A origem da democracia Prof. João Borba 1. O que significa a palavra “sofista” É difícil para nós, nos dias de hoje, conhecer bem o pensamento dos sofistas. Eles não formavam um grupo de filósofos com as mesmas idéias. Cada um tinha sua filosofia. Mas eram todos mais ou menos de uma mesma época, viveram na Grécia antiga uns cinco séculos e meio antes de Cristo, aproximadamente na mesma época dos filósofos Sócrates e Platão (que eram jovens quando os sofistas mais famosos e importantes já estavam velhos ou começando a envelhecer). Havia toda uma maneira de pensar no mundo e na vida, toda uma cultura, todo um modo de ser e de se fazer as coisas, que era típico de um grego dessa época, e os sofistas defendiam essa cultura. Por isso procuraram organizar esse modo de pensar típico dos gregos antigos e construiram teorias a respeito. Não foi algo que fizeram inconscientemente porque estavam “condicionados” pelo modo de pensar da sua época: sabiam exatamente o que estavam fazendo, valorizavam muito aquela cultura e achavam importante construir teorias baseadas nesse modo de pensar, que fossem uma espécie de organização racional desse modo de pensar. Por isso, apesar de serem teorias bastante diferentes umas das outras, era possível perceber entre as filosofias dos sofistas muitos pontos em comum, e a melhor maneira de entender os sofistas é entender essa época em que eles viveram. O ponto mais importante, nesse sentido, é que os gregos dessa época tinham inventado o que hoje chamamos de democracia. Havia uma cidade grega, a mais rica, a mais poderosa e a mais influente de todas, que tinha muitas colônias sob seu domínio, e que se organizava segundo esse novo sistema político chamado demokratía (que significa poder do povo): era a cidade de Atenas. Os sofistas mais importantes (Protágoras, da cidade de Abdera e Górgias, da cidade de Leontini) defendiam a demokratía, e em vários momentos diferentes de suas vidas foram viver em Atenas, apesar de viajarem bastante — o que era um hábito muito comum entre os sofistas, que gostavam de conhecer outras culturas. Muitos outros grandes sofistas seguiram o mesmo caminho. Embora nem todos os filósofos sofistas fossem completamente democratas, essa era a tendência geral entre eles, e mesmo os menos democráticos construíram suas filosofias principalmente a partir de coisas que valorizavam na democracia ateniense. A Filosofia, nesse período, era coisa recente, os avós ou bisavós das pessoas dessa época poderiam ter conhecido pessoalmente os primeiros sábios que começaram a dizer que não eram “sábios” e sim “filósofos”. E essa idéia de diferenciar os “sábios” dos “filósofos” ainda não era uma coisa muito difundida. Então, o que precisamos compreender em primeiro lugar, é que a palavra “sofista” (na verdade sophistés), queria dizer “sábio”, mas esses sábios que hoje dizemos que eram os “sofistas”, pelo tipo de sabedoria que tinham e que ensinavam, podem ser perfeitamente considerados como filósofos — apesar de Platão, que era inimigo deles, ter feito tudo o que podia para deixá-los de fora dessa classificação, como se a sabedoria deles fosse alguma coisa “inferior” à sabedoria dos “verdadeiros” filósofos. Conhecemos pouco dos sofistas. Em primeiro lugar, porque, com exceção de um sofista tardio, Isócrates, de quem temos as obras, não possuímos senão fragmentos dos dois principais sofistas: Protágoras de Abdera e Górgias de Leontini. Em segundo, porque os testemunhos recolhidos pela doxografia foram escritos por seus inimigos — Tucídides, Aristófanes, Xenofonte, Platão e Aristóteles —, que nos deixaram relatos altamente desfavoráveis nos quais o sofista aparece como impostor, mentiroso e demagogo. Esses qualificativos acompanharam os sofistas durante séculos e a palavra sofista era empregada sempre com sentido pejorativo. (CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002.) Nos dias de hoje, apesar de um grande preconceito que costuma circular em torno da noção de teoria, quando falamos em “sabedoria” pensamos normalmente em sabedoria teórica ou contemplativa (de quem contempla, observa, as coisas, e então as compreende). Para os gregos antigos de sete séculos antes de Cristo, da época em que nasceu a Filosofia, essa separação que fazemos hoje entre teoria e prática não existia. Para eles, a palavra sophía — que significa sabedoria — no início não significava somente uma sabedoria de tipo teórico ou contemplativo. A sabedoria do sophós ou sophistés, que é aquele que tem sophía, mais do que teórica e contemplativa, era ligada ao como fazer as coisas: não deixava de se apoiar em conhecimentos de tipo teórico e contemplativo, mas era principalmente e muito mais do que isso uma sabedoria prática, a sabedoria de quem tem muita tékhne (técnica) em uma atividade ou ofício. E essa maneira de pensar foi se aprofundando cada vez mais, até a época de Sócrates e Platão, cinco séculos antes de Cristo. Mas a palavra tékhne, de onde vem o nosso termo “técnica”, não tinha o mesmo sentido que tem hoje, porque a imagem que os gregos antigos tinham da “técnica” era aquele saber-fazer de um artesão, que ao mesmo tempo é um saber-fazer técnico, que segue certas regras e práticas que podem ser treina, e um saber-fazer personalizado como o de um artista, que faz suas obras de arte com alta qualidade e com um estilo pessoal que é só dele. Dominar uma tékhne era o que hoje chamaríamos de dominar “a arte” de fazer alguma coisa. Essas duas noções, de arte e técnica, não eram separadas como são hoje. A tékhne era a habilidade de realizar uma atividade de acordo com regras que ordenavam as coisas que se aprendia por experiência, evitando o acaso, e as atividades que eram realizadas assim (com tékhne), eram chamadas de poíesis — que é de onde vem a nossa palavra “poesia”. A palavra poíeses vinha do verbo póien, que quer dizer ação direcionada para a criação de um objeto exterior ao a quem está agindo. A finalidade da tékhne está em realizar bem esse produto da poíesis, ou seja, fabricar, produzir, um bom objeto. E a imagem que tinham de um bom objeto era a de algo útil e bonito feito por um excelente artesão. A poíesis não era criar algo do nada, mas aprender a dominar o comportamento de alguma coisa da natureza — por exemplo o modo como a madeira se comporta desde que ainda é arvore até o momento em que a cortamos, lixamos, polimos etc. — para então criar algo com ela levando tudo isso em consideração, e algo que fosse de altíssimo nível de qualidade. Não quer dizer que estivessem pensando só em “objetos” ou “coisas” produzidas pelas pessoas, porque também podiam estar falando do que hoje chamamos de serviços — por exemplo, um bom médico não produzia exatamente um objeto, no sentido de “coisa” material que damos hoje ao termo “objeto”. Podemos dizer que o “bom objeto” produzido pelo médico era a saúde do paciente. De qualquer modo, tudo era pensado a partir desse modelo que é, de certa maneira, parecido com o do trabalho artesanal de alto nível. As palavras sophós e sophistés, de onde vem o termo “sofistas”, eram sinônimos, queriam dizer a mesma coisa. Mas os gregos costumavam usar sophós para indicar que a pessoa podia ensinar ou transmitir uma sophía, porque dominava esses conhecimentos poéticos (de poíesis); e costumavam usar sophistés para indicar que essa pessoa podia praticar essa sophia, também porque dominava esses conhecimentos poéticos, ou seja, essa tékhne ou habilidade de produzir um bom objeto (ou um bom resultado). Mas estavam falando sempre da mesma pessoa: quem podia ensinar bem algo era quem saberia praticar bem esse algo, e quem podia praticar bem algo era quem saberia ensinar bem esse algo. As pessoas que os gregos antigos consideravam como “sábios”, eram chamadas às vezes de sophós, às vezes de sophistés, dependendo da situação. Sócrates foi o primeiro grande questionador da cultura e do modo de pensar daquela época, por isso ficou conhecido como o maior crítico dos sofistas. Ele foi o primeiro a desconfiar daquele modo de pensar que era tão valorizado, e a duvidar de certas idéias que todos defendiam como se fossem as melhores ou as mais verdadeiras. Não deixava de participar também da valorização geral da cultura grega, mas começou além disso a apontar grandes falhas e pontos fracos naquele modo de pensar, e não só ou principalmente os pontos positivos, como os outros (os sofistas em geral) costumavam fazer. E a filosofia de Platão, que foi aluno de Sócrates, foi a primeira grande ruptura com aquele modo de pensar típico dos gregos da época, e que era valorizado e organizado em teorias pelos “sofistas” da época. Platão propôs realmente uma outra forma de pensar. De qualquer modo, tanto Platão e Sócrates quanto os filósofos que ficaram conhecidos como “Sofistas”, estavam todos preocupados com fazer as coisas da melhor maneira. Discordavam quando se tratava de decidir o que era a melhor maneira de se fazer as coisas. Havia na Grécia antiga uma grande valorização dessa idéia de se fazer tudo da melhor maneira possível. O sophós ou sophistés, ou seja, aquele que dominava alguma tékhne — por exemplo a tékhne de como pensar e argumentar para defender as suas opiniões, que era considerada uma tékhne especialmente importante — era sempre um sábio muito valorizado, e todos que se dispunham a realizar a mesma atividade procuravam imitar o seu exemplo. Os gregos antigos davam muita importância aos bons exemplos, e para entender até que ponto levavam isso tudo, é importante conhecermos uma noção que estava sempre presente no pensamento de qualquer grego típico daquela época: a noção de areté. 2. A noção de areté Para os gregos antigos da época dos filósofos sofistas, havia um ideal da comunidade e do indivíduo como mutuamente responsáveis um pelo outro, cada indivíduo procurando servir de modelo de comportamento e normas vida para toda a comunidade, e a comunidade procurando apresentar modelos de comportamento e normas de vida para seus indivíduos. Indivíduo e comunidade estavam intimamente ligados, a comunidade interessada e atuante na formação de cada indivíduo e cada indivíduo interessado e atuante na formação da comunidade, o ser humano era visto como racional e político (o que hoje chamamos de “politizado”, ou “cidadão ativo”, que exerce sua cidadania, mas com um sentido muito mais forte de participação nos assuntos da pólis, que significa cidade), além disso, os seres humanos eram considerados capazes de agir segundo fins e valores que carregam uma certa idéia do que seria a excelência humana, o máximo a ser atingido por alguém em sua formação enquanto ser humano, em todos os sentidos. Chamavam essa excelência de areté, e é importante frisarmos bem que essa areté era algo que tinha um sentido político muito forte. Era o modo como a comunidade se mantinha firme e integrada. A comunidade procurava educar e formar integralmente os seus membros para que eles atingissem a areté. E todos participavam na discussão e composição da imagem de como deveria ser a areté. Todos se reconheciam como parte dela, sentiam-se responsáveis por ela e realizadores dos valores que ela apontava. Esse processo de formação cultural e educacional de todos pela atuação de cada um e de cada um por todos, para atingirem a areté, era o que o famoso historiador Werner Jaeger chamou de paidéia grega — usando um termo dos próprios gregos. Paidéia significa educar, instruir, formar, dar cultura, ensinar os valores, os ofícios, as técnicas, transmitir idéias e valores para formar o espírito e o caráter, formar uma pessoa para viver um gênero de vida etc. E muitas vezes a palavra era associada pelos gregos à educação das crianças. Mas na Grécia antiga, essa formação não era só para as crianças, e sim para todos, e praticada por todos, constantemente. Cada pessoa, cada grupo e o conjunto todo da comunidade, procurava examinar com muito senso crítico e então selecionar os modelos de vida e de comportamento que pareciam os melhores, os mais propícios para se atingir a excelência, e se fazia uma constante propaganda das atitudes e comportamentos mais construtivos e valorosos nesse sentido, ignorando e deixando de lado atitudes destrutivas e prejudiciais, para serem esquecidas. Agora uma pergunta é crucial: isso tudo que acaba de ser descrito era o modo como os gregos em geral enxergavam a si mesmos, era o modo como viam a sua própria cultura. Mas será mesmo que a areté e todo esse processo de educação natural dos gregos era levado até o fundo sem colocar questões de interesse estritamente pessoal acima da verdadeira areté? Quando cada pessoa ou grupo social propunha um modelo de vida ou de comportamento para as outras pessoas e dizia que esse era o “modelo ideal”, será que realmente faziam isso sempre com senso crítico, e será que não propunham muitas vezes como se fosse “o melhor” apenas um modelo de vida e de comportamento que era favorável a eles próprios e aos seus interesses pessoais, e os outros “que se lixassem”? Certamente as pessoas não eram sempre assim tão dedicadas à areté, apesar de quase todo mundo — ou pelo menos todo mundo que concordava com a democracia — concordar, na época, que a areté compreendida deste modo era um bom ideal a ser valorizado. Se não fosse assim, se não houvesse gente que não se importava (ou que não concordava) com esses valores, talvez não tivessem surgido os filósofos “sofistas”, porque uma de suas principais preocupações, uma de suas principais lutas, era justamente para que as pessoas procurassem a areté nesse sentido de participação política, de todos e cada um na vida de cada um e de todos. Havia todo um movimento político e cultural — ligado ao movimento democrático — de valorização disso. E os filósofos sofistas participavam desse movimento geral, no qual costumavam desempenhar um papel muito importante, instigando as pessoas a não ficarem nunca indiferentes umas em relação aos problemas das outras e aos problemas da comunidade em geral. E isso funcionava bastante, pelo menos incomparavelmente muito mais do que conseguimos imaginar observando como vivem as pessoas nos dias de hoje. Em geral, os gregos de Atenas e a maioria dos sofistas consideravam essa forma de organização política (a demokratía, ou poder do povo) como uma das mais importantes invenções da História. De certo modo, a consideravam como algo capaz de transformar o mundo, algo como a descoberta do fogo ou a invenção da roda. Viam a demokratía como algo ligado à capacidade humana de superar a natureza e construir o seu próprio ambiente através do trabalho, e de cultivar esse ambiente construído para o seu bem-estar, organizando as suas atividades profissionais de uma maneira que fosse justa para todos ou pelo menos para a maioria, para que os conflitos, que são naturais entre as pessoas (porque elas são diferentes), não prejudicassem tudo isso, e todos pudessem continuar vivendo tão bem quanto possível. Mas havia também uma preocupação que ía muito além da mera acomodação das pessoas de maneira a evitar os conflitos e garantir uma vida razoavelmente boa para todos ou para a maioria: a preocupação com a areté. Organizar os conflitos e garantir a boa vida, para os gregos daquela época, era considerado muito pouco, era considerado, por assim dizer, o mínimo a ser atingido. Para atingir esse mínimo, e ainda mais para coseguir chegar à areté, era fundamental que a população tivesse acesso de algum modo a uma boa educação, porque era preciso que as pessoas fossem capazes de defender os seus pontos de vista argumentando umas contra as outras, e não se agredindo ou partindo para a violência — que era um perigo para a democracia. Por essa razão, o ensino era considerado a base de sustentação de tudo isso. E quem ensinava algo era quem tinha sophia naquele assunto, ou seja, o sophós ou sophistés. Nem todas as cidades gregas concordavam com esse modo de pensar, que era principalmente o de Atenas, e havia até guerras entre elas. A maior inimiga de Atenas era a cidade de Esparta, que era uma espécie de ditadura militar. Mas para os gregos que eram cidadãos de Atenas ou das cidades mais influenciadas por Atenas (que não eram poucas), a demokratía chegava a ser uma das coisas que faziam com que os seres humanos fossem realmente diferentes dos outros animais, por isso precisava ser defendida a todo custo. Existe nisso tudo um detalhe que para nós, nos dias de hoje, é bastante interessante: o que eles chamavam de democracia era algo muito mais profundo e radical do que isso que chamamos de “democracia” hoje: era uma democracia direta, e não representativa. Isso quer dizer que tudo funcionava na base do plebiscito. As pessoas votavam diretamente no que devia ou não devia ser feito, e os “governantes” apenas administravam a realização do que ia sendo decidido pelos plebiscitos populares. 3. Como funcionava a demokratía, que era tão valorizada pelos filósofos “sofistas” Existem estudiosos que chamam a atenção para o fato de que, na demokratía dos gregos antigos, mulheres e escravos não tinham direito de voto. Isso quer dizer que podemos questionar o quanto aquilo era realmente uma “democracia” como as de hoje — e eles têm razão, mas só quanto às mulheres, porque os escravos eram escravos de guerra, portanto estrangeiros de países inimigos, e a verdade é que seria absurdo colocá-los para decidirem o destino de Atenas. Por outro lado, essas coisas ruins costumam ser lembradas justamente por aqueles que não gostam da idéia de uma democracia direta, e que procuram mostrar que a democracia direta só era possível naquela época justamente por causa desses escravos, que seriam uma maioria trabalhadora explorada pelos mais ricos e vivendo sem direitos políticos: como os cidadãos livres (e ricos) eram poucos, e eram pessoas que não precisavam trabalhar (já que os escravos trabalhavam por elas), tinham tempo e facilidade de se organizar e se dedicar a ficar discutindo as questões políticas, coisa que hoje não seria possível. O problema é que isso é completamente falso. Em primeiro lugar porque, ao contrário do que se imagina, os escravos não eram tantos, e a população livre não era rica: era gente que trabalhava sim, muito, e o trabalho bem-feito, para eles, costumava ser motivo de orgulho. Além disso, mesmo sem as mulheres e os escravos, a quantidade de gente que participava efetivamente dessas assembléias, onde as decisões eram votadas toda semana, variava entre aproximadamente 12.000 e 40.000 pessoas, o que não é assim tão pouca gente — e não é tão difícil imaginar como dividir as cidades de hoje em “distritos” com uma quantidade de população próxima a essa, que distritos que poderiam tomar muitas decisões por plebiscito. Além disso, na Grécia antiga não existiam, como hoje, recursos como a Internet, a TV e os jornais para ajudarem na comunicação e a organização de toda essa gente, e os tais “distritos”, com esses recursos de hoje, talvez já não precisassem ser assim tão pequenos para conseguirem se organizar. A participação nas assembléias da demokratía direta dos gregos não era obrigatória, e geralmente oscilava em torno daquele número menor de participantes (por volta de 12.000), mas havia a cada ano uma média de 40 assembléias em que as decisões eram mais importantes, e nessas ocasiões, a participação costumava ser maciça (perto daqueles 40.000). Existe ainda um outro ponto pouco observado pela maioria dos historiadores: as decisões democráticas não aconteciam só ali, no momento do voto — como aliás na verdade nunca aconteceram, em nenhuma forma de democracia, desde aquela época até os dias de hoje. Não é só no governo que as decisões políticas acontecem em uma democracia. Muitas dessas decisões costumam ir e vir entre o governo e diferentes grupos organizados da sociedade, que fazem pressão em um sentido ou em outro. A coisa vai acontecendo como uma espécie de negociação entre os governantes e as diferentes forças da sociedade que se organizam para fazer essas pressões, até que finalmente a decisão acontece. Hoje, é facil acompanhar pelos jornais como esse tipo de coisa vai ocorrendo. Mas a decisão final, a última palavra, costuma ser sempre do governante — e na cidade de Atenas, na Grécia antiga, não era assim. As questões a serem votadas eram divulgadas com antecedência, e, como em toda democracia, nem sempre partiam dos governantes: muitas vezes surgiam de grupos que se formavam livremente no meio da própria população, e que começavam a fazer campanha para que um certo problema fosse resolvido ou uma certa idéia fosse posta em prática. Os cidadãos se organizavam e levam isso não só para para os administradores públicos (isto é, os governantes), mas também e principalmente para o resto da população, porque era a voz da maioria o que iria pesar na decisão final. Isso quer dizer que, se houvesse muita gente interessada na questão, seja a favor, seja contra aquilo que o tal grupo queria, os órgãos públicos começavam a organizar o processo de decisão. As diferentes soluções possíveis eram esclarecidas por técnicos com posicionamentos contrários que trabalhavam na administração pública, e essas possíveis soluções já íam passando de boca em boca pela população antes do dia da votação, e costumavam ir sendo discutidas em grupos que se formavam em uma grande praça central da cidade de Atenas, que se chamava Ágora. Nessas discussões públicas, que rolavam livremente em plena Ágora, participavam na prática, ao longo da semana, muito mais dos que os 40.000 cidadãos livres e com direito de voto, e é possível que as opiniões que os homens levavam para serem discutidas muitas vezes já viessem influenciadas inclusive pela opinião de suas mulheres e crianças — embora não devamos imaginar que isso acontecesse sempre, e menos ainda que isso acontecesse muito às claras, porque era uma sociedade que hoje consideraríamos extremamente “machista”, onde as mulheres costumavam ser consideradas como seres “inferiores”. Depois, no dia da vitação, os técnicos expunham claramente e em detalhes para os votantes as diferentes alternativas, e era feito um debate, onde os grupos que defendiam cada uma dessas alternativas “empurravam” para falar em nome deles alguém que eles achassem que argumentava e falava muito bem, ou seja, um orador. Esses oradores debatiam a questão cada um tentando puxar mais votos para o lado do seu grupo, e depois todos votavam. É importante observar que, apesar dessa preconceituosa exclusão das mulheres na parte mais “oficial” das decisões, não havia nada de necessário para a demokratía grega nesse “machismo”, e ela poderia ter funcionado plena e perfeitamente também com a participação das mulheres. Aliás, o principal e o mais famoso dos administradores públicos da democratía, Péricles, que foi mantido na liderança por toda a sua vida, foi um raro e importante exemplo contra essa exclusão das mulheres, como veremos a seguir. 4. Péricles, o grande sophistés da política demorática (que não era filósofo, mas seguia as idéias de Protágoras, o maior sophistés da Filosofia) ...e a história de uma grande mulher que havia por detrás desse grande homem Péricles, além de ser um dos maiores estrategistas militares da história, foi sempre considerado um dos maiores sophistés de toda a Grécia, um sábio nas questões de política, pois ninguém dominava melhor do que ele a “arte” de administrar os conflitos e as decisões na democracia — por isso foi maintido pela população na administração pública (isto é, no “governo”) por toda a sua vida, embora tenha passado por altos e baixos e, nos últimos anos, tenha sido quase derrubado do poder. Se havia alguém que era um verdadeiro exemplo de areté no sentido político defendido pelos filósofos sofistas, era esse homem. Ele era também um sophistés no sentido que os gregos costumavam dar a esse termo, mas sua sophía não era a de um filósofo, e nunca desenvolveu nenhuma teoria a respeito de nada. Péricles era acima de tudo um político e de maneira nenhuma um filósofo. No entanto, era amigo e seguidor de um outro sophistés, ou “sofista” que, esse sim, podia ser considerado um “filósofo”: Protágoras. Na verdade, Péricles chegou a ser oficialmente aluno de Protágoras. Protágoras pode ser considerado “filósofo” porque além de estar voltado para questões práticas, como todo sophistés grego, foi mais a fundo nas suas reflexões a respeito dessas práticas, e chegou a construir também (e debater com outros filósofos) teorias extremamente bem-elaboradas e interessantes a respeito da política, da argumentação e da persuasão, da psicologia da população, de como ocorre o conhecimento, e da noção de “verdade”. Protágoras, aliás, foi um dos maiores e mais importantes de todos os filósofos “sofistas” — talvez até o maior de todos eles — e chegou a ser convocado por Péricles para fundar e organizar as primeiras leis de uma outra cidade democrática. Vamos falar da filosofia de Protágoras mais adiante, mas falemos primeiro de Péricles, o homem que procurou pôr em prática na política as idéias de Protágoras, ajudando a construir a demokratía grega de que falamos no ponto anterior. Já mencionamos que Péricles, além de ter sido durante toda a vida o maior dos administradores públicos da democracia, ocupando nela o cargo mais importante, e de ter feito isso sempre seguindo o modo de pensar do filósofo Protágoras, foi também um grande exemplo contra a exclusão das mulheres na democracia. É importante entendermos de que maneira ele deu esse exemplo, porque isso infelizmente não chegou a aliviar as coisas para as mulheres em geral, pois foi um exemplo que pouca gente ousou imitar, mas acabou gerando uma grande transformação em Atenas. O maior problema foi que Péricles escolheu valorizar uma mulher que tinha, por assim dizer, um dom especial para escandalizar as pessoas. No entanto, qualquer um que conhecesse essa mulher sentia-se forçado a dizer que Péricles tinha razão, era uma mulher indiscutivelmente muito especial. Não só pela sua beleza, mas acima de tudo pela sua personalidade, inteligência e capacidade política. A beleza física dela, no entanto, tornou-se quase uma lenda. Para citarmos um caso que ficou famoso, um importante escultor, contratado para fazer uma estátua da deusa Palas Atena, que era por assim dizer a “padroeira” da cidade, quis fazer a deusa com a imagem mais linda que pudesse... e sem se dar conta, acabou fazendo-a parecidíssima com essa mulher especial (e aliás um tanto “escandalosamente” especial) de quem estamos falando, e que foi valorizada publicamente por Péricles. Péricles era casado quando conheceu essa mulher, e esse foi o primeiro dos escândalos. A esposa de Péricles, que se chamava Agarista, vinha de uma família muito rica e, junto com os filhos, vivia cobrando que ele “metesse as mãos” nos cofres públicos para que tivessem uma vida à altura da vida dos amigos mais ricos. Ela e os filhos reclamavam que todos no governo faziam isso (havia muita corrupção), menos Péricles, que deveria fazer o mesmo. Por isso sua família estava sempre em crise: Péricles se recusava a se aproveitar da sua posição no governo para enriquecer, e embora não chegasse a ser nem um pouco pobre, porque vinha de uma família razoavelmente endinheirada, fazia questão de manter uma vida mais simples. Péricles era um homem obcecado pela democracia e pelo seu trabalho como administrador público, daqueles que não fazem e não pensam em outra coisa na vida, senão no trabalho. Achava que tinha uma missão, que era a de firmar a democracia para que ela durasse para sempre. Apesar de oficialmente ser mais um administrador do que realmente o chefe do governo, uma vez que quem decidia tudo era o povo nas Assembléias, Péricles era também uma pessoa muito carismática, um líder natural, e extremamente influente: todos que o ouviam geralmente acabavam concordando que ele estava certo, ou não conseguiam achar um bom argumento para contradizê-lo, e na maioria das vezes o povo em geral, que além disso confiava nele e o via como uma espécie de herói, acabava votando no que ele achava o melhor — embora nem sempre isso acontecesse. Algumas vezes os inimigos de Péricles conseguiam manipular a população e derrubar uma alternativa defendida por ele, e outras vezes também acontecia de a própria população simplesmente e realmente não aceitar uma idéia dele, mas os registros históricos mostram que isso na prática era bastante raro. Naquela época, na cidade de Atenas, havia alguns grupos religiosos bastante radicais e muito fortes, que não gostavam muito de Péricles porque achavam que ele era “liberal” demais. Esses religiosos tinham também uma imagem muito ruim de uma certa cidadezinha chamada Mileto, porque era uma cidadezinha cheia de bares, casas de jogo, casas de prostituição e, curiosamente, muitos poetas, artistas e filósofos — em suma, Mileto era uma cidadezinha cheia de gente mais interessada em fazer e dizer coisas belas, inteligentes ou prazeirosas do que em ir até os templos religiosos e prestar seriamente homenagem aos deuses. Pois bem: um dia, uma moça extremamente bela (e que ficou muito famosa por sua beleza), veio viajando sozinha de Mileto até Atenas, e chegou em plena praça — na Ágora, onde um sábio famoso discutia política com um grupo de pessoas — vestida com roupas de um tecido quase transparente. Em atenas, naquela época, moças sozinhas normalmente não chegavam nem a pôr os pés na rua, e se fossem solteiras, não saíam de casa nem mesmo acompanhadas, então pode-se imaginar a pequena multidão de pessoas curiosas ou escandalizadas que foi se aglomerando em torno dela. A moça chamava-se Aspásia, e era filha de um velho filósofo desconhecido da cidade de Mileto. Como se não bastasse uma jovem e bela estrangeira chegar assim sozinha e tão à vontade como se estivesse em casa (e ainda por cima vestida daquele modo), Aspásia foi até o grupo com o qual aquele sábio discutia política e, para o espanto de todos, começou, sem a menor cerimônia, a contradizer o que o grande sábio estava dizendo. O sábio começou a responder a ela, porque o que ela dizia realmente fazia sentido, e então aquilo começou a virar um debate: Aspásia, mulher, jovem, estrangeira, e vestida escandalosamente com roupas transparentes, começou a a discutir política com o velho sábio de igual para igual, e de maneira extremamente inteligente — na verdade, seus argumentos pareciam sempre tão bons, que o tal sábio ficou completamente perdido tentando debater com ela, e aos poucos ia tendo que lhe dar razão em cada coisa que ela dizia. A multidão começou a ficar admirada. Péricles, como bom estrategista político que era, assim que percebeu uma pequena multidão se formando ali na praça, tratou de ir ver o que estava acontecendo, porque alguma questão política importante poderia estar sendo discutida ali, e algum grupo politicamente forte poderia estar se formando. É claro que levou um susto quando viu o que estava acontecendo, e entrou na discussão com a moça. Contam os relatos que, naquele encontro, os dois pareciam ter esquecido de todos os outros ao redor, que começaram a concordar e de repente estavam imaginando juntos uma porção de projetos políticos possíveis — enfim, ao que tudo indica, amor à primeira vista. Péricles então, cercado por fofocas e falatórios e pelo preconceito de todos, contra tudo e contra todos, e especialmente contra aqueles seus inimigos religiosos, que estavam absolutamente escandalizados, abandonou sua mulher Agarista e seus filhos, e foi viver com Aspásia. Passou a discutir todas as questões políticas sempre com ela, e fazia isso abertamente, sem esconder de ninguém, a tal ponto que se pode dizer que, a partir de então, passaram a governar juntos. Agarista e seus filhos tornaram-se inimigos políticos perigosos, e mais tarde, quando Péricles já estava velho e tinha perdido quase toda a sua influência política, tentaram jogar um processo contra ele, queriam condená-lo à morte, mas não conseguiram. No julgamento, Péricles se defendeu brilhantemente e saiu vitorioso, como sempre acontecia. Aspásia teve uma importância muito grande no destino dos atenienses: sob influência dela, e para o horror dos inimigos religiosos de Péricles, que não gostavam da cidadezinha de Mileto, o grande administrador da democracia grega incentivou a vinda de muitos filósofos e artistas para Atenas, não só de Mileto mas também de outras cidades. Graças a isso, Atenas, que já era rica e militarmente poderosa, acabou se tornando rapidamente o centro intelectual e cultural de toda a Grécia, a tal ponto que quem quisesse se tornar um grande artista ou um grande filósofo só tinha uma saída: ir para Atenas para aprender com os melhores do mundo, que desde o “governo de Aspásia” junto com Péricles, estavam todos lá. Também podemos imaginar que, desde a chegada de Aspásia, os sacerdotes, que já tinham queixas contra a “liberalidade” de Péricles, passaram a irritar-se ainda mais contra ele. Aspásia era uma estrangeira com costumes muito estranhos e que eles achavam realmente muito duros de engolir. Por exemplo: promovia na casa de Péricles festas que se transformavam em grandes orgias com trocas de casais, e sempre que descobria que Péricles achava uma moça atraente, arranjava um jeito de trazer essa moça para uma noite com ele, como uma espécie de “presente”. Pelo que se sabe, curiosamente, jamais houve qualquer briga ou cena de ciúmes entre os dois, e cada um deles parecia colocar o outro sempre acima de tudo e de todos, com uma única exceção: os dois consideravam a democracia e o povo mais importantes do que eles próprios. O romance estranho e escandaloso dos dois irritou a todos de todos os lados, e tiveram que contornar muitos problemas por causa disso, mas durou até o fim de suas vidas. (Temos aí, aliás, na história de Péricles e Aspásia, um caso ao mesmo tempo atraente, constrangedor e bastante interessante para discussões de ética...) 5. Sócrates: inimigo político e amigo pessoal de Péricles Os maiores adversários políticos de Péricles até aquele momento, os mais influentes e que causavam mais problemas para ele, eram os sacerdotes, que tinham bastante influência principalmente entre certos grupos da nobreza, um sapateiro muito radical chamado Cléon, que conseguia sempre juntar uma pequena multidão de gente mais pobre contra as idéias de Péricles, e um filósofo considerado muito “esquisito” que vivia como mendigo, e que se chamava Sócrates — o mesmo famoso Sócrates que conhecemos, e que foi o mestre de Platão. É interessante notar a situação política de Sócrates em relação a Péricles: apesar de serem adversários, os dois se admiravam — ou pelo menos Péricles admitia aberta e francamente que era admirador de Sócrates, embora os dois nunca concordassem. Os sacerdotes a certa altura articularam uma tramóia para fazer Sócrates ficar ainda mais famoso, dando a entender que os deuses o consideravam mais sábio que Péricles — e de fato conseguiram, Sócrates ficou famoso como “o homem mais sábio da Grécia”, e então, como era inevitável, as pessoas começaram a compará-lo com Péricles. Os sacerdotes esperavam transformar Sócrates em uma força política e depois apoiá-lo contra Péricles, que também começou a tentar “cooptar” Sócrates para o seu lado. Mas para a surpresa de todos, descobriram que Sócrates era imprevisível e impossível de manipular, e além de tudo, mais “esquisito” do que se imaginava, porque se recusou a aceitar qualquer apoio político dos sacerdotes ou de Péricles, simplesmente recusou-se a entrar para o governo de qualquer lado que fosse, e continuou a fazer suas próprias críticas contra Péricles ignorando completamente os sacerdotes. Mais tarde, apesar de serem adversários políticos e de Sócrates ser o mais radical a enfrentar e criticar Péricles publicamente (mais do que Cléon), Sócrates se tornou amigo de Péricles e principalmente de Aspásia, com quem passou a ter muitas discussões filosóficas. Já no final da vida de Péricles, quando ele começou a perder o poder e sua antiga mulher Agarista começou a lançar todos contra ele, o sapateiro Cléon começou a ficar cada vez mais poderoso, e aos poucos foi se aliando com os sacerdotes — fazendo o que Sócrates se recusou a fazer. Tornou-se inimigo tanto de Péricles quanto de Sócrates. A certa altura, todos os amigos de Péricles começaram a abandoná-lo com medo de Cléon. A “democracia” grega estava começando a ficar diferente, mais agressiva, uma parte mais radical da população começou a subir ao poder e havia muitos processos e muitas condenações à morte, mesmo de heróis de guerra, como por exemplo um sobrinho e um filho adotivo de Péricles. Essas pessoas eram condenadas às vezes com pretextos completamente absurdos — na verdade era um modo de Cléon eliminar os seus inimigos políticos manipulando a raiva do povo contra os mais ricos. O próprio Péricles passou por vários apuros desse tipo, mas sempre conseguiu se defender. E quando já não tinha amigos, só duas pessoas continuaram ao seu lado, dando algum apoio: Aspásia, e o amigo Sócrates. Mas Sócrates era um amigo muito duro e agressivo: jamais deu uma mínima trégua que fosse a Péricles em suas críticas, dizia que tudo isso que estava acontecendo no fundo era culpa do próprio Péricles e do modo como administrava a democracia, porque não havia apostado o suficiente na educação das pessoas, e agora elas eram manipuladas por qualquer fanático. Então Péricles devia mesmo sofrer as conseqüências. Sócrates nunca deixou de dizer isso nem a Péricles diretamente, nem a Aspásia, nem publicamente, para quem quer que perguntasse o que pensava a respeito. Mesmo assim, esteve ao lado do casal até o fim, e continuou amigo de Aspásia e dando apoio a ela mesmo depois da morte de Péricles por causa de uma doença, quando ela ficou completamente sozinha, desprotegida e isolada contra a ira dos sacerdotes, que a odiavam. As críticas de Sócrates a Péricles, no fundo, eram críticas à filosofia de Protágoras, que era a base teórica de todas as ações de Péricles no governo. O ponto central dessas críticas já sabemos qual é: Sócrates dizia que Péricles não apostava o suficiente na educação dos cidadãos para que eles soubessem realmente o que estavam fazendo quando tomavam suas decisões políticas, e que isso os deixava muito “manipuláveis”. Em outras palavras, Péricles colocava em primeiro lugar o que as pessoas declaravam que era a opinião delas, e deixava que elas decidissem “livremente” com base nisso, sem se importar se essas pessoas estavam realmente sendo críticas e pensando com as suas próprias cabeças, ou se estavam na verdade sendo manipuladas por alguém mais esperto. Na verdade o próprio Péricles era, como todo bom político, um mestre em manipular as opiniões das pessoas — e aprendeu isso em suas aulas como aluno de Protágoras! Vejamos um pouco desse debate entre Sócrates e o grande discípulo de Protágoras que era Péricles. Se tentarmos imaginar uma discussão entre os dois, onde suas posições acabassem ficando bem claras, talvez o resultado fosse mais ou menos o seguinte: Sócrates diria que nem todas as opiniões eram iguais, porque alguns opinavam com conhecimento de causa, sabendo o que estavam dizendo, e outros colocavam suas opiniões sem nenhum fundamento, porque não entendiam do assunto sobre o qual estavam opinando, mas como estavam vivendo em uma democracia, então achavam que suas opiniões tinham que ser respeitadas mesmo que não tivessem o menor fundamento e que acabassem prejudicando a vida de todos na cidade. Esses últimos, acabavam sendo facilmente manipuláveis pelos mais espertos. Péricles responderia talvez com o seguinte tipo de problema: quem é que vai decidir quando uma opinião realmente “tem fundamento” e quando “não tem”? Qual é o fundamento que alguém — como por exemplo Sócrates — pode ter para dizer quando uma outra pessoa “tem bons fundamentos” para dizer o que diz ou “não tem” fundamentos? Para Péricles, o que Sócrates estava realmente querendo era dizer que alguns sabem mais do que outros, e que esses que sabem mais tem mais direito de governar do que aqueles que sabem menos — mas então as pessoas não teriam direitos iguais, só aquelas pessoas que entendiam dos assuntos que iam ser votados poderiam realmente votar e decidir as coisas, e adeus democracia! E Sócrates retrucaria que o próprio Péricles era quem estava pondo em prática esse “adeus à democracia”, porque na verdade o que acontecia era que ele — Péricles — que sabia mais sobre política, estava dirigindo as coisas através da manipulação das opiniões da massa. Ao invés disso, deveria ajudar as pessoas a aprenderem como pensar com as suas próprias cabeças, tomando suas decisões criticamente. Sócrates dizia que não entendia de política, e por isso recusou-se a entrar no poder com Péricles ou a disputar o poder contra Péricles apoiado pelos sacerdotes. Dizia que era isso o que as pessoas deveriam fazer: aprender sobre um assunto antes de se meter a tomar decisões a respeito, como um líder político precisava fazer. Péricles provavelmente responderia a esse tipo de exigência dizendo que era justamente o que ele estava fazendo: fazia as pessoas praticarem a democracia para irem aprendendo na prática. Mas havia uma coisa a respeito de Sócrates que precisamos saber: se Péricles era um sophistés da política, Sócrates, além de filósofo, era um sophistés da educação — em outras palavras, Sócrates era um grande mestre na arte de educar as pessoas, era um excelente professor, um verdadeiro artista da educação, e todos reconheciam isto. E segundo Sócrates, o único modo de ajudar as pessoas a aprenderem a pensar era dialogar com elas diretamente, e isso quer dizer com cada uma delas, uma por uma, fazendo perguntas a respeito das coisas e deixando as pessoas procurarem as respostas sozinhas. Segundo ele, não era possível ensinar as pessoas a pensarem com as suas próprias cabeças se ficássemos apenas passando informações para elas e tentando manipulá-la para que elas acreditassem nessas informações ou nas decisões que apoiamos nessas informações. Em outras palavras, ninguém aprende política dentro das Assembléias da democracia, onde as pessoas ouvem os assuntos serem debatidos e depois dão o seu voto. O verdadeiro educador das almas deveria ser capaz de fazer as pessoas realmente pensarem por si próprias — ou seja, elas deveriam falar, buscando respostas mais do que ouvir respostas prontas e sedutoras. O verdadeiro educador deveria perguntar coisas a elas que as fizessem pensar, e não tentar convencê-las a votar em uma idéia ou em outra. Fazer isso, perguntar coisas que fizessem as pessoas pensarem, só era possível fora do espaço da política oficial, ou seja, naquelas conversas de rua, ou na Ágora, antes das Assembléias — e era exatamente o que Sócrates fazia o tempo todo, quando perambulava como mendigo conversando com as pessoas sem nenhum compromisso com qualquer partido ou com qualquer decisão política específica. Por isso não podia aceitasr entrar oficialmente para a política ao lado de Péricles ou contra ele: qualquer uma dessas posições seria inútil para um educador interessado em apenas fazer perguntas que levassem as pessoas a pensarem. Esse tipo de comportamento puramente “educador” era impossível de ser praticado dentro da política e dos espaços oficiais da política, porque como políticos, somos levados a defender alguma posição, e mesmo quando tentamos informar as pessoas para que elas possam decidir livremente, sempre que passamos uma informação a alguém já estamos de alguma maneira interferindo no modo como essa pessoa chega a essas informações, e isso quer dizer que indiretamente já estamos manipulando a pessoa a favor do nosso modo de ver essas informações. O que Péricles teria a responder a isso? Certamente diria que não é só uma questão de educação, porque há muito mais coisas envolvidas nisso. Provavelmente faria, nesse sentido, uma colocação muito prática e que poderia fazer Sócrates parecer politicamente ingênuo: então devemos educar as pessoas uma a uma fazendo perguntas instigantes a elas... certo, mas o que vamos fazer enquanto isso? Abandonar a democracia enquanto as pessoas ainda não tiverem cabeça suficiente para pensarem por si próprias? Ou será que é possível, na prática, parar tudo e começar do zero, deixar a cidade imóvel, sem tomar mais nenhuma decisão, e ficar educando cabeça por cabeça até a população inteira estar realmente pronta para a democracia? O que é que aconteceria enquanto estivéssemos assim “parados”, apenas preparando as cabeças para uma democracia no futuro? Se simplesmente “pararmos” com todas as Assembléias e votações democráticas, mesmo assim a vida política, econômica, social, vai continuar sem nós: decisões precisam ser tomadas, há inimigos de guerra que podem atacar a qualquer momento, por exemplo; pragas ou problemas climáticos que podem afetar a colheita e exigir decisões rápidas; doenças contagiosas que podem se tornar uma tragédia se não tomarmos certas decisões na área da saúde etc. Quem vai decidir essas coisas enquanto as cabeças democráticas ainda estiverem “se preparando”? É verdade que a democracia no seu sentido mais profundo e verdadeiro possível não acontece de uma hora para outra, e exige que as cabeças se preparem cada vez mais, mas essa democracia, em qualquer nível de superficialidade ou de profundidade que a gente queira imaginá-la, não acontece em um mar de rosas onde todos são favoráveis a ela. Existem inimigos políticos da democracia que querem tomar o poder na menor chance que tiverem, e eles podem ser perigosos. Se deixarmos a democracia escapar das nossas mãos agora, quem garante que a conseguiremos de volta no futuro? E Sócrates talvez respondesse: deixar escapar a democracia das nossas mãos agora? Mas de que democracia você está falando, Péricles? E das mãos de quem ela pode escapar? Das mãos do povo? Mas a democracia de agora não está nas mãos do povo, e se o poder não é do povo, não há demo-kratós (democracia, “povo-poder”, ou poder nas mãos do povo). O que temos é uma Péricles-kratós, o poder nas mãos de Péricles, e Péricles e outros espertalhões manipulando o povo para fazer parecer que não é bem assim. Você pode até ser sinceramente democrático, péricles, mas na prática não está sendo. Deste ponto de vista, talvez Sócrates seja politicamente ingênuo, mas sabe que é, conhece bem suas limitações, por isso se recusou a entrar para a política oficial. Por outro lado, se Péricles acredita que manter uma pseudo- “democracia” nessas condições superficiais vai educar as pessoas para uma verdadeira democracia, mais profunda, que viria no futuro, é Péricles quem está sendo pedagogicamente ingênuo... só que parece não se dar conta disso. Está sendo ingênuo do ponto de vista da educação, porque não percebe que por esse caminho as pessoas não aprendem realmente a pensar, elas só aprendem que têm o direito de serem sempre ouvidas a todo custo, independentemente de estarem erradas ou certas, porque estão se acostumando cada vez mais com a idéia de que o certo e o errado não passa de uma questão de conseguir os votos dos outros ou não. Ou seja, como aprenderam que têm o direito de serem ouvidas não importa o que digam, as pessoas vão exigir isso cada vez mais, mesmo quando estiverem erradas e suas opiniões correrem o risco de levar a cidade a uma catástrofe — afinal, para que precisam pensar cuidadodamente a respeito de suas opiniões, para que precisariam verificar se suas opiniões estão erradas ou certas? Afinal, estamos numa democracia, não é? Então o que vale é a opinião mais bem-votada, e nada mais... — nas últimas discussões entre os dois, Sócrates tinha um argumento bastante forte: bastava olhar o que estava acontecendo: as pessoas queriam ser ouvidas, e nada mais. Na verdade, através delas, era Cléon, o sapateiro quem estava sendo ouvido, e conseguindo tudo o que queria. E o que ele queria? — Pelo visto, acima de tudo queria sangue... muito sangue, especialmente o daqueles que diziam que ele não deveria ser simplesmente ouvido pelas pessoas, e depois aclamado com votos, mas avaliado criticamente por elas naquilo que dizia. Em suma, queira o sangue de gente como Sócrates. Mas uma pessoa politicamente ingênua e inofensiva como Sócrates podia esperar. Antes queria o sangue de Péricles... mas, curiosamente, não foi o próprio Péricles quem ensinou o povo a sempre ouvi-lo e aclamá-lo com votos ao invés de avaliar criticamente o que ele dizia? Pois bem... estão fazendo exatamente o que aprenderam com ele, só trocaram de orador. Agora ouviam Cléon, o “raivoso”. E quando o senso crítico de Sócrates começasse a parecer ameaçador, naturalmente iam querer o sangue dele também, de forma que, aos olhos de Sócrates, a ingenuidade pedagógica de seu amigo Péricles havia comprometido todo o futuro da democracia, e como se não bastasse, havia metido os dois em uma grande enrascada... mas essa era a avaliação de Sócrates. É claro que Péricles não concordava. E é mais ou menos assim que podemos imaginar que seguiam as discussões de Sócrates e Péricles, com base nos registros históricos que chegaram até nós. Bibliografia: CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. (OBS.: Neste livro de Marilena Chaui, no Capítulo 3 - Os sofistas e Sócrates: humano como tema e problema, principalmente das páginas até a 159, há esclarecimentos sobre o nascimento da Democracia na cidade de Atenas, sobre o tempo do líder democrata Péricles, sobre a noção de Areté, e sobre muitas palavras gregas importantes. A partir da pág. 159, esse capítulo começa a tratar mais diretamente das filosofias de Sócrates e dos Sofistas.) FINLEY, Moses I. Democracia antiga e moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1988. (OBS.: Neste livro, principalmente nos capítulos 1 e 2, há informações mais detalhadas sobre o modo como funcionava a democracia direta ateniense. No capítulo 3, uma comparação entre os problemas dessa democracia direta dos gregos antigos e os problemas das democracias de hoje, principalmente a dos Estados Unidos, porque o autor é de lá.) VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 1981. (OBS.: Neste livro, no Capítulo IV – O universo espiritual da pólis – há explicações importantes sobre o modo de pensar dos gregos antigos na época em que fundaram a democracia. É um livro um pouco mais difícil, mas esse capítulo por outro lado é mais curto, que os dos outros dois livros.) OBS. GERAL: as informações que estão nesta apostila, com ajuda do filme de roberto Rossellini abaixo comentado, são o suficiente para a avaliação em Temas Integrados. Caso os alunos queiram além disto ler algum dos textos da bibliografia acima, isto será muito bem vindo. Para que saibam quem são os autores: Marilena Chaui é uma importante professora de filosofia da USP, de formação marxista, e que estuda principalmente filosofia política; Finley é um excelente historiador, também de formação marxista, mas ligado a um grupo mais recente de marxistas que valorizam o modo de pensar de cada época estudada, mais do que Marx valorizava isso; Vernant é considerado um dos maiores e mais importantes, senão o mais importante, historiador especializado na Grécia antiga, e foi professor de Finley. O modo como a bibliografia está apresentada é um padrão universal usado mais ou menos desse mesmo modo em todo o mundo. Portanto, quem for procurar esses livros — ou qualquer outro — em uma biblioteca, vai encontrar mais facilmente o que procura se seguir esse modelo: primeiro o sobrenome do autor; depois o primeiro nome; depois o nome do livro; e por último, a cidade em que foi publicado, a editora e o ano da publicação. Assim: SOBRENOME, Nome. Tílulo do livro. Cidade: Editora, Ano. Outras duas referência úteis: um filme e um excelente livro sobre a vida de Sócrates, escrito de forma romanceada. O filme é Sócrates, do diretor Roberto Rossellini, e retrata o final da vida desse filósofo no período de decadência da democracia de Atenas. Sócrates, nessa época, já estava velho. O filme começa com Atenas derrotada na guerra por cidade inimiga: Esparta, que como símbolo da sua vitória, destrói os muros que protegiam Atenas, e que eram motivo de orgulho dos atenienses. Um dos generais atenienses, um aristocrata chamado Alcebíades, havia convencido o povo, na Assembléia democrática, a seguir uma estratégia de guerra contra os espartanos que não deu certo. Os atenienses, tanto os mais pobres quanto os mais ricos, tendiam a culpar Alcebíades por essa derrota na guerra. Como sabia disso, Alcebíades nem voltou para Atenas, com medo de ser condenado à morte pela Assembléia do povo: ao invés disso, se entregou aos espartanos e passou a trabalhar para eles como conselheiro de guerra. Essa atitude de Alcebíades foi considerada uma traição ainda maior. Mas entre os atenienses mais ricos, alguns ainda desculpavam Alcebíades e imaginavam que ele poderia escapar, e voltar do exterior para salvar Atenas. Alcebíades, por acaso, era um ex-aluno de Sócrates, e isso fez muita gente começar a culpar esse velho filósofo também. O filme mostra, logo no começo, como os homens ricos de Atenas não estavam tão incomodados com a derrota para os Espartanos. Alguns desses homens ricos se aliaram pouco tempo depois às escondidas com os inimigos Espartanos, e subiram ao poder, estabelecendo o que ficou conhecido como A tirania dos trinta. Esses trinta tiranos mandaram matar muita gente que se opunha ao governo deles. Esse governo dos trinta tiranos, que foi odiado pelo povo de Atenas, não durou muito. Logo os atenienses conseguiram expulsar os espartanos e derrubar esses trinta do poder, para voltarem à democracia. Mas a democracia já não era mais a mesma, porque o povo que ía para as Assembléias era um povo quase sempre irritado ou apavorado. Entre aqueles trinta tiranos detestados e que haviam sido derrubados do poder, havia alguns ex-alunos de Sócrates, e isso deixou mais gente ainda com raiva do filósofo, achando que os ensinamentos dele é que tinham feito essas pessoas serem tão ruins. Nesse período mostrado no filme, a melhor fase da democracia já havia passado. O grande líder dessa melhor fase da democracia, Péricles, também já havia morrido. O filme não fala nem sobre ele nem sobre sua segunda esposa, Aspásia. Na época mostrada no filme, o líder mais poderoso era Cleón, que procurava manipular o povo provocando na multidão às vezes o medo e às vezes o ódio, e que às vezes se aliava, às vezes brigava, com um lider religioso fanático chamado Diopeithes. Diopeithes foi quem conseguiu fazer ser aceita uma lei condenando à morte quem fosse ateu ou não venerasse pelo menos um dos deuses oficiais da cidade. Mas o filme de também não fala de Cleón, e mostra só um pouco desse fanatismo religioso liderado por Diopeithes que estava crescendo em Atenas. Por outro lado, mostra bem claramente o modo como se organizava esse governo que, bem ou mal, ainda era uma democracia direta, um governo direto do povo: mostra o sistema de votação, os julgamentos etc. Mostra por exemplo que nos julgamentos os jurados eram escolhidos por sorteio entre aqueles que quisessem participar, mostra que eram pagos para isso (embora o filme não dê muita importância a esse fato e mostre como se fosse só um detalhe), e que logo depois de serem sorteados, ainda passavam por um segundo sorteio para decidir se os deuses aceitavam esses jurados ou não. É importante lembrar que os gregos acreditavam em vários deuses, e cada um podia preferir um deus diferente e venerá-lo mais do que venerava os outros, desde que fosse um dos deuses oficiais da cidade, e não um deus estrangeiro. Além de serem muito religiosos, eles não gostavam de quem não era. Não aceitavam que alguém fosse ateu ou venerasse deuses estrangeiros. E desde a tal lei proposta por Diopeithes e aceita pela Assembléia popular, quem não venerasse pelo menos algum dos deuses oficiais, era mesmo considerado criminoso, e podia ser condenado à morte. A justificativa dessa lei era que, se algum dos deuses da cidade se irritasse e não houvesse nenhum outro deus satisfeito para proteger a cidade contra o deus irritado, todos os cidadão iam sofrer com essa ira divina. Então, muitos ateus ou pessoas com crenças estranhas estavam sendo acusados também de terem culpa na derrota de Atenas para os espartanos, como se os deuses, irritados, tivessem preferido ajudar Esparta. Assim, além de ser odiado porque foi mestre de Alcebíades e de alguns dos tiranos que subiram ao poder, Sócrates era odiado também porque havia uma raiva generalizada contra os professores e intelectuais, que obrigavam as pessoas a pensarem e questionarem se tudo devia mesmo ser explicado a partir dos deuses, como mandava a tradição, ou se havia alguma outra explicação melhor e mais racional. As pessoas estavam tensas, irritadas ou apavoradas demais para pensarem racionalmente, e estavam preferindo ouvir líderes políticos e religiosos fanátivos e jogar a culpa de tudo nesses professores e intelectuais, que deviam estar irritando os deuses. Por isso havia também peças de teatro cômicas bem populares, que o povo adorava, escritas contra os filósofos e professores, para ridicularizá-los. E uma das que ficaram mais famosas foi uma peça de Aristófanes chamada As nuvens, escrita contra Sócrates mostrando uma imagem muito distorcida dele, e confundindo-o com outros filósofos da época como se todos no fundo fossem iguais, e merecessem algum castigo, porque o que diziam era um monte de bobagens que podiam levar as pessoas a fazerem coisas erradas e a irritarem os deuses. Na época mostrada no filme, as pessoas já não estavam dando mais muita atenção para os ensinamentos de Sócrates. Não tinham mais paciência para ficar discutindo com ele sobre a verdade, ou examinando se decisões que estavam tomando eram mesmo corretas ou não: o que importava para as pessoas era se os deuses aprovavam sua decisão ou não. E quando a maioria aceitava a proposta de alguém, o que acreditavam era que os deuses haviam gostado daquela proposta e feito a multidão concordar com ela. Já não era mais uma boa época para filósofos e professores na democracia grega. Sócrates acabou condenado à morte por uma Assembléia popular, nessa democracia decadente e já dominada por fanáticos. O acusador de Sócrates, um tal Meleto, nem conhecia direito o seu pensamento, e o confundia com outros filósofos. Mas insistia que Sócrates não venerava os deuses oficiais da cidade. Junto a esse Meleto, um homem rico chamado Anito apoiou a acusação acrescentando que Sócrates estava “corrompendo os jovens”, porque os seus ensinamentos estavam colocando esses jovens contra a democracia. Anito, como outros atenienses das classes mais ricas, mesmo preferindo a democracia ao invés do domínio de Esparta ou da tirania dos trinta, tirava bom proveito dessa nova fase em que o povo era menos racional e mais manipulável, e não gostava muito da idéia de um filósofo como Sócrates sair por aí ensinando qualquer um na rua a raciocinar sem cobrar nada por isso. O filme de Roberto Rossellini mostra tudo isso bastante bem, e também mostra um pouco das idéias de Sócrates e do modo como fazia perguntas forçando as pessoas a raciocinarem. Mostra, além disso, que na democracia de Atenas, no final de um julgamento, quando alguém era condenado à morte, o acusado ainda tinha o direito de se defender propondo uma pena alternativa, mais leve, e muitas vezes isso era aceito pela Assembléia. Mas Sócrates, ao invés disso, defendeu que deveria receber um prêmio por tantos anos de serviços de educação prestados de graça, isso sim, e que a cidade deveria sustentá-lo para ele poder continuar prestando esse bom serviço que estavam chamando de “corrupção dos jovens”. Essa resposta chocou a todos, principalmente porque era óbvio que o único resultado possível disto era mesmo que a decisão ficasse na condenação à morte. Parecia quase um suicídio de Sócrates. O fato é que ele se recusava a contradizer aquilo que tinha feito a vida toda, porque tinha vivido a vida fazendo justamente o que achava a melhor coisa que alguém poderia fazer pela cidade de Atenas. E queria que esse seu último exemplo, de honra e de defesa da verdade a todo custo, ainda servisse para ensinar alguma coisa mesmo para aqueles que o estavam condenando à morte, para o próprio bem deles. É um excelente filme, e ensina muito, sobre Sócrates e sobre o período de decadência da democracia direta de Atenas. É talvez um pouco lento, um pouco falado demais, pois muito do que se fala ali poderia, ao invés disso, ser mostrado, o que deixaria o filme mais movimentado e atraente sem perder nada dos ensinamentos passados. Além disso, mostra Sócrates um pouco sério demais, quando se sabe que era um sujeito agitado e extremamente bem humorado, de um humor sarcástico e corrosivo, agressivo e às vezes até grosseiro, que perturbava as pessoas. Mas é de qualquer modo um excelente filme para se estudar o assunto. O livro é Sócrates: sua vida pública e particular, escrito por René Kraus (Rio de Janeiro: editora Vecchi, coleção Vidas Extraordinárias). Apesar de ser escrito como se fosse um romance de ficção, o livro é quase completamente verídico e baseado em informações muito cuidadosas sobre a época, sobre Péricles, Aspásia, Sócrates e todos os demais personagens. O livro trata principalmente do período anterior ao tratado no filme de Roberto Rossellini, isto é, do melhor período da democracia de Atenas, o período da liderança de Péricles, em que apesar de muitos defeitos e da grave corrupção — contra a qual Péricles lutava, mas sem sucesso — a cidade como um todo era rica e poderosa, e as Assembléias populares tomavam suas decisões com mais debate e menos fanatismo. O livro segue a vida de Sócrates desde a juventude até aquele mesmo período de decadência da democracia em que ele acabou sendo condenado à morte. A principal ênfase está nos debates sobre o melhor caminho para a democracia, entre Péricles de um lado, e Sócrates de outro, apoiado por Aspásia. É um belíssimo livro, na verdade bastante superior — em tudo — ao filme de roberto Rossellini. Mas é um livro antigo, e bem difícil de ser encontrado, por isso o recomendo apenas como um complemento extra, para quem se interessar e por acaso conseguir encontrá-lo em alguma biblioteca ou em algum sebo.