UM PASSEIO PELA FILOSOFIA Alexandra Filomena Espindola ∗ RESUMO: Este ensaio pretende visitar, brevemente, a história da filosofia e observar as principais questões norteadoras de alguns dos mais importantes pensadores. Começando por Tales de Mileto, passando por Parmênides, Heráclito, Platão, Descartes, Kant, Wittgenstein, Heidegger e outros, até chegar a Rorty e Davidson, procuramos compreender como a filosofia pode ser entendida como filosofia da linguagem, já que as verdades encontradas nas soluções de problemas partem de problemas inventados, ou seja, de falsos-problemas. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia; Literatura; Linguagem. Eterna verdade vazia e perfeita! Fernando Pessoa Eu, que só gostava de ler poemas, resolvi me aventurar pelos campos da filosofia. Mas antes tive de me libertar de preconceitos e crenças. Meu primeiro encontro foi com Tales de Mileto – o primeiro filósofo ocidental – que buscava o princípio natural de todas as coisas. Tales, depois de muito refletir, passou a acreditar que a água era a base de tudo. Achei engraçado e me perguntei por que alguém se interessaria por isso, mas eu gostava de ler canções de escárnio também. Depois de conhecer Anaximandro e outros, percebi que o que se procurava, com efeito, era a “verdade”; os iônicos, por exemplo, compreendiam a alma como o princípio vital da vida, assim também proclamavam os cantos míticos gregos. Será que eles tinham medo de morrer? Realmente tinham. Tanto que, antes de inventarem os deuses, Anaximandro afirmava que o universo era infinito – claro que a alma, nesse momento, veio a calhar, pois ela garantiria a “imortabilidade” do ser. Mas por que ter medo da morte? Tudo bem, eles não conheciam Augusto dos Anjos1 nem Ofélia2. Para dificultar a árdua tarefa de escapar da morte, o último dos iônicos, Heráclito de Éfeso, tinha convicção de que o universo estava em constante movimento. Isso acarretou dois problemas: se houvesse movimento, existiria um fim; e ainda, se houvesse movimento, as verdades mudariam. E agora José? Perguntaria Drummond. Para resguardar a vida e as verdades, um dos eleátas, Parmênides, salva a tribo, trazendo a ideia de que a mutação é ilusória e que a realidade é estática. Bela saída! O caminho por onde passei era meio estreito, o que dificultava a visão do todo, mas me encontrei com Gleiser (1997, p.41), que me mostrou, em Os Gregos, que, para Heráclito, “a verdadeira constituição das coisas gosta de ocultar-se”. Palavras essas que me pareceram ter se alojado no pensamento dos filósofos, porque eles passaram a se dedicar a construir métodos a fim de encontrar essa verdade escondida. Esse tom enigmático lembrou-me da literatura de Rimbaud, que bagunça a gramática e as certezas, dizendo: “Je est un autre”. Chegou um momento desse meu passeio em que me deparei com poesia. E eu que gosto de ler poemas, fui apresentada aos pitagóricos, mas me causou estranheza, como a ∗ Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), linha de pesquisa Linguagem e Cultura. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC). 1 Augusto dos Anjos é considerado, no meio literário, o poeta da morte. 2 Ofélia – quadro pintado John Everett Millais. 1 leitura de Uma Carniça3, porque esses filósofos acreditavam que a essência do conhecimento, da música, da poesia, da beleza era algarismo. E eu que fiz Letras... Eles fizeram uma síntese entre o racional e o mítico (filosofia e religião), resultando em matemática, das formas geométricas à estética. Desse modo, a “essência” do conhecimento era o número. Toda essa lógica me levou a Millôr, num poema em que ele narra o encontro, no infinito, da Incógnita com o Quociente: “Quem és tu? Indagou ele com ânsia radical”, e ela responde: “Eu sou a soma do quadrado dos catetos. Mas pode me chamar de Hipotenusa”. É, poesia e matemática até que podem, dessa maneira, achegarem-se, mas que esta não seja uma essência, porque o mestre, Alberto Caeiro, um dia, fez-me acreditar que: “O único sentido íntimo das cousas / é elas não terem sentido íntimo nenhum”. Vamos fazer que creio haver essa tal essência, para poder continuar minha caminhada. Após tanta dureza de pensamento, mas agora com as trilhas mais abertas, os atomistas chegam com uma proposta mais flexível: mesmo descrevendo o mundo em termos de átomos não divisíveis, aparece uma necessidade social – a ciência – para que as pessoas se libertassem do medo do sobrenatural. Pareceu-me literatura realista/naturalista, mas vamos prosseguir! Antes, porém, fale por mim, por favor, Álvaro de Campos4: Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) – Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos? Se têm a verdade, guardem-na! Ao convidar a filosofia para descer dos céus, Sócrates tirou dos domínios dos filósofos o entendimento do mundo e sugeriu o conhecimento de nós mesmos. Literatura intimista, Clarice Lispector? Isso foi um prato cheio para que Platão construísse a divisória diagonal que separou o mundo sensível do mundo inteligível. Para ele, no mundo das ideias, está localizada a verdade (e agora não mais como um simples adjetivo, mas como um substantivo mais próprio do que nunca, maneira de hipostasiar as palavras e criar conceitos). Aproveitando-se de Parmênides, Platão inventa que a mudança sociopolítica somente aconteceria com um código moral, baseado em verdades imutáveis para que todos pudessem seguir e acredita, calçado em Parmênides, que a sombra seria o mundo dos sentidos, já que estes são falhos. Nessa jogada, alimentada por um interesse político, Platão reinventa e fortalece uma divisão no pensamento ocidental que se estende por mais de dois mil e trezentos anos. Essa história é digna de um bom romance policial à Rubem Fonseca! Quem vai morrer? De repente, apagaram as luzes, e me perdi. Quando uma luz única e artificial acendeu, percebi que eu tinha de caminhar por uma trilha nebulosa, e a luz ficou cada vez mais forte, por dez mil anos, quase me cegou. Depois dessa vereda, um candelabro alumiou meus passos, e descobri que Platão estava lá o tempo todo, imperador do pensamento cristão. Quase que me polui de outras crenças, mas, no início da Idade Moderna, deparei-me com Descartes, que sentia a necessidade de inventar uma outra luz – a razão – e cria o conceito de mente, preservando e prolongando a dualidade do pensamento ocidental. O pensamento cartesiano rebusca dos pitagóricos a lógica para firmar a filosofia como ciência. Com esse conceito, Descartes concebe que somos a mente, portanto, temos um corpo, duas substâncias diferentes que convivem no mesmo organismo; ideia que mantém o corte epistemológico de Platão. Uma boa pedida, nesse momento é O Matrimônio do Céu e do Inferno, de William Blake. 3 Nesse poema, Baudelaire expõe o feio, o fétido, o horrendo, contrapondo a beleza clássica. Heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos é um poeta inadaptado aos padrões sociais, conduta que provém de seu excesso de lucidez. 4 2 Além da água de Platão e Pitágoras, Descartes bebe na de Parmênides, pois sua filosofia parte do particular para o universal, por meio de síntese; e se a verdade fosse estática, deveria ser igual para todos, assegurando um conhecimento certo para todas as coisas5. Concebendo como realidade o “cogito”, o pensamento cartesiano carrega o platonismo, mas se liberta do pensamento teológico, que marcou a Idade Média. Platão chega à verdade pela reminiscência, Descartes, através dos significados dos signos engendrados na mente, por meio da razão. Será que há um significado postulado para as coisas? Ainda estou preferindo a literatura, porque Ezra Pound (1970) a conceitua como linguagem carregada de sentido ao mais alto grau possível. Indo um pouco mais longe, com dois castiçais nas mãos, Kant não se contenta apenas com o corte entre corpo e mente e faz uma outra cisão, mas agora no próprio conhecimento. Ele divide o conhecimento em a priori, o que não depende da experiência; e o que parte da experiência, do empírico – a posteriori. Por que Kant fez isso? Estou achando que os filósofos racionalistas e empiristas ainda estão tentando desvendar a verdade oculta, descobrir como o conhecimento é possível. Como é difícil se desprender daquilo que acreditamos, vou chamar Caeiro6 para falar algumas palavras por mim: O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que idéia tenho eu das cousas? Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma E sobre a criação do Mundo? Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos E não pensar. É correr as cortinas Da minha janela (mas ela não tem cortinas). O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério. Quem está ao sol e fecha os olhos, Começa a não saber o que é o sol E a pensar muitas cousas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o sol, E já não pode pensar em nada, Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos De todos os filósofos e de todos os poetas. A luz do sol não sabe o que faz E por isso não erra e é comum e boa. Mesmo antes de Nietzsche, Descartes e Kant já sabiam que aquela luz superior e única não ressuscitaria, ou melhor, nunca existira, e criaram uma forma de construir as bases da nova ciência, a epistemologia. Agora, sem mais a escolástica, queriam saber como era possível ter conhecimento. Um dia, um professor contou-me um causo mais ou menos assim: Platão nos jogou na caverna, Descartes trancou a porta, e Kant descreveu a cena. Um pouco mais adiante, parei num tal de pragmatismo, de Peirce e James, o que me fez lembrar de Madame Bovary e Lucíola7, romances parecidos, mas com seus diferenciais. Como nenhuma questão necessária foi encontrada e resolvida até aqui, Charles Sanders Peirce cria o pragmatismo, em que se dedica a perquirir os significados das ideias de outros filósofos, como Kant, de maneira a construir um método para chegar a conceitos claros e não de razões a priori. Desse modo, cria a teoria semiótica como um método de verificação de hipóteses por meio da experiência, em que tudo deveria ser experimentado, como em 5 É uma forte característica da filosofia analítica a procura redundante de conceitos universais. Outro heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro vê “as coisas como são”, o mundo, para esse poeta, é real-sensível. 6 7 Madame Bovary, de Flaubert, e Lucíola, de José de Alencar, são textos literários que escandalizaram a época e o tempo em que foram escritos, França e Brasil, respectivamente, por causa da temática apresentada. Alguns críticos dizem ser o segundo uma cópia do primeiro, mas quem os lê sabe de suas particularidades; do mesmo modo acontece com o pragmatismo de Peirce e de James. 3 laboratório. A comprovação de uma proposição estaria em outra proposição. Hei! Onde vocês estão indo? Por que agora vão para o campo da linguagem?8 Por que tudo até então era literatura? Eu, como gosto de ler romances! Mas há muitos desencontros, confrontos nessa literatura dos filósofos. O pragmatismo, para Willian James, por exemplo, diferencia-se de Peirce principalmente por que James compreende o pragmatismo não apenas como método, mas como uma teoria da verdade. Assim como para Heráclito, para James as verdades modificam-se, transformam-se à medida que elas possam funcionar. O significado de uma proposição não está nela mesma e não, necessariamente, em outra, mas a concordância das frases precisaria encontrar-se na “realidade”, no mundo. Ainda segundo James, a filosofia deveria imitar os procedimentos das ciências naturais e ser indutiva e empírica como as ciências. Para isso, ateve-se na linguagem, pois nela comprovaria a validação de verdades. As palavras hipostasiadas deveriam, a seu ver, ser postas a trabalho da prática, da experiência, como forma de correspondência entre o espírito e a realidade. Agora era uma boa hora para um poema simbolista francês! Mas eu também gosto muito da indignação de Álvaro de Campos por que ele sabe dizer: NÃO: Não quero nada. Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica! Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas James concebe a linguagem como ponte entre pensamento e ação, uma mediação entre o mundo sensível e o mundo inteligível, forma de sustentar o corte epistemológico e legitimar a filosofia enquanto ciência. Porém, não somente cai na metafísica, mas vincula esta à ciência, ou seja, une a fenomenologia à concepção evolucionista da realidade. Pelo caminho, passei por uma rótula, a virada linguística, cujo objetivo era substituir a mente cartesiana por significado e postular a filosofia como disciplina basilar. Para isso, o primeiro Wittgenstein propõe, segundo as palavras de Hacker, que a linguagem tivesse uma estrutura lógica para as diversas formas de expressão. Estou sentindo um gostinho de soneto alexandrino! Desse modo, o que pudesse ser dito, deveria ser dito com clareza, caso não se pudesse dizer com clareza, não deveria ser dito, como escreve Wittgenstein em Tratactus logico-philosophicus. Com a formação do Círculo de Viena, segundo Pepe (1999), os estudos sobre linguagem foram os problemas centrais da filosofia - era preciso libertar a linguagem de toda a forma de ambiguidade, pois, para uma filosofia que almejava deter os saberes, não poderia deixar que a linguagem se abrangesse a ponto de fugir das garras dos filósofos. Isso fez com que os estudos lógicos matemáticos retornassem às mãos da filosofia na forma de análise da linguagem e, por esse motivo, a metafísica não mais caberia a esse estudo por não ter uma forma de verificação. Que necessidade de fundamentação! É por isso que eu gosto de ler poemas! Para Wittgenstein de Investigações Filosóficas, o grande pensador que quebra com a tradição filosófica do pensamento dualista, o uso das palavras determinam o significado delas, o que significa a morte do significado almejado pela virada linguística, ou seja, um significado dado, claro e distinto a partir das coisas que representavam. Desse modo, o segundo Wittgenstein derruba as teorias do primeiro, concebendo os processos de denominação de objetos como “jogos de linguagem” e coloca outro elemento decisivo à 8 É importante esclarecer que, desde Platão, já se trabalhava o signo linguístico com centralidade. 4 linguagem: a cultura em que se dão esses jogos. Com isso, afirma não existir regras gerais que permeiam a linguagem como objetivava a filosofia, pois as regras são acordadas no momento da interação. Isso está me parecendo cada vez mais literatura, agora realista! As diferentes visões do papel da filosofia e da linguagem, que observei ao longo dessa aventura, podem ser vistas como o que Thomas Kuhn diz ser paradigmas e quebra de paradigmas, em que estão em jogo conceitos de verdade e as anomalias que destes aparecem. Assim, a filosofia precisou resolver os problemas que advêm dessas anomalias, criando e alterando conceitos que satisfizessem uma verdade única. Isto é, podemos pensar que, enquanto os paradigmas são substituídos, está se trocando esquemas conceituais por outros, como um jogo. Gosto dos jogos de Cruz e Sousa, porque deles resultam sonoridade, e Verlaine9 já dizia: “antes de qualquer coisa, a música”! Caminhando mais um tanto, deparei-me com Richard Rorty e seu livro Filosofia e o Espelho da Natureza (1994), em que o autor estilhaça a ideia de que a mente é o espelho da realidade, como defendia a tradição filosófica. Para esta, o que faz a ponte entre o ser e os objetos precisa representar o mundo da maneira mais polida possível, por isso, a linguagem como representação, por exemplo, descarta as metáforas no projeto filosófico. Mas se tudo até aqui é literatura, como concebe Jacques Derrida, o que seria de um poema sem metáforas? Sinto-me agora andando por avenidas seguras, pois Rorty entende a concepção da divisão corpo e mente, mundo interior e mundo exterior, mundo inteligível e mundo sensível como metáforas criadas que se estabeleceram na rede de crenças das pessoas e que sobrevivem até hoje; por isso tive de deixar em casa as minhas para poder entender as personagens que encontrei. Os métodos criados para se chegar ao conhecimento, à verdade tornaram-se cada vez mais rigorosos, e isso fez com que a filosofia se tornasse ciência, mas se afastasse do resto da cultura, inclusive da literatura? Os desencontros continuam... No lugar de um harmônico diálogo entre um pensamento e outro (e isso me fez lembrar de Morte do Palhaço e Acrobata da Dor10), o que fazem os filósofos é confrontarem entre si, pois falam de coisas diferentes de maneira a defenderem seus paradigmas e, com isso, trancam-se cada um em sua própria caverna. Consequentemente, problemas não são resolvidos, e o que há entre os filósofos é uma sobreposição de vozes e não uma conversação, esta que, na visão de Rorty, além de substituir o espelho da natureza e a confrontação, possibilita chegar a uma verdade temporária, efêmera, a um conhecimento não como uma validação, fundamentação, mas como uma negociação. Um palhaço morre e outro sofre. Continuo na literatura. Sabendo que eu precisava ir mais longe, achei que uma conversa com Donald Davidson seria interessante. Esse pensador é diferente por que não criou um método, mas uma maneira de se chegar a soluções de problemas - a triangulação -, ou seja, numa conversação, o locutor e o interlocutor estão na base do triângulo trocando proposições sobre um assunto que está no topo do triângulo, lugar este que não privilegia o objeto da conversação, porque o objeto apenas serve de mote para os participantes. Entre estes, imprescindível é a caridade11, pois, sem ela, não há triangulação, mas confronto. Dessa maneira, não é difícil compreender que a verdade, tão almejada pelos filósofos dualistas, nada tem de oculta e de misteriosa. Para Rorty e Davidson, a verdade se estabelece na base desse triângulo a partir da disposição dos participantes ouvirem-se mutuamente e chegarem a uma pequena parada, um ponto temporário em comum. 9 Citado por Faraco e Moura (1995, p.345). O primeiro texto é um conto de Gonzaga Duque e o segundo, um poema de Cruz e Sousa. 11 Caridade aqui está no sentido de boa vontade, ou seja, estar disposto a falar e a ouvir o outro. 10 5 A fim de melhor entender os propósitos da filosofia, foi necessário que eu passasse novamente pelos mesmos lugares, depois da Idade das Trevas em diante. Nesse retorno, percebi que a filosofia necessitava de um objeto e de um método para tornar-se ciência. Como as questões relacionadas ao ser e à constituição do universo as ciências duras se apropriaram, a filosofia concentrou-se na linguagem e na estrutura da língua. Porém, o segundo Wittgenstein constatou que, como o estudo da linguagem pura, da linguagem reificada e da linguagem com significados engessados era impossível, a filosofia, que pretendia tornar-se uma disciplina de base para as outras áreas de conhecimento, não tinha mais sentido de ser. Nessa tragédia, houve duas mortes: a do significado, consequentemente o objetivo da virada linguística veio ao chão, e a da filosofia da linguagem. Esta bem poderia ter se tornado um belo poema, pois a arte é infinita, “posto que é chama”12, como diria Vinícius de Moraes. Como gosto de ler poemas, a linguagem muito me interessa, por esse motivo, parei na filosofia da linguagem e percebi que ela não foge da tradição, pois dá à linguagem a função de descrever e delimitar o domínio do estudo do ser humano, fugindo, desse modo, da naturalização, condição para se tornar, enfim, teoria. Isso equivale a experienciabilidade de Kant, em que a descritibilidade garantia o acesso do homem ao mundo; a partir dessa questão, Rorty questiona o papel da filosofia como estudo das condições de acessibilidade, pois, para ele, esse acesso é direto e natural, assim como as janelas de Caeiro não tem cortinas. Para os filósofos ou literatos Heidegger, Derrida e Davidson, a linguagem é um instrumento e não mais uma forma de correspondência entre o ser e os objetos empíricos. Essa é uma grande ameaça para a filosofia analítica. Depois de toda essa andança, questiono-me qual é a função da filosofia. O que Rorty encontra são respostas divergentes. A primeira afasta a filosofia da arte e da política e a aproxima da ciência, já que é esta que a configura, como pensa Husserl. Contrariamente, os pragmatistas, como Dewey, distanciam-se desse cientificismo e caminham em direção à política ao lado de agentes sociais e engenheiros, que procuram melhorar as condições de vida das pessoas. E a terceira resposta é de Heidegger, que afasta o caráter científico e político da filosofia para adotar traços literários, o que o possibilitou colocar filósofo e poeta lado a lado. E eu, que gosto de ler poemas, encontrei-me em Heidegger! Heidegger, entretanto, não foi tão radical em desvalidar a política e a ciência. Esta ele via como uma possível tarefa da filosofia e compartilhava com aquela no que se refere à desconfiança das metáforas inventadas, principalmente, por Platão e Descartes. Rorty vê que a relação que a tradição filosófica tem com crenças e desejos se fez através: da percepção, a qual muda as crenças e acrescenta novas crenças nas anteriores; da inferência, que faz com que crenças sejam substituídas, abandonando as antigas; e da metáfora, em que a linguagem age de modo a reformular as crenças. Esta última Davidson considera como mais uma ferramenta que a linguagem oferece. E eu continuo gostando de ler poemas! Rorty afirma que as mudanças de crenças estão no âmbito da linguagem, no significado que elas podem comportar e coloca a metáfora no mesmo nível da percepção e da inferência, em que a verdade é quem legitima as metáforas. E isso quer dizer que Heidegger estava negando o objeto de investigação da filosofia: a natureza da linguagem, bem como a estrutura da racionalidade, pois acreditava que construção em filosofia era desconstrução, ou seja, quebrar com conceitos, metáforas tradicionais, embora ele mesmo, em seu segundo momento, resgata e continua a tradição filosófica de preservar as palavras, as condensações, construindo um vocabulário, uma rede de signos que ele hipostasia. Esse vocabulário mostra o caráter poético de Heidegger, cuja tentativa é construir uma linguagem que nos liberte 12 Trecho retirado do poema “Soneto de fidelidade”. 6 daquela utilizada na tradição clássica e que poderíamos estudar para lembramos da força da linguagem metafórica. Essa metaforização da linguagem criou pseudoproblemas, o que fez com que Heidegger entendesse a filosofia tradicional como uma poesia desgastada, por isso que, para os pragmatistas, como Dewey, Peirce e James, a filosofia é uma pseudociência, e, para o filósofo, resta o papel de reformular a trama de crenças e contribuir com a liberdade social. Heidegger, com o mesmo intento, quebra com o vocabulário arcaico da tradição, mas recria outro. Afinal, ele é filósofo ou poeta? Antes de terminar minha peregrinação, tenho mais um questionamento: como separar a filosofia da literatura? Derrida não faz essa distinção, pois acredita que há uma textualidade genérica e indiferenciada entre literatura e filosofia. Ele nos faz ver o filósofo enquanto literato e o literato enquanto filósofo, com o intuito de reler a filosofia ocidental. Rorty complementa esse pensamento afirmando que a distinção entre literal e metafórico não tem efeito, a não ser para caracterizar o contraste, pois a linguagem é um jogo de diferenças. Seria interessante voltar a Tales de Mileto e reler a filosofia com esse novo olhar. Farei isso, porque gosto de ler literatura. Ainda no âmbito da linguagem, uma das pretensões do romance A filosofia, ou como diz o personagem Derrida, “o sonho no coração da filosofia”, era criar um vocabulário que não exigisse interpretações, uma única metáfora verdadeira. Mas o que se pode ver, além desse sonho, é o que o protagonista Rorty diz ser a distinção entre a “linguagem do erro e a linguagem da verdade, a linguagem da aparência e a linguagem da realidade”, isto é, a linguagem dos não-dualistas e a dos dualistas. Estes têm a intenção de legitimar uma linguagem inteligível, adequada para colocar a filosofia num lugar privilegiado. A intenção da filosofia, da literatura não poderia ser tornar-se cânone, pois cânones têm paradigmas fixos, políticos e rançosos. Machado de Assis sim, mas só Machado não! Desse modo, a filosofia colocaria, segundo Rorty, em seus devidos lugares, os vocabulários de todas as disciplinas. Contudo, o vocabulário da filosofia não se mostrou adequado, isso por que converteram a metafísica em filosofia da linguagem, esta que deu continuidade à tradição que buscava incessantemente a verdade. Voltamos aos socráticos. Seguindo esses pensamentos de Rorty e Derrida, podemos ver a abertura para a literatura. A indecidibilidade, por exemplo, é o grande tema de Derrida (1973). Ele mostra que todo texto tem lacunas, espaços que possibilitam uma leitura daquilo que está ausente e presente, ao mesmo tempo, de maneira que o texto se esgarça e a leitura se dá de forma aporética. Ah! A poesia! Rorty (1999) aponta que a filosofia inventa problemas, tenta resolvêlos e acaba tomando caráter de literatura. Continuo gostando de ler poemas! Em se tratando de função da filosofia e o caminho que ela deve tomar, utilizando retórica e não lógica, imagens e não argumentos, Derrida fez o trabalho de ler vários textos e escrever vários textos ao mesmo tempo, com o intuito de fazer filosofia-literária ou literaturafilosófica, como aponta Rorty. A escrita de Derrida é um jogo de efeitos de palavras, cuja finalidade é de entrecruzar o mundo ideal com o mundo de sonhos. Posso chamar isso de literatura? Segundo Rorty, para esse acasalamento acontecer, não é necessário escrever vários textos simultaneamente, basta apenas ler vários textos ao mesmo tempo; ainda para ele, Derrida é um metafísico que tentou criar um novo vocabulário para escapar da tradição clássica, criando uma estratégia geral de desconstrução, como fez ao utilizar o vocábulo différance não o concebendo nem como palavra, nem como conceito. Assim como Derrida cai em suas próprias armadilhas, Heidegger não desconstruiu a história da filosofia, mas a encapsulou ainda mais, e o que fez Derrida foi 7 narrar a tradição da metafísica de modo original. Diferentemente de Rorty, Derrida vê a filosofia como modelo para todos os outros gêneros. Posso incluir, portanto, a literatura! As palavras que se tornam conceitos, para Rorty, são apenas modos de falar, e: [...] conceitos como causalidade, originalidade, inteligibilidade, literalidade e similares não são mais perigosos, nem suicidas, do que crepúsculo ou corvos. Não é sua culpa que em outro país, já muito distante no tempo, se acreditava que eles possuíam poderes mágicos. (RORTY, 1999, p. 142). Até agora pensei: “libertar-se-á nunca mais13” da tradição filosófica, mas se relermos a filosofia livres do pensamento dualista e como mais um gênero literário, como propõe Rorty (1999), provavelmente conseguiremos tirar Platão das costas. Para Derrida, assim como o discurso filosófico é inevitável, o discurso logocêntrico também o é. Dessa maneira, como a figura de deus significa o pai de todos, o discurso filosófico logocêntrico se coloca como autoridade para os outros gêneros, pensamento este que inclui também Heidegger. Depois de tanto andar, ainda me pergunto: o que é um problema real, se até então todos foram inventados? Para Rorty, um verdadeiro problema é que, mesmo dentro do campo filosófico, não há diálogo entre os filósofos. Por estarem divididos em não-analíticos e analíticos etc., discutem sobre coisas diferentes, como já foi visto, ou melhor, confrontam-se. Os analíticos consideram a metáfora como abstração da realidade, e os não-analíticos como “via de escape da ilusão de que há uma tal realidade” (Rorty, 1999, p.37). Com essa passagem meteórica pela filosofia, concluo, provisoriamente, que, até aqui, nesse meu passeio com óculos ainda muito turvos, a filosofia detentora de todo o conhecimento, que pretendia dar conta das questões sobre a constituição do universo, foi deixada de lado pelas ciências “autorizadas” para essa tarefa. Com a divisão das várias ciências, a filosofia do ser é vencida pela ciência psicologista de Freud, de James. Sem mais campo, a filosofia ataca a linguagem, em que várias áreas especializam-se. O que resta, portanto, para a ciência filosofia? Qual seu método, qual seu objeto? O que Rorty aponta é para uma centralidade não privilegiada para a filosofia, mas um lugar em que o diálogo entre as várias áreas de saber se abra para “a grande conversação”, como ele mesmo diz, a fim de trazer benefícios para a humanidade. Preciso, nesse momento, retomar algumas das minhas crenças e me posicionar, rapidamente, quanto a essa indiferenciação entre filosofia e literatura: até consigo ler a filosofia como um gênero de ficção, mas chegar ao ponto de concebê-la como literatura, creio que, para me encontrar, caso seja necessário, preciso sair mais de casa e me perder por aí. Enfim, no desfecho de toda essa história, nosso herói, Richard Rorty, abandonou tudo e foi trabalhar num departamento de literatura. Agora posso voltar a ler meus poemas! REFERÊNCIAS ALENCAR, José de. Lucíola. 27. ed. São Paulo: Ática, 2001. ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. Rio de Janeiro: Record, 2003. ANJOS, Augusto dos; PAES, José Paulo (Org.). Os melhores poemas de Augusto dos Anjos. São Paulo: Global, 1994. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BLAKE, William. O matrimônio do céu e do inferno. 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