A origem da Democracia

Propaganda
A origem da democracia
Prof. João Borba
1. O que significa a palavra “sofista”
É difícil para nós, nos dias de hoje, conhecer bem o pensamento dos sofistas. Eles
não formavam um grupo de filósofos com as mesmas idéias. Cada um tinha sua filosofia. Mas
eram todos mais ou menos de uma mesma época, viveram na Grécia antiga uns cinco séculos
e meio antes de Cristo, aproximadamente na mesma época dos filósofos Sócrates e Platão
(que eram jovens quando os sofistas mais famosos e importantes já estavam velhos ou
começando a envelhecer). Havia toda uma maneira de pensar no mundo e na vida, toda uma
cultura, todo um modo de ser e de se fazer as coisas, que era típico de um grego dessa época,
e os sofistas defendiam essa cultura. Por isso procuraram organizar esse modo de pensar
típico dos gregos antigos e construiram teorias a respeito. Não foi algo que fizeram
inconscientemente porque estavam “condicionados” pelo modo de pensar da sua época:
sabiam exatamente o que estavam fazendo, valorizavam muito aquela cultura e achavam
importante construir teorias baseadas nesse modo de pensar, que fossem uma espécie de
organização racional desse modo de pensar. Por isso, apesar de serem teorias bastante
diferentes umas das outras, era possível perceber entre as filosofias dos sofistas muitos pontos
em comum, e a melhor maneira de entender os sofistas é entender essa época em que eles
viveram. O ponto mais importante, nesse sentido, é que os gregos dessa época tinham
inventado o que hoje chamamos de democracia.
Havia uma cidade grega, a mais rica, a mais poderosa e a mais influente de todas,
que tinha muitas colônias sob seu domínio, e que se organizava segundo esse novo sistema
político chamado demokratía (que significa poder do povo): era a cidade de Atenas. Os
sofistas mais importantes (Protágoras, da cidade de Abdera e Górgias, da cidade de Leontini)
defendiam a demokratía, e em vários momentos diferentes de suas vidas foram viver em
Atenas, apesar de viajarem bastante — o que era um hábito muito comum entre os sofistas,
que gostavam de conhecer outras culturas. Muitos outros grandes sofistas seguiram o mesmo
caminho. Embora nem todos os filósofos sofistas fossem completamente democratas, essa era
a tendência geral entre eles, e mesmo os menos democráticos construíram suas filosofias
principalmente a partir de coisas que valorizavam na democracia ateniense.
A Filosofia, nesse período, era coisa recente, os avós ou bisavós das pessoas dessa
época poderiam ter conhecido pessoalmente os primeiros sábios que começaram a dizer que
não eram “sábios” e sim “filósofos”. E essa idéia de diferenciar os “sábios” dos “filósofos”
ainda não era uma coisa muito difundida. Então, o que precisamos compreender em primeiro
lugar, é que a palavra “sofista” (na verdade sophistés), queria dizer “sábio”, mas esses sábios
que hoje dizemos que eram os “sofistas”, pelo tipo de sabedoria que tinham e que ensinavam,
podem ser perfeitamente considerados como filósofos — apesar de Platão, que era inimigo
deles, ter feito tudo o que podia para deixá-los de fora dessa classificação, como se a
sabedoria deles fosse alguma coisa “inferior” à sabedoria dos “verdadeiros” filósofos.
Conhecemos pouco dos sofistas. Em primeiro lugar, porque, com
exceção de um sofista tardio, Isócrates, de quem temos as obras, não possuímos
senão fragmentos dos dois principais sofistas: Protágoras de Abdera e Górgias de
Leontini. Em segundo, porque os testemunhos recolhidos pela doxografia foram
escritos por seus inimigos — Tucídides, Aristófanes, Xenofonte, Platão e
Aristóteles —, que nos deixaram relatos altamente desfavoráveis nos quais o
sofista aparece como impostor, mentiroso e demagogo. Esses qualificativos
acompanharam os sofistas durante séculos e a palavra sofista era empregada
sempre com sentido pejorativo. (CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da
filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002.)
Nos dias de hoje, apesar de um grande preconceito que costuma circular em torno da
noção de teoria, quando falamos em “sabedoria” pensamos normalmente em sabedoria teórica
ou contemplativa (de quem contempla, observa, as coisas, e então as compreende). Para os
gregos antigos de sete séculos antes de Cristo, da época em que nasceu a Filosofia, essa
separação que fazemos hoje entre teoria e prática não existia. Para eles, a palavra sophía —
que significa sabedoria — no início não significava somente uma sabedoria de tipo teórico ou
contemplativo. A sabedoria do sophós ou sophistés, que é aquele que tem sophía, mais do que
teórica e contemplativa, era ligada ao como fazer as coisas: não deixava de se apoiar em
conhecimentos de tipo teórico e contemplativo, mas era principalmente e muito mais do que
isso uma sabedoria prática, a sabedoria de quem tem muita tékhne (técnica) em uma atividade
ou ofício. E essa maneira de pensar foi se aprofundando cada vez mais, até a época de
Sócrates e Platão, cinco séculos antes de Cristo.
Mas a palavra tékhne, de onde vem o nosso termo “técnica”, não tinha o mesmo
sentido que tem hoje, porque a imagem que os gregos antigos tinham da “técnica” era aquele
saber-fazer de um artesão, que ao mesmo tempo é um saber-fazer técnico, que segue certas
regras e práticas que podem ser treina, e um saber-fazer personalizado como o de um artista,
que faz suas obras de arte com alta qualidade e com um estilo pessoal que é só dele. Dominar
uma tékhne era o que hoje chamaríamos de dominar “a arte” de fazer alguma coisa. Essas
duas noções, de arte e técnica, não eram separadas como são hoje.
A tékhne era a habilidade de realizar uma atividade de acordo com regras que
ordenavam as coisas que se aprendia por experiência, evitando o acaso, e as atividades que
eram realizadas assim (com tékhne), eram chamadas de poíesis — que é de onde vem a nossa
palavra “poesia”. A palavra poíeses vinha do verbo póien, que quer dizer ação direcionada
para a criação de um objeto exterior ao a quem está agindo. A finalidade da tékhne está em
realizar bem esse produto da poíesis, ou seja, fabricar, produzir, um bom objeto. E a imagem
que tinham de um bom objeto era a de algo útil e bonito feito por um excelente artesão. A
poíesis não era criar algo do nada, mas aprender a dominar o comportamento de alguma coisa
da natureza — por exemplo o modo como a madeira se comporta desde que ainda é arvore até
o momento em que a cortamos, lixamos, polimos etc. — para então criar algo com ela
levando tudo isso em consideração, e algo que fosse de altíssimo nível de qualidade. Não quer
dizer que estivessem pensando só em “objetos” ou “coisas” produzidas pelas pessoas, porque
também podiam estar falando do que hoje chamamos de serviços — por exemplo, um bom
médico não produzia exatamente um objeto, no sentido de “coisa” material que damos hoje ao
termo “objeto”. Podemos dizer que o “bom objeto” produzido pelo médico era a saúde do
paciente. De qualquer modo, tudo era pensado a partir desse modelo que é, de certa maneira,
parecido com o do trabalho artesanal de alto nível.
As palavras sophós e sophistés, de onde vem o termo “sofistas”, eram sinônimos,
queriam dizer a mesma coisa. Mas os gregos costumavam usar sophós para indicar que a
pessoa podia ensinar ou transmitir uma sophía, porque dominava esses conhecimentos
poéticos (de poíesis); e costumavam usar sophistés para indicar que essa pessoa podia
praticar essa sophia, também porque dominava esses conhecimentos poéticos, ou seja, essa
tékhne ou habilidade de produzir um bom objeto (ou um bom resultado). Mas estavam falando
sempre da mesma pessoa: quem podia ensinar bem algo era quem saberia praticar bem esse
algo, e quem podia praticar bem algo era quem saberia ensinar bem esse algo.
As pessoas que os gregos antigos consideravam como “sábios”, eram chamadas às
vezes de sophós, às vezes de sophistés, dependendo da situação. Sócrates foi o primeiro
grande questionador da cultura e do modo de pensar daquela época, por isso ficou conhecido
como o maior crítico dos sofistas. Ele foi o primeiro a desconfiar daquele modo de pensar que
era tão valorizado, e a duvidar de certas idéias que todos defendiam como se fossem as
melhores ou as mais verdadeiras. Não deixava de participar também da valorização geral da
cultura grega, mas começou além disso a apontar grandes falhas e pontos fracos naquele
modo de pensar, e não só ou principalmente os pontos positivos, como os outros (os sofistas
em geral) costumavam fazer. E a filosofia de Platão, que foi aluno de Sócrates, foi a primeira
grande ruptura com aquele modo de pensar típico dos gregos da época, e que era valorizado e
organizado em teorias pelos “sofistas” da época. Platão propôs realmente uma outra forma de
pensar.
De qualquer modo, tanto Platão e Sócrates quanto os filósofos que ficaram
conhecidos como “Sofistas”, estavam todos preocupados com fazer as coisas da melhor
maneira. Discordavam quando se tratava de decidir o que era a melhor maneira de se fazer as
coisas. Havia na Grécia antiga uma grande valorização dessa idéia de se fazer tudo da melhor
maneira possível. O sophós ou sophistés, ou seja, aquele que dominava alguma tékhne — por
exemplo a tékhne de como pensar e argumentar para defender as suas opiniões, que era
considerada uma tékhne especialmente importante — era sempre um sábio muito valorizado,
e todos que se dispunham a realizar a mesma atividade procuravam imitar o seu exemplo. Os
gregos antigos davam muita importância aos bons exemplos, e para entender até que ponto
levavam isso tudo, é importante conhecermos uma noção que estava sempre presente no
pensamento de qualquer grego típico daquela época: a noção de areté.
2. A noção de areté
Para os gregos antigos da época dos filósofos sofistas, havia um ideal da
comunidade e do indivíduo como mutuamente responsáveis um pelo outro, cada indivíduo
procurando servir de modelo de comportamento e normas vida para toda a comunidade, e a
comunidade procurando apresentar modelos de comportamento e normas de vida para seus
indivíduos. Indivíduo e comunidade estavam intimamente ligados, a comunidade interessada
e atuante na formação de cada indivíduo e cada indivíduo interessado e atuante na formação
da comunidade, o ser humano era visto como racional e político (o que hoje chamamos de
“politizado”, ou “cidadão ativo”, que exerce sua cidadania, mas com um sentido muito mais
forte de participação nos assuntos da pólis, que significa cidade), além disso, os seres
humanos eram considerados capazes de agir segundo fins e valores que carregam uma certa
idéia do que seria a excelência humana, o máximo a ser atingido por alguém em sua formação
enquanto ser humano, em todos os sentidos. Chamavam essa excelência de areté, e é
importante frisarmos bem que essa areté era algo que tinha um sentido político muito forte.
Era o modo como a comunidade se mantinha firme e integrada.
A comunidade procurava educar e formar integralmente os seus membros para que
eles atingissem a areté. E todos participavam na discussão e composição da imagem de como
deveria ser a areté. Todos se reconheciam como parte dela, sentiam-se responsáveis por ela e
realizadores dos valores que ela apontava.
Esse processo de formação cultural e educacional de todos pela atuação de cada um
e de cada um por todos, para atingirem a areté, era o que o famoso historiador Werner Jaeger
chamou de paidéia grega — usando um termo dos próprios gregos. Paidéia significa educar,
instruir, formar, dar cultura, ensinar os valores, os ofícios, as técnicas, transmitir idéias e
valores para formar o espírito e o caráter, formar uma pessoa para viver um gênero de vida
etc. E muitas vezes a palavra era associada pelos gregos à educação das crianças. Mas na
Grécia antiga, essa formação não era só para as crianças, e sim para todos, e praticada por
todos, constantemente. Cada pessoa, cada grupo e o conjunto todo da comunidade, procurava
examinar com muito senso crítico e então selecionar os modelos de vida e de comportamento
que pareciam os melhores, os mais propícios para se atingir a excelência, e se fazia uma
constante propaganda das atitudes e comportamentos mais construtivos e valorosos nesse
sentido, ignorando e deixando de lado atitudes destrutivas e prejudiciais, para serem
esquecidas.
Agora uma pergunta é crucial: isso tudo que acaba de ser descrito era o modo como
os gregos em geral enxergavam a si mesmos, era o modo como viam a sua própria cultura.
Mas será mesmo que a areté e todo esse processo de educação natural dos gregos era levado
até o fundo sem colocar questões de interesse estritamente pessoal acima da verdadeira areté?
Quando cada pessoa ou grupo social propunha um modelo de vida ou de comportamento para
as outras pessoas e dizia que esse era o “modelo ideal”, será que realmente faziam isso sempre
com senso crítico, e será que não propunham muitas vezes como se fosse “o melhor” apenas
um modelo de vida e de comportamento que era favorável a eles próprios e aos seus interesses
pessoais, e os outros “que se lixassem”?
Certamente as pessoas não eram sempre assim tão dedicadas à areté, apesar de quase
todo mundo — ou pelo menos todo mundo que concordava com a democracia — concordar,
na época, que a areté compreendida deste modo era um bom ideal a ser valorizado. Se não
fosse assim, se não houvesse gente que não se importava (ou que não concordava) com esses
valores, talvez não tivessem surgido os filósofos “sofistas”, porque uma de suas principais
preocupações, uma de suas principais lutas, era justamente para que as pessoas procurassem a
areté nesse sentido de participação política, de todos e cada um na vida de cada um e de
todos. Havia todo um movimento político e cultural — ligado ao movimento democrático —
de valorização disso. E os filósofos sofistas participavam desse movimento geral, no qual
costumavam desempenhar um papel muito importante, instigando as pessoas a não ficarem
nunca indiferentes umas em relação aos problemas das outras e aos problemas da comunidade
em geral. E isso funcionava bastante, pelo menos incomparavelmente muito mais do que
conseguimos imaginar observando como vivem as pessoas nos dias de hoje.
Em geral, os gregos de Atenas e a maioria dos sofistas consideravam essa forma de
organização política (a demokratía, ou poder do povo) como uma das mais importantes
invenções da História. De certo modo, a consideravam como algo capaz de transformar o
mundo, algo como a descoberta do fogo ou a invenção da roda. Viam a demokratía como algo
ligado à capacidade humana de superar a natureza e construir o seu próprio ambiente através
do trabalho, e de cultivar esse ambiente construído para o seu bem-estar, organizando as suas
atividades profissionais de uma maneira que fosse justa para todos ou pelo menos para a
maioria, para que os conflitos, que são naturais entre as pessoas (porque elas são diferentes),
não prejudicassem tudo isso, e todos pudessem continuar vivendo tão bem quanto possível.
Mas havia também uma preocupação que ía muito além da mera acomodação das pessoas de
maneira a evitar os conflitos e garantir uma vida razoavelmente boa para todos ou para a
maioria: a preocupação com a areté. Organizar os conflitos e garantir a boa vida, para os
gregos daquela época, era considerado muito pouco, era considerado, por assim dizer, o
mínimo a ser atingido.
Para atingir esse mínimo, e ainda mais para coseguir chegar à areté, era fundamental
que a população tivesse acesso de algum modo a uma boa educação, porque era preciso que
as pessoas fossem capazes de defender os seus pontos de vista argumentando umas contra as
outras, e não se agredindo ou partindo para a violência — que era um perigo para a
democracia. Por essa razão, o ensino era considerado a base de sustentação de tudo isso. E
quem ensinava algo era quem tinha sophia naquele assunto, ou seja, o sophós ou sophistés.
Nem todas as cidades gregas concordavam com esse modo de pensar, que era
principalmente o de Atenas, e havia até guerras entre elas. A maior inimiga de Atenas era a
cidade de Esparta, que era uma espécie de ditadura militar. Mas para os gregos que eram
cidadãos de Atenas ou das cidades mais influenciadas por Atenas (que não eram poucas), a
demokratía chegava a ser uma das coisas que faziam com que os seres humanos fossem
realmente diferentes dos outros animais, por isso precisava ser defendida a todo custo. Existe
nisso tudo um detalhe que para nós, nos dias de hoje, é bastante interessante: o que eles
chamavam de democracia era algo muito mais profundo e radical do que isso que chamamos
de “democracia” hoje: era uma democracia direta, e não representativa. Isso quer dizer que
tudo funcionava na base do plebiscito. As pessoas votavam diretamente no que devia ou não
devia ser feito, e os “governantes” apenas administravam a realização do que ia sendo
decidido pelos plebiscitos populares.
3. Como funcionava a demokratía, que era tão valorizada pelos filósofos
“sofistas”
Existem estudiosos que chamam a atenção para o fato de que, na demokratía dos
gregos antigos, mulheres e escravos não tinham direito de voto. Isso quer dizer que podemos
questionar o quanto aquilo era realmente uma “democracia” como as de hoje — e eles têm
razão, mas só quanto às mulheres, porque os escravos eram escravos de guerra, portanto
estrangeiros de países inimigos, e a verdade é que seria absurdo colocá-los para decidirem o
destino de Atenas. Por outro lado, essas coisas ruins costumam ser lembradas justamente por
aqueles que não gostam da idéia de uma democracia direta, e que procuram mostrar que a
democracia direta só era possível naquela época justamente por causa desses escravos, que
seriam uma maioria trabalhadora explorada pelos mais ricos e vivendo sem direitos políticos:
como os cidadãos livres (e ricos) eram poucos, e eram pessoas que não precisavam trabalhar
(já que os escravos trabalhavam por elas), tinham tempo e facilidade de se organizar e se
dedicar a ficar discutindo as questões políticas, coisa que hoje não seria possível.
O problema é que isso é completamente falso. Em primeiro lugar porque, ao
contrário do que se imagina, os escravos não eram tantos, e a população livre não era rica:
era gente que trabalhava sim, muito, e o trabalho bem-feito, para eles, costumava ser motivo
de orgulho. Além disso, mesmo sem as mulheres e os escravos, a quantidade de gente que
participava efetivamente dessas assembléias, onde as decisões eram votadas toda semana,
variava entre aproximadamente 12.000 e 40.000 pessoas, o que não é assim tão pouca gente
— e não é tão difícil imaginar como dividir as cidades de hoje em “distritos” com uma
quantidade de população próxima a essa, que distritos que poderiam tomar muitas decisões
por plebiscito. Além disso, na Grécia antiga não existiam, como hoje, recursos como a
Internet, a TV e os jornais para ajudarem na comunicação e a organização de toda essa gente,
e os tais “distritos”, com esses recursos de hoje, talvez já não precisassem ser assim tão
pequenos para conseguirem se organizar. A participação nas assembléias da demokratía direta
dos gregos não era obrigatória, e geralmente oscilava em torno daquele número menor de
participantes (por volta de 12.000), mas havia a cada ano uma média de 40 assembléias em
que as decisões eram mais importantes, e nessas ocasiões, a participação costumava ser
maciça (perto daqueles 40.000).
Existe ainda um outro ponto pouco observado pela maioria dos historiadores: as
decisões democráticas não aconteciam só ali, no momento do voto — como aliás na verdade
nunca aconteceram, em nenhuma forma de democracia, desde aquela época até os dias de
hoje. Não é só no governo que as decisões políticas acontecem em uma democracia. Muitas
dessas decisões costumam ir e vir entre o governo e diferentes grupos organizados da
sociedade, que fazem pressão em um sentido ou em outro. A coisa vai acontecendo como uma
espécie de negociação entre os governantes e as diferentes forças da sociedade que se
organizam para fazer essas pressões, até que finalmente a decisão acontece. Hoje, é facil
acompanhar pelos jornais como esse tipo de coisa vai ocorrendo. Mas a decisão final, a última
palavra, costuma ser sempre do governante — e na cidade de Atenas, na Grécia antiga, não
era assim.
As questões a serem votadas eram divulgadas com antecedência, e, como em toda
democracia, nem sempre partiam dos governantes: muitas vezes surgiam de grupos que se
formavam livremente no meio da própria população, e que começavam a fazer campanha para
que um certo problema fosse resolvido ou uma certa idéia fosse posta em prática. Os cidadãos
se organizavam e levam isso não só para para os administradores públicos (isto é, os
governantes), mas também e principalmente para o resto da população, porque era a voz da
maioria o que iria pesar na decisão final. Isso quer dizer que, se houvesse muita gente
interessada na questão, seja a favor, seja contra aquilo que o tal grupo queria, os órgãos
públicos começavam a organizar o processo de decisão. As diferentes soluções possíveis eram
esclarecidas por técnicos com posicionamentos contrários que trabalhavam na administração
pública, e essas possíveis soluções já íam passando de boca em boca pela população antes do
dia da votação, e costumavam ir sendo discutidas em grupos que se formavam em uma grande
praça central da cidade de Atenas, que se chamava Ágora.
Nessas discussões públicas, que rolavam livremente em plena Ágora, participavam
na prática, ao longo da semana, muito mais dos que os 40.000 cidadãos livres e com direito de
voto, e é possível que as opiniões que os homens levavam para serem discutidas muitas vezes
já viessem influenciadas inclusive pela opinião de suas mulheres e crianças — embora não
devamos imaginar que isso acontecesse sempre, e menos ainda que isso acontecesse muito às
claras, porque era uma sociedade que hoje consideraríamos extremamente “machista”, onde
as mulheres costumavam ser consideradas como seres “inferiores”. Depois, no dia da vitação,
os técnicos expunham claramente e em detalhes para os votantes as diferentes alternativas, e
era feito um debate, onde os grupos que defendiam cada uma dessas alternativas
“empurravam” para falar em nome deles alguém que eles achassem que argumentava e falava
muito bem, ou seja, um orador. Esses oradores debatiam a questão cada um tentando puxar
mais votos para o lado do seu grupo, e depois todos votavam.
É importante observar que, apesar dessa preconceituosa exclusão das mulheres na
parte mais “oficial” das decisões, não havia nada de necessário para a demokratía grega nesse
“machismo”, e ela poderia ter funcionado plena e perfeitamente também com a participação
das mulheres. Aliás, o principal e o mais famoso dos administradores públicos da democratía,
Péricles, que foi mantido na liderança por toda a sua vida, foi um raro e importante exemplo
contra essa exclusão das mulheres, como veremos a seguir.
4. Péricles, o grande sophistés da política demorática (que não era filósofo, mas
seguia as idéias de Protágoras, o maior sophistés da Filosofia) ...e a história de uma
grande mulher que havia por detrás desse grande homem
Péricles, além de ser um dos maiores estrategistas militares da história, foi sempre
considerado um dos maiores sophistés de toda a Grécia, um sábio nas questões de política,
pois ninguém dominava melhor do que ele a “arte” de administrar os conflitos e as decisões
na democracia — por isso foi maintido pela população na administração pública (isto é, no
“governo”) por toda a sua vida, embora tenha passado por altos e baixos e, nos últimos anos,
tenha sido quase derrubado do poder. Se havia alguém que era um verdadeiro exemplo de
areté no sentido político defendido pelos filósofos sofistas, era esse homem. Ele era também
um sophistés no sentido que os gregos costumavam dar a esse termo, mas sua sophía não era
a de um filósofo, e nunca desenvolveu nenhuma teoria a respeito de nada. Péricles era acima
de tudo um político e de maneira nenhuma um filósofo. No entanto, era amigo e seguidor de
um outro sophistés, ou “sofista” que, esse sim, podia ser considerado um “filósofo”:
Protágoras. Na verdade, Péricles chegou a ser oficialmente aluno de Protágoras.
Protágoras pode ser considerado “filósofo” porque além de estar voltado para
questões práticas, como todo sophistés grego, foi mais a fundo nas suas reflexões a respeito
dessas práticas, e chegou a construir também (e debater com outros filósofos) teorias
extremamente bem-elaboradas e interessantes a respeito da política, da argumentação e da
persuasão, da psicologia da população, de como ocorre o conhecimento, e da noção de
“verdade”. Protágoras, aliás, foi um dos maiores e mais importantes de todos os filósofos
“sofistas” — talvez até o maior de todos eles — e chegou a ser convocado por Péricles para
fundar e organizar as primeiras leis de uma outra cidade democrática. Vamos falar da filosofia
de Protágoras mais adiante, mas falemos primeiro de Péricles, o homem que procurou pôr em
prática na política as idéias de Protágoras, ajudando a construir a demokratía grega de que
falamos no ponto anterior.
Já mencionamos que Péricles, além de ter sido durante toda a vida o maior dos
administradores públicos da democracia, ocupando nela o cargo mais importante, e de ter
feito isso sempre seguindo o modo de pensar do filósofo Protágoras, foi também um grande
exemplo contra a exclusão das mulheres na democracia. É importante entendermos de que
maneira ele deu esse exemplo, porque isso infelizmente não chegou a aliviar as coisas para as
mulheres em geral, pois foi um exemplo que pouca gente ousou imitar, mas acabou gerando
uma grande transformação em Atenas. O maior problema foi que Péricles escolheu valorizar
uma mulher que tinha, por assim dizer, um dom especial para escandalizar as pessoas. No
entanto, qualquer um que conhecesse essa mulher sentia-se forçado a dizer que Péricles tinha
razão, era uma mulher indiscutivelmente muito especial. Não só pela sua beleza, mas acima
de tudo pela sua personalidade, inteligência e capacidade política. A beleza física dela, no
entanto, tornou-se quase uma lenda. Para citarmos um caso que ficou famoso, um importante
escultor, contratado para fazer uma estátua da deusa Palas Atena, que era por assim dizer a
“padroeira” da cidade, quis fazer a deusa com a imagem mais linda que pudesse... e sem se
dar conta, acabou fazendo-a parecidíssima com essa mulher especial (e aliás um tanto
“escandalosamente” especial) de quem estamos falando, e que foi valorizada publicamente
por Péricles.
Péricles era casado quando conheceu essa mulher, e esse foi o primeiro dos
escândalos.
A esposa de Péricles, que se chamava Agarista, vinha de uma família muito rica e,
junto com os filhos, vivia cobrando que ele “metesse as mãos” nos cofres públicos para que
tivessem uma vida à altura da vida dos amigos mais ricos. Ela e os filhos reclamavam que
todos no governo faziam isso (havia muita corrupção), menos Péricles, que deveria fazer o
mesmo. Por isso sua família estava sempre em crise: Péricles se recusava a se aproveitar da
sua posição no governo para enriquecer, e embora não chegasse a ser nem um pouco pobre,
porque vinha de uma família razoavelmente endinheirada, fazia questão de manter uma vida
mais simples. Péricles era um homem obcecado pela democracia e pelo seu trabalho como
administrador público, daqueles que não fazem e não pensam em outra coisa na vida, senão
no trabalho. Achava que tinha uma missão, que era a de firmar a democracia para que ela
durasse para sempre.
Apesar de oficialmente ser mais um administrador do que realmente o chefe do
governo, uma vez que quem decidia tudo era o povo nas Assembléias, Péricles era também
uma pessoa muito carismática, um líder natural, e extremamente influente: todos que o
ouviam geralmente acabavam concordando que ele estava certo, ou não conseguiam achar um
bom argumento para contradizê-lo, e na maioria das vezes o povo em geral, que além disso
confiava nele e o via como uma espécie de herói, acabava votando no que ele achava o
melhor — embora nem sempre isso acontecesse. Algumas vezes os inimigos de Péricles
conseguiam manipular a população e derrubar uma alternativa defendida por ele, e outras
vezes também acontecia de a própria população simplesmente e realmente não aceitar uma
idéia dele, mas os registros históricos mostram que isso na prática era bastante raro.
Naquela época, na cidade de Atenas, havia alguns grupos religiosos bastante radicais
e muito fortes, que não gostavam muito de Péricles porque achavam que ele era “liberal”
demais. Esses religiosos tinham também uma imagem muito ruim de uma certa cidadezinha
chamada Mileto, porque era uma cidadezinha cheia de bares, casas de jogo, casas de
prostituição e, curiosamente, muitos poetas, artistas e filósofos — em suma, Mileto era uma
cidadezinha cheia de gente mais interessada em fazer e dizer coisas belas, inteligentes ou
prazeirosas do que em ir até os templos religiosos e prestar seriamente homenagem aos
deuses. Pois bem: um dia, uma moça extremamente bela (e que ficou muito famosa por sua
beleza), veio viajando sozinha de Mileto até Atenas, e chegou em plena praça — na Ágora,
onde um sábio famoso discutia política com um grupo de pessoas — vestida com roupas de
um tecido quase transparente. Em atenas, naquela época, moças sozinhas normalmente não
chegavam nem a pôr os pés na rua, e se fossem solteiras, não saíam de casa nem mesmo
acompanhadas, então pode-se imaginar a pequena multidão de pessoas curiosas ou
escandalizadas que foi se aglomerando em torno dela. A moça chamava-se Aspásia, e era filha
de um velho filósofo desconhecido da cidade de Mileto.
Como se não bastasse uma jovem e bela estrangeira chegar assim sozinha e tão à
vontade como se estivesse em casa (e ainda por cima vestida daquele modo), Aspásia foi até o
grupo com o qual aquele sábio discutia política e, para o espanto de todos, começou, sem a
menor cerimônia, a contradizer o que o grande sábio estava dizendo. O sábio começou a
responder a ela, porque o que ela dizia realmente fazia sentido, e então aquilo começou a virar
um debate: Aspásia, mulher, jovem, estrangeira, e vestida escandalosamente com roupas
transparentes, começou a a discutir política com o velho sábio de igual para igual, e de
maneira extremamente inteligente — na verdade, seus argumentos pareciam sempre tão bons,
que o tal sábio ficou completamente perdido tentando debater com ela, e aos poucos ia tendo
que lhe dar razão em cada coisa que ela dizia. A multidão começou a ficar admirada.
Péricles, como bom estrategista político que era, assim que percebeu uma pequena
multidão se formando ali na praça, tratou de ir ver o que estava acontecendo, porque alguma
questão política importante poderia estar sendo discutida ali, e algum grupo politicamente
forte poderia estar se formando. É claro que levou um susto quando viu o que estava
acontecendo, e entrou na discussão com a moça. Contam os relatos que, naquele encontro, os
dois pareciam ter esquecido de todos os outros ao redor, que começaram a concordar e de
repente estavam imaginando juntos uma porção de projetos políticos possíveis — enfim, ao
que tudo indica, amor à primeira vista. Péricles então, cercado por fofocas e falatórios e pelo
preconceito de todos, contra tudo e contra todos, e especialmente contra aqueles seus inimigos
religiosos, que estavam absolutamente escandalizados, abandonou sua mulher Agarista e seus
filhos, e foi viver com Aspásia. Passou a discutir todas as questões políticas sempre com ela, e
fazia isso abertamente, sem esconder de ninguém, a tal ponto que se pode dizer que, a partir
de então, passaram a governar juntos. Agarista e seus filhos tornaram-se inimigos políticos
perigosos, e mais tarde, quando Péricles já estava velho e tinha perdido quase toda a sua
influência política, tentaram jogar um processo contra ele, queriam condená-lo à morte, mas
não conseguiram. No julgamento, Péricles se defendeu brilhantemente e saiu vitorioso, como
sempre acontecia.
Aspásia teve uma importância muito grande no destino dos atenienses: sob
influência dela, e para o horror dos inimigos religiosos de Péricles, que não gostavam da
cidadezinha de Mileto, o grande administrador da democracia grega incentivou a vinda de
muitos filósofos e artistas para Atenas, não só de Mileto mas também de outras cidades.
Graças a isso, Atenas, que já era rica e militarmente poderosa, acabou se tornando
rapidamente o centro intelectual e cultural de toda a Grécia, a tal ponto que quem quisesse se
tornar um grande artista ou um grande filósofo só tinha uma saída: ir para Atenas para
aprender com os melhores do mundo, que desde o “governo de Aspásia” junto com Péricles,
estavam todos lá.
Também podemos imaginar que, desde a chegada de Aspásia, os sacerdotes, que já
tinham queixas contra a “liberalidade” de Péricles, passaram a irritar-se ainda mais contra ele.
Aspásia era uma estrangeira com costumes muito estranhos e que eles achavam realmente
muito duros de engolir. Por exemplo: promovia na casa de Péricles festas que se
transformavam em grandes orgias com trocas de casais, e sempre que descobria que Péricles
achava uma moça atraente, arranjava um jeito de trazer essa moça para uma noite com ele,
como uma espécie de “presente”. Pelo que se sabe, curiosamente, jamais houve qualquer
briga ou cena de ciúmes entre os dois, e cada um deles parecia colocar o outro sempre acima
de tudo e de todos, com uma única exceção: os dois consideravam a democracia e o povo
mais importantes do que eles próprios. O romance estranho e escandaloso dos dois irritou a
todos de todos os lados, e tiveram que contornar muitos problemas por causa disso, mas durou
até o fim de suas vidas.
(Temos aí, aliás, na história de Péricles e Aspásia, um caso ao mesmo tempo
atraente, constrangedor e bastante interessante para discussões de ética...)
5. Sócrates: inimigo político e amigo pessoal de Péricles
Os maiores adversários políticos de Péricles até aquele momento, os mais influentes
e que causavam mais problemas para ele, eram os sacerdotes, que tinham bastante influência
principalmente entre certos grupos da nobreza, um sapateiro muito radical chamado Cléon,
que conseguia sempre juntar uma pequena multidão de gente mais pobre contra as idéias de
Péricles, e um filósofo considerado muito “esquisito” que vivia como mendigo, e que se
chamava Sócrates — o mesmo famoso Sócrates que conhecemos, e que foi o mestre de
Platão.
É interessante notar a situação política de Sócrates em relação a Péricles: apesar de
serem adversários, os dois se admiravam — ou pelo menos Péricles admitia aberta e
francamente que era admirador de Sócrates, embora os dois nunca concordassem. Os
sacerdotes a certa altura articularam uma tramóia para fazer Sócrates ficar ainda mais famoso,
dando a entender que os deuses o consideravam mais sábio que Péricles — e de fato
conseguiram, Sócrates ficou famoso como “o homem mais sábio da Grécia”, e então, como
era inevitável, as pessoas começaram a compará-lo com Péricles. Os sacerdotes esperavam
transformar Sócrates em uma força política e depois apoiá-lo contra Péricles, que também
começou a tentar “cooptar” Sócrates para o seu lado. Mas para a surpresa de todos,
descobriram que Sócrates era imprevisível e impossível de manipular, e além de tudo, mais
“esquisito” do que se imaginava, porque se recusou a aceitar qualquer apoio político dos
sacerdotes ou de Péricles, simplesmente recusou-se a entrar para o governo de qualquer lado
que fosse, e continuou a fazer suas próprias críticas contra Péricles ignorando completamente
os sacerdotes.
Mais tarde, apesar de serem adversários políticos e de Sócrates ser o mais radical a
enfrentar e criticar Péricles publicamente (mais do que Cléon), Sócrates se tornou amigo de
Péricles e principalmente de Aspásia, com quem passou a ter muitas discussões filosóficas. Já
no final da vida de Péricles, quando ele começou a perder o poder e sua antiga mulher
Agarista começou a lançar todos contra ele, o sapateiro Cléon começou a ficar cada vez mais
poderoso, e aos poucos foi se aliando com os sacerdotes — fazendo o que Sócrates se recusou
a fazer. Tornou-se inimigo tanto de Péricles quanto de Sócrates. A certa altura, todos os
amigos de Péricles começaram a abandoná-lo com medo de Cléon. A “democracia” grega
estava começando a ficar diferente, mais agressiva, uma parte mais radical da população
começou a subir ao poder e havia muitos processos e muitas condenações à morte, mesmo de
heróis de guerra, como por exemplo um sobrinho e um filho adotivo de Péricles. Essas
pessoas eram condenadas às vezes com pretextos completamente absurdos — na verdade era
um modo de Cléon eliminar os seus inimigos políticos manipulando a raiva do povo contra os
mais ricos. O próprio Péricles passou por vários apuros desse tipo, mas sempre conseguiu se
defender. E quando já não tinha amigos, só duas pessoas continuaram ao seu lado, dando
algum apoio: Aspásia, e o amigo Sócrates.
Mas Sócrates era um amigo muito duro e agressivo: jamais deu uma mínima trégua
que fosse a Péricles em suas críticas, dizia que tudo isso que estava acontecendo no fundo era
culpa do próprio Péricles e do modo como administrava a democracia, porque não havia
apostado o suficiente na educação das pessoas, e agora elas eram manipuladas por qualquer
fanático. Então Péricles devia mesmo sofrer as conseqüências. Sócrates nunca deixou de dizer
isso nem a Péricles diretamente, nem a Aspásia, nem publicamente, para quem quer que
perguntasse o que pensava a respeito. Mesmo assim, esteve ao lado do casal até o fim, e
continuou amigo de Aspásia e dando apoio a ela mesmo depois da morte de Péricles por causa
de uma doença, quando ela ficou completamente sozinha, desprotegida e isolada contra a ira
dos sacerdotes, que a odiavam.
As críticas de Sócrates a Péricles, no fundo, eram críticas à filosofia de Protágoras,
que era a base teórica de todas as ações de Péricles no governo. O ponto central dessas críticas
já sabemos qual é: Sócrates dizia que Péricles não apostava o suficiente na educação dos
cidadãos para que eles soubessem realmente o que estavam fazendo quando tomavam suas
decisões políticas, e que isso os deixava muito “manipuláveis”.
Em outras palavras, Péricles colocava em primeiro lugar o que as pessoas
declaravam que era a opinião delas, e deixava que elas decidissem “livremente” com base
nisso, sem se importar se essas pessoas estavam realmente sendo críticas e pensando com as
suas próprias cabeças, ou se estavam na verdade sendo manipuladas por alguém mais esperto.
Na verdade o próprio Péricles era, como todo bom político, um mestre em manipular as
opiniões das pessoas — e aprendeu isso em suas aulas como aluno de Protágoras!
Vejamos um pouco desse debate entre Sócrates e o grande discípulo de Protágoras
que era Péricles. Se tentarmos imaginar uma discussão entre os dois, onde suas posições
acabassem ficando bem claras, talvez o resultado fosse mais ou menos o seguinte:
Sócrates diria que nem todas as opiniões eram iguais, porque alguns opinavam com
conhecimento de causa, sabendo o que estavam dizendo, e outros colocavam suas opiniões
sem nenhum fundamento, porque não entendiam do assunto sobre o qual estavam opinando,
mas como estavam vivendo em uma democracia, então achavam que suas opiniões tinham
que ser respeitadas mesmo que não tivessem o menor fundamento e que acabassem
prejudicando a vida de todos na cidade. Esses últimos, acabavam sendo facilmente
manipuláveis pelos mais espertos.
Péricles responderia talvez com o seguinte tipo de problema: quem é que vai decidir
quando uma opinião realmente “tem fundamento” e quando “não tem”? Qual é o fundamento
que alguém — como por exemplo Sócrates — pode ter para dizer quando uma outra pessoa
“tem bons fundamentos” para dizer o que diz ou “não tem” fundamentos? Para Péricles, o que
Sócrates estava realmente querendo era dizer que alguns sabem mais do que outros, e que
esses que sabem mais tem mais direito de governar do que aqueles que sabem menos — mas
então as pessoas não teriam direitos iguais, só aquelas pessoas que entendiam dos assuntos
que iam ser votados poderiam realmente votar e decidir as coisas, e adeus democracia!
E Sócrates retrucaria que o próprio Péricles era quem estava pondo em prática esse
“adeus à democracia”, porque na verdade o que acontecia era que ele — Péricles — que sabia
mais sobre política, estava dirigindo as coisas através da manipulação das opiniões da massa.
Ao invés disso, deveria ajudar as pessoas a aprenderem como pensar com as suas próprias
cabeças, tomando suas decisões criticamente. Sócrates dizia que não entendia de política, e
por isso recusou-se a entrar no poder com Péricles ou a disputar o poder contra Péricles
apoiado pelos sacerdotes. Dizia que era isso o que as pessoas deveriam fazer: aprender sobre
um assunto antes de se meter a tomar decisões a respeito, como um líder político precisava
fazer.
Péricles provavelmente responderia a esse tipo de exigência dizendo que era
justamente o que ele estava fazendo: fazia as pessoas praticarem a democracia para irem
aprendendo na prática.
Mas havia uma coisa a respeito de Sócrates que precisamos saber: se Péricles era um
sophistés da política, Sócrates, além de filósofo, era um sophistés da educação — em outras
palavras, Sócrates era um grande mestre na arte de educar as pessoas, era um excelente
professor, um verdadeiro artista da educação, e todos reconheciam isto. E segundo Sócrates, o
único modo de ajudar as pessoas a aprenderem a pensar era dialogar com elas diretamente, e
isso quer dizer com cada uma delas, uma por uma, fazendo perguntas a respeito das coisas e
deixando as pessoas procurarem as respostas sozinhas.
Segundo ele, não era possível ensinar as pessoas a pensarem com as suas próprias
cabeças se ficássemos apenas passando informações para elas e tentando manipulá-la para
que elas acreditassem nessas informações ou nas decisões que apoiamos nessas informações.
Em outras palavras, ninguém aprende política dentro das Assembléias da democracia, onde as
pessoas ouvem os assuntos serem debatidos e depois dão o seu voto. O verdadeiro educador
das almas deveria ser capaz de fazer as pessoas realmente pensarem por si próprias — ou
seja, elas deveriam falar, buscando respostas mais do que ouvir respostas prontas e sedutoras.
O verdadeiro educador deveria perguntar coisas a elas que as fizessem pensar, e não tentar
convencê-las a votar em uma idéia ou em outra.
Fazer isso, perguntar coisas que fizessem as pessoas pensarem, só era possível fora
do espaço da política oficial, ou seja, naquelas conversas de rua, ou na Ágora, antes das
Assembléias — e era exatamente o que Sócrates fazia o tempo todo, quando perambulava
como mendigo conversando com as pessoas sem nenhum compromisso com qualquer partido
ou com qualquer decisão política específica. Por isso não podia aceitasr entrar oficialmente
para a política ao lado de Péricles ou contra ele: qualquer uma dessas posições seria inútil
para um educador interessado em apenas fazer perguntas que levassem as pessoas a
pensarem. Esse tipo de comportamento puramente “educador” era impossível de ser praticado
dentro da política e dos espaços oficiais da política, porque como políticos, somos levados a
defender alguma posição, e mesmo quando tentamos informar as pessoas para que elas
possam decidir livremente, sempre que passamos uma informação a alguém já estamos de
alguma maneira interferindo no modo como essa pessoa chega a essas informações, e isso
quer dizer que indiretamente já estamos manipulando a pessoa a favor do nosso modo de ver
essas informações.
O que Péricles teria a responder a isso? Certamente diria que não é só uma questão
de educação, porque há muito mais coisas envolvidas nisso. Provavelmente faria, nesse
sentido, uma colocação muito prática e que poderia fazer Sócrates parecer politicamente
ingênuo: então devemos educar as pessoas uma a uma fazendo perguntas instigantes a elas...
certo, mas o que vamos fazer enquanto isso? Abandonar a democracia enquanto as pessoas
ainda não tiverem cabeça suficiente para pensarem por si próprias? Ou será que é possível, na
prática, parar tudo e começar do zero, deixar a cidade imóvel, sem tomar mais nenhuma
decisão, e ficar educando cabeça por cabeça até a população inteira estar realmente pronta
para a democracia?
O que é que aconteceria enquanto estivéssemos assim “parados”, apenas preparando
as cabeças para uma democracia no futuro? Se simplesmente “pararmos” com todas as
Assembléias e votações democráticas, mesmo assim a vida política, econômica, social, vai
continuar sem nós: decisões precisam ser tomadas, há inimigos de guerra que podem atacar a
qualquer momento, por exemplo; pragas ou problemas climáticos que podem afetar a colheita
e exigir decisões rápidas; doenças contagiosas que podem se tornar uma tragédia se não
tomarmos certas decisões na área da saúde etc. Quem vai decidir essas coisas enquanto as
cabeças democráticas ainda estiverem “se preparando”?
É verdade que a democracia no seu sentido mais profundo e verdadeiro possível não
acontece de uma hora para outra, e exige que as cabeças se preparem cada vez mais, mas essa
democracia, em qualquer nível de superficialidade ou de profundidade que a gente queira
imaginá-la, não acontece em um mar de rosas onde todos são favoráveis a ela. Existem
inimigos políticos da democracia que querem tomar o poder na menor chance que tiverem, e
eles podem ser perigosos. Se deixarmos a democracia escapar das nossas mãos agora, quem
garante que a conseguiremos de volta no futuro?
E Sócrates talvez respondesse: deixar escapar a democracia das nossas mãos
agora? Mas de que democracia você está falando, Péricles? E das mãos de quem ela pode
escapar? Das mãos do povo? Mas a democracia de agora não está nas mãos do povo, e se o
poder não é do povo, não há demo-kratós (democracia, “povo-poder”, ou poder nas mãos do
povo). O que temos é uma Péricles-kratós, o poder nas mãos de Péricles, e Péricles e outros
espertalhões manipulando o povo para fazer parecer que não é bem assim. Você pode até ser
sinceramente democrático, péricles, mas na prática não está sendo.
Deste ponto de vista, talvez Sócrates seja politicamente ingênuo, mas sabe que é,
conhece bem suas limitações, por isso se recusou a entrar para a política oficial. Por outro
lado, se Péricles acredita que manter uma pseudo- “democracia” nessas condições superficiais
vai educar as pessoas para uma verdadeira democracia, mais profunda, que viria no futuro, é
Péricles quem está sendo pedagogicamente ingênuo... só que parece não se dar conta disso.
Está sendo ingênuo do ponto de vista da educação, porque não percebe que por esse caminho
as pessoas não aprendem realmente a pensar, elas só aprendem que têm o direito de serem
sempre ouvidas a todo custo, independentemente de estarem erradas ou certas, porque estão
se acostumando cada vez mais com a idéia de que o certo e o errado não passa de uma questão
de conseguir os votos dos outros ou não.
Ou seja, como aprenderam que têm o direito de serem ouvidas não importa o que
digam, as pessoas vão exigir isso cada vez mais, mesmo quando estiverem erradas e suas
opiniões correrem o risco de levar a cidade a uma catástrofe — afinal, para que precisam
pensar cuidadodamente a respeito de suas opiniões, para que precisariam verificar se suas
opiniões estão erradas ou certas? Afinal, estamos numa democracia, não é? Então o que vale é
a opinião mais bem-votada, e nada mais... — nas últimas discussões entre os dois, Sócrates
tinha um argumento bastante forte: bastava olhar o que estava acontecendo: as pessoas
queriam ser ouvidas, e nada mais. Na verdade, através delas, era Cléon, o sapateiro quem
estava sendo ouvido, e conseguindo tudo o que queria. E o que ele queria? — Pelo visto,
acima de tudo queria sangue... muito sangue, especialmente o daqueles que diziam que ele
não deveria ser simplesmente ouvido pelas pessoas, e depois aclamado com votos, mas
avaliado criticamente por elas naquilo que dizia. Em suma, queira o sangue de gente como
Sócrates. Mas uma pessoa politicamente ingênua e inofensiva como Sócrates podia esperar.
Antes queria o sangue de Péricles... mas, curiosamente, não foi o próprio Péricles quem
ensinou o povo a sempre ouvi-lo e aclamá-lo com votos ao invés de avaliar criticamente o
que ele dizia? Pois bem... estão fazendo exatamente o que aprenderam com ele, só trocaram
de orador. Agora ouviam Cléon, o “raivoso”. E quando o senso crítico de Sócrates começasse
a parecer ameaçador, naturalmente iam querer o sangue dele também, de forma que, aos olhos
de Sócrates, a ingenuidade pedagógica de seu amigo Péricles havia comprometido todo o
futuro da democracia, e como se não bastasse, havia metido os dois em uma grande
enrascada... mas essa era a avaliação de Sócrates. É claro que Péricles não concordava.
E é mais ou menos assim que podemos imaginar que seguiam as discussões de
Sócrates e Péricles, com base nos registros históricos que chegaram até nós.
Bibliografia:
CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a
Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
(OBS.: Neste livro de Marilena Chaui, no Capítulo 3 - Os sofistas e Sócrates:
humano como tema e problema, principalmente das páginas até a 159, há esclarecimentos
sobre o nascimento da Democracia na cidade de Atenas, sobre o tempo do líder democrata
Péricles, sobre a noção de Areté, e sobre muitas palavras gregas importantes. A partir da pág.
159, esse capítulo começa a tratar mais diretamente das filosofias de Sócrates e dos Sofistas.)
FINLEY, Moses I. Democracia antiga e moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
(OBS.: Neste livro, principalmente nos capítulos 1 e 2, há informações mais
detalhadas sobre o modo como funcionava a democracia direta ateniense. No capítulo 3, uma
comparação entre os problemas dessa democracia direta dos gregos antigos e os problemas
das democracias de hoje, principalmente a dos Estados Unidos, porque o autor é de lá.)
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 1981.
(OBS.: Neste livro, no Capítulo IV – O universo espiritual da pólis – há explicações
importantes sobre o modo de pensar dos gregos antigos na época em que fundaram a
democracia. É um livro um pouco mais difícil, mas esse capítulo por outro lado é mais curto,
que os dos outros dois livros.)
OBS. GERAL: as informações que estão nesta apostila, com ajuda do filme de
roberto Rossellini abaixo comentado, são o suficiente para a avaliação em Temas Integrados.
Caso os alunos queiram além disto ler algum dos textos da bibliografia acima, isto será muito
bem vindo. Para que saibam quem são os autores: Marilena Chaui é uma importante
professora de filosofia da USP, de formação marxista, e que estuda principalmente filosofia
política; Finley é um excelente historiador, também de formação marxista, mas ligado a um
grupo mais recente de marxistas que valorizam o modo de pensar de cada época estudada,
mais do que Marx valorizava isso; Vernant é considerado um dos maiores e mais importantes,
senão o mais importante, historiador especializado na Grécia antiga, e foi professor de Finley.
O modo como a bibliografia está apresentada é um padrão universal usado mais ou
menos desse mesmo modo em todo o mundo. Portanto, quem for procurar esses livros — ou
qualquer outro — em uma biblioteca, vai encontrar mais facilmente o que procura se seguir
esse modelo: primeiro o sobrenome do autor; depois o primeiro nome; depois o nome do
livro; e por último, a cidade em que foi publicado, a editora e o ano da publicação. Assim:
SOBRENOME, Nome. Tílulo do livro. Cidade: Editora, Ano.
Outras duas referência úteis:
um filme e um excelente livro sobre a vida de Sócrates,
escrito de forma romanceada.
O filme é Sócrates, do diretor Roberto Rossellini, e retrata o final da vida desse
filósofo no período de decadência da democracia de Atenas. Sócrates, nessa época, já estava
velho. O filme começa com Atenas derrotada na guerra por cidade inimiga: Esparta, que como
símbolo da sua vitória, destrói os muros que protegiam Atenas, e que eram motivo de orgulho
dos atenienses. Um dos generais atenienses, um aristocrata chamado Alcebíades, havia
convencido o povo, na Assembléia democrática, a seguir uma estratégia de guerra contra os
espartanos que não deu certo. Os atenienses, tanto os mais pobres quanto os mais ricos,
tendiam a culpar Alcebíades por essa derrota na guerra. Como sabia disso, Alcebíades nem
voltou para Atenas, com medo de ser condenado à morte pela Assembléia do povo: ao invés
disso, se entregou aos espartanos e passou a trabalhar para eles como conselheiro de guerra.
Essa atitude de Alcebíades foi considerada uma traição ainda maior. Mas entre os atenienses
mais ricos, alguns ainda desculpavam Alcebíades e imaginavam que ele poderia escapar, e
voltar do exterior para salvar Atenas. Alcebíades, por acaso, era um ex-aluno de Sócrates, e
isso fez muita gente começar a culpar esse velho filósofo também.
O filme mostra, logo no começo, como os homens ricos de Atenas não estavam tão
incomodados com a derrota para os Espartanos. Alguns desses homens ricos se aliaram pouco
tempo depois às escondidas com os inimigos Espartanos, e subiram ao poder, estabelecendo o
que ficou conhecido como A tirania dos trinta. Esses trinta tiranos mandaram matar muita
gente que se opunha ao governo deles. Esse governo dos trinta tiranos, que foi odiado pelo
povo de Atenas, não durou muito. Logo os atenienses conseguiram expulsar os espartanos e
derrubar esses trinta do poder, para voltarem à democracia. Mas a democracia já não era mais
a mesma, porque o povo que ía para as Assembléias era um povo quase sempre irritado ou
apavorado. Entre aqueles trinta tiranos detestados e que haviam sido derrubados do poder,
havia alguns ex-alunos de Sócrates, e isso deixou mais gente ainda com raiva do filósofo,
achando que os ensinamentos dele é que tinham feito essas pessoas serem tão ruins.
Nesse período mostrado no filme, a melhor fase da democracia já havia passado. O
grande líder dessa melhor fase da democracia, Péricles, também já havia morrido. O filme não
fala nem sobre ele nem sobre sua segunda esposa, Aspásia. Na época mostrada no filme, o
líder mais poderoso era Cleón, que procurava manipular o povo provocando na multidão às
vezes o medo e às vezes o ódio, e que às vezes se aliava, às vezes brigava, com um lider
religioso fanático chamado Diopeithes. Diopeithes foi quem conseguiu fazer ser aceita uma
lei condenando à morte quem fosse ateu ou não venerasse pelo menos um dos deuses oficiais
da cidade. Mas o filme de também não fala de Cleón, e mostra só um pouco desse fanatismo
religioso liderado por Diopeithes que estava crescendo em Atenas. Por outro lado, mostra bem
claramente o modo como se organizava esse governo que, bem ou mal, ainda era uma
democracia direta, um governo direto do povo: mostra o sistema de votação, os julgamentos
etc. Mostra por exemplo que nos julgamentos os jurados eram escolhidos por sorteio entre
aqueles que quisessem participar, mostra que eram pagos para isso (embora o filme não dê
muita importância a esse fato e mostre como se fosse só um detalhe), e que logo depois de
serem sorteados, ainda passavam por um segundo sorteio para decidir se os deuses aceitavam
esses jurados ou não.
É importante lembrar que os gregos acreditavam em vários deuses, e cada um podia
preferir um deus diferente e venerá-lo mais do que venerava os outros, desde que fosse um
dos deuses oficiais da cidade, e não um deus estrangeiro. Além de serem muito religiosos, eles
não gostavam de quem não era. Não aceitavam que alguém fosse ateu ou venerasse deuses
estrangeiros. E desde a tal lei proposta por Diopeithes e aceita pela Assembléia popular, quem
não venerasse pelo menos algum dos deuses oficiais, era mesmo considerado criminoso, e
podia ser condenado à morte. A justificativa dessa lei era que, se algum dos deuses da cidade
se irritasse e não houvesse nenhum outro deus satisfeito para proteger a cidade contra o deus
irritado, todos os cidadão iam sofrer com essa ira divina. Então, muitos ateus ou pessoas com
crenças estranhas estavam sendo acusados também de terem culpa na derrota de Atenas para
os espartanos, como se os deuses, irritados, tivessem preferido ajudar Esparta.
Assim, além de ser odiado porque foi mestre de Alcebíades e de alguns dos tiranos
que subiram ao poder, Sócrates era odiado também porque havia uma raiva generalizada
contra os professores e intelectuais, que obrigavam as pessoas a pensarem e questionarem se
tudo devia mesmo ser explicado a partir dos deuses, como mandava a tradição, ou se havia
alguma outra explicação melhor e mais racional. As pessoas estavam tensas, irritadas ou
apavoradas demais para pensarem racionalmente, e estavam preferindo ouvir líderes políticos
e religiosos fanátivos e jogar a culpa de tudo nesses professores e intelectuais, que deviam
estar irritando os deuses.
Por isso havia também peças de teatro cômicas bem populares, que o povo adorava,
escritas contra os filósofos e professores, para ridicularizá-los. E uma das que ficaram mais
famosas foi uma peça de Aristófanes chamada As nuvens, escrita contra Sócrates mostrando
uma imagem muito distorcida dele, e confundindo-o com outros filósofos da época como se
todos no fundo fossem iguais, e merecessem algum castigo, porque o que diziam era um
monte de bobagens que podiam levar as pessoas a fazerem coisas erradas e a irritarem os
deuses. Na época mostrada no filme, as pessoas já não estavam dando mais muita atenção
para os ensinamentos de Sócrates. Não tinham mais paciência para ficar discutindo com ele
sobre a verdade, ou examinando se decisões que estavam tomando eram mesmo corretas ou
não: o que importava para as pessoas era se os deuses aprovavam sua decisão ou não. E
quando a maioria aceitava a proposta de alguém, o que acreditavam era que os deuses haviam
gostado daquela proposta e feito a multidão concordar com ela. Já não era mais uma boa
época para filósofos e professores na democracia grega.
Sócrates acabou condenado à morte por uma Assembléia popular, nessa democracia
decadente e já dominada por fanáticos. O acusador de Sócrates, um tal Meleto, nem conhecia
direito o seu pensamento, e o confundia com outros filósofos. Mas insistia que Sócrates não
venerava os deuses oficiais da cidade. Junto a esse Meleto, um homem rico chamado Anito
apoiou a acusação acrescentando que Sócrates estava “corrompendo os jovens”, porque os
seus ensinamentos estavam colocando esses jovens contra a democracia. Anito, como outros
atenienses das classes mais ricas, mesmo preferindo a democracia ao invés do domínio de
Esparta ou da tirania dos trinta, tirava bom proveito dessa nova fase em que o povo era menos
racional e mais manipulável, e não gostava muito da idéia de um filósofo como Sócrates sair
por aí ensinando qualquer um na rua a raciocinar sem cobrar nada por isso. O filme de
Roberto Rossellini mostra tudo isso bastante bem, e também mostra um pouco das idéias de
Sócrates e do modo como fazia perguntas forçando as pessoas a raciocinarem.
Mostra, além disso, que na democracia de Atenas, no final de um julgamento,
quando alguém era condenado à morte, o acusado ainda tinha o direito de se defender
propondo uma pena alternativa, mais leve, e muitas vezes isso era aceito pela Assembléia.
Mas Sócrates, ao invés disso, defendeu que deveria receber um prêmio por tantos anos de
serviços de educação prestados de graça, isso sim, e que a cidade deveria sustentá-lo para ele
poder continuar prestando esse bom serviço que estavam chamando de “corrupção dos
jovens”. Essa resposta chocou a todos, principalmente porque era óbvio que o único resultado
possível disto era mesmo que a decisão ficasse na condenação à morte. Parecia quase um
suicídio de Sócrates. O fato é que ele se recusava a contradizer aquilo que tinha feito a vida
toda, porque tinha vivido a vida fazendo justamente o que achava a melhor coisa que alguém
poderia fazer pela cidade de Atenas. E queria que esse seu último exemplo, de honra e de
defesa da verdade a todo custo, ainda servisse para ensinar alguma coisa mesmo para aqueles
que o estavam condenando à morte, para o próprio bem deles.
É um excelente filme, e ensina muito, sobre Sócrates e sobre o período de
decadência da democracia direta de Atenas. É talvez um pouco lento, um pouco falado
demais, pois muito do que se fala ali poderia, ao invés disso, ser mostrado, o que deixaria o
filme mais movimentado e atraente sem perder nada dos ensinamentos passados. Além disso,
mostra Sócrates um pouco sério demais, quando se sabe que era um sujeito agitado e
extremamente bem humorado, de um humor sarcástico e corrosivo, agressivo e às vezes até
grosseiro, que perturbava as pessoas. Mas é de qualquer modo um excelente filme para se
estudar o assunto.
O livro é Sócrates: sua vida pública e particular, escrito por René Kraus (Rio de
Janeiro: editora Vecchi, coleção Vidas Extraordinárias). Apesar de ser escrito como se fosse
um romance de ficção, o livro é quase completamente verídico e baseado em informações
muito cuidadosas sobre a época, sobre Péricles, Aspásia, Sócrates e todos os demais
personagens. O livro trata principalmente do período anterior ao tratado no filme de Roberto
Rossellini, isto é, do melhor período da democracia de Atenas, o período da liderança de
Péricles, em que apesar de muitos defeitos e da grave corrupção — contra a qual Péricles
lutava, mas sem sucesso — a cidade como um todo era rica e poderosa, e as Assembléias
populares tomavam suas decisões com mais debate e menos fanatismo. O livro segue a vida
de Sócrates desde a juventude até aquele mesmo período de decadência da democracia em
que ele acabou sendo condenado à morte. A principal ênfase está nos debates sobre o melhor
caminho para a democracia, entre Péricles de um lado, e Sócrates de outro, apoiado por
Aspásia.
É um belíssimo livro, na verdade bastante superior — em tudo — ao filme de
roberto Rossellini. Mas é um livro antigo, e bem difícil de ser encontrado, por isso o
recomendo apenas como um complemento extra, para quem se interessar e por acaso
conseguir encontrá-lo em alguma biblioteca ou em algum sebo.
Download