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A “FILOSOFIA E OS PROFESSORES”
DE ADORNO E A RECUSA
A UMA “EDUCAÇÃO
PARA A EMANCIPAÇÃO”
Lenildes Ribeiro Silva
Resumo: considerações sobre filosofia, educação e emancipação, em
Adorno, entendidas como experiência formativa implícita nos próprios
conceitos, contrariando uma finalidade exterior. Critica a redução da
filosofia, ressaltando o sentido do filosofar necessário ao trabalho docente
e da educação que deve se distanciar de um “para quê” instrumentalizado e se impor como sentido e direção, ou “para onde a educação deve
conduzir
Palavras-chave: educação, filosofia, finalidade, sentido, experiência formativa
INTRODUÇÃO À QUESTÃO DA FINALIDADE
E mbora tendo uma produção específica para a educação restrita,
em relação à quantidade de produções gerais, Adorno desenvolve
na coletânea Educação e Emancipação reflexões que trazem sua
concepção sobre educação, bem como críticas à educação na sociedade
administrada, considerações sobre a profissão docente e algumas sugestões
de como uma educação, no seu sentido emancipador, poderia acontecer
na sociedade em que ele tão fortemente denuncia. Assim, quando se fala
em educação no pensamento de Adorno, a relação com a emancipação
acontece, mais especificamente, pela ligação que se faz com suas reflexões
expostas na referida obra.
O que este trabalho pretende destacar, todavia, é que, mesmo relacionando educação e emancipação, muitos têm caído no equívoco de tornar a
emancipação um ideal de educação, como finalidade, destituído das considerações históricas e sociais necessárias ao processo educativo. Dessa forma,
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muitas vezes, a emancipação é tomada na sua apropriação instrumental,
ideológica, servindo até mesmo como slogans comerciais de instituições de
ensino, os quais aproximam-se mais da apreensão do conhecimento como
mercadoria, criticado por Adorno, que do sentido de emancipação por ele
desenvolvido. Essa apropriação do pensamento do autor, contraria suas
reflexões que se distanciam de qualquer relação instrumental, entre meios e
fins, o que é duramente criticado por ele em todos os temas trabalhados.
Essa apreensão indevida da concepção de emancipação, em sua relação com a educação, corresponde a uma problemática do esvaziamento de
muitos outros conceitos que, sem qualquer relação com o real, no sentido
da crítica, da negação, servem antes de justificação deste, no seu caráter ideológico, falso, ainda que se efetivando em nome da democracia, liberdade,
autonomia, emancipação, educação1. Antes da correspondência com o real
no sentido crítico, o conceito funciona como uma fórmula, aproximando
de chavões e pronunciamentos, como que mágicos, na medida em que se
fixa no dado relacionando-se a ele de forma imediata, garantindo assim,
a legitimidade do discurso e seu aprisionamento no real. Dessa forma,
“[...] a palavra, que não deve significar mais nada, fica tão fixada na coisa
que ela se torna uma fórmula petrificada” (HORKHEIMER; ADORNO,
1985, p. 154). Diante desta problemática, este trabalho se faz no sentido
da exposição do pensamento de Adorno sobre a relação entre educação e
emancipação, que se distancia de qualquer objetivo exterior ao próprio
conceito de educação, sobretudo, sem as devidas relações com a realidade,
a história, sendo apresentada pelo autor como sentido e direção, não como
finalidade, ou ideal.
Os textos escolhidos para este trabalho são A filosofia e os professores
e Educação – para que? O primeiro texto, publicado inicialmente em 1962,
origina-se de uma palestra realizada por Adorno na Casa de Estudante de
Frankfurt que foi também transmitida pela rádio de Hessen em novembro
de 1961. O segundo texto, em caráter de entrevista, provém de um debate
realizado também na rádio de Hessen, em 1966, publicado no ano seguinte. Ambos estão reunidos na obra Educação e Emancipação junto a outros
trabalhos do autor, publicados no Brasil na década de 1990, com a tradução
de Wolfgang Leo Maar (UFSCAR).
A recusa de Adorno a uma finalidade para a educação que a conduzisse
a uma relação direta com um ideal exterior, se apresenta, explicitamente,
no título da obra e do último capítulo: Educação e Emancipação. No texto
Educação – para quê? ele introduz a discussão esclarecendo o sentido do para
que educação, o que demonstra a preocupação do autor em compreender o
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conceito de educação em si, implicando formação e emancipação, e seguidamente, acrescenta em que medidas esse para que precisa ser pensado para evitar
sua apropriação no sentido instrumental e ideológico, separado das relações
com a materialidade social e a história o que torna a educação fetichizada,
imune à crítica e, por tanto, distante do seu sentido emancipador. Nota-se,
nesse sentido que, no decorrer deste e de outros textos da coletânea, somente
onde o autor esclarece o sentido do para que, o termo é utilizado. Em outros
momentos, a emancipação é relacionada à educação como objetivo, sentido
e direção, e até como sinônimo.
Nesse raciocínio, ao buscar perfazer a reflexão proposta, este texto fará
menção ao A filosofia e os professores, no item A filosofia e o trabalho do filósofo
em Adorno, ressaltando os pontos relevantes para essa discussão e a relação
deste com o texto que será trabalhado no segundo item, a saber, O sentido da
educação e a pergunta ‘para que’, e assim, evidenciar em que pontos a filosofia se
confunde com a própria educação e, desse modo, se distancia da especialização,
da finalidade, do para que na sua apreensão restrita e imediata.
A FILOSOFIA E O TRABALHO DO FILÓSOFO EM ADORNO
O texto A filosofia e os professores foi elaborado por Adorno a partir de
suas observações sobre a prova geral de filosofia para professores das escolas
superiores do estado de Hessen, Alemanha, na década de 1960. Indignado
com o sentido da avaliação dos candidatos, o autor revela alguns pontos
em que pauta sua crítica ao referido modelo de prova, especialmente, a
fragmentação de assuntos e temas que revelam a incoerência entre o sentido
exposto na regulamentação da prova e sua efetivação. Na regulamentação da
referida prova, o objetivo era exposto na intenção de verificar se o candidato
teria apreendido o “sentido formativo” e o “potencial formativo” e ainda de
desenvolver-se dirigindo às “questões essenciais para a formação viva atual”
sem ater-se às questões relativas à filosofia profissional. Entretanto, o que se
verificou no desenvolvimento das provas não correspondeu a esse objetivo,
ou seja, a preocupação com a especialização de temas e assuntos, o desenvolvimento do candidato diante destes, retirou do processo aquilo que, para
Adorno, é essencial ao desempenho da filosofia, isto é, pensar a profissão e
a si mesmos e, sobretudo, as relações que se estabelecem entre o trabalho
e a totalidade social. Diferencia, dessa forma, o que seria um profissional
e um intelectual e expõe como necessária à formação filosófica a liberdade, a autonomia, e, essencialmente, a formação cultural, entendida como
experiência formativa.
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Nesse raciocínio, convém destacar algumas considerações sobre o
que o autor compreende como formação e experiência. Para Adorno, o que
caracteriza o exercício intelectual, que compreende o trabalho do filósofo,
é a formação, constituída no exercício da experiência formativa, que não se
detém, restritamente, à frequencia de cursos específicos, tampouco à apropriação de términos filosóficos e seus respectivos autores, o que destitui a
possibilidade do sujeito, da liberdade, intrínsecos ao filosofar no seu sentido
verdadeiro. A formação é, assim, formação cultural, em que o sujeito apropria-se da cultura, como produção humana e, conforme a especificidade da
discussão aqui necessária, dos conceitos e particularidades relativas ao saber
filosófico, não como afirmação e reprodução da realidade, mas, interrogação
de uma realidade que não se deixa apreender de maneira fixa, imediata,
buscando compreender suas mediações que só se evidenciam no exercício
do pensamento feito pelo sujeito que não se prendeu aos moldes da filosofia
estritamente profissional, sendo assim, a experiência daquilo que pode erigir
como possibilidade de uma outra realidade. Compreendendo a cultura no
seu sentido amplo, emancipador, Adorno afirma que “[...] La formación no es
outra cosa que la cultura por el lado de su apropriación subjetiva” (ADORNO,
1972, p. 142-3), de outra forma, ou ainda, onde a emancipação não estiver
relacionada à essa apropriação subjetiva, converte-se no seu contrário, ou
seja, o sujeito nega-se a si mesmo onde mais pensa existir e, por sua vez, a
cultura retira de si o caráter emancipador que a constitui, direcionado-se
à justificação e à continuação daquilo que já existe. Numa das suas definições sobre o conceito de formação relacionada ao trabalho do professor de
filosofia, Adorno expõe que,
A formação cultural é justamente aquilo para o que não existem à disposição hábitos adequados; ela só pode ser adquirida mediante esforço
espontâneo e interesse, não se pode ser garantida simplesmente por meio da
frequencia de cursos [...] e justamente esta tentativa e não um resultado
fixo que constitui a formação cultural (Billdung) que os candidatos devem
adquirir, [...] que os futuros professores tenham uma luz quanto ao que
eles próprios fazem, em vez de se manterem desprovidos de conceitos em
relação à sua atividade. As limitações objetivas que, bem sei, se abatem
sobre muitos, não são invariáveis. A auto-reflexão e o esforço crítico são
dotados por isso de uma possibilidade real, a qual seria precisamente o
contrário daquela dedicação férrea pela qual a maioria decidiu. Esta
contraria a formação cultural e a filosofia, na medida em que de antemão
é definida pela apropriação de algo previamente existente e válido, em
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que faltam o sujeito, o formando ele próprio, seu juízo, sua experiência,
o substrato da liberdade (ADORNO, 1995, p. 69).
Num outro trabalho, Adorno (1995b) define experiência como
experiência de pensamento, ou seja, do pensamento que não se prende à
utilidade exigida pela racionalidade instrumental, ou à realidade existente,
como confirmação do estado do mundo, o que implicaria no problema da
práxis também identificada, ou seja, falsa práxis2. Nesse sentido, a experiência
é diferente de experimentalismo, ou do experimentado, na medida em que
busca sair da repetição daquilo que existe e pode ser medido, quantificado.
O pensamento, assim, não se reduz à formalização, à apropriação imediata
do real, antes o excede, refletindo sobre si mesmo e a própria realidade em
suas múltiplas relações. A experiência, desse modo, distancia-se do empírico
e se aproxima da capacidade de diferenciação.
A ausência dessa formação é, para o autor, aquilo que o exame deixa
transparecer quando a maioria dos candidatos se prende às terminações, temas
e autores específicos sem a devida relação com seu trabalho e com a realidade
social. Formação que, para além do que é exigido à filosofia estritamente
profissional, torna o filósofo um intelectual, sendo assim, “necessária a quem
pretende ser um formador” (ADORNO, 1995a, p. 63). Fato polêmico se
estabelece no decorrer das críticas feitas por Adorno quando afirma, conforme
exposto anteriormente, que essa formação não se restringe, nem se relaciona
diretamente, à frequência de cursos específicos de filosofia, nem à disciplina
específica. Muitas vezes, a formação é exercida de maneira autônoma, livre, o
que a caracteriza como exercício espontâneo e constante, não apenas, como
tem sido apropriada recorrentemente, como frequência a cursos de filosofia ou
aquisição do diploma de filósofo. O autor não nega a importância da formação
específica, o que ressalta nas suas reflexões é que esta é uma parte do processo,
podendo contribuir ou não para o exercício da experiência formativa. Assim
retoma a diferenciação entre o intelectual – a que também refere-se como
pessoa de espírito3 – e o profissional no sentido de que,
Se alguém é ou não é intelectual, esta conclusão se manifesta sobretudo na
relação com seu próprio trabalho e com o todo social de que esta relação
forma uma parcela. Aliás, é essa relação, e não a ocupação com disciplinas
específicas, tais como teoria do conhecimento, ética ou até mesmo história
da filosofia, que constitui a essência da filosofia. Esta é a formulação de
um filósofo a quem dificilmente se negará qualificação nas disciplinas
filosóficas específicas (ADORNO, 1995a, p. 54-5).
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No lugar do pensamento, da experiência, a especialização da filosofia
estritamente como disciplina específica e a formação como profissionalização
tende à prisão aos dogmas científicos que impedem o exercício da autonomia.
Estabelece nesse ponto, uma crítica acirrada à concepção de ciência moderna,
cuja validade conferida ao rigor do método científico, à comprovação e quantificação, retira de si o elemento crítico essencial ao filósofo que se quer mais que
um especialista, ou seja, a liberdade e a autonomia. No lugar da consciência,
instaura-se o aprisionamento aos termos filosóficos, aos chavões, cristalizando
a consciência coisificada que erige como “[...] um consciente que rejeita tudo
o que é conseqüência, todo o conhecimento do próprio condicionamento, e
aceita incondicionalmente o que está dado” (ADORNO, 1994, p. 41). Dessa
forma explicita que, “A crença no fatual do profissional especialista [...] é
complementar à crença nas palavras de prestígio e nas reviravoltas mágicas
do repertório jargão da autenticidade”, e mais adiante, “onde falta a reflexão
do próprio objeto, onde falta o discernimento intelectual da ciência, instala-se em seu lugar a frase ideológica” (ADORNO, 1994, p. 62). Contra
isso a filosofia deveria se levantar, pois, a especialização, sua fixidez a clichês
estabelecidos, é aquilo que a condiciona para longe do pensar que é intrínseco a seu próprio conceito, distanciando-se assim, da reflexão sobre o objeto.
Essa forma de pensar é o que Adorno denuncia ao afirmar que “as pessoas
acreditam estar salvas quando se orientam conforme regras científicas” e, nesse
sentido, ao invés do trabalho intelectual, “a observação científica converte-se
num substituto da reflexão intelectual do factual” (ADORNO, 1994, p. 70).
É potencial da própria filosofia levantar-se contra os jargões que retiram de si
qualquer caráter filosófico, especificamente nas filosofias profissionais.
Convém ressaltar que Adorno não se opôs de maneira imediata
aos temas filosóficos específicos, mas alertou para aquilo que deve se fazer
presente ali mesmo onde a fragmentação persiste em ocorrer, a reflexão
sobre o objeto, sobre o trabalho e a realidade. Muitas vezes a preocupação
concentrada em dominar términos filosóficos específicos, a insegurança
diante do risco, entre outros, retiram do candidato aquilo que lhe seria
essencial como filósofo, a saber “o conhecimento da transformação do objeto” (ADORNO, 1994, p. 61). Nesse sentido, estabelece, mais uma vez, a
diferenciação entre o que caracteriza o filósofo, intelectual, e o profissional,
especialista, ou seja, a “disposição aberta, à capacidade de se abrir à elementos
do espírito, apropriando-os de modo produtivo na consciência, em vez de
se ocupar com os mesmos unicamente para aprender, conforme prescreve
um clichê insuportável” (p. 64). Relacionando-se a estes, a educação e a
emancipação também se apresentam, no pensamento do autor, ligadas à
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liberdade, formação cultural e consciência, conforme seguem-se as reflexões
do próximo item.
O SENTIDO DA EDUCAÇÃO E A PERGUNTA PARA QUE?
A mesma fragmentação denunciada por Adorno no ensino de filosofia
que tende à contraposição daquilo que é intrínseco ao ato de filosofar é,
todavia, estendida à apreensão de educação, que se compreende como uma
das instâncias de experiência formativa. Assim, o que caracteriza a educação
é, sobretudo, a formação, assim como o que é imprescindível ao trabalho
do filósofo. Como já foram feitas algumas considerações sobre o conceito
de formação, formação cultural e experiência formativa, destacam-se aqui,
algumas passagens do texto Educação – para que? em que Adorno relaciona,
especificamente, educação, emancipação e formação, trazendo, entretanto
alguns pontos já mencionados no item anterior que contribuem como ponto
de ligação entre os dois textos.
Na primeira resposta à pergunta elaborada por Becker, Adorno enfatiza
formação e educação como sinônimos e já antecede o sentido que confere
à emancipação, como direção e não finalidade: “Quando sugeri que nós
conversássemos sobre: ‘Formação – para quê? Ou ‘Educação – para quê?,
a intenção não era discutir pra que fins a educação ainda seria necessária,
mas sim: para onde a educação deve conduzir?” e continua expondo a
problemática evidenciando a emancipação como objetivo educacional, o
que se sobressai aos seus campos e veículos ou seja, “[...] tomar a questão do
objetivo educacional em um sentido muito fundamental, ou seja, que uma
tal discussão geral acerca do objetivo da educação tivesse preponderância
frente à discussão dos diversos campos e veículos da educação” (ADORNO,
1994, p. 140)4.
Adorno ressalta, entretanto, que, ao interrogar: Educação para quê?,
isto deve se dar de tal modo a não vincular-se a um ideal a ser perseguido, ou
seja, sem as relações que se estabelecem entre o próprio conceito de educação
e deste com a realidade exterior, da qual a educação não se desvincula. Assim,
“no instante em que indagamos: ‘Educação – para quê?’, onde este ‘para quê’
não é mais compreensível por si mesmo, ingenuinamente presente, tudo se
torna inseguro e requer reflexões complicadas” (p. 140). Dessa forma, torna-se
atual o pensamento de Adorno para o qual a imposição de um ideal exterior
para a educação não ocorre naquilo que foi perdido, ou seja, suas promessas
de emancipação que, ao atender ao exigido pelo presente, não se cumprem,
e, “sobretudo uma vez perdido este ‘para quê’, ele não pode ser simplesmenFragmentos de Cultura, Goiânia, v. 19, n. 9/10, p. 771-783, set./out. 2009.
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te restituído por um ato de vontade, erigindo um objetivo educacional a
partir do seu exterior” (p. 140). É o que ocorre, por exemplo, no interior
das chamadas sociedades democráticas em que a organização do mundo
exerce uma pressão tamanha sobre as pessoas que tende a desviar qualquer
sentido emancipador. Nesse caso, a autonomia cede lugar à heterononia,
à adaptação ao existente, ainda que em nome de liberdade, emancipação,
ou mesmo democracia, correspondendo ao “momento autoritário, o que
é imposto do exterior” (p. 141). O autor acrescenta, nesse sentido, que, a
democracia só se faz possível, efetivamente, com pessoas emancipadas. Daí,
sua preocupação com a educação emancipadora no seu sentido político, o
qual demanda conscientização e racionalidade.
Expostas as considerações sobre os riscos que se corre ao estabelecer para a educação qualquer finalidade exterior, Adorno apresenta uma
concepção de educação para a qual se impõe intrinsecamente o conceito de
consciência. Assim, no mesmo sentido que ele interroga sobre o conceito de
filosofia, relacionada com a consciência, e sua apropriação restrita e ideológica, a educação não seria uma “modelagem de pessoas” ou “transmissão de
conhecimento” mas “a produção de uma consciência verdadeira” (p. 142).
Consciência que não se desvincula da emancipação, da razão, conforme as
palavras do autor quando afirma que: “emancipação significa o mesmo que
conscientização, racionalidade” (p. 143). Assim, emancipação, racionalidade
e consciência estão imbricadas na própria concepção de educação elaborada
pelo autor, – o termo “produção” retira qualquer relação de exterioridade e
se apresenta como inerente ao desenvolvimento da própria educação. Diferenciando consciência do pensamento que se dá nos moldes científicos,
ou “capacidade formal de pensar”, o autor explicita que,
[...] aquilo que caracteriza propriamente a consciência é o pensar em
relação à realidade, ao conteúdo – a relação entre as formas e estruturas de
pensamento do sujeito e aquilo que este não é. Este sentido mais profundo
de consciência ou faculdade de pensar não é apenas o desenvolvimento
lógico formal, mas ele corresponde literalmente à capacidade de fazer
experiências. Eu diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais. Nesta medida e nos termos que procuramos expor, a educação para
a experiência é idêntica à educação para a emancipação (p. 151).
A consciência assim, difere-se da consciência coisificada, presa à organização do mundo, cujos processos contribuem não para a formação no
sentido aqui exposto, mas para uma falsa formação conforme sua adequação
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irrefletida à essa organização. Essa consciência coisificada, torna-se pseudoconsciência ao não buscar compreender a realidade em suas contradições.
Antes, a realidade apresenta-se como clara e legítima, não permitindo ao
indivíduo pensar para além do já estabelecido, destituindo-o assim, da
possibilidade de diferenciar-se e, portanto, de fazer experiência intelectuais.
Para Adorno, a capacidade de fazer experiências intelectuais não se reduz
às formalidades do pensamento científico, antes se faz na reflexão sobre o
conteúdo, a realidade e suas contradições. Assim, o sentido da consciência,
da capacidade de pensar, relaciona-se à “capacidade de fazer experiências
intelectuais” o que traz a compreensão de que “a educação para a experiência
é idêntica à educação para a emancipação” (ADORNO, 1995, p. 151).
As dificuldades que se impõem à educação para a experiência são expostas
no sentido de que trata de algo que se relaciona tanto com a objetividade como
com a subjetividade, ou seja, no que se refere à organização total do mundo
que tende a impedir a emancipação, à constante necessidade de adaptação
imposta pela realidade e, da mesma forma, a resistência do próprio indivíduo
à experiência do diferente. Assim, uma educação direcionada à emancipação
precisa direcionar-se à produção da aptidão para a experiência relacionada
à individuação, à produção do eu forte, à conscientização. É nesse sentido
que Adorno refere-se à Kant evidenciando que, a causa da menoridade
– ausência de autonomia – não se relaciona simplesmente às imposições
exteriores, mas também à resistência do próprio indivíduo, ou seja, “a falta
de decisão e de coragem de servir-se do entendimento sem a orientação de
outrem” (p. 169) destituindo-se a si mesmos da possibilidade da experiência,
da emancipação. Dessa forma, a emancipação, mais uma vez é concebida
pelo autor como um exercício formativo, implícito no processo educativo,
que extrapola qualquer ideal exterior, que por assim o ser, já encerra em
si o pressuposto da heteronomia desviando-se do sentido emancipador e
formativo aqui exposto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: SOBRE A RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA
E EDUCAÇÃO
A junção dos dois textos nessa discussão se faz, primeiramente, pela
busca do autor em indagar o sentido, desde o interior, daquilo que é filosofia, da mesma forma que interroga a educação, para assim, relacionar com
as apreensões ideológicas e especializadas que acontecem com ambos os
conceitos e que, na atualidade, correspondem à exigência da especialização
cada vez mais presentes no que tende às relações de utilidade e fragmentação
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contínua cada vez maior no âmbito da produção do conhecimento, articulado às especializações também no mundo do emprego. A relação entre
filosofia e educação apresenta dois pontos essenciais nas reflexões do autor,
a saber, a relação entre teoria e prática, evidente quando o autor relaciona a
educação, como formação, o que refere-se também como educação política,
com a reflexão filosófica, social e histórica. O outro ponto chave na discussão entre filosofia e educação é a dialética, presente nos dois conceitos no
que diz respeito às suas ambigüidades, apropriações e seu sentido mesmo.
Dessa forma, a denúncia se faz, não apenas no que diz respeito à realidade
social, mas também à própria filosofia que busca pensar essa realidade e a
educação nas suas promessas de emancipação, mudança, e constituição de
um mundo mais humano. Concebe assim, as crises por quais perpassam o
ato de pensar e os processos educativos nessa sociedade, suas contradições,
determinações e possibilidades o que é, para o autor, essencial para o sentido
do filosofar e do educar defendidos por ele.
Distante de defender a existência de educações e, nesse sentido,
estabelecer finalidades diferentes a cada uma delas, Adorno ressalta existir
no próprio conceito de educação uma ambigüidade. Ou seja, não há uma
educação que sirva a adaptação no mundo, à consciência coisificada, ou à
falsa formação, o que se verifica é que o sentido formador da educação pode
acontecer na mesma realidade em que ocorre a adaptação, a justificação
constante do mundo, convertendo-se em autocrítica permanente. Dessa
forma, a desmitificação do conceito de educação se faz ao compreender
que, mesmo na compreensão da educação relacionada à emancipação, seu
contrário pode ocorrer se não observadas as determinações que se impõem
para a própria educação e os sujeitos desta. Assim, expõe-se o pensamento
de Adorno nas seguintes palavras:
A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém
ela seria igualmente questionável se ficasse nisso, produzindo nada além
de well adjusted people, pessoas bem ajustadas, em conseqüência do que
a situação existente se impõe precisamente no que tem de pior. Nestes
termos, desde o início existe no conceito de educação para a consciência
e para a racionalidade uma ambigüidade (p. 144).
As observações feitas por Adorno no que corresponde ao ensino de
filosofia e à educação não se restringem à década em que tais problemas
foram tratados pelo autor, tampouco tratam de uma realidade restrita ao
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ensino alemão. Transpondo tais reflexões para a atualidade, verifica-se
que, a cada vez mais, a tendência da fragmentação imposta pelo modelo
neoliberal, evidenciada nas políticas de descentralização, na recorrência
de termos como flexibilidade, multiplicidade, diversidade, dentre outros,
pronunciados na política, na cultura, na economia, do mundo do emprego,
cada vez mais fragmentado.
Da mesma forma que o autor defende uma filosofia que – não exclui
ou coloca em segundo plano – todavia, se estende muito além dos conhecimentos específicos, a educação foge das especialidades, concebida pelo autor
na sua universalidade, como educação do ser humano. De outra forma,
renderia ao discurso que tende a invocar as mais diferentes educações, a
saber, educação para a autonomia, democracia, formação profissional, assim
como educação para rico, pobre, negro, branco, para o nordeste, sudeste,
para países desenvolvidos, ou para aqueles em desenvolvimento, para a adaptação, a transformação social, tudo funcionando conforme as necessidades
imediatas do cliente, consumidor dessa ou daquela educação.
Sem as devidas relações que se estabelecem entre o saber e a realidade
social, entre as especificidades que compreendem o saber filosófico e a vida, o
trabalho daquele que se quer filósofo e a totalidade social, a filosofia perde seu
sentido e torna-se vazia diante das disciplinas cujo pragmatismo e a relações
entre meios e fins já aparecem de antemão, a filosofia é, nesse sentido, “percebida como um peso morto que dificulta a aquisição de conhecimentos úteis,
seja na preparação das disciplinas principais, prejudicando o progresso nessa
área, seja na aquisição de conhecimentos profissionais” (p. 69). Nesse sentido,
não se trata de desfazer a filosofia ou a educação que se articula com o mundo
do trabalho apresentando outras com caráter puramente emancipador, o que,
dentro das (im)possibilidades da sociedade atual seria igualmente ideológico,
mas trata-se antes de tudo, criticar a filosofia e a educação desde seu interior e
fazer com que elas mesma atentem-se aos objetivos imanentes ao seu sentido,
isto é, a emancipação, a resistência, a consciência.
Notas
1
Outros autores do Instituto de Pesquisa Social do qual Adorno fez parte
durante aproximadamente três décadas, refletiram sobre o esvaziamento dos
conceitos na sociedade industrial. Horkheimer, em Eclipse da Razão, afirma
que, no trajeto da formalização da razão, o que ele vem denominar de razão
instrumental, os conceitos foram instrumentalizados, “[...] acrodinamizados,
racionalizados, tornaram-se instrumentos de economia de mão-de-obra. É como
se o próprio pensamento tivesse se reduzido ao processo industrial, submetido a
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um programa estrito, em suma, tivesse se tornado uma parte e uma parcela da
produção” (HORKHEIMER, 2000, p. 30). Ainda tratando da administração
dos conceitos pela lógica da sociedade administrada, Marcuse (1967) expõe em
Sociedade Unidimensional, a afirmação de que “Na expressão desses hábitos de
pensar, a tensão entre aparência e realidade, fato e fator, substância e atributo,
tende a desaparecer. Os elementos de autonomia, descoberta, demonstração e
crítica recuam diante da designação, asserção e imitação. Elementos mágicos,
autoritários e rituais invadem a palavra e a linguagem. A locução é privada das
mediações que são as etapas do processo de cognição e avaliação cognitiva. Os
conceitos que compreendem os fatos, e desse modo transcendem estes, estão
perdendo sua representação lingüística autêntica. Sem tais mediações, a linguagem tende a expressar e a promover a identificação imediata da razão e do fato,
da verdade e da verdade estabelecida, da essência e da existência, da coisa e de
sua função” (MARCUSE, 1967, p. 93)
2
Para Adorno, a perda da experiência do pensamento que se prende ao real incide
diretamente na questão da práxis, assim, “o que, desde então, vale como o problema da práxis, e hoje novamente se agrava na questão da relação entre teoria
e práxis, coincide com a perda de experiência causada pela irracionalidade do
sempre-igual. Onde a experiência é bloqueada ou simplesmente já não existe, a
práxis é danificada e, por isso, ansiada, desfigurada, desesperadamente supervalorizada. Assim, o problema da práxis está entrelaçado com o do conhecimento”
(ADORNO, 1995b, p. 204).
3
Ao utilizar a expressão pessoa de espírito, referindo-se ao intelectual, Adorno
ressalta no texto em questão uma ambigüidade dos termos, como também
relativo a “estupidez ou integridade moral superior” (p. 54). Essa reflexão é
melhor desenvolvida no ensaio Contra os que têm resposta pra tudo no qual demonstra que “há um espírito que é anti-humano: sua marca é a superioridade
bem informada” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985 p. 195). Refere-se assim,
a estupidez em forma de inteligência, a exemplo dos nazistas, em que, aquela
pessoa dotada de uma espécie de ignorância transvestida de uma inteligência
arrogante, impede o reconhecimento do outro, e a mediação do conhecimento,
dessa forma, se dá pelo poder e a relação de concessão. “São os juízos bem informados e perspicazes, os prognósticos baseados na estatística e na experiência,
as declarações começando com as palavras: ‘Afinal de contas, disso eu entendo’,
são os statements conclusivos e sólidos que são falsos” (p. 195).
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No texto intitulado Educação e emancipação da mesma coletânea, Adorno expõe,
mais uma vez, a emancipação como direcionamento, condução. Para ele, “a única
concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas
interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja
uma educação para a contradição e para a resistência” (p. 183). Mais adiante,
o autor confere educação à “tentativa séria de conduzir a sociedade à emancipação”, assumindo evitar, propositalmente, o termo educar naquele momento
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Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 19, n. 9/10, p. 771-783, set./out. 2009.
(p. 185). Sobre a relação entre educação e a incapacidade de experiência num
mundo dominado pela técnica, Adorno, ao para aliar educação e conhecimentos
relacionados à psicologia expõe a educação como “uma educação efetivamente
procedente em direção à emancipação” (p. 149).
Referências
ADORNO, W. T. A filosofia e os professores. In. Educação e Emancipação.São
Paulo: Editora Paz e Terra, 1995.
ADORNO, W. T. Educação – para quê?. In. Educação e Emancipação.São Paulo:
Editora Paz e Terra, 1995.
ADORNO, W. T. Educação e Emancipação. In. Educação e Emancipação. São
Paulo: Paz e Terra, 1995.
ADORNO, W. T. 1972.
ADORNO, W. T. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena
Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995b.
Abstract: considerations about philosophy, education and emancipation, in Adorno,
understood as formative experience implicit in the own concepts, thwarting an external
purpose. Critical of the reduction of the philosophy, pointing out the sense of philosophizing necessary to the educational work and of the education that should distance if of
one “ for something “ in its instrumental aspect, and to impose as sense and direction,
or “ for where the education should lead “.
keywords: education; philosophy; purpose; sense; formative experience
Elaborado a partir da comunicação do trabalho Adorno: Filosofia e educação – para
quê? No Simpósio de ensino de filosofia – SIMPHILO, em dezembro de 2007, na
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP
LENILDES RIBEIRO SILVA
Doutoranda Filosofia, História e Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
Pedagoga. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação
(PAIDÉIA). E-mail: [email protected]
Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 19, n. 9/10, p. 771-783, set./out. 2009.
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