Onde acontece a iniciação científica? Sheila Maria Conde Rocha Campello Uma fronteira, fortemente guardada, aparta os professores da Educação Básica no Brasil daqueles que atuam no Ensino Superior. Diversos motivos contribuem para preservar - e reforçar - essa fronteira. Dentre eles imperam políticas públicas de fomento à pesquisa que garantem incentivos a estes últimos, enquanto aos primeiros é reservada uma condição bastante desmotivadora, caso desejem a elas se dedicar. É claro que não devemos desconsiderar as possibilidades de formação proporcionadas pelos programas de pós-graduação existentes, com concessão de bolsas, mas sabemos que elas são insuficientes para abarcar as possibilidades representadas pelo potencial dos professores das escolas públicas brasileiras pós-graduados, para o desenvolvimento de pesquisas posteriores à realização de seus cursos de pós-graduação strictu sensu. Aqueles que se atrevem a buscar o caminho da pesquisa continuada, após finalizarem esses cursos, esbarram em muitas dificuldades, mesmo quando se integram aos poucos núcleos de pesquisa que (felizmente) os acolhem nas universidades. Essa articulação entre pesquisadores dos diferentes níveis de ensino é imprescindível para a melhoria da qualidade da educação no Brasil. Entretanto, relatos de professores da Educação Básica que finalizam cursos de pós-graduação demonstram que muitos deles, ao retornarem às escolas, não encontram campo para dar continuidade às suas investigações científicas. Muitos retomam suas funções sem conseguir sequer aproveitar os novos conhecimentos adquiridos. Dessa forma, deixam de contribuir como poderiam para alterar o cenário das nossas escolas, tão carentes de propostas inovadoras que, no campo fertilizado pela pesquisa, poderiam brotar. Fica a questão: como aproveitar essa massa crítica importante, formada em diversos campos do conhecimento, que poderiam promover, nas comunidades escolares, propostas transdisciplinares apoiadas nos mesmos pilares que sustentam o Ensino Superior: o ensino, a pesquisa e a extensão. Sem a intenção de buscar culpados, mas movida apenas pelo interesse em desencadear reflexões, parto da seguinte suposição: tal situação seria reflexo de um sistema no qual cabe à instância federal a grande responsabilidade pelo fomento à pesquisa, concentrada no Ensino Superior, e aos Estados e Municípios resta a preocupação em “dar conta” da Educação Básica, sem que esses níveis de ensino se articulem e dialoguem, de forma aprofundada, para traçar os caminhos da pesquisa no contexto escolar, visando proporcionar condições para que ela seja incorporada às práticas educacionais em todos os níveis, promovendo a inovação educacional que necessitamos para o Brasil. Tendo em vista que o fomento à pesquisa se concentra em ações de órgãos federais, talvez seja natural que ela se volta para o Ensino Superior. Nos órgãos vinculados às demais instâncias, a pesquisa certamente não está incluída no rol de prioridades, vinculando-se, muitas vezes, ao alcance de objetivos que não estão relacionados às Políticas Públicas grafadas com “pês” maiúsculos. O resultado dessa situação se reflete na educação como um todo. Se nas universidades “pipocam” programas de fomento às investigações científicas, que nem sempre estão voltadas para a proposição de propostas inovadoras do interesse da educação escolar (espaço no qual elas praticamente inexistem), nas Secretarias Estaduais, Municipais e Distritais de Educação, pesquisadores ansiosos por desenvolverem trabalhos calcados nas realidades das escolas se vêm impedidos de desenvolver investigações do interesse das comunidades escolares. Ao que tudo indica, o pensamento que vigora em terras brasileiras é o de que os doutores e pós-doutores vinculados às instâncias municipais e estaduais não têm condições de orientar jovens pesquisadores em formação. Por esse motivo a iniciação científica passa a ocorrer somente quando os estudante alcançam o Ensino Superior. Se faltam incentivos aos professores da educação básica, sobram- lhes empecilhos e desafios. Iniciativas de formação propostas por professores das redes públicas, nos espaços de pesquisa de universidades podem ser interrompidas ao sabor de decisões de colegiados de universidades que desconhecem a experiência de campo de professores pesquisadores da educação básica e sua relevância para esse contexto. Outro exemplo interessante dessas possibilidades de articulação da experiência docente na Educação Básica e no Ensino Superior pode ser obtida por meio da avaliação de professores das escolas públicas na mediação de aprendizagem (tutoria) em licenciaturas promovidas pelos programas Pró-licenciatura (já extinto) e Universidade Aberta do Brasil (UAB). Por apoiarem suas ações docentes no conhecimento do contexto em que eles serão aplicados, tais professores/tutores são muito bem avaliados pelos estudantes e pelos coordenadores de curso. Tal participação se reveste de extrema importância, tendo em vista que esses profissionais têm o privilégio de conviver com os dois contextos: o do Ensino Superior, ao atuarem na formação de novos docentes (nessas licenciaturas, ou em pós-graduações oferecidas a distância para educadores) e o da Educação Básica escolar, no qual podem ser aplicados os conhecimentos coconstruídos nessas formações. Certamente a convivência entre professores das escolas e das universidades traz benefícios para os dois contextos. Sobre o assunto, posso dar meu depoimento pessoal, pois tive a grata oportunidade de participar desse processo, contribuindo para a elaboração de projetos de cursos oferecidos pelos dois programas citados (UAB e Pró-licenciatura), planejando e implantando as Licenciaturas em Artes Visuais, Música e Teatro, oferecidos em cinco universidades brasileiras que firmaram parceria para implantação dessas propostas1. É com base na avaliação desse trabalho que fundamento estas reflexões e que ouso afirmar que a experiência de professores da Educação Básica, se devidamente valorizada, poderia contribuir para a emergência de novas formas de interação entre escolas/universidades, para a construção de novos perfis docentes e discentes e para a criação de propostas inovadoras para as comunidades escolares. Essas reflexões, por sua vez, me levam a sugerir aos que detêm o poder de decisão sobre o assunto, que busquem meios para garantir algum incentivo à pesquisa no contexto da Educação Básica, fomentando grupos de pesquisa coordenados por professores doutores que atuam nesse contexto, sem a necessidade de se subordinarem às proposições das universidades. Compartilho a reflexão e registro algumas perguntas: a iniciação científica não poderia ocorrer nas escolas, caso esses professores doutores da Educação Básica fossem apoiados por organismos de fomento, para criar e liderar grupos de pesquisa nesse contexto? Seria esta proposta tão absurda? Seria inviável? Sugiro aos legisladores comprometidos com as causas da educação que busquem alternativas para que, sem ferir a independência entre as instâncias Federal, Estadual/Distrital e Municipal, revisem as normas que impedem esses professores de participar de projetos de ensino, pesquisa e extensão no contexto da Educação Básica, tendo seu trabalho valorizado sem a necessidade de renunciarem às suas condições de servidores com dedicação exclusiva para se dedicarem a orientações de pesquisadores iniciantes. Essa possibilidade é dada aos professores do Ensino Superior, como se pode constatar nas normas que regem as atuações nas universidades. Essa possibilidade certamente tem trazido enormes benefícios para o ensino, a extensão e a pesquisa. Por que o mesmo não pode ocorrer na Educação Básica? Brasília, 18 de janeiro de 2013 1 Universidade de Brasília; Universidade Estadual de Montes Claros; Universidade Federal de Goiás; Universidade Federal do Maranhão e Universidade Federal de Rondônia.