Arq Bras Cardiol volume 72, (nº 4), 1999 Tirone & Arteaga Atualização Cardiomiopatia hipertrófica. Caracterização genética Cardiomiopatia Hipertrófica Familiar. Caracterização Genética Adriana Paula Tirone, Edmundo Arteaga São Paulo, SP Este artigo visa mostrar aos médicos, especialmente aos cardiologistas, de forma clara, as mutações genéticas encontradas, até o momento, e que são responsáveis pela cardiomiopatia hipertrófica (CMH). Nos últimos anos vem crescendo o interesse na realização de estudos clínicos e laboratoriais à procura de novas mutações, pois sabemos que é uma doença poligênica, com importante heterogeneidade clínica e implicações diagnósticas e prognósticas particulares de cada mutação. A CMH é uma doença cardíaca complexa, com características fisiopatológicas únicas e com grande diversidade de características morfológicas, funcionais e clínicas 1. É uma desordem cardíaca primária, na qual a característica diagnóstica indispensável é a hipertrofia ventricular esquerda (HVE), sem dilatação ventricular, na ausência de doença cardíaca ou sistêmica que possa levar à hipertrofia miocárdica 2,3. A prevalência da CMH na população geral é de cerca de 0,2% (1 em 500), maior do que se pensava no passado e, provavelmente, é a mais comum doença cardiovascular geneticamente transmitida. A mortalidade anual de pacientes com CMH é de 3% a 4% e acima de 6% em crianças, isto é, substancialmente maior do que em pacientes não selecionados (0,5% a 1%) 1,4. O curso clínico varia de pacientes, totalmente assintomáticos durante toda vida, passando por pacientes com sintomas importantes de insuficiência cardíaca até àqueles que morrem subitamente sem sintomas prévios 2,4,5. Em mais de 50% dos casos, a CMH é uma doença genética autossômica dominante e, nos casos restantes, ainda não temos a etiologia definida, podendo ser também genética, porém com mutações ainda não reconhecidas. Até o momento, foram identificadas alterações em sete genes que codificam proteínas do sarcômero: gene da cadeia pesada da β-miosina cardíaca (β MyHC); gene da troponina T cardíaca (cTnT); gene da α-tropomiosina; gene da proteína C ligadora de miosina (MyBP-C); gene da troponina Instituto de Coração do Hospital das Clínicas – FMUSP Correspondência: Adriana Paula Tirone – Incor – Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 – 05403-000 – São Paulo, SP Recebido para publicação em 15/10/98 Aceito em 8/12/98 I cardíaca e gene das cadeias leves da miosina reguladora e essencial 5,6. O gene da cadeia pesada da β-miosina cardíaca está localizado no cromossomo 14 (locus q1) onde foram identificadas mais 40 mutações que causam a doença, sendo que a maioria dessas mutações se dá pela substituição dos nucleotídeos do DNA resultando na troca de um aminoácido na seqüência da proteína 7,8. Ela ocorre em 30% a 40% dos casos de CMH familiar e existem mutações com risco alto, intermediário e baixo para morte súbita (MS) 2,4,8. As mutações Arg403Gln (onde arginina foi substituída por glicina na posição 403), Arg453Cys e Arg719Trp são mutações chamadas de malignas 4,7,8. Os fenótipos associados com Arg403Gln são vistos em muitas famílias e caracterizados como de alta penetrância, alta incidência de MS e hipertrofia severa 2,7,8. Os estudos mostram que a mortalidade nessa mutação é de duas famílias com a mutação Arg403Gln, nas quais 21 de 44 indivíduos afetados morreram (nove de MS) com idade média de 33 anos 9. Marian e cols. identificaram duas famílias com essa mesma mutação, nas quais 11 de 20 indivíduos afetados morreram (nove de MS) com idade média de 33 anos 2,4. A segunda mutação com alta incidência de MS é Arg719Trp, descrita em quatro famílias compostas de 61 indivíduos nas quais 34 morreram (22 de MS) com média de idade de 38 anos. A Arg453Cys é outra mutação maligna, observada em uma família na qual nove dos 13 indivíduos afetados morreram (seis de MS) com média de idade de 30 anos 2,4. As mutações Glu930Lys e Arg249Gln estão associadas a risco intermediário de MS 2. Marian e cols. 2,4 descreveram uma família composta de 16 indivíduos com a mutação Glu930Lys na qual dois morreram com idade de 14 e 16 anos e um realizou transplante cardíaco aos 58 anos. As mutações Leu908Val, Gly256Glu, Val606Met, Fhe513Cys estão associadas a prognóstico benigno e sobrevida normal 4,7. A mutação Leu908Val foi descrita em uma grande família composta de 46 indivíduos afetados na qual somente dois morreram 2,4. A mutação Gly256Glu ocorreu em uma família com 39 indivíduos afetados e a mortalidade foi de 2% aos 50 anos. A mutação Val606Met também está associada a prognóstico benigno em quatro famílias. Watkins e cols. 9 mostraram essa mutação em três pequenas famílias compostas de 18 indivíduos afetados, sendo que 517 Tirone & Arteaga Cardiomiopatia hipertrófica. Caracterização genética somente um morreu. Marian e cols. 4 identificaram essa mutação em uma família com 12 indivíduos afetados e somente um morreu. No entanto, Fananapazir e cols. 10 mostraram uma família com essa mutação com grave hipertrofia e alta incidência de MS. O gene da troponina T cardíaca está localizado no cromossomo 1 (locus q3), onde até o momento foram identificadas oito mutações. Acontece em aproximadamente 15% dos casos. A principal característica das mutações nesse gene é que causam hipertrofia discreta, porém com alta incidência de MS em pacientes jovens (<30 anos) 2,11. O gene da alfa-tropomiosina está localizado no cromossomo 15 (locus q2) e foram observadas duas mutações até o momento. Parece ocorrer em 5% dos casos de CMH e está associada a sobrevida normal 2,11. O gene da proteína C ligadora de miosina está localizado no cromossomo 11 (locus p 11.2) 5. Até o momento foram identificadas 14 mutações, sendo quatro delas por troca de nucleotídeos e oito mutações truncadas 5,12. Ocorre em 15% dos casos e a principal característica é a baixa penetrância até a 5ª década de vida com hipertrofia moderada e sobrevida satisfatória 6,12. Os genes das cadeias leves da miosina reguladora e essencial foram descobertos em 1996 9. O gene regulador (MYL2) encontra-se no cromossomo 12 (locus q23 e q24.3) e o gene essencial (MYL3) encontra-se no cromossomo 3p 5,13. Até o momento existem quatro mutações descritas para estes genes que mostram hipertrofia discreta e bom prognóstico 13,14. Quanto ao gene da troponina I, existem aparentemente quatro mutações ainda em estudo. Existem evidências sugerindo que outros fatores genéticos têm influência na hipertrofia 2,15,16. Um polimorfismo de inserção e deleção no gene da enzima conversora da angiotensina (ECA), caracterizado por alelos D e I resultando em três genótipos II, ID, DD estão sendo associados a diferenças nos níveis plasmáticos da ECA e à sua atividade 17,18. O genótipo DD está relacionado a aumento dos níveis da ECA e em vários trabalhos parece ser um fator de risco para infarto do miocárdio, cardiomiopatia dilatada, reestenose pós-angioplastia e CMH 8,18. Foi observado inicialmente que o aumento da freqüência do alelo D ocorria somente em famílias com alta incidência de MS 2,4,8, posteriormente demonstrada sua relação com aumento da hipertrofia cardíaca 8,15,19. Um segundo gene do sistema renina-angiotensina associado à doença cardíaca é o angiotensinogênio. O polimorfismo ocorre na posição 235 onde houve a troca de treonina por metionina (M/T). O genótipo TT parece estar 518 Arq Bras Cardiol volume 72, (nº 4), 1999 relacionado a maior risco de hipertrofia miocárdica. Ishanov e cols. 20, estudando uma subpopulação de japoneses, observaram que a hipertrofia era maior em indivíduos que tinham um ou dois alelos D, além da contribuição do alelo T, que poder-se-á constituir em marcador para um gene crítico na CMH ou na hipertrofia miocárdica. A identificação das mutações responsáveis pela CMH leva a importante armamento diagnóstico. O presente diagnóstico é feito pelo ecocardiograma mostrando HVE, porém isso não é evidente em muitos casos até a puberdade. No entanto, é possível um diagnóstico genético antes ou em qualquer tempo após o nascimento, o que requer uma simples coleta de sangue. O diagnóstico genético é importante também nos casos em que a CMH é desenvolvida tardiamente devido a mutações associadas à baixa penetrância e naqueles com hipertrofia decorrente de hipertensão arterial em indivíduos jovens, indistinguível clinicamente. O teste genético identifica os doentes de risco para desenvolver a doença antes e independente da presença de sintomas ou do desenvolvimento da hipertrofia. O teste fornece também informações prognósticas, particularmente o risco de MS. A necessidade de se determinar um indivíduo de alto risco do subseqüente desenvolvimento de CMH e possível MS é maior em crianças, antes do aparecimento da hipertrofia. A habilidade para identificar e separar indivíduos com mutações de alto risco, daqueles sem mutação e, portanto, sem risco de desenvolver a doença, fornece informações adicionais que suplementariam a habilidade clínica para tratar esses doentes. A indicação de intervenções como o implante de desfibrilador deveria ser decidida após estratificação de risco baseado na clínica e na genética. Portanto, os testes genéticos de membros de famílias afetados com CMH determinam quem é normal e quem provavelmente vai desenvolver a doença, assim como fornece dados prognósticos importantes para as crianças e indivíduos assintomáticos. Por enquanto, a determinação genética é experimental e realizada em poucos centros mundiais, além de ser procedimento de custo elevado. À medida que se tornar viável trará vantagens para esses pacientes e suas respectivas famílias e alguns problemas, como por exemplo, o que fazer com um indivíduo que é portador de uma mutação maligna, porém assintomático e que poderá ter como primeiro sintoma a MS? O que fazer com a criança portadora de CMH diagnosticada geneticamente e que ainda não tem hipertrofia? Estas e outras dúvidas deverão ser solucionadas no decorrer do tempo. Por enquanto, novos genes e novas mutações estão sendo descobertos a cada dia, ajudando a elucidar a etiologia de uma doença que, até pouco tempo, não era conhecida e que leva indivíduos jovens à morte. Arq Bras Cardiol volume 72, (nº 4), 1999 Tirone & Arteaga Cardiomiopatia hipertrófica. Caracterização genética Referências 1. Spirito P, Seidman CE, McKenna WJ, Maron BJ - The management of hypertrophic cardiomyopathy. N Engl J Med 1997; 33: 775-85. 2. Marian AJ, Roberts R - Recent advances in the molecular genetics of hypertrophic cardiomyopathy. Circulation 1995; 92: 1336-47. 3. Davies MJ, McKenna WJ - Hypertrophic cardiomyopathy: an introduction to pathology and pathogenesis. Br Heart J 1994; 72(suppl): S2-S3. 4. Marian AJ - Sudden cardiac death in patients with hypertrophic cardiomyopathy: from bench to bedside with an emphasis on genetic markers. Clin Cardiol 1995; 18: 189-98. 5. Malik MS, Watkins H - The molecular genetics of hypertrophic cardiomiopathy. 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