULTURA
N G E A 2-HC
Breve história da CPLP
Atualmente observamos em todo o mundo, uma clara tendência nos países em se
organizarem em blocos, comunidades e uniões. Interesses e objetivos comuns fazem com
que os países se associem e a língua pode ser um destes. Em 1996 o Brasil criou juntamente
com os países de língua portuguesa, a CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que naquela época eram sete, pois Timor-Leste ainda pertencia a Indonésia.
As finalidades principais da CPLP, atualmente sob a presidência rotativa da GuinéBissau, são: concertação político diplomática; defender e promover a língua portuguesa
na Lusofonia; mediar crises institucionais e políticas; e desenvolver cooperação técnica
através das reuniões setoriais. A CPLP também possui uma vertente comercial onde
existe um conselho, mas isto é algo independente, pois não é um órgão oficial.
Em entrevista ao Mundo, o embaixador do Brasil junto a CPLP, Lauro Moreira, diz
quais são suas expectativas para o futuro da comunidade: “Você tem dois países que se
destacam, que são Brasil e Portugal. Em África, países com crescimento rápido como
Angola e Moçambique, seguido por Cabo Verde, um país organizado. E existem países
incipientes institucionalmente, como é o caso de Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e
Timor Leste. Não podemos esperar nada do outro mundo. Tenho a sensação que os
primeiros 10 anos foram os mais difíceis, acho que daqui para adiante, o processo de
integração tende a acelerar. Os ganhos dos países africanos é enorme, Portugal se fortalece junto à União Européia, e o Brasil se integra ainda mais em África”.
Embaixador critica
conservadorismo luso
Leia, em seguida, entrevista concedida por Lauro Moreira,
embaixador do Brasil junto à Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa.
Biblioteca Nacional de Lisboa
implementar a última versão do acordo de
1990. Em oposição está o Brasil, que tem
todo o interesse em ver o maior número de
pessoas utilizando às novas grafias, e já prepara a modificação da atual ortografia com
a licitação dos livros didáticos até o fim deste ano. A analogia do jornalista e escritor
português Miguel Esteves Cardoso faz com
que avaliemos o real sentido de toda esta
polêmica, “Se o Brasil e Portugal são países
irmãos como são os EUA e o Reino Unido,
e se a ortografia é uma ‘epiderme’, por que é
que há de passar pela cabeça de alguém
torná-las gêmeas através da cirurgia plástica
de um acordo? Irmãos não basta?”
© Lalo de Almeida/Folha Imagem
escolar; é nela que fundamentalmente se
continua a escrever.
Sem sombra de dúvida o Brasil iria lucrar no aspecto comercial com a adoção do
novo acordo por parte dos países Africanos, por intermédio de seu massivo e dinâmico mercado editorial que produz 400
milhões de livros por ano, e porventura com
seus professores ensinando na África. Neste aspecto, Portugal não só se distanciaria
culturalmente de suas ex-colônias africanas,
mas também comercialmente.
Com um universo tão grande de possibilidades e conseqüências – muitas delas ainda não imaginadas –, Portugal se retrai e
defende o período de 10 anos para
Mundo – Qual o sentido de uma unificação ortográfica, já que a
médio e longo prazo a língua não será mais a mesma?
Lauro Moreira – Em cada um dos países da CPLP a língua
tem nuances diferentes, o português que se fala no Brasil, foneticamente é diferente do português que se fala em Portugal,
e do ponto de vista léxico, há uma série de palavras que são
diferentes também, isto é uma riqueza para língua. Empobrecimento é você ter a mesma palavra escrita de maneira diferente, dependendo da latitude onde você está escrevendo esta palavra. É lamentável você escrever “eléctrico” em Portugal e “elétrico” no Brasil, embora a pronúncia seja a mesma. O acordo
pretende retirar a consoante muda do meio das palavras. Nós
tendemos sempre a simplificar as coisas. Eu comprei uma edição do Almanaque Luso-brasileiro de Lembranças, edição de
Camões, o “pai” da
1901, e está escrito na primeira página Almanach Lusolíngua portuguesa
Brazileiro, você vê a quantidade de palavras com letras dobradas, escritas com “y” e com “ph” no lugar do efe. Com o passar
do tempo, nós fomos simplificando a maneira de escrever. O que se pretende com esse
acordo que foi assinado por todos os países, em 1990, é buscar a uniformização na maneira de escrever. Isto não vai manietá-la, não vai aprisioná-la, de maneira nenhuma.
Mundo – Que benefícios o acordo traria?
LM – Com o fato de simplificar, você já esta ajudando muito, até mesmo a alfabetização. O
fato de termos uma língua unificada em termos ortográficos, permite simplesmente trocar
livros. Você não tem dificuldade nenhuma em ler livros na ortografia portuguesa, mas acontece que se você coloca um livro destes na mão de uma criança, é um problema. Em ocasião de
um debate que participei com o romancista angolano José Eduardo Agualusa, ele disse que o
Brasil havia doado uma grande quantidade de livros infantis para o governo angolano, entretanto perceberam que não poderiam distribuí-los, pois estavam com uma ortografia diferente
daquela adotada. Se a criança esta aprendendo que a palavra “tecto” se escrever com a consoante muda “c”, ela pega um livro brasileiro e vê que é “teto” sem a consoante, é problemático.
Mundo – Os editores brasileiros seriam beneficiados com este acordo, em função de terem
uma maior capacidade de resposta às mudanças?
LM – O Brasil tem 190 milhões de habitantes, em princípio seria o país com maior dificuldade de adaptação. Portugal tem 10 milhões de habitantes, portanto teria menores dificuldades para poder colocar em vigor estas novas regras.
Mundo – De que forma o acordo beneficiara a comunidade acadêmica?
LM – O Brasil faz, por ano, 400 milhões de livros escolares. Seria fácil doar um milhão de
livros escolares, mas a diferença de grafia não permite. Portugal poderia importar livros
brasileiros, o Brasil poderia importar livros portugueses. Hoje em dia com a internet e a
globalização toda, continuar havendo a divisão por problema de hífen, acento e consoante
muda, não tem cabimento.
Mundo – Existem estudos sobre o impacto que este acordo causará no mercado editorial
destes países?
LM – Não existem. Os livros atuais não serão tirados de circulação, durante algum tempo
existirão duas grafias. Segundo, em um mês deve estar pronto um software que corrigirá de
forma breve todos os arquivos e livros, colocando a ortografia nova. Portanto não vejo
dificuldade.
Mundo – O fato de Portugal assumir a presidência da CPLP no próximo ano, determina
que implementarão o acordo ortográfico?
LM – Não existe esta relação. Nós esperamos que Portugal implemente este acordo o mais
rápido possível, para que ele ganhe o sentido que originalmente se lhe atribui. Por que senão
passa a ser uma reforma unilateral, interna, brasileira, e não é isso que queremos. O que
realmente nos preocupa é a declaração da ministra da Cultura de Portugal, que hoje parece
uma posição oficial portuguesa, de que seriam necessários dez anos para colocar este acordo
em vigor. Ora, somado aos 17 anos que já se passaram, são 27 anos, é um acordo que já
nasce velho.
OUTUBRO 2007
HC-3 HISTÓRIA
PA N G E A M
&UCULTURA
N D O PA N G
HISTÓRIA
EAMUND
& OCULTURA
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
m 1992, o então vice-presidente dos
EUA (o presidente era Bush, pai), Dan
Quayle, tomava parte, em Trenton, Nova
Jersey, de uma competição escolar de
spelling, ou seja, de “soletração”. Quando
Quayle ditou a palavra inglesa correspondente a “batata”, o aluno William
Figueroa, da 6ª série, grafou: potato. Estava certo, mas o vice-presidente julgou que
faltava “uma coisinha” e fez o garoto acrescentar um e: potatoe. Quayle estava habituado às gafes, mas esta ele próprio definiria como “um momento do pior tipo”.
Ortografia, de fato, é coisa séria e,
como se vê, não é só no Brasil que ela causa
dúvidas. Mas por que – terá pensando
Quayle – tem de ser difícil?
Fonologia e etimologia – Em tese,
sistemas de escrita alfabéticos poderiam ser
de maneira tal que a cada letra
correspondesse a um único fonema (som
da língua) e vice-versa. Esse foi o caso do
português até o século 16.
Todavia, o alargamento dos estudos
clássicos fez que a ortografia se apoiasse não
mais apenas na pronúncia, mas também na
história. Ao lado da base fonológica, a escrita passou a incorporar também princípios etimológicos. Assim, por exemplo, o uso
de s, c, ç ou ss não depende da pronúncia,
mas da “origem” do vocábulo.
Etimologia, porém, não é uma arte fácil, e somente no início do século 20, a
partir dos estudos de Gonçalves Viana, a
escrita foi apurando sua precisão histórica
e tornando-se mais simples. O que não foi
sem custo nem desgaste. Houve reformas
ou tentativas de reforma em 1911, 15, 19,
24, 29, 31, 38… até que no começo dos
anos 1940 a ortografia de Portugal e Brasil
já não apresentava traços etimológicos do
grego (theatro, pharmacia, mysterio), consoantes dobradas (anno, bello), grande parte das consoantes não pronunciadas (septe,
lucto) e regularizara a acentuação gráfica.
Ortografia não é língua – Embora
semelhantes, a ortografia brasileira e a
portuguesa apresentam diferenças que recobrem cerca de 4% do léxico total. Em
1945, um acordo firmado entre os dois
países e adotado em Portugal nunca foi
ratificado pelo Brasil. Nesse contexto, o
atual Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa pretende unificar o sistema ortográfico empregado nos países lusófonos.
Observe-se, porém, que ele não atua
sobre a língua em si.
Como é natural em se tratando de um
idioma transcontinental, falado por mais
Acordo Ortográfico busca unificar a escrita, mas respeita
diferenças de pronúncia
Paulo Bearzoti Filho
c)
d)
Antônio
Houaiss
(19151999), um
dos maiores
estudiosos
brasileiros
da língua
portuguesa,
foi um dos
arquitetos
do acordo
ortográfico
Divulgação
E
COM AS MESMAS LETRAS
e)
f)
g)
h)
i)
de 200 milhões de pessoas, o português
apresenta variações, mesmo em sua pronúncia considerada culta. Assim, os vocábulos de pronúncia divergente continuariam a ser grafados de maneira diferente. Se,
por exemplo, em Portugal se diz Jugoslávia
e, no Brasil, Iugoslávia, esse nome é
grafado, lá, com J e, aqui, com I.
A questão são as diferenças propriamente ortográficas. O nome do profissional que
interpreta papéis dramáticos é pronunciado do mesmo modo no Brasil e em Portugal. Contudo, lá se grafa actor e, aqui, ator.
É uma distinção puramente ortográfica, do
tipo daquelas que, segundo os princípios
do Acordo, não devem mais existir.
Aplicado esse conceito, modifica-se
cerca de 0,5% do léxico brasileiro e 1,6%
do lusitano. Como as diferenças de pronúncia persistem, cerca de 2% do léxico
total se mantém com dupla grafia.
j)
da presentes na grafia adotada em Portugal em vocábulos como acção ou Egipto.
O uso de acento agudo ou circunflexo
pode variar, nos casos de pronúncia diferente: Vênus, prêmio e matinê, no
Brasil, mas Vénus, prémio e matiné, em
Portugal.
Os ditongos abertos éi e ói deixam de
ser acentuados em palavras paroxítonas, como assembléia e heróico, agora
assembleia e heroico. Contudo, esses
ditongos continuam acentuados em
vocábulos oxítonos ou monossílabos,
como em anéis e heróis.
Não são mais acentuadas as formas crêem, dêem, vêem, lêem e derivados.
Não são mais acentuados os hiatos com
duplo oo, como em vôo, enjôo.
O trema não é mais utilizado (a não
em certos estrangeirismos). Assim, seqüestro passa a sequestro.
Não se empregam mais os acentos diferenciais da forma verbal pára e pélo e
dos substantivos pólo e pêlo. Mantémse, porém, a distinção entre pôde e pode,
e passa-se a aceitar, facultativamente,
o acento em fôrma, para distingui-la
de forma.
Na chamada “regra do hiato”, não se
acentuam mais as vogais i e u quando
precedidas de um ditongo. Assim, feiura
e baiuca, e não mais feiúra e baiúca.
Há várias alterações nas regras (bastante complexas e confusas) para o emprego do hífen. Por exemplo, certos
compostos perdem o hífen, como
paraquedas e mandachuva.
QUAIS SÃO AS MUDANÇAS
Confira alguns pontos do novo Acordo Ortográfico:
a) Na enunciação do alfabeto, passa-se a
incluir as letras k, w e y. Na realidade,
os dicionários já incluem essas letras,
e seu uso não é alterado pelo Acordo.
b) Eliminam-se as consoantes “mudas”, ain-
A forma e a fôrma
Embora elimine a maioria dos acentos diferenciais, o Novo Acordo oficializa a distinção entre fôrma e forma, adotada, por exemplo, pelo dicionário Aurélio, que havia sido
abandonada em 1943. Ponto para o velho e heróico lexicógrafo, que, com razão, assinala que a extinção desse acento tornava incompreensíveis jogos de palavra como este, do
poeta Manuel Bandeira: “Vai por cinqüenta anos / Que lhes dei a norma: / Reduzi sem
danos / A fôrmas a forma”.
Como se vê, as alterações são muitas, mas
dizem respeito a áreas relativamente não
nucleares do vocabulário. Se o Acordo for
efetivamente implantado – repitamos: se for
implantado –, será necessário reformular
milhões de livros, todos teremos de
reaprender algumas regras, e os revisores eletrônicos de textos perderão parcialmente sua
validade. Mas a ortografia manterá dificuldades e pormenores que ainda exigirão certo preparo e muito cuidado para não passar
pelo “momento do pior tipo” que tanto mal
fez à carreira do jovem Dan Quayle. Num
mundo em que escrita é poder, a ortografia
nunca perde a majestade.
Paulo Bearzoti Filho é professor de
Língua Portuguesa do Curso
Positivo, em Curitiba (PR)
2007 OUTUBRO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA
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