a teoria política da corrupção

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A TEORIA POLÍTICA DA CORRUPÇÃO
FERNANDO FILGUEIRAS
Doutorando em Ciência Política pelo Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)
Mestre em Ciência Política (DCP/UFMG)
Professor de Teoria Geral do Estado da Universo – Juiz de Fora
Membro do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa” da UFJF.
[email protected]
Resumo
Este artigo tem o propósito de averiguar o quadro teórico/conceitual da corrupção a partir do viés da
teoria política clássica e moderna. O resultado é o estabelecimento de um traço comum a este fenômeno,
que perpassa diacronicamente, na evolução histórica da sociedade, as teorias políticas: de que a corrupção
é a sobreposição das vantagens privadas ao bem comum. Contudo, apesar deste traço comum, a história
das idéias políticas reservou diferentes dinâmicas para a corrupção, que variam conforme o ponto de vista
metodológico adotado e o contexto filosófico geral no qual estas teorias foram produzidas. A partir da
montagem deste quadro teórico/conceitual da corrupção, podemos analisa-la de recorrendo às formas de
acordo com as quais as tradições do pensamento político pensam a mediação de interesses entre os atores
políticos, as formas de construção da legitimidade e as causas da corrupção.
Palavras-Chave
Corrupção, legitimidade, teoria política.
1
A TEORIA POLÍTICA DA CORRUPÇÃO
*
I
Neste ensaio, abdico da boa parcimônia em nome de um tema que tem merecido
pouca atenção por parte dos estudiosos da política. Esse abandono se dá justamente
porque o propósito é recuperar os mecanismos metateóricos de análise da corrupção na
política, ressaltando a forma de acordo com a qual os autores do pensamento político,
desde o pensamento clássico, trataram esse fenômeno. Por se tratar, portanto, de uma
metateoria da corrupção, deixo claro que os autores aqui trabalhados não estão
contextualizados no círculo histórico/lingüístico que os cercam. Por isso que a
parcimônia não será o horizonte intelectual desse exercício, porque creio poder
contribuir para o pensamento político resgatando os mecanismos através dos quais é
possível fazer uma análise da corrupção com base na teoria política.
Nesta metateoria da corrupção, é possível identificar a seguinte constante lógica: a
corrupção é a sobreposição das vantagens privadas sobre o bem comum, significando
um ato de decoro para com a ética. Esta constante lógica, por sua vez, mesmo
perpassando diacronicamente o pensamento político, recebeu diferentes tratamentos por
parte dos pensadores, tendo em vista diferentes contextos nos quais a corrupção foi
pensada através dos quadros epistemológicos presentes na teoria política. O argumento
que defendo é que a corrupção pode ser analisada com base na teoria política, desde que
resgatemos quatro elementos: (1) o elemento republicano que associa a corrupção com a
ausência de institucionalização do conflito entre os homens; (2) o elemento autoritativo,
que vincula a corrupção à falha do soberano em garantir a obediência dos súditos; (3) o
elemento liberal que relaciona a corrupção com a iniqüidade do soberano e a ausência
de um poder dividido; e, (4) o elemento comunitário que associa a corrupção com a
degeneração dos costumes da comunidade política.
II
*
Texto apresentado no I Simpósio USP / IUPERJ de Pós-Graduação em Teoria Política. Agradeço os
comentários dos professores Rafael Villa (USP), Cícero Araújo (USP) e Marcelo Jasmin (IUPERJ).
2
Quando Michel Foucault (FOUCAULT, 1999) cita a Ilíada de Homero e sua
narrativa do litígio entre Antíloco e Menelau, durante a corrida dos jogos na ocasião da
morte de Pátroclo, ele está destacando como que no mundo grego arcaico ainda há a
presença do mito como fundamento da verdade. O jogo seria uma corrida de vigas, em
que o trajeto é de ida e volta até um ponto em que haveria uma testemunha e no qual era
preciso contornar o mais próximo possível. Esta testemunha seria responsável por
regularizar a corrida. No desenrolar do jogo, Antíloco e Menelau estão na frente, no
momento da curva. Antíloco comete uma irregularidade e se beneficia chegando
primeiro que Menelau, que introduz uma contestação ao juiz no momento de
distribuição do prêmio. Como seria estabelecida a verdade? O curioso, como destaca
Foucault, é que o litígio não é resolvido através do depoimento da testemunha. Menelau
acusa Antíloco de irregularidade, que se defende afirmando sua inocência. Menelau,
então, lança o seguinte desafio para Antíloco: que ele colocasse sua mão direita na
cabeça de seu cavalo e segurasse com a mão esquerda seu chicote e jurasse diante de
Zeus que ele não cometeu a irregularidade. Antíloco, diante dessa prova, renuncia à sua
vitória e reconhece que cometeu a irregularidade.
O que Foucault depreende desta passagem da Ilíada é que o mundo grego arcaico
é dominado pela presença do mito enquanto fundamento da verdade, sendo ele
entendido como a congregação da prática e da poética gregas. Por outras palavras,
Foucault destaca que o pensar no mundo grego arcaico é sinônimo da reflexão
mitológica. O decoro de Antíloco é explicado pela forma segundo a qual o mito ordena
o mundo grego, no sentido de regular as relações entre os homens.
Por outro lado, Foucault observa que o mundo grego se transforma a partir da
peça Édipo Rei, de Sófocles, em que o poder do mito perde sua força enquanto forma de
estabelecimento da verdade. Quando Tebas sofre a maldição dos deuses em
conseqüência da conspurcação e do assassinato de Laio, Édipo, seu filho, pessoalmente
se compromete a exilar a pessoa que tiver cometido o crime, sem saber que ele mesmo o
cometera. Édipo se lança a buscar a verdade e consulta o deus de Delfos, o rei Apolo.
Apolo lhe dá uma primeira metade, afirmando que a peste que atinge Tebas ocorre em
função da conspurcação, que, por sua vez, ocorre em função do assassinato de Laio.
Édipo pergunta a Apolo quem cometeu o assassinato e este se recusa a responder.
Édipo, então, vai atrás da outra metade, procurando o duplo de Apolo, Tirésias, o
3
adivinho. O adivinho lhe responde em um tom profético, afirmando: “prometeste banir
aquele que tivesse matado; ordeno que cumpras teu voto e expulses a ti mesmo”. Édipo
tem a verdade, como observa Foucault, não em relação ao tempo presente, mas ao
futuro, que é característica própria do oráculo. É necessário, portanto, o testemunho do
que realmente se passou para que traga o oráculo para o tempo presente e que se possa
designar, então, quem matou Laio e quem deve sofrer o exílio, para livrar Tebas da
peste. É quando Édipo convoca o testemunho de dois escravos que o viram assassinando
Laio na junção de três caminhos. O decoro de Édipo, ambicioso por natureza, não mais
se explica pelo mito, mas pela razão dos homens.
O que Foucault mostra com estas passagens da peça de Sófocles é que o mundo
grego transita do mundo ordenado pelo mito para o mundo ordenado pelo logos. A
passagem se dá quando o mito não mais explica a realidade que cerca o mundo grego
arcaico, tal como foi feito na Ilíada, e se faz necessário o recurso à razão humana, tal
como fez Édipo ao convocar o testemunho dos escravos.
É este espírito que cerca a obra de Aristóteles (ARISTÓTELES, 2002), que busca
a verdade a partir de três tipos de saberes. Um saber teórico, centrado no logos e não no
mito, e que transforma o mundo grego purgando o mito como critério de busca da
verdade. A lógica se estabelece não pela busca da verdade a partir da vontade dos
deuses, mas das necessidades verdadeiras presentes no mundo físico, que podem ser
comparadas e pesquisadas de forma tal que a verdade se estabeleça pela indução daquilo
que se coloca entre duas coisas. O saber teórico, portanto, estabelece a verdade pela
indução da causa, tendo em vista a epísteme que define as regras racionais de validação
e evidência, alcançando, dessa forma, a essência das coisas.
No campo da poética (ARISTÓTELES, 1986), ou do saber produtivo, o esquema
trágico e seu funcionamento se dá pela empatia entre personagem e espectador. De um
lado, o personagem, na tragédia, se vê num dilema entre o ethos  ação  e a dianóia
 razão , que se expressa no conceito de harmatia  falha fundamental , que
define a peripécia do ator e faz o espectador acompanhá-la, porque o herói passa de um
momento de eudamonia  felicidade  para um momento de daimonia 
infelicidade. O momento chave do saber produtivo é a etapa da tragédia em que seu
autor chega a anagnórisis  explicação , no instante em que ocorre a catástrofe,
mediante a qual o espectador recebe a mensagem moral e sofre a catarse  purificação.
4
O saber produtivo, de acordo com Aristóteles, se define justamente por ser o mecanismo
de transferência moral, porque o herói trágico é um ser vigoroso, com maior intensidade
vital do que o simples homem que sofre com ele e compartilha de sua catástrofe.
Finalmente, o terceiro tipo de saber para Aristóteles (ARISTÓTELES, 1985) é o
saber prático, ou a techné, que se caracteriza pela falibilidade das causas, que são
estabelecidas apenas por possibilidade ou verossimilhança. Os elementos do saber
prático não se definem a priori, fazendo com que a busca da verdade se dê por múltiplas
causas, que só são apreendidas através da pesquisa, da comparação e, finalmente, da
indução lógica. Apesar da pluralidade de causas, Aristóteles não via uma pluralidade
ontológica, que se daria pela existência de dois (ou mais) mundos, como pretendia
Platão (PLATÃO, 1987). O alcance do saber se dá apenas na metafísica, que informa o
paradigma unicista do meio físico  physys  e das entidades não materiais 
retórica  (LESSA, 2003).
É a techné que define a política, que é o mundo, como observa Vernant
(VERNANT, 1972), da discussão, da argumentação, do conflito, enfim, da
proeminência da palavra. A polis é a organização coletiva dos homens buscando a
eudamonia, ou o bem comum, na qual os cidadãos1 participam da vida política através
das assembléias deliberativas do governo. Os cidadãos advogam através da retórica os
empreendimentos que podem assegurar a prosperidade material e não material da
comunidade política. Por se tratar do mundo da palavra, não existe uma causa única
para os fenômenos tidos como políticos, mas um mesmo princípio ontológico que se dá
pela pesquisa, comparação e indução das Constituições. De acordo com Aristóteles, a
Constituição define a forma segundo a qual os homens se relacionam e define o ethos da
organização coletiva, podendo resultar tanto na eudamonia quanto na corrupção da
polis, ou na justiça ou injustiça, respectivamente. É aqui que o tema da corrupção
aparece na obra aristotélica e ganha centralidade enquanto mecanismo induzido de
aproximação ou verossimilhança com a verdade das Constituições.
O estudo das Constituições, tal como elaborado por Aristóteles (ARISTÓTELES,
1985) o permite formular seis tipos de governo, sendo três deles justos ou que
1
Cabe destacar que o cidadão aristotélico é aquele indivíduo que se dedica exclusivamente aos assuntos
públicos, que não está atrelado a qualquer tipo de vantagem pessoal, que se dá na esfera da oikia, na qual
se encontram os escravos, as mulheres, as crianças e os soldados.
5
perseguem o bem comum, e três deles injustos, em que os homens sobrepõem suas
vantagens privadas ao bem comum, ou às vantagens da coletividade. A diferença que
caracteriza as três formas boas, de um lado, e as três formas corrompidas, de outro, é
identificar com quem está a soberania do governo, se apenas com uma pessoa, com
algumas ou com muitas pessoas.
A monarquia é a forma boa de governo em que o monarca persegue o bem comum
da polis, além de ser a forma mais praticável, porque o governante não necessita
coordenar sua ação com a dos demais cidadãos. A segunda forma justa de governo é a
aristocracia, em que o governo está nas mãos dos melhores, ou seja, dos cidadãos
dotados da devida virtude, que os permite distingüir o bem do mal, além de ser a forma
de governo mais duradoura porque os aristocratas temperam melhor as paixões.
Finalmente, a terceira forma justa ou boa de governo é a politia ou timocracia, em que o
poder está nas mãos de muitos. É a forma de governo mais sublime e mais instável, já
que depende da areté dos homens para não degenerar em sua forma corrompida.
Conforme os critérios de identificação da soberania, Aristóteles faz corresponder a
cada uma das formas justas de governo sua forma corrompida, que surge quando os
homens elevam suas vantagens privadas ao bem comum, fazendo surgir a imagem da
ganância e das paixões. A busca pela eudamonia dá lugar, segundo Aristóteles, à busca
pelas vantagens privadas, fazendo com que o resultado da participação na polis seja a
ausência da liberdade. À monarquia corresponde a tirania enquanto forma corrompida
de governo, em que o tirano oprime o povo através do uso da força contra os cidadãos.
À aristocracia corresponde a oligarquia, forma de governo segundo a qual alguns
oprimem o povo expropriando a produção coletiva para o atendimento de suas
vantagens privadas. Enfim, à politia corresponde a democracia enquanto forma
corrompida, em que o demos se torna desejoso por vantagens e não consegue alcançar o
bem comum.
As seis formas de governo são as formas possíveis, induzidas racionalmente por
comparação. Segundo a concepção aristotélica, porém, o estudo das Constituições
permite estabelecer qual a forma de governo que poderia evitar a corrupção e assegurar
a eudamonia, impedindo a elevação dos desejos ou a busca por vantagens privadas.
Aristóteles, então, formula a idéia de um governo misto, a politéia, que mistura cada
uma das características das três formas justas de governo, fazendo confluir os diferentes
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tipos de razão que movem a ação dos homens. Como observa Skinner (SKINNER,
1996), Aristóteles não admitia a existência da dimensão privada na politéia, porque o
governo não deve ceder aos desejos dos homens apetitosos, evitando assim a sua
corrupção. A forma mista de governo, portanto, integra as forças antagônicas da
comunidade, fazendo-as se inclinarem para a moralidade e para a justiça (CARDOSO,
2000). A corrupção em Aristóteles, portanto, significa a sobreposição dos desejos 
vantagens privadas  sobre a eudamonia  bem comum.
Aristóteles lança o pressuposto fundamental a partir do qual podemos analisar a
corrupção na política. A sobreposição das vantagens pessoais  desejos  à
eudamonia  bem comum  torna o governo corrompido na medida em que a ordem
dá lugar às paixões. É a partir deste pressuposto e da tradição do governo misto
inaugurada por Aristóteles, tendo em vista o pressuposto do conhecimento verdadeiro,
que Políbios· fez um minucioso estudo comparativo das Constituições, afirmando que a
espartana, elaborada por Licurgos, é a superior, porque agrega as diferentes paixões dos
homens, sendo essas decorrentes das causas naturais das sociedades e da política.
Políbios (POLÍBIOS, 1985) mantém o paradigma ontológico unicista da forma de busca
da verdade de Aristóteles, mas agrega a ele uma filosofia da história que possibilite ao
estudioso da política observar as mudanças no tempo da forma de acordo com a qual os
homens se organizam em coletividade.
A filosofia da história de Políbios tem a peculiaridade de afirmar que a
organização dos homens é uma sucessão cíclica de formas de governo, na qual a
corrupção desempenha um papel fundamental. O autor utiliza a imagem da ferrugem e
do caruncho para caracterizar a corrupção como um mal inerente a todas as
Constituições ou formas de governo. É um fenômeno natural que decorre da
predisposição do homem ao apetite e à ganância:
Do mesmo modo que a oxidação no caso do ferro e o caruncho e as
cracas no caso da madeira são pragas ínsitas a esses materiais, e
eles, embora escapem dos agentes destruidores externos, são desfeitos
por elementos nocivos presentes em si mesmos, cada Constituição
sofre de um mal congênito e inseparável de si mesma  na
monarquia esse mal é a tendência ao despotismo, na aristocracia é a
tendência à oligarquia, e na democracia é a tendência à selvageria e
ao império da violência ; e como foi dito há pouco, é impossível
7
que cada um desses tipos de Constituição não tenda com o tempo a
converter-se na sua forma degenerada.
(POLÍBIOS, 1985, 332).
O ponto de partida polibiano é a assertiva de que os homens naturalmente se unem
e formam grupos, pois são os únicos animais dotados do sentimento de costume e os
únicos que conseguem, por meio da razão, formular leis que assegurem a justiça, tendo
em vista o sentido do bem comum. À medida que a organização coletiva dos homens se
expande, eles vão formando leis que sintetizam objetivamente os costumes, derivados
historicamente através da capacidade de lembrança. As leis e os costumes, portanto, são
os fundamentos de acordo com os quais é possível fazer uma análise do político, porque
eles incitam em todas as criaturas humanas a noção de dever, que é o princípio e a
finalidade da justiça.
Do mesmo modo que Aristóteles, Políbios identifica seis formas possíveis de
governo, sendo também três delas justas ou boas e três delas más ou corrompidas. A
monarquia é a primeira forma de governo que os homens empreendem, a qual se
caracteriza pela soberania de apenas um  o monarca , que utiliza sua autoridade
para alcançar a justiça e o bem comum, além de defender o povo dos perigos externos.
O povo o obedece e o venera não por temer sua força, mas por saber que sua autoridade
é confiável. O mal inerente à monarquia é o fato de o povo, esperando que os filhos do
monarca tenham suas mesmas virtudes, transfere o poder hereditariamente para a sua
sucessão. Como a organização coletiva leva à abundância material e à segurança do
povo, os filhos do monarca cedem aos desejos e são levados a pensar que os
governantes devem ser distintos dos súditos. Estes hábitos inerentes ao poder transferido
por hereditariedade levam à inveja e à cólera, ensejando a degeneração da monarquia
em sua forma corrompida: a tirania.
A tirania é o governo do governante desejoso, que utiliza sua força para oprimir o
povo e atender sua exclusiva vontade. Nessa forma de governo, segundo Políbios, não
são concebidas as idéias de justiça e bem comum, porque os homens, percebendo que o
governante é desejoso, também se tornam desejosos, fazendo com que cada um busque
apenas as vantagens privadas, impedindo, desta forma, a busca do bem comum.
Entretanto, a tirania incita nos súditos a vontade de depor o tirano, fazendo com que a
tirania dê lugar às conspirações. Uma vez que o povo é fraco para depor o tirano
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sozinho, eles se juntam aos homens ilustres e corajosos da comunidade. Com as
conspirações, inicia-se a degeneração do poder tirânico numa forma boa de governo, já
que os homens ilustres não têm disposição para suportar a injustiça. A tirania degenera,
então, numa nova forma de governo boa: a aristocracia2.
A aristocracia é o governo dos melhores, que administram com diligência os
negócios públicos e mediam os litígios da vida privada3. O povo, livre da opressão,
confia o poder aos paladinos, os quais, ilustres que são, governam o Estado em busca do
bem comum, na medida em que enfrentaram os males e infortúnios da tirania. Todavia,
a aristocracia sofre do mesmo mal que a monarquia. A aristocracia degenera em sua
forma corrompida quando os filhos dos aristocratas, sem conhecer os infortúnios e
herdando as prerrogativas de seus pais, passam a dedicarem-se à ânsia de ganhar
dinheiro e ao abuso do poder que o povo lhes confiou.
A aristocracia degenera, então, na oligarquia, que é, segundo Políbios, o governo
dos poucos homens que buscam apenas vantagens privadas e não praticam o decoro
com base nos costumes e nas leis. A oligarquia degenera quando povo percebe que não
pode confiar o poder a uma pessoa, porque pode degenerar na tirania, nem que pode
confiar o poder aos ilustres da sociedade, porque o governo pode se tornar de poucos. A
degeneração da oligarquia acontece quando o povo se dispõe a governar, gerando, de
acordo com Políbios, a democracia.
A democracia é o governo de muitos, do demos, em que são generalizados os
sentimentos de igualdade e de liberdade entre os homens, a partir dos quais todos são
responsáveis pela condução dos negócios públicos. Por ter sofrido todos os infortúnios
da opressão, o povo se volta para a construção da justiça e do bem comum, tendo como
horizonte os costumes e as leis. A democracia, de acordo com Políbios, degenera
quando os sentimentos de igualdade e de liberdade dão lugar aos desejos. Por se tornar
ávido, cada homem, na expectativa de chegar ao poder, tenta corromper e subornar os
2
É importante frisar que o sentido da palavra degeneração, tal como utilizada por Políbios, tem a idéia de
mudança, transformação, enquanto corrupção significa o governo que não consegue assegurar o bem
comum da comunidade política.
3
É importante notar que Políbios já assimila a distinção presente no direito romano entre vida pública e
vida privada. Ao contrário de Aristóteles, que afirma uma dimensão mais ética em relação ao todo social,
Políbios contrastava a dimensão privada e a dimensão pública, sendo que a segunda garante a moralidade
da primeira. Esta noção irá fundamentar a noção de direitos na modernidade perpassando o tempo até o
presente, e também a noção de conflito como estruturante da liberdade em Maquiavel, conforme veremos
adiante.
9
demais, na tentativa de ter maiores prerrogativas do que seus semelhantes. O povo,
então, passa a cultivar a busca das vantagens privadas e o hábito de recebê-las, fazendo
com que o governo da igualdade e da liberdade degenere no “império da violência”, a
oclocracia.
Finalmente, a última forma de governo é aquela em que o homem volta ao seu
ponto de partida, à sua animalidade total4, em que ele massacra e saqueia seu
semelhante com vistas apenas às suas vantagens pessoais. As leis e os costumes na
oclocracia de nada servem porque é o governo ingovernável. A oclocracia fecha o ciclo
das Constituições, fazendo com que a comunidade política volte ao seu ponto de partida
e reproduza novamente as formas de governo.
Se a corrupção na política é um fenômeno inerente a qualquer forma de
Constituição, como então Políbios sustenta a possibilidade de haver repúblicas
prósperas  como Esparta e Roma  e repúblicas corrompidas? O problema colocado
teoricamente se resolve, de acordo com Políbios, pela análise da história, que permite
observar como se dá o desenvolvimento da civilização através da organização de uma
forma tal que impeça a corrupção.
Como afirmamos anteriormente, Políbios via nas leis e nos costumes os dois
fundamentos da sociedade. As leis, como mostra o autor, devem ser boas a tal ponto que
moderem a vida privada, protegendo a comunidade política dela mesma, e gerem a
justiça e motivem o homem a buscar o bem comum. De outro lado, os costumes são
peças fundamentais para a prosperidade de uma república, porque eles podem, ou tornar
os homens desejosos em sua vida privada e injustos na vida pública, ou virtuosos a tal
ponto que cultivem a igualdade e a liberdade, assegurando a solidariedade. São os
costumes (que podem ser entendidos como cultura) que legam às gerações futuras
determinados valores mediante os quais poderá ser impedida a corrupção do corpo
político5.
4
A animalidade, aqui referida, nada tem a ver com o conceito de animal político de Aristóteles. Em
Políbios, a animalidade humana diz respeito ao Estado mais arcaico, irracional, da humanidade, enquanto
que em Aristóteles a animalidade significa a forma natural com que os homens vivem juntos e participam
da vida coletiva em sociedade, tornando-os um animal social.
5
Políbios está observando os enterros dos monarcas romanos, cujo velório era feito em praça pública,
seguidos de procissão e enaltecimento da grandeza de Roma. Os rituais cívicos informam aos indivíduos
incentivos para participarem dos negócios públicos através de valores que possibilitem o
compartilhamento de identidades e a formação da solidariedade, uma vez que os homens percebem que
vivem juntos e necessitam cooperar uns com os outros.
10
É neste sentido, segundo Políbios, que o governo misto, tal como elaborado na
Constituição de Licurgos, pode assegurar a prosperidade e evitar a corrupção. O
governo misto é uma organização institucional do Estado que visa à disposição de
mecanismos de voz a todos os cidadãos e a todas as classes sociais, além de encerrar o
ciclo de degeneração e corrupção. A idéia de misturar as três formas boas de governo
possibilita a institucionalização do conflito, em que o Estado passa a contar com um
remédio republicano para evitar a corrupção: a participação de todas as camadas da
sociedade na consecução dos negócios públicos através do devotamento de cada
cidadão à pátria. A força desta afirmação polibiana pode ser expressa na seguinte
citação:
Na minha opinião toda sociedade política tem dois fundamentos, que
tornam preferíveis ou indesejáveis os seus poderes e o seu sistema de
governo; esses fundamentos são os costumes e as leis. O elemento
preferível nestes e nestas torna a vida privada dos homens honesta e
sóbria, e a conduta na vida pública em geral afável e justa, enquanto
seu elemento indesejável tem o efeito contrário. Assim, quando
observamos que os costumes e as leis de um povo são bons, não
hesitamos em afirmar que os cidadãos e seu governo são igualmente
bons, e quando notamos que os homens são gananciosos em sua vida
privada e injustos na vida pública, estamos manifestamente
capacitados a dizer que suas leis, seus costumes em particular e seu
governo como um todo são maus.
(POLÍBIOS, 1985, 340-1).
Com o inventário das noções de Aristóteles e Políbios sobre a política e a forma
segundo a qual é possível compreender este fenômeno prático, podemos identificar a
constante lógica que define a corrupção enquanto antinomia da organização justa dos
homens em coletividade. A corrupção na política é a sobreposição das vantagens
privadas sobre o bem comum. Sua causa está no baixo alcance da ética, expressa, como
observa Políbios, tanto nas leis quanto que nos costumes. De outro lado, uma primeira
conseqüência que podemos identificar é seu caráter destruidor da comunidade política.
Uma comunidade em que seus participantes apenas busquem vantagens privadas e não
consigam formular uma idéia de bem comum  eudamonia  faz com que todos
percam, porque a finalidade da organização coletiva não resulta na felicidade, apesar de
ser um fenômeno necessário para que alcancemos o entendimento do que seja a
eudamonia.
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III
O ano de 43 a.C. é marcado pelo assassinato de César e pela precipitação da crise
republicana em Roma. Após lutas fratricidas pelo poder, Augusto implanta o regime
imperial e enseja a tão desejada Pax Romana. Se o novo regime trazia a tranqüilidade e
a segurança, a liberdade e a cidadania eram fundamentalmente deixadas de lado, criando
condições propícias para que todos não se engajassem na causa romana e preferissem a
apatia diante do imperador Augusto. O período da corrupção romana é particularmente
retratado por Ovídio, em Metamorfoses, em que o apego à tradição, à glória na guerra
ou nos tribunais e a atividade política intensa dão lugar ao culto ao amor, ao pacifismo e
à apatia diante da res publica. Ovídio retrata a Roma do mundanismo, em que as
vantagens privadas estão acima de qualquer construção do bem comum. O mundo das
paixões é o mundo da decadência moral, dos homens apáticos e auto-interessados. As
Metamorfoses de Ovídio é a teoria da corrupção em Roma: se, de um lado, a república
dá lugar ao império, de outro, os cidadãos se tornam apáticos.
É com o mesmo espírito latino de Ovídio que Maquiavel (MAQUIAVEL, 1982),
já na Renascença, recupera a história de Roma para formular uma teoria política da
corrupção. A teoria política de Maquiavel, como observa Bignotto (BIGNOTTO, 1991),
surge no momento em que ocorre a ampliação do papel do Estado, resultando na
degeneração do período medieval. O autor de O Príncipe trabalha a política de um
ângulo em que ela é uma função do homem sujeito da história, do homem livre do
idealismo e que constrói sua realidade através de seus atos e desejos. Esta concepção
parte da idéia de homens de virtú, que sabem como dominar a Fortuna6 e lidar com as
contingências da política cotidiana.
Maquiavel não tem a pretensão de formular tipos de governo, como fazem
Aristóteles e Políbios, mas afirma, com base na observação histórica, que, no mundo
real, todos os Estados ou foram ou são monarquias ou repúblicas. Para o autor de O
6
A Fortuna é uma referência a uma boa deusa da mitologia latina, filha de Júpiter, que tinha o poder de
dar todos os bens que os homens desejassem. Para conseguir suas benesses, os homens necessitam, de
acordo com Maquiavel, seduzir esta deusa e se mostrar vir, de inquestionável coragem e diligência para
alcançar seus presentes. Os homens, para atingir as benesses da Fortuna, necessitam possuir a virtú no
grau mais elevado, isto é, necessitam ser virtuosos e viris o suficiente para que tenham a capacidade de
ação no tempo, sabendo lidar com as contingências de seus atos, o que resulta na prosperidade.
12
Príncipe, o que diferencia a monarquia da república é que, enquanto a monarquia é
legibus solutus, a república é legibus restricta.
O governante de Maquiavel, não importa se ele governa uma monarquia ou uma
república, deve ser virtuoso o bastante, ou seja, deve saber seduzir a Fortuna para
alcançar a estabilidade e gerar as condições necessárias para se manter no poder e
ganhar o respeito de seus súditos. O governante, de acordo com o florentino, deve
utilizar sua virtude para gerar boas leis e, consequentemente, boas instituições que
garantam a manutenção dos costumes e a segurança do Estado contra os males externos,
canalizando as forças internas para a prosperidade de todos, isto é, o bem comum.
Nos Discorsi, Maquiavel (MAQUIAVEL, 1985) afirma que o centro da política é
o conflito ou uma esfera pública em que os desejos são, por princípio, incompatíveis. O
conflito, segundo o autor, é desejável e é fonte do vigor dos homens em relação à
república, porque assegura a ação política por meio da participação cívica dos cidadãos
na condução dos negócios públicos (SKINNER, 1981). Homens apáticos, que não lutam
por seus desejos, de acordo com o pensador florentino, não seduzem a Fortuna, logo,
não são capazes de lidar com as contingências e são presas fáceis dos dominadores.
Para uma república ser próspera e seus cidadãos buscarem o bem comum, é
necessário que este conflito seja institucionalizado na forma de leis que eles
compartilhem a partir de uma crença comum acerca de sua efetividade. A aposta
republicana, nesse sentido, será a institucionalização do conflito mediante leis que
garantam a liberdade e a participação  virtú  num contexto histórico/político
marcado por contingências (SKINNER, 1981).
Maquiavel lembra que o conflito entre o povo e o Senado foi a causa da liberdade
e da grandeza da república romana. A participação dos homens nos negócios públicos
provoca a moderação dos desejos dos aristocratas do Senado, evitando sua degradação e
mantendo a liberdade intacta. De outro lado, os aristocratas não permitem que os
plebeus tomem o poder e que as virtudes dêem lugar aos desejos desenfreados. Como
observa o florentino:
De fato, se considerarmos o objetivo da aristocracia e do povo,
perceberemos na primeira a sede do domínio; no segundo, o desejo de
não ser degradado  portanto, uma vontade mais firme de viver em
liberdade, porque o povo pode bem menos que os poderosos ter
esperança de usurpar a autoridade. Assim, se os plebeus têm o
13
encargo de zelarem pela salvaguarda da liberdade, é razoável
esperar que o cumpram com menos avareza, e que, não podendo
apropriar-se do poder, não permitam que os outros o façam.
(MAQUIAVEL, 1985, 33).
Se, de um lado, a institucionalização do conflito assegura a liberdade republicana,
de outro lado, Maquiavel concorda com Políbios de que o aparato legal do Estado
necessita de valores compartilhados pelos cidadãos para que a lei se torne efetiva.
Maquiavel recorre ao tema da fundação da república como uma figura simbólica,
responsável por assegurar uma série de valores cívicos que possibilitem a crença
comum dos cidadãos acerca da efetividade das instituições republicanas. Se a causa da
grandeza de Roma é o conflito entre o povo e o Senado, Maquiavel resguarda o aparato
jurídico da república com a crença comum que ressalta a identidade do povo para com
ela.
Se a grandeza de uma república se dá pela institucionalização do conflito e pela
sua fundação, ela se corrompe quando esta institucionalização se torna ineficiente e
quando o povo perde de vista os valores de sua fundação. Em uma república
corrompida, como aponta o florentino, não há mais a concórdia entre os homens. De um
lado, os governantes passam a legislar em causa própria, sobrepondo suas vantagens
privadas ao bem público. De outro lado, os cidadãos não mais buscam o bem comum,
na medida em que perdem a virtú necessária para seduzir a Fortuna, passando a viver de
acordo com as contingências, tendo em vista apenas seus interesses imediatos.
Mas, quando os cidadãos se corromperam, a instituição ficou sujeita
a numerosos inconvenientes: só os homens poderosos passaram a
propor leis, não no interesse da liberdade, mas no do seu próprio
poder; e ninguém ousava falar contra esses projetos, devido ao temor
que seus proponentes inspiravam. De modo que o povo, enganado ou
constrangido, se via obrigado a decretar a própria ruína.
(MAQUIAVEL, 1985, 76).
A corrupção é a incapacidade do povo de manter a sua liberdade, já que o poder se
dá apenas na busca pelas vantagens privadas. Maquiavel designa ao potencial com que
os homens compartilham a crença nas instituições da república a efetividade das leis
entendida como capacidade institucional do Estado  sinônimo de estabilidade política,
eficiência e honestidade  e, por conseguinte, da corrupção enquanto patologia
14
institucional  sobreposição das vantagens privadas ao bem comum  (SHUMER,
1979).
O arranjo institucional do Estado e a consecução de boas leis são fundamentais
para resguardar a república da corrupção. Maquiavel está preocupado em criar
instituições que assegurem a grandeza de uma república, já que o homem é facilmente
corrompido, porque as paixões são os móveis da ação humana. Dada a fragilidade
humana, o florentino opta por mostrar a forma como as instituições políticas exercem
esse papel de domesticação das paixões, estabelecendo sanções que assegurem a
responsabilização onde a irresponsabilidade é que impera (VATTER, 2000).
A corrupção, portanto, de acordo com Maquiavel, é o fenômeno segundo o qual
os homens são incapazes de canalizar suas energias na construção do bem, colocando
suas exclusivas vantagens privadas acima do bem comum da comunidade. Na História
de Florença (MAQUIAVEL, 1995), o autor mostra como a corrupção resulta na ameaça
da liberdade, já que os cidadãos de Florença foram perdendo, ao longo do tempo, sua
virtú. Maquiavel acusa tanto a população quanto a aristocracia pela corrupção da
república florentina. De um lado, porque a população promoveu a licenciosidade e a
apatia. De outro lado, porque os aristocratas promoveram a escravidão e passaram a
legislar em causa própria.
IV
A partir do século XVII a filosofia política presenciará o retorno de uma
concepção ética como horizonte de discussão teórica, da qual é possível retirar uma
dimensão normativa que informa padrões ideais de concepção da boa ordem política. É
este espírito de repensar a ordem política com base nos fundamentos normativos e em
critérios lógicos que anima Hobbes (HOBBES, 1979) a formular idéias a respeito de
como se dá a relação entre os súditos e o soberano.
É repensar a Inglaterra de seu tempo que move Hobbes a conceber a soberania
enquanto um contrato formulado entre os homens para acabar com a guerra
generalizada. Seu debate com Edward Coke a respeito da legitimidade da common law
move-se neste interregno. Se a common law é concebida como um direito preexistente
ao Estado e independente dele, afirma Hobbes, então, ela não assegura a obediência dos
15
homens às leis porque a mesma não deriva de um ente soberano que expresse o poder
mediante a razão, fazendo com que a justiça fique à mercê da sapiência dos juízes. É a
busca de padrões racionais da ordem política que move Hobbes a pensar uma forma de
estabelecer a soberania e um critério de legitimidade da lei com base na razão.
Se no estado de natureza os homens são tão iguais que ninguém consegue
dominar, porque todos utilizam a força igualmente para atingir seus objetivos, a lógica
inerente a este processo é que, como um indivíduo jamais saberá qual será a atitude do
outro, e este outro não consegue saber qual será a atitude dele, o mais razoável, segundo
Hobbes, é que todos tentem se antecipar às usurpações dos outros. Já que o homem é tão
igual que ninguém consegue triunfar de maneira total sobre o outro, todos serão opacos
diante dos olhos de seu semelhante e, desta forma, não será possível qualquer forma de
desenvolvimento das faculdades humanas, porque a natureza igual dos indivíduos faz
com que neste estado todos utilizem racionalmente a violência como meio de adquirir
sua sobrevivência. No estado de natureza luta-se por sobrevivência, e ninguém é
confiável o bastante que não mereça ser tratado de forma a impedir a usurpação.
Deste estado de natureza deriva um direito de natureza que assegura o uso da
força individual como fonte legítima da sobrevivência. Pelo direito de natureza, é
legítimo que o homem utilize toda a força que achar necessária para assegurar a vida.
Consequentemente, pode fazer tudo o que lhe aprouver, cabendo apenas o julgamento
individual dos meios necessários para se atingir os fins propostos (RIBEIRO, 1984). A
“guerra de todos contra todos” ocorre porque cada indivíduo vive imaginando a ação
dos outros homens e racionaliza formas de assegurar a integridade de sua vida. Ora o
indivíduo se imagina poderoso para competir, ora desconfia de seus semelhantes, ora
busca a glória. Essas são as três causas da guerra generalizada entre os homens.
Se a discórdia universal é resultado de uma natureza violenta dos homens, dela
decorre uma lei de natureza, que não pode ser confundida com o direito de natureza.
Para que o direito se torne justo, necessita de uma lei de natureza que assegure um
padrão moral mínimo, circunscrito no estado de natureza. Se a natureza do homem é
sinônimo de discórdia, deve-se estabelecer uma lei que “proíbe a um homem fazer tudo
o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou
omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la” (HOBBES, 1979, 78).
16
Se a regra é que todos os homens têm o direito a todas as coisas, incluindo a vida
dos outros e excluindo as suas, a lei de natureza, que busca preservar a vida, leva,
inevitavelmente, a um preceito geral da razão, que obriga os homens a buscarem
incessantemente a paz. É este preceito lógico que leva Hobbes a conceber a solução do
fim do conflito geral entre os homens como um fato inerente à sua própria natureza.
Esta ontologia, portanto, implica na busca racional do Estado como o teorema lógico
fundamental de constituição da sociedade política.
A solução hobbesiana para o problema da origem e da necessidade da ordem
política decorre desta concepção lógica da lei de natureza, que busca a preservação da
vida em relação ao conflito generalizado entre os homens. Para se alcançar a paz e, por
redundância, o fim do conflito, os homens, segundo Hobbes, devem renunciar a seu
direito de natureza para que possa fazer uso de sua liberdade em relação a seu
semelhante. Esta renúncia recíproca ao direito de natureza dá origem a um contrato
acima dos homens, para o qual cada um contribui igualmente, fazendo emergir deste
estado de natureza um Estado soberano, responsável por transpor ao direito de natureza
um direito positivo, que assegure o monopólio legítimo do uso da força a um soberano,
responsável por dar termo a todo tipo de conflito ou litígio entre os homens.
Ao fundamento jurídico, como observa Hobbes, do Estado civil, corresponde um
Estado armado, cuja força é irresistível e obriga os homens, através da coerção, a
respeitarem o direito positivo calcado na lei natural. Uma lei sem espada, como
pretendiam os defensores da common law, não dá segurança a ninguém, como assevera
o autor. A conotação ética da concepção hobbesiana é que todos abram mão de suas
vantagens privadas  direito de natureza  em nome de uma ordem política que
assegure padrões morais, mediante o direito civil, e force os homens a buscar o bem
comum: a segurança da qual resulta a liberdade e a igualdade em comum.
Se o Estado civil soberano, dotado do monopólio da força, implica na forma
possível de fim da beligerância entre os homens, sua corrupção não se dá pelo uso
abusivo desta força, mas porque alguém abriu mão do contrato em nome de seu direito
de natureza. A corrupção da ordem política, de acordo com Hobbes, não se dá quando o
Estado soberano comete iniqüidade ou injustiça, mas quando alguém abre mão do bem
comum possível  a segurança  a favor de seu exclusivo interesse privado. A
corrupção em Hobbes ocorre quando os valores comuns partilhados pelos indivíduos de
17
determinada sociedade política, através do contrato, dão lugar às vantagens privadas
decorrentes da usurpação pelo direito de natureza, por meio do qual cada um pode fazer
aquilo que tiver vontade e se apossar indevidamente daquilo que não lhe pertence
(MACPHERSON, 1979).
Por outro lado, a conseqüência é o inevitável retorno ao estado de natureza, em
que a “guerra de todos contra todos” impede a liberdade e o devido uso da razão. Como
aponta Hobbes, é com a espada que o soberano combate a corrupção dos homens,
forçando-os à obediência das leis civis e garantindo esferas de liberdade e igualdade de
todos. A justificação do direito positivo ou civil é o medo que cada indivíduo cultiva da
força irresistível e incontestável do Estado, que é responsável por transpor, tanto no
plano jurídico quanto no plano social, o direito civil como fundamento da liberdade que
cada um tem em relação a seu semelhante, além de impedir que a ordem se corrompa.
V
As teses de Newton a respeito da natureza, calcadas nas descobertas de Galileu,
causam uma reviravolta na forma como se dá o conhecimento do mundo. A busca de
mecanismos explicativos das coisas com base no mundo real e de sistema conceituais
generalizáveis movem os pensadores a refletirem sobre os limites que cercam a ciência
e a forma segundo a qual o mundo pode ser produzido.
Sem dúvida este mote orienta as reflexões de Montesquieu (MONTESQUIEU,
1973), mas ele não renuncia ao passado, à tradição, porque os homens são as únicas
criaturas dotadas da capacidade de formar uma história. Portanto, de acordo com o
pensador francês, a reflexão não pode abrir mão do passado, mas deve recorrer a ele
para pensar o presente e prescrever o futuro. Montesquieu, portanto, ocupa no
pensamento político um lugar de transição entre a Antigüidade clássica e a
modernidade, justamente porque seu objetivo é amalgamar o novo com o tradicional,
fazendo uma leitura da república romana para pensar o seu tempo.
No que tange ao moderno, O Espírito da Leis constitui uma narrativa histórica
com o objetivo de tornar o mundo inteligível através de uma ordem conceitual
generalizante que organiza o processo de entendimento da realidade (ARON, 1990). É
por isso que Montesquieu lançou as bases para a ciência social moderna, tendo em vista
18
uma epistemologia decorrente da realidade concreta que cerca o observador
(ALTHUSSER, 1972).
No que tange ao tradicional, Montesquieu constrói um modelo ideal normativo, a
partir do qual buscará as fontes éticas e morais da política. Através do desenvolvimento
de uma tipologia das formas de governo, com profunda inspiração aristotélica, o autor
faz predominar um viés normativo, um “dever ser” que organiza os modos de pensar e
de agir do político.
É nesse sentido que Montesquieu abordará a política a partir de dois fundamentos
ontológicos da ordem: a conjunção da natureza e dos princípios que organizam os
diferentes tipos de governo. Por natureza o autor entende a forma da soberania, sendo
ela constituída pelo governo de um, de alguns ou de muitos, o que faz com que o
governo seja o que ele de fato é. Por outras palavras, a natureza é a organização
institucional do Estado. Por princípios o autor entende aqueles sentimentos recorrentes
na ordem social que fundamentam a organização da natureza a partir da harmonia e da
obediência dos homens em relação às leis. O princípio do governo é a paixão que
orienta as atitudes dos homens em relação ao aparato institucional do Estado.
São três os tipos de governo na teoria de Montesquieu. A república é o governo
do povo, em que a soberania está localizada na totalidade dos cidadãos ou em alguns
cidadãos eleitos pela coletividade. A república pode ainda se dividir em democracia, na
qual o governo é exercido por muitos, e em aristocracia, em que o governo é exercido
por alguns. A natureza do governo republicano é o fato de a soberania ser exercida pelo
povo. De outro lado, seu princípio é a virtude, ou seja, o espírito cívico que eleva o bem
comum sobre as vantagens privadas e assegura o decoro dos homens em relação à coisa
pública, que consiste no respeito às leis e no devotamento do homem à coletividade. O
despotismo é a forma de governo, cuja natureza consiste no exercício do governo por
uma só pessoa, sem leis fixas e sem regras. Seu princípio é o medo, um sentimento
apolítico por natureza, a partir do qual os homens se submetem a uma força maior, que
governa mediante a corrupção. Finalmente, a monarquia é o governo de uma só pessoa,
ou seja, sua natureza é que apenas uma pessoa exerça a soberania, que, por sua vez, é
alicerçada em leis fixas que moderem o apetite do monarca, decorrente dos costumes da
sociedade. O princípio que orienta a monarquia é a honra, que corresponde a uma
paixão pelos privilégios e pelas prerrogativas da nobreza.
19
Com base na realidade efetiva das coisas, Montesquieu aponta que a república é
um regime político que pertence ao passado, no qual pequenos grupos de homens
virtuosos se reuniam em uma esfera pública para deliberarem os negócios do governo,
tendo em vista uma certa igualdade de riquezas e de valores. O contexto de crescimento
das populações, do comércio e da diversificação de riquezas enseja um processo de
fissura da sociedade em classes sociais que redunda na não prosperidade das virtudes
cívicas. Uma vez que a virtude necessita, para se tornar efetiva, de uma ampla igualdade
de condições entre os cidadãos, a diferença provoca o surgimento da cólera e da inveja,
fazendo com que o regime se corrompa através da sobreposição das vantagens privadas
ao bem comum.
A modernidade para Montesquieu é o mundo dos interesses, na medida em que
não é mais possível a manutenção das virtudes num mundo que busca incessantemente a
acumulação de riquezas. Se as virtudes não são mais o cimento da sociedade, é
necessário buscar nas leis positivas o fundamento da boa ordem política, distribuindo e
organizando o poder, além de mediar os interesses e canalizá-los para a busca do bem
comum. Montesquieu rompe com a Antigüidade ao afirmar que o problema da política
não é um problema de paidéia, mas sim da maneira como será possível à humanidade
criar leis positivas que exprimam penalidades mediante as quais se processará
constrangimentos morais às paixões dos homens (ALTHUSSER, 1972). Montesquieu
está preocupado com a forma como os homens criarão artifícios nomológicos que
exprimam, por meio da coerção, constrangimentos aos próprios homens em relação à
res publica.
Se a modernidade é o mundo dos interesses e da desigualdade, é a monarquia que
é mais condizente com este contexto, justamente porque ela se baseia na honra. A
monarquia é o governo das leis, que utiliza a ambição para contrariar a ambição, ou
seja, se utiliza de leis fixas e instituições efetivas que fazem com que os interesses
privados resultem em bens públicos. No entanto, como observa o autor de O Espírito
das Leis, o monarca não pode governar sozinho, pois se a natureza da monarquia fosse
essa, ele não teria sua ambição contrariada. Já que a ambição deve contrariar a ambição,
o arranjo institucional da monarquia deve ensejar a separação dos poderes para moderar
os apetites humanos e evitar que ela caia no despotismo. Montesquieu assevera que a
condição para a manutenção da liberdade é o arranjo institucional da monarquia prever
20
freios e contrapesos do poder, ou seja, separar os responsáveis por criar as leis daqueles
que as julgam e daqueles que as executam. Além da separação horizontal do poder, o
monarca deve ser contrariado verticalmente pelo povo. É a partir do surgimento das
classes sociais que o autor falará dos organismos intermediários enquanto força social
capaz de moderar os apetites dos governantes, além da criação de canais de participação
destes, ligando Estado e sociedade. Sobre esse ponto, Althusser (ALTHUSSER, 1972)
observa que a teoria da separação de poderes de Montesquieu não é apenas um
problema jurídico-administrativo da organização do governo, como vários outros
comentadores observaram, mas um problema de se criar correlações de força que
moderem as paixões e os interesses das diferentes classes sociais, mantendo intacta a
liberdade política.
Se o que mantém a liberdade na república são as virtudes, o que mantém a ordem
no despotismo é o medo e se o que mantém a liberdade na monarquia é a honra,
podemos afirmar com Montesquieu que “[A] corrupção de cada governo começa quase
sempre pela dos princípios” (MONTESQUIEU, 1973). A corrupção do governo ocorre
quando o móvel psicológico dos comportamentos políticos não mais assegura a
moderação dos apetites, fazendo com que as instituições políticas não mais consigam
efetuar suas responsabilidades e que a harmonia dê lugar à discórdia entre os cidadãos e
à desconfiança interpessoal, esmaecendo a solidariedade entre os homens e
implementando a desordem geral.
Desta forma, a república democrática é corrompida quando as virtudes cívicas dão
lugar aos interesses privados, cuja igualdade leva ao espírito de igualdade extrema, em
que cada cidadão não mais quer obedecer à autoridade legítima do Estado, mas às suas
próprias convicções, resultando na desordem total. O efeito da corrupção da democracia
é sua condução ao despotismo de um só em decorrência do espírito de igualdade
extrema. O não devotamento à coletividade conduz à licenciosidade e à libertinagem,
redundando na supremacia dos interesses privados sobre os interesses públicos. Na
medida em que a república não precisa de leis positivas, ela facilmente se corrompe,
dado que seu princípio organizador é a virtude.
A república aristocrática é corrompida quando os nobres da sociedade não mais se
orientam pelo espírito público, a partir do momento que seu poder se torna arbitrário,
transformando a obediência dos súditos em submissão, ou seja, a aristocracia
21
transforma-se em oligarquia7. Montesquieu observa que um dos principais fatores de
corrupção da aristocracia é ela tornar-se hereditária, promovendo um total espírito de
negligência, preguiça e abandono e fomentando um declínio da obediência ao Estado.
A monarquia se corrompe quando o monarca não mais obedece às leis, em função
de que a honra, manifestada na ambição do corpo político por prerrogativas e
dignidades, se converte em supressão dos súditos transformando-se em poder arbitrário.
Por outras palavras, Montesquieu assevera que a ambição não mais contraria a ambição,
levando à concentração dos poderes e ao uso dos interesses privados para interesses
privados, ou seja, os interesses privados não mais resultam em benefícios públicos,
porque não mais ocorre a agregação destes no âmbito do governo. Assim, a
concentração do poder em uma ou poucas mãos é o que caracteriza para o autor a
corrupção da monarquia, já que suas instituições não efetivam a obediência dos súditos
em relação ao aparato administrativo da sociedade. Uma vez que os súditos não têm a
garantia de que a obediência resultará na harmonia das coisas, eles se orientam por seus
exclusivos interesses, violentando os demais concidadãos para saciar seus apetites.
Finalmente, o governo despótico é corrompido por natureza, porque seu princípio
leva a uma constante discórdia entre os cidadãos, uma vez que não há nem leis e nem
virtudes que assegurem a liberdade, devido a uma circunstância que leva os indivíduos a
se submeterem cegamente: o medo.
Como podemos observar, Montesquieu atribui à causa da corrupção das diferentes
formas de governo o declínio dos princípios que organizam as sociedades, que leva ao
declínio das instituições enquanto constrangimento à corrupção. Princípios entendidos
como o mote valorativo dos homens de uma dada coletividade que organizam suas
ações no tempo e informam seus interesses no espaço, fazendo-os manifestarem certos
comportamentos que assegurarão o funcionamento de cada regime. O governo
despótico é corrompido por natureza porque está assentado sobre o medo, o qual
impossibilita a existência de boas leis e a existência de bons costumes. O governo
republicano se corrompe quando não há mais virtudes cívicas entre os cidadãos, e o
7
O autor em momento algum trata da oligarquia enquanto forma de governo. Este termo somente aparece
em uma nota de rodapé  nota 313 do livro oitavo da edição brasileira de O Espírito das Leis  que
apesar de não explícito, certamente se refere à tipologia de Políbios, com quem o autor debate a todo o
momento no decorrer de sua obra.
22
governo monárquico se corrompe quando suas instituições não mais conseguem
moderar, através do direito, os apetites humanos.
Desse modo, a corrupção é o efeito da não existência de solidariedade entre os
homens de determinado país e do poder soberano monopolizado, o que faz com que eles
busquem saciar sua ganância através da não obediência às leis e aos costumes. Seu
principal efeito, de acordo com Montesquieu, é suprimir a liberdade de uma
comunidade política, ensejando um processo mediante o qual impera a licenciosidade e
a violência, configurando uma desordem política.
VI
O período de mudanças sociais, políticas e econômicas realizadas nos séculos
XVII e XVIII provocam mudanças substantivas com relação ao pensamento político. As
incertezas que advêm com a emergência da democracia no Ocidente passam a ser a
perspectiva teórica dos pensadores da política. É neste contexto que de uma viagem aos
Estados Unidos da América, para estudar o sistema prisional americano, que Alexis de
Tocqueville (TOCQUEVILLE, 1998) fará um estudo sobre o sistema político
democrático. A democracia recém criada no Ocidente sofre de um profundo dilema: o
surgimento da igualdade e do sistema de decisões pela maioria terminou por criar um
novo tipo de tirania, esmaecendo a liberdade enquanto fim moral da política. O
questionamento fundamental de Tocqueville é se é possível conjugar liberdade e
igualdade no contexto de um mundo marcado pelas diferenças e pelos interesses.
Tocqueville viu nos Estados Unidos um povo igual e livre, vivendo sobre a guarda
da democracia. Se esse regime político, de acordo com o autor, consiste na igualização
das condições entre os homens, fazendo repontar uma característica adscritiva da
ordem, como eles fazem para manter a liberdade intacta e não cair na tirania da maioria?
A liberdade, de acordo com Tocqueville, significa a ausência de arbitrariedade e
deve ser resguardada pelas leis  instituições  para evitar que o poder absoluto caia
nas mãos de um homem apenas, pois, no mundo moderno dos interesses, todos são
facilmente corrompíveis para exercer este poder sozinho. É normativo, portanto, em
Tocqueville, que a democracia, para manter a liberdade, deve assentar-se sobre a
igualdade de condições por meio da qual todos os cidadãos serão reconhecidos
23
institucionalmente como iguais perante a lei. Cada cidadão, na democracia, deve ser tão
igual que possa participar livremente na condução dos negócios públicos sem sofrer
qualquer tipo de opressão que o constranja a agir diferentemente da forma como seu
espírito idealizou.
No entanto, se a modernidade é marcada pela decadência das virtudes do passado,
o que torna os homens gananciosos e sedentos o suficiente para corromperem o sistema,
o provável é que eles ensejem a pior forma de despotismo: a tirania da maioria. A
igualdade de condições torna a sociedade igualitária o bastante para fazer com que os
homens percam as virtudes e se escondam atrás da massa de homens interessados. Desta
forma, Tocqueville, discordando de Montesquieu, assevera que a liberdade dos
modernos não pode estar fundamentada apenas nas leis positivas, pois ela significa a
ausência de qualquer forma de constrangimento. A regra das decisões pela maioria
como realizadas nas democracias modernas, o que é o caso da Constituição americana,
faz com que as minorias sejam oprimidas pela maioria na medida em que os interesses
desta têm preferência sobre os interesses daquela. A decisão pela maioria é o formato
institucional da democracia mais utilizado, segundo Tocqueville, mas que em
sociedades onde todos são iguais, resulta na opressão de uma minoria descontente.
Todos os cidadãos, iguais em condições, têm, pois, que se submeter à vontade da
maioria, resultando na apatia frente à coisa pública na medida em que eles não são
motivados a participar das decisões da vida em coletividade. Cada um, então, procura
satisfazer a si mesmo, deixando de lado tudo o que diz respeito à coletividade,
delegando o poder a um Estado que tutelará suas vidas. A resultante deste processo,
nesse sentido, é que cada vontade descontente com a maioria necessita, de acordo com o
autor, “renunciar a seus direitos de cidadão e, por assim dizer, à sua qualidade de
homem” (TOCQUEVILLE, 1998, 302, vol. 1).
Em contraste com este cenário, Tocqueville via nos Estados Unidos uma ampla
igualdade de condições, mas também um total amor à liberdade. Entretanto, a república
americana não é nutrida pelo devotamento de cada cidadão aos negócios públicos, mas
pelo privatismo característico da era moderna de acordo com o qual cada indivíduo
buscará a satisfação de sua vontade mediante seus interesses privados. Em uma
sociedade igualitária, o mote moral dos homens é alcançar a satisfação de seus
interesses particulares, já que a maioria tiraniza a sociedade, oprimindo as minorias e
24
destruindo a liberdade, uma vez que todos delegam o poder absoluto ao Estado porque
não encontram incentivos para participarem das decisões coletivas. A igualdade,
portanto, não pode estar conjugada com a liberdade, pois a igualização leva à tirania da
maioria e à degeneração das virtudes no privatismo.
O autor de A Democracia na América via nos americanos um profundo gosto pela
liberdade e pela igualdade apesar de estarem voltados para seus interesses pessoais. De
acordo com Tocqueville, o egoísmo resseca as virtudes, mas os americanos souberam,
como ninguém, criar instituições políticas que refreassem os apetites vorazes e
mantivessem a liberdade intacta. O segredo da democracia americana é atribuir os
pequenos negócios das comunas aos próprios cidadãos, transformando-os em pequenos
negócios públicos, que faz com que cada um perceba que é desprezível perante a
coletividade e que não é independente dela. A tirania da maioria, segundo Tocqueville,
é temperada pelo uso que os americanos fazem das associações civis, que agregam os
homens em torno de pequenas questões a respeito da vida em coletividade. As
associações civis temperam o privatismo da vida moderna no instante em que é o
conteúdo moderno das democracias, as quais por si só não ensejariam uma substância
representativa que mobilizasse os indivíduos em torno do bem comum8. Por serem
independentes e fracos em função da democracia, os cidadãos americanos se unem
através destas instituições livres  fora da tutela do Estado  e defendem seus
interesses por meio da participação pública que tornam palpáveis seus resultados. Cada
cidadão é responsável por cooperar com os demais com o intuito de atingir o bem de
todos, já que são iguais em condições e não há a presença de nenhum paladino que fará
a intermediação junto às esferas decisórias do governo.
Tocqueville, portanto, revisa a teoria republicana à luz da modernidade, como
afirma Jasmin (JASMIN, 2000), bem como rompe com o realismo de Montesquieu,
vendo na experiência americana a forma como conjugar a liberdade com um mundo
marcado por homens iguais e sem virtudes. Apesar de serem egoístas, os americanos, de
acordo com o autor de A Democracia na América, cultivavam a doutrina do interesse
bem compreendido, segundo a qual todos são livres para satisfazer suas necessidades a
8
Tocqueville parte da noção de organismos intermediários, presente em O Espírito das Leis, para
formular este pressuposto da democracia moderna. O autor buscou na idéia de organismos intermediários
a inspiração para analisar as associações civis nos Estados Unidos.
25
partir da ação coletiva visando o bem comum, mas devem ter em mente que precisam
cooperar com seus semelhantes já que são iguais a si. Tocqueville justapõe os interesses
privados aos interesses públicos, substituindo as virtudes cegas da Antigüidade pelo
cálculo moderno dos interesses moderados pelo espírito público. O interesse bem
compreendido, segundo o autor, não é o devotamento grandioso às causas da
coletividade, mas os pequenos sacrifícios que cada um associativamente faz para o bem
da coletividade, sem deixar de lado seus interesses privados e o gosto pelas fruições
materiais. Além disso, o interesse bem compreendido corresponde a certos laços
informais  éticos  que balizam os laços formais necessários na era moderna 
instituições. Como nos fala Tocqueville, o interesse bem compreendido não gera
homens plenamente virtuosos e devotos à coletividade, mas homens donos de si,
previdentes, moderados e temperantes que não têm a virtude na vontade, mas nos
hábitos diários de participação cívica nos negócios públicos.
É a vida comunitária, portanto, que modera as paixões e os desejos,
transformando-os em interesses. O que Tocqueville procura destacar é que o conjunto
de instituições da democracia americana, mesmo com o poder dividido e
descentralizado, necessita de um conjunto de costumes que legitimem a lei para que ela
possa cumprir seu papel de intermediação dos interesses. A legitimação via
comunidade, tendo em vista o interesse bem compreendido dos cidadãos, faz com que
cada indivíduo se sinta constrangido a praticar a corrupção, assegurando um padrão
moral que resulte no bem comum.
A democracia, sem o interesse bem compreendido, faz com que cada cidadão
tenha a intenção de oprimir os demais e reter em suas mãos o poder soberano. A
corrupção ocorre quando os cidadãos não moderam seus apetites e a comunidade não
consegue estabelecer as regras que mediarão o convívio entre os homens, tornando cada
cidadão ganancioso o bastante para comprar seus demais concidadãos e oprimi-los
visando a acumulação de riquezas e o sucesso por meio da desonra. Comparando a
França aristocrática com os Estados Unidos democrático, Tocqueville observa sobre a
corrupção:
(...) nas aristocracias, como os que querem chegar à direção dos
negócios públicos dispõem de grandes riquezas e o número dos que
podem levá-los a tanto costuma ser circunscrito em certos limites, o
26
governo se acha de certa forma em leilão. Nas democracias, ao
contrário, os que disputam o poder quase nunca são ricos e o número
dos que contribuem para proporcionar o poder é enorme. Talvez nas
democracias não haja menos homens a vender, mas quase não se
encontram compradores  de resto, seria necessário comprar gente
demais ao mesmo tempo para alcançar o objetivo.
(TOCQUEVILLE, 1998, 256, vol. 1).
O autor não via nas democracias cidadãos virtuosos  mesmo nos tempos antigos
Tocqueville duvidava das virtudes homéricas dos homens , mas cidadãos
temperantes, seguidores das leis na medida em que sabem que são igual o bastante para
participar dos negócios da coletividade e que, se cooperarem uns com os outros, podem
ver seus interesses satisfeitos. Todavia, caso a sociedade não fosse capaz de estabelecer
a vida comunitária, a corrupção seria inevitável, pois cada um se sentiria livre para fazer
aquilo que lhe aprouvesse, não respeitando as regras estabelecidas. Como mostra
Tocqueville:
O povo nunca penetrará no labirinto obscuro do espírito cortesão;
sempre descobrirá com dor a baixeza que se oculta sob a elegância
das maneiras, o requinte dos gostos e as graças da linguagem. Mas
roubar o tesouro público, ou vender a preço de dinheiro os favores do
Estado, é coisa que o primeiro miserável compreende e pode gabar-se
de fazer igual, chegando a sua vez.
O que se deve temer, por sinal, não é tanto a vista da imoralidade dos
grandes quanto a da imoralidade que conduz à grandeza. Na
democracia, os simples cidadãos vêem um homem que sai de entre
eles e que alcança em poucos anos a riqueza e o poder; procuram
saber como aquele que ontem era igual a eles vê-se hoje investido do
direito de dirigi-los. Atribuir sua elevação a seu talento ou a suas
virtudes é incômodo, porque é confessar que eles mesmos são menos
virtuosos e menos hábeis do que ele. Assim dão como causa principal
alguns de seus vícios, e muitas vezes têm razão de fazê-lo. Produz-se
desta forma não sei que odiosa mistura entre as idéias de baixeza e de
poder, de indignidade e de sucesso, de utilidade e de desonra.
(TOCQUEVILLE, 1998, 257, vol. 1).
A essência do aparato institucional do Estado, como nos mostra o autor em A
Democracia na América, é a força com que a comunidade consegue temperar os
egoísmos dos homens, forçando-os a obedecerem às leis e a agirem com honestidade em
relação à coisa pública. Como põe em relevo Tocqueville, a corrupção é uma patologia
27
institucional que ocorre quando o corpo político morre em função do individualismo
exacerbado e da incapacidade dos homens de cooperar uns com os outros na busca pelo
bem comum.
VII
A constante lógica que perpassa diacronicamente a metateoria a respeito do
conceito de corrupção é: a corrupção é a sobreposição de vantagens privadas ao bem
comum, significando um ato de decoro para com a ética. A genealogia do conceito de
corrupção, com base no inventário de alguns pensadores da política, os quais tratamos
neste ensaio, permite identificar quatro elementos que definem o horizonte intelectual
de análise desse fenômeno. O quadro abaixo apresenta estes quatro elementos:
Quadro 1. Os Elementos da Teoria Política da Corrupção
Elemento
Mediação dos
Interesses
Legitimação
Republicano
Institucionalização
do conflito
Participação
política
Autoritativo
Obediência às leis
Medo e coerção
Liberal
Direitos
Divisão do poder
Comunitário
Costumes
Identidades
Fonte da Corrupção
Não institucionalização do conflito entre
os homens e apatia do povo com relação
à res publica, que determina a fraqueza
institucional do Estado.
Quando os homens são incapazes de
renunciar seu direito natural ao soberano,
fazendo com que todos persigam
somente seus interesses privados.
Descompasso entre a natureza e os
princípios das formas de governo, tendo
em vista a eficácia das leis positivas.
Incapacidade dos homens de moderarem
seus interesses e estabelecerem a vida
em comunidade, a qual fundamenta o
aparato institucional do Estado.
O primeiro elemento é o republicano, com base no qual a ordem política se
sustenta na institucionalização do conflito e na participação dos cidadãos na condução
dos negócios públicos. A legitimação das leis e a ética se definem pela participação
política constante dos homens, visando a construção ativa do bem comum
(POCOCK, 2003). Como definiu Maquiavel, os homens devem ser virtuosos  no
sentido de ativos  para que a república possa ser bem sucedida. Caso não haja a
institucionalização do conflito e os homens se tornem apáticos, a morte do corpo
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político resultará na corrupção, em que todos irão querer apenas perseguir suas
vantagens privadas em detrimento da construção do bem comum.
O segundo elemento é o da soberania. Como a natureza do homem é o conflito
dele com seus semelhantes, é necessário que haja um ente soberano que o force a
obedecer às leis e, desta forma, construir o bem comum: a liberdade. É necessário, como
destaca Hobbes, transpor ao mundo da natureza a sociedade política, ou seja, transpor
ao direito de natureza o direito civil ou positivo, para que seja assegurada a obediência
dos homens em relação às leis. Para que ocorra esta transposição é necessário que os
homens façam um contrato de consentimento, mediante o qual cada um renuncia a seu
direito de natureza a favor do Estado, que passa a monopolizar os meios de uso da força.
A corrupção, por sua vez, ocorre quando, depois de feito o contrato, um indivíduo
renuncie ao direito civil e desobedeça às leis. Quando os homens são incapazes de
renunciar seu direito natural ao soberano, eles passam a perseguir somente suas
vantagens privadas.
O terceiro elemento é o liberal, em que a mediação dos interesses se dá via
direito, como assevera Montesquieu. Como o mundo é marcado pelos desejos, é
necessário criar instituições calcadas em leis positivas para que eles sejam domesticados
e não resultem em paixões desenfreadas. A emergência da idéia de interesse, na
modernidade, como domesticador dos desejos (HIRSCHMAN, 1979), assegura
determinados móveis valorativos que impulsionam determinas formas de governo à
construção do bem comum. A corrupção ocorre quando há um descompasso entre a
natureza e os princípios do governo, sendo que começa, normalmente, pelos princípios,
ou valores que os homens carregam consigo e influem sua ação. A forma, portanto, de
controlar a corrupção é fazer com que a ambição contrarie a ambição e desse processo
resulte o bem comum. No plano do governo, se a ambição deve contrariar a ambição, o
ideal é que o poder da monarquia seja dividido, tanto no plano horizontal quanto
vertical, para que o sentimento de honra dos atores políticos não resulte em paixões.
Finalmente, o quarto elemento é o comunitário, em que a moderação dos
interesses se dá pela vida em comunidade, que faz com que o simples gosto pelas
fruições materiais resulte em um padrão ético/moral na figura do interesse bem
compreendido. A corrupção ocorre quando os homens não estabelecem identidades
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coletivas, mas exacerbam o interesse e se escondem por detrás da massa  tirania da
maioria.
Os quatro elementos para o entendimento da corrupção a partir da teoria política
podem contribuir, sem dúvida, para o debate intelectual a respeito desse fenômeno, no
sentido de estabelecer suas causas e garantir que a política contemporânea paute-se pela
transparência e pela honestidade dos governantes, tendo em vista o bem comum e a
prosperidade, independentemente do estreito universo da legalidade. Ademais, o
combate à corrupção se daria na conjugação dos quatro elementos, ou seja, na
participação ativa do povo nos negócios públicos, na eficácia das leis em assegurar
obediência dos súditos, na divisão do poder para que os interesses não resultem em
paixões e na vida em comunidade para que os interesses sejam moderados pela
construção coletiva do bem comum.
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