UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ KAROL KLASSEN A POSTURA DO MÉDICO FRENTE À RECUSA DO PACIENTE AO TRATAMENTO CURITIBA 2012 KAROL KLASSEN A POSTURA DO MÉDICO FRENTE À RECUSA DO PACIENTE AO TRATAMENTO Projeto de Monografia apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Professor Martim Afonso Palma CURITIBA 2012 TERMO DE APROVAÇÃO KAROL KLASSEN A POSTURA DO MÉDICO FRENTE À RECUSA DO PACIENTE AO TRATAMENTO Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do título de Bacharel no Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, ___________________________de 2012. ____________________________________________________ Orientador: Martim Afonso Palma ____________________________________________________ Examinador ____________________________________________________ Examinador ____________________________________________________ Examinador À minha mãe, com todo o amor que houver nesta vida. Agradeço pelo apoio de todos que, de alguma forma, ajudaram a concretizar este trabalho. Agradeço também pelo apoio do professor Martim Afonso Palma pelas orientações dadas. “O médico conhece todas as misérias físicas do homem; o jurista toda a sua maldade.” Schopenhauer RESUMO Busca-se com este trabalho analisar a questão da postura a ser adotada pelo profissional médico ao se deparar com pacientes que recusem o tratamento a ser executado. Para tanto, a análise estará baseada na legislação médica, na constitucional, na civil e na penal, buscando assim um panorama geral da situação na legislação brasileira. Assim será possível verificar qual a conduta a ser adotada nos casos de conflitos de direitos e nos casos envolvendo risco de vida do paciente. Palavras-chave: Direito à vida. Direito à saúde. Direito à crença. Postura médica. Conflito de direitos. Risco de vida. Autonomia do paciente. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................ 10 2 NA LEGISLAÇÃO MÉDICA ........................................................................... 12 2.1 DECLARAÇÃO DE GENEBRA ....................................................................... 12 2.1.1 Juramento de Hipócrates ................................................................................ 13 2.2 PRINCIPAIS PRINCÍPIOS MÉDICOS............................................................. 13 2.2.1 Princípio da informação................................................................................... 14 2.2.2 Princípio da autonomia do paciente ................................................................ 14 2.2.3 Princípio da beneficência ................................................................................ 17 2.3 CÓDIGO INTERNACIONAL DE ÉTICA MÉDICA ........................................... 19 2.4 RESOLUÇÃO CFM 1021/1980 ....................................................................... 20 2.5 RESOLUÇÃO CFM 1995/2012 ....................................................................... 21 3 NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DA REPÚBLICA ......................................... 22 3.1 O BRASIL COMO UM ESTADO DE DIREITO ................................................ 22 3.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS .......................................................................... 23 3.3 DIREITO À VIDA ............................................................................................. 24 3.3.1 Conceito de vida ............................................................................................. 24 3.3.2 A vida como um bem coletivo ......................................................................... 25 3.3.3 Supremacia do direito à vida ........................................................................... 26 3.4 DIREITO À SAÚDE ......................................................................................... 27 3.4.1 Direito nacional à saúde .................................................................................. 27 3.4.2 Direito internacional à saúde ........................................................................... 29 3.5 DIREITO À CRENÇA ...................................................................................... 30 3.5.1 Conceito de religião......................................................................................... 31 3.5.2 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová ........................................ 32 4 NO DIREITO CIVIL ......................................................................................... 35 4.1 A RELAÇÃO MÉDICO PACIENTE COMO RELAÇÃO CONTRATUAL .......... 35 4.1.1 Obrigação do médico como obrigação de meio .............................................. 36 4.2 RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO .................................................... 37 4.2.1 Responsabilidade do estabelecimento médico ............................................... 38 4.2.2 Responsabilidade do médico como profissional liberal ................................... 38 5 NO DIREITO PENAL ...................................................................................... 41 5.1 OMISSÃO DE SOCORRO .............................................................................. 41 5.2 CONSTRANGIMENTO ILEGAL ...................................................................... 43 6 CONCLUSÃO ................................................................................................. 45 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 49 10 1 INTRODUÇÃO Atualmente, em questões de medicina e saúde, percebe-se uma crescente tendência à relativização do dever médico de resguardar a vida ao máximo. Isso vem ocorrendo por motivos variados que vão desde a crença religiosa até o sentimento de piedade em casos de pacientes com doenças terminais. Surgem então várias dúvidas quanto aos limites desta relativização e se isso é correto. Até que ponto deve haver o consentimento do paciente para que o tratamento seja realizado? Até onde vai esta autonomia? Não seria o direito à vida maior do que qualquer outro? Qual deve ser o posicionamento médico frente a tais questões? Algumas situações têm tido destaque, como é o caso de transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová, greves de fome, condutas de contenção de pacientes, e os casos dos pacientes com doenças terminais que não querem mais viver. Tais situações têm em comum a presença da recusa de tratamento médico por parte do paciente. Simplesmente abre-se mão do direito à vida em detrimento de algo que o paciente entenda como maior, seja uma convicção religiosa, um desejo de protesto, o fim de um sofrimento físico, ou mesmo o desejo de morrer sem tratamentos, desde que fúteis. Ocorre que o paciente não está sozinho e, do outro lado da situação, encontra-se o médico. Este jurou proteger a vida em todas as circunstâncias, deixando de lado convicções diversas a isso. O Juramento de Hipócrates, atualizado em 1948 pela Declaração de Genebra, permanece atual até hoje é usado como juramento dos profissionais médicos que se formam. Ademais, temos o direito à vida como fundamental e garantido pela lei maior, a Constituição da República. Por isso, não se pode simplesmente ignorar o dever de garantir a vida em todos os seus aspectos, concedendo autonomia suficiente aos pacientes e deixando que estes decidam quando o direito à vida deve existir e quando deve ser suprimido. 11 Para tanto, o presente trabalho busca discutir a questão da autonomia do paciente nas dimensões em que vem sendo empregadas atualmente, e garantir que a lei seja cumprida, tutelando a vida como bem mais precioso do Estado. De forma mais específica, busca-se realizar uma análise mais detida acerca da legislação brasileira em vigor no sentido ético médico, constitucional, civil, penal e moral, verificando se colide ou não com a questão legal suscitada. Assim, busca-se esclarecer que pode haver uma diferença entre o que está de acordo com a legislação, de forma positivada, e o que acaba acontecendo devido à relativização desta, ocasionando uma forma de neoconstitucionalismo. Ambos coexistem atualmente, mas neste trabalho busca-se defender apenas um deles, qual seja, o positivismo, uma vez que vivemos em um Estado democrático de direito, conforme a Constituição assegura. Este trabalho pretende analisar os diplomas existentes no sentido de resolver os casos concretos. Para tanto, me utilizarei do Código de Ética Médica, do Código Internacional de Ética Médica da Associação Médica Mundial, bem como da resolução 1.021 do CFM, de 1980. A Constituição Brasileira será fundamental para que haja um enfoque nos principais princípios e direitos fundamentais ali garantidos. Até porque, estando em desacordo com a lei maior, difícil seria sua sustentação ganhar força. Ainda, como pilares importantes para o presente trabalho, temos o Código Civil e o Código Penal. São neles que verificarei a questão da obrigação e da responsabilidade do médico quando deixa de agir por recusa do paciente, bem como as consequências penais atribuídas ao médico por tais práticas. Quando há menores envolvidos, torna-se fundamental adentrar também no Estatuto da Criança e do Adolescente como forma de resguardar os direitos dos que ainda não têm a sua capacidade plena. Posto isso, da maneira que se pretende, ficarão claros os momentos em que a autonomia do paciente deve prevalecer, e quando ela não se sobressairá frente ao dever do médico de agir e salvar a vida que está em suas mãos. 12 2 NA LEGISLAÇÃO MÉDICA Antigamente qualquer enfermidade era considerada como uma manifestação do sobrenatural, e que para tratá-la era preciso adentrar em um mundo místico. O conhecimento humano mudou desde então, mas ocorre que alguns preceitos permaneceram, de forma a demonstrar que a possibilidade científica, de forma alguma é sinônimo de conveniência jurídica e ética (SÉGUIN, 2001, p. 10-11). Já dentro da estrutura social brasileira, a nossa Constituição adota, segundo a mesma autora (2001, p. 17): “A liberdade de exercício profissional, subordinado apenas à regulamentação da atividade, sem a exigência e a tirania das corporações de ofício que caracterizaram a Idade Média Européia”. Com isso, mesmo havendo pensamentos diversos acerca da medicina, o profissional médico deve seguir o Código de Ética Médica e sempre orientar a sua conduta profissional pelas determinações do mesmo (DINIZ, 2002, p. 224). 2.1 DECLARAÇÃO DE GENEBRA A Declaração de Genebra teve sua origem no juramento de Hipócrates. Tendo sido adotada pela Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em Genebra, na Suíça, em Setembro de 1948, segue o conteúdo do juramento feito ainda nos dias de hoje acerca da obrigação médica de seguir o princípio da beneficência e agir quando necessário, respeitando a vida humana acima de tudo: Na hora de ser admitido como um membro da profissão médica: "[...] A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação. [...] Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão médica. [...] Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes. Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. [...]" (FRANÇA, 2010, p. 248-249). Para entendermos melhor a origem de tal juramento, torna-se necessário investigar mais a fundo a questão do Juramento de Hipócrates, a fim de que se possa perceber que desde há muitos séculos tem-se a ideia de dever de beneficência do médico ao paciente. 13 2.1.1 Juramento de Hipócrates Considera-se de fundamental importância o disposto no Juramento de Hipócrates, nascido 400 anos antes de Cristo e praticante de medicina na época. Ele conduzia a medicina dentro de um alto conteúdo ético, deixando o diagnóstico de tratar-se de uma inspiração divina para constituir um processo lógico que dependia de observações de sinais e sintomas (FRANÇA, 2010, p.13). Diz o autor, de forma ainda mais concisa acerca do pensamento hipocrático: “Era a morte da medicina mágica e o nascimento da medicina clínica”. Foi ocorrendo uma mudança significativa na forma de entender a medicina. Na Alexandria, o paciente era visto como uma patologia, sendo que para Hipócrates, de Kós, o paciente era entendido como uma entidade biológica, um enfermo individual que recebia influências do meio externo. Assim, percebendo que a doença estava ligada à realidade do indivíduo, substituiu os preceitos religiosos pela ética (SÉGUIN, 2001, p. 15). Entretanto, apenas a partir do século XV é que surgiu uma noção mais forte sobre os deveres e obrigações dos médicos, orientados para um coletivo e social, sem, no entanto, se desvincular da fonte hipocrática (FRANÇA, 2010, p. 19). O Juramento de Hipócrates determina, entre outras coisas, que se apliquem os regimes para o bem do doente segundo o poder e entendimento do médico, nunca para causar dano ou mal a alguém (SÉGUIN, 2001, p. 15). Ainda segundo a autora, o saber médico estava baseado em três princípios básicos, quais sejam: “1) favorecer ou, pelo menos, não prejudicar o doente; 2) abster-se do impossível, portanto, não atuar quando a doença é letal e 3) atacar a causa do dano”. Aqui, portanto, resta demonstrado desde já que o princípio da beneficência não é algo recente, já sendo pensado a respeito nos primórdios da humanidade. 2.2 PRINCIPAIS PRINCÍPIOS MÉDICOS Nas relações entre médicos e pacientes há que se seguir as normas éticas e jurídicas pré-estabelecidas, bem como os princípios norteadores da profissão médica, quais sejam, o da beneficência e não maleficência, o do dever de 14 informação ao paciente, o do sigilo profissional, o do respeito à autonomia e ao consentimento livre e esclarecido (DINIZ, 2002, p. 555). 2.2.1 Princípio da informação Inicialmente, é fundamental na profissão médica que se preste informações ao paciente acerca da sua situação e opções de tratamento. Tal princípio está garantido no art. 34 do Código de Ética Médica, onde diz ser vedado ao médico: “Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. Portanto, a informação torna-se fundamental em todo o decorrer da relação médica. Desta maneira o paciente é informado pelo médico sobre a necessidade de determinadas condutas ou intervenções e sobre seus riscos e consequências. O ato médico não implica um poder excepcional sobre a vida ou a saúde do paciente, a não ser nos casos envolvendo risco de vida. Portanto, o dever de informar é imperativo como requisito prévio para o consentimento do paciente, chamado consentimento prévio (FRANÇA, 2010, p. 209). 2.2.2 Princípio da autonomia do paciente Interligado ao princípio da informação, está o princípio da autonomia do paciente, sendo o consentimento livre e esclarecido, como um ato voluntário baseado em uma informação médica. Esta informação deve ser clara, simples e fácil, de maneira que o paciente possa entendê-la, englobando também o entendimento acerca do diagnóstico, prognóstico, terapia, duração, consequências, passos pós-tratamento, cuidados especiais necessários, previsão de alta, consequências de uma não aceitação do tratamento, os possíveis riscos, vantagens e desvantagens envolvidas no tratamento (DINIZ, 2002, p. 579). De forma mais sucinta, CORRÊA (2010, p. 99) diz que: “O princípio da autonomia determina o respeito pela decisão livre do paciente, resguardando, assim, sua dignidade e seu direito de autodeterminação”. 15 É possível perceber a incidência deste princípio no Código de Ética Médica, em seu capítulo I – Princípios Fundamentais, no inciso XXI, onde diz: “No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”. Tal princípio decorre de uma mudança histórica da medicina, que perdeu sua ligação com o sagrado e passou a ser encarada como ciência. Este fato gerou uma compreensão do paciente como centro autônomo da decisão, tendo o direito de, inclusive recusar a tratamentos, desde que não se encontre em risco de vida. Portanto, deve haver agora uma relação de igualdade entre paciente e médico, deixando de lado a ideia de “paternalismo clínico” (TEIXEIRA, A., 2010, p. 245-247). Ainda no âmbito histórico, pode-se dizer que foi com o Código de Nuremberg que esta mudança teve início, tendo em vista que este remete ao Tribunal Militar Internacional, ocorrido ao final da Segunda Guerra Mundial a fim de processar médicos nazistas por experimentação em prisioneiros em campos de concentração (TEIXEIRA, A., 2010, p. 241-242). A autora esclarece ainda que: “Este foi o primeiro documento internacional que tratou da necessidade do consentimento do paciente em pesquisas, juízo que se expandiu para a relação médico-paciente”. Após a realização deste documento, muitos outros surgiram neste mesmo sentido, com o intuito de garantir a autonomia do paciente, sendo um deles o Código de Ética Médica. Em seu capítulo IV – Direitos Humanos, garante: É vedado ao médico: Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. 16 Art. 28. Desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em qualquer instituição na qual esteja recolhido, independentemente da própria vontade. No mesmo diploma legal, no capítulo V – Relação com Pacientes e Familiares, em seu art. 31: “É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”. A Declaração de Lisboa, de onde originou-se a Declaração dos Direitos do Paciente, garante: a) O paciente tem o direito a autodeterminação e tomar livremente suas decisões. O médico informará o paciente das consequências de suas decisões; b) Um paciente adulto mentalmente capaz tem o direito de dar ou retirar consentimento a qualquer procedimento diagnóstico ou terapêutico. O paciente tem o direito à informação necessária e tomar suas próprias decisões. O paciente deve entender qual o propósito de qualquer teste ou tratamento, quais as implicações dos resultados e quais seriam as implicações do pedido de suspensão do tratamento; c) O paciente tem o direito de recusar participar em pesquisa ou em ensaio de medicamento. Quanto aos pacientes inconscientes: a) Se o paciente está inconsciente ou, em caso contrário, impossibilitado de se expressar, seu consentimento informado deve ser obtido sempre que possível de um representante legalmente indicado ou legalmente pertinente. b) Se um representante legalmente indicado não está disponível, mas se uma intervenção médica é necessitada urgentemente, o consentimento do paciente pode ser presumido, a menos que seja óbvio e além de qualquer dúvida, com base em expressão de convicção prévia e firmada pelo paciente ou que em face de sua convicção ele recusaria o consentimento à intervenção naquela situação. c) No entanto, os médicos sempre devem tentar salvar a vida de um paciente inconsciente quando devido a uma tentativa de suicídio. Também a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos garante o direito ao consentimento do paciente quando diz: Qualquer intervenção médica preventiva, diagnóstica e terapêutica só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido do indivíduo envolvido, baseado em informação adequada. O consentimento deve, 17 quando apropriado, ser manifesto e poder ser retirado pelo indivíduo envolvido a qualquer momento e por qualquer razão, sem acarretar desvantagem ou preconceito. Tendo em vista os textos legais apresentados, percebe-se que o paciente tem o direito de opor-se a uma terapia, de optar por um tratamento que entenda menos rigoroso, de aceitar ou não uma intervenção cirúrgica, com o objetivo de beneficiar o seu bem-estar físico e psíquico (DINIZ, 2002, p. 579). Entretanto, esta autonomia encontra o seu limite no art. 31 do Código de Ética Médica (supra citado), em razão de iminente perigo de vida, tornando-se a prática médica uma necessidade inadiável. Desta forma, sob a pena de omissão de socorro, o médico deve agir a fim de salvar o paciente, realizando tudo que sua ciência e consciência impuserem (DINIZ, 2002, p. 583). O princípio da autonomia faz com que os profissionais tenham que revelar as informações obrigatoriamente, verificando e assegurando o esclarecimento e a voluntariedade, encorajando assim a tomada de decisão adequada (CHILDRESS, BEAUCHAMP, p. 144, 2002). Portanto, o paciente tem sim autonomia para determinar se aceita ou não o tratamento médico, porém, esta autonomia não é absoluta, encontrando a sua barreira em uma imperiosa e inadiável necessidade do ato médico salvador, frente a um iminente perigo de vida. Nesses casos o tratamento arbitrário é válido, não havendo antijuridicidade nem a exigência de um consentimento por parte do paciente (FRANÇA, 2010, p. 18). 2.2.3 Princípio da beneficência Há que se observar também o princípio da beneficência, sendo que, do latim bonum facere (fazer o bem), tal princípio indica a obrigatoriedade do médico de promover primeiramente o bem do paciente, sendo que há confiança envolvida neste processo (SANTOS, 1998, p. 42-43 apud FABRIZ, 2003). Há disposição legal expressa no Código de Ética Médica nesse sentido no capítulo I – Princípios Fundamentais, onde diz, nos seguintes incisos: 18 II - O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”. V - Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente. VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade. VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente. Nos trechos legais supra citados fica possível perceber a preocupação do legislador em destacar a importância do princípio da beneficência, sendo que, em todas as situações, o médico deve zelar pelos seus pacientes. Alega França (2010, p. 176) que: “O Código de Ética Médica elegeu o princípio da beneficência como hierarquia coerente acima do princípio da autonomia”. CORRÊA (2010, p. 99) define o princípio da beneficência como sendo: “O dever de fazer o bem e evitar o mal para o paciente, de acordo com os parâmetros dos conhecimentos da medicina e de seu julgamento profissional”. A autora ainda define tal princípio como sendo a ponderação entre benefícios e riscos inerentes a um procedimento médico, buscando sempre maximizar os benefícios e reduzir os riscos ao paciente. Desta forma, a atitude esperada deste princípio deve partir do médico, no decorrer de toda a sua carreira, realizando ações no sentido de beneficiar os outros, não apenas não prejudicando, como também contribuindo para a melhoria do bemestar do paciente. Tal princípio é fundamental quando há vulnerabilidade, sendo que este geralmente é fator impeditivo de decisões autônomas por parte do paciente, devendo o médico agir ao seu favor (TEIXEIRA, A., 2010, p. 243-244). 19 O médico deve fazer tudo que lhe é possível a fim de salvar o paciente, conforme o que segue: Cabe ao médico “o dever de fornecer ampla informação quanto ao diagnóstico e ao prognóstico”, além do “emprego de todas as técnicas disponíveis para a recuperação do paciente, aprovados pela comunidade científica e legalmente permitidas”, uma vez que o foco é “a tutela do melhor interesse do enfermo em favor de sua dignidade e integridade física e psíquica” (TEPEDINO, 2006, p. 90 apud TEIXEIRA, A., 2010). Desta forma, temos que o profissional médico deve utilizar-se de todos os artifícios possíveis para a aplicação do princípio da beneficência ao paciente. Tratase este, de um princípio norteador de condutas, sendo que, por fundar-se nas máximas non nocere e bonum facere, engloba também o princípio da não maleficência (primum non nocere), ou seja, não causar dano algum a ninguém (FABRIZ, 2003, p. 107). Sobre o princípio da não maleficência, garante o Código de Ética Médica, no capítulo III – Responsabilidade Profissional, em seu art. 1º, que: “É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”. Percebe-se, portanto, que o princípio da beneficência prevalece em relação ao da autonomia do paciente nos casos de urgência. Isso porque diz o bom senso e a lei que, quando o tratamento é inadiável ou indispensável, estando o próprio interesse do paciente em jogo, deve o médico realizar tudo aquilo que sua ciência e sua consciência impõem. A iniciativa do médico em tais situações deve considerar apenas e tão somente o seu próprio entendimento, sendo que o mal deve ser remediado sem demora (FRANÇA, 2010, p. 18). 2.3 CÓDIGO INTERNACIONAL DE ÉTICA MÉDICA O Código Internacional de Ética Médica, aceito pela 3ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, realizada em Londres em 1949, no seu capítulo sobre 20 deveres médicos, declara que: “O médico deve ter sempre presente o cuidado de conservar a vida humana”, e que: “deve a seu paciente completa lealdade e empregar em seu favor todos os recursos da ciência” (FRANÇA, 2010, p. 21). Aqui, portanto, mais uma vez destaca-se a premente obrigação que tem o médico em aplicar o princípio da beneficência em favor dos seus pacientes. 2.4 RESOLUÇÃO CFM 1021/1980 O Conselho Federal de Medicina, diante do número crescente de casos de recusa de transfusão de sangue, por razão religiosa, editou a Resolução nº 1.021 de 26 de setembro de 1980. Foi adotado o Parecer nº 21/80, que diz que o problema da recusa de transfusão de sangue por pessoas adeptas Testemunha de Jeová, deve ser encarado pelos médicos sob duas circunstâncias (DINIZ, 2002, p. 223). Na primeira, a transfusão de sangue seria apenas uma indicação, não havendo, portanto, perigo imediato para a vida do paciente se ele se recusasse a tal indicação. Neste caso o médico teria que respeitar o direito à autonomia do paciente. Já na segunda situação, se encontrando o paciente com iminente perigo de vida, a transfusão de sangue não é uma escolha, mas sim uma medida terapêutica indispensável para salvá-lo, e então o médico não pode deixar de praticá-la, mesmo havendo oposição, pois está amparado pelo princípio da beneficência, que diz que ele deve agir nestas circunstâncias (DINIZ, 2002, p. 223224). Disso resultam os dois artigos seguintes, que concluem e definem a conduta a ser tomada: Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, devera observar a seguinte conduta: 1º - Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis. 2º - Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis. 21 Daí resulta a obrigação do médico de agir nestes casos, ultrapassando a autonomia do paciente e indo de encontro com o princípio da beneficência, fundamental na prática médica. Importante aqui destacar o perigo de vida como sendo a situação onde existe a possibilidade concreta de êxito letal, e que para evitar isso seja necessário a atuação rápida, decisiva e inadiável a fim de evitar o evento morte (FRANÇA, 2010, p. 175). O autor diz ainda que a emergência e a urgência são situações médicas de fácil entendimento para o profissional da área, não sendo preciso muito esforço para perceber quando a situação ocorre. 2.5 RESOLUÇÃO 1995/2012 Há que se verificar ainda a incidência do que dispõe a Resolução 1995 de 2012, que aborda a questão da manifestação da vontade do paciente, de forma antecipada. O artigo 1º da referida resolução estabelece que a vontade do paciente de se dar de maneira prévia e de expressa, discorrendo sobre os cuidados e tratamentos que quer ou não receber quando estiver incapacitado e não puder expressar sua vontade. Desta forma, garante o artigo 2º que, sempre que o paciente se encontrar nessas condições, cabe ao médico levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade. Caso um representante tenha sido designado previamente, será ele que o médico deverá ouvir e levar em consideração as suas informações. Cabe ao médico ainda, registrar no prontuário, as vontades antecipadas do paciente, que lhe foram diretamente comunicadas pelo enfermo. Ocorre que tais diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante têm o seu limite nos preceitos estabelecidos no Código de Ética Médica, não podendo, portanto, ir contra o que lá se encontra estabelecido. E, por fim, caso não haja a quem recorrer acerca da vontade do paciente ou de seus representantes ou familiares, cabe ao médico recorrer ao Comitê de Bioética da instituição, ou à Comissão de Ética Médica do hospital, ou ainda ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente. É, portanto, desta 22 forma que o médico deve agir, conforme o texto da Resolução de nº 1995 de agosto de 2012. 3 NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DA REPÚBLICA Quando se analisa a questão legislativa acerca de um assunto, torna-se fundamental abordar a lei maior envolvida, qual seja, neste caso, a Constituição Federal. 3.1 O BRASIL COMO UM ESTADO DE DIREITO O art. 1º da Constituição Federal de 1988 diz que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Trata-se de um princípio fundamental onde Estado de Direito é aquele cujo poder político se submete ao império da lei e não às vontades pessoais do governante (MONTEIRO, 2003, p. 102). Desta forma, seguindo este pensamento acerca da definição de Estado de Direito, nos diz Canotilho que: Ao decidir-se por um Estado de Direito a Constituição visa conformar as estruturas do poder político e a organização da sociedade segundo a medida do direito, compreendendo-se o direito aí como um meio de ordenação racial e vinculativa de uma comunidade organizada e, para cumprir esta função ordenadora, o direito estabelece regras e medidas, prescreve formas e procedimentos e cria instituições (CANOTILHO, p. 239 apud MONTEIRO, 2003, p. 105-106). Conclui-se então que o Brasil, por ser definido no art. 1º da Constituição Federal como um Estado de Direito, deve assegurar que os indivíduos presentes no país cumpram os ditames legais, garantindo assim a função ordenadora da norma disposta nos códigos, leis e afins. 23 3.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS Direitos ou princípios fundamentais são elementos que dão coerência geral ao sistema normativo, sendo que servem como critério de interpretação e de integração, tendo ainda, a sua aplicabilidade e ação imediatas (MIRANDA, p. 514515 apud SILVA, J., 2009, p. 32). Alexandre Moraes conceitua os direitos fundamentais pela ótica dos direitos humanos, como: O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana. Sintetizando o conceito, podemos afirmar que os direitos humanos fundamentais são os considerados indispensáveis à pessoa humana (MORAES, 2005, p. 21 apud CABRERA, 2006, p. 26). Nesse sentido, é importante que as normas que contêm os direitos fundamentais tenham eficácia e efetividade. Para isso, há que se observar o conteúdo do dispositivo, sendo que é o direito positivo o objetivo buscado. Garante, portanto, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, § 1º que: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (SILVA, J., 2009, p. 59). Importante salientar que os direitos fundamentais são inatos, absolutos, invioláveis, intransferíveis, indisponíveis, imprescritíveis, inalienáveis e, acima de tudo, irrenunciáveis. Desta forma, alguns deles podem até não ser exercidos, mas isso não quer dizer que tenham sido renunciados, pois isso não se admite jamais. Ainda, por não terem os direitos fundamentais um conteúdo econômico-patrimonial, não podem ser negociados em hipótese alguma. E quanto a sua prescrição, eles jamais deixam de ser exigíveis (SILVA, J., 2009, p. 60). Pode-se dizer que essas mesmas características estão presentes quando de trata de direitos fundamentais das crianças, porém, de forma mais forte ainda. Isso ocorre devido à condição especial de seus titulares (crianças e adolescentes), e da proteção integral que a eles é garantida, abrangendo a totalidade de seus direitos (PAULA, 2000, p. 194-195 apud CABRERA, 2006, p. 25). 24 O Estatuto da Criança e do Adolescente tem um tópico específico sobre direitos fundamentais, especificando em um capítulo, os referentes ao direito à vida e à saúde, onde é garantida a sua tutela. Sabe-se, por óbvio, que o rol de direitos fundamentais elencados no Estatuto da Criança e Adolescente não exclui o rol constitucional, sendo que, inclusive, complementam-se. Isso é possível porque a própria Constituição Federal, no seu art. 5º, §2º, deixa claro que os direitos e garantias expressos no texto constitucional não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte (CABRERA, 2006, p. 27). 3.3 DIREITO À VIDA O direito à vida é garantido na Constituição Federal de 1988 no seu art. 5º onde diz: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Este direito deve ser garantido pelo Estado não somente aos cidadãos brasileiros, mas a todo indivíduo que se encontre em território nacional (FABRIZ, 2003, p. 266). 3.3.1 Conceito de vida A vida humana, objeto do direito garantido pela Constituição Federal de 1988, é encarada da seguinte maneira por José Afonso da Silva: [...] a vida constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos. No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana [...], o direito à privacidade [...], o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência (SILVA, J., 1993, p. 182 apud CATÃO, 2004, p. 163). 25 Conforme De Plácido e Silva (1982, p. 490 apud CATÃO, 2004, p. 160), a palavra vida vem: “do latim vita, de vivere (viver, existir), e designa propriamente a força interna substancial, que anima ou dá ação própria aos seres organizados, revelando o estado de atividade deles”. Pedro Lenza (p.470 apud CABRERA, 2006, p. 27), diz que o direito à vida, de forma mais genérica: “abrange tanto o direito de não ser morto, privado da vida, portanto o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna”. Entende-se então o direito à vida como tendo, além das características dos demais direitos fundamentais, conforme citado anteriormente, acima de tudo, caráter absoluto, com reconhecido dever do Estado de proteger a vida, inclusive contra a vontade de seu titular (TEIXEIRA, A., 2010, p. 301). Desta forma, apesar do direito à vida poder ser encarado de várias maneiras, de acordo com as diferentes culturas, temos que abordar tal direito de maneira a levar-se apenas em conta a vida biológica, baseando-se na dicotomia vida e morte exclusivamente (FABRIZ, 2003, p. 268-269). 3.3.2 A vida como um bem coletivo A vida é uma garantia constitucional, da qual ninguém pode dispor incondicionalmente. Isso porque não existe apenas o interesse individual, mas também o interesse de outro titular de direito, qual seja, a sociedade, para a qual o indivíduo não é apenas uma unidade demográfica, mas acima de tudo, um grande valor social e político (URBAN, 2003, p. 194). Portanto, em situações de emergência, diz DINIZ (2002, p. 217) que: “deve prevalecer o valor da vida do paciente e do interesse da comunidade, pois a vida é um bem coletivo, que interessa mais à sociedade do que ao indivíduo”. A autora tem este pensamento sobre as situações de urgência, que necessitam de inadiável tratamento médico, intervenção cirúrgica e até mesmo transfusão de sangue não consentida, pois deve prevalecer o bem maior, qual seja, a vida. Ainda, os avanços biotecnológicos têm feito com que o direito à vida seja analisado por uma ótica multidisciplinar, percebendo que há várias possibilidades de 26 encará-lo como através de questões de ordem moral, social e jurídica (FABRIZ, 2003, p. 272). Segundo o mesmo autor, a vida tornou-se fonte de esperança de toda a humanidade, não nos pertencendo mais, mas sim à própria natureza, devendo ser encarada não apenas como um simples direito. Da vida deve surgir a visão de condição fundamental de onde se originam todas as demais coisas, no universo sociocultural (FABRIZ, 2003, p. 271). 3.3.3 Supremacia do direito à vida Como visto, a vida corresponde a um direito fundamental do indivíduo, sendo que isto tem prioridade sobre todas as coisas, e sem a qual nada fará sentido. Então o direito à vida sempre prevalecerá, inclusive perante a liberdade religiosa, de integridade física ou mental etc. Tem-se que, existindo conflito entre dois direitos, incidirá o princípio do mais relevante, no caso, o da vida (DINIZ, 2002, p. 25). Neste sentido, a autora discorre sobre a obrigação do médico: Parece-nos que o profissional da saúde deve respeitar tal liberdade, intervindo apenas no estágio final da resistência física, usando de todos os meios da ciência médica para impedir o óbito, pois o valor vida é anterior ao da liberdade. Esta só pode subsistir enquanto houver vida. De que serviria a liberdade se extinta a vida? Se o médico não alimentar alternativamente o grevista de fome, ou não fizer a necessária transfusão de sangue, alegando objeção de consciência, praticará crime de omissão de socorro ou de induzimento ao suicídio, tornando-se cúmplice do resultado morte, por sua conduta antiética. A liberdade pessoal não pode ser tolerada quando implica retirada da própria vida, por não ser absoluta, visto que está juridicamente limitada por princípios de ordem pública, como os de não matar, não induzir ao suicídio, não omitir socorro e o de ajudar quem está prestes a falecer. A vida é um bem muito superior à liberdade de querer morrer (DINIZ, 2002, p. 221). Sobre esta supremacia do direito à vida, garante ainda Catão (2004, p. 160): “Inegavelmente, o direito à vida é o primeiro e mais importante dos direitos fundamentais, sendo reconhecido pelo Estado por meio do Direito positivo”. Também sobre esta questão, confirma Fabriz (2003, p. 273) que: “A vida é a premissa maior, donde tudo o mais deve ser derivativo. Em conclusão, ninguém deve ser privado arbitrariamente de sua vida”. 27 Por isso, em casos envolvendo recusa pelos pais, de tratamento a um filho menor, por motivos religiosos, tem-se que tal renúncia é ato personalíssimo. Ademais, o direito de liberdade religiosa dos pais termina quando surge o direito do filho de viver, somado isso ao dever do Estado de preservar a incolumidade pessoal de todos (FRANÇA, p. 205 apud DINIZ, 2002, p. 220). Conclui então, Pontes de Miranda que, entre os direitos à vida e à liberdade de religião, no caso de poder escolher apenas um deles, que terá absoluta incidência o direito à vida, por ser mais relevante (MIRANDA, p. 23 apud DINIZ, 2002, p. 222). Tal autora diz ainda que: “O sacrifício de consciência é um bem menor do que o sacrifício eventual de uma vida”. Esta conclusão caminha na mesma direção do que diz José Afonso da Silva (2009, p. 68), sendo que: “De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais – como a intimidade, a liberdade – se não erigisse a vida humana num desses direitos”. 3.4 DIREITO À SAÚDE É preciso ver o direito à saúde como um desdobramento do direito à vida, sendo que o direito a uma vida digna compreende a garantia das necessidades vitais básicas do ser humano, em cujo rol está incluso o direito à saúde (CABRERA, 2006, p. 28). Assim, com o direito à vida, o direito à saúde vem recebendo destaque na comunidade jurídica, buscando cada vez mais encontrar formas de garantir a tutela adequada deste direito, somado à efetividade esperada. Para que isso ocorra, a tutela tem que se dar em níveis nacionais e internacionais, porém em graus diferentes (TEIXEIRA, A., 2010, p. 9). 3.4.1 Direito nacional à saúde No Brasil, a Constituição Federal de 1934 foi a primeira a abordar o tema “saúde”, mas apenas em questões de competência para legislar. O tratamento diferenciado a este direito, ganhando ligação à tutela da pessoa humana tornou-se realidade na Constituição apenas em 1988 (TEIXEIRA, A., 2010, p. 12). 28 A saúde é um direito de ordem social, disposto expressamente no art. 196 da Constituição Federal de 1988 da seguinte forma: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Portanto, conforme o artigo citado, para o cumprimento devido da tutela ao direito à saúde, exige-se do Estado1 não uma postura passiva, mas sim prestações positivas no sentido de garantia (TEIXEIRA, E., 2008, p. 24). O Estado deve garantir acesso universal e igualitário a essas ações, buscando não só a proteção da saúde, mas também a sua promoção e, acima de tudo, a sua recuperação, momento no qual, o médico tem o seu papel efetivado (CATÃO, 2004, p. 87). Assim, a saúde, em um estado democrático de direito, representa um dos bens mais fundamentais, sendo considerado um bem irrevogável e indispensável, cabendo ao Estado a sua garantia (FRANÇA, 2010, p. 93). Dessa forma, diz ainda o autor que, a vida e a saúde das pessoas têm relevante significado na manutenção da ordem pública e na segurança do Estado, sendo considerada uma questão prioritária, inclusive em projetos sociais, fazendo assim, com que a saúde tenha também um sentido político. Sabendo que o direito à saúde deve ser garantido pelo Estado, cabe também entender quem são os sujeitos beneficiados pela norma do art. 196. A relação jurídica constitucional estabelecida em “a saúde é direito de todos” tem de um lado o direito que ela confere; e de outro, os sujeitos desse direito, expressos pelo signo “todos”. Este é um signo de universalização, e que precisa aos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil (SILVA, 2009, p. 782). 1 A missão do médico é minimizar o sofrimento humano e resguardar a vida e a saúde, bens supremos da pessoa, sujeitando-se à tutela estatal, pois a Constituição, em seu art. 196, consagra a saúde como direito de todos e dever do Estado. 29 O Estatuto da Criança e do Adolescente garante, em seu art. 7º, que deve ser garantido o direito à vida e à saúde das crianças e adolescentes, por meio de políticas sociais que possibilitem condições dignas de existência. Para tanto, é garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde (CABRERA, 2006, p. 28). Esta garantia, somada ao princípio da proteção integral, devem garantir que as crianças e adolescentes tenham sempre seus direitos tratados com prioridade, com especial atenção aos direitos à vida e à saúde, não permitindo que outros interesses interfiram nisso. Pode-se então afirmar, conforme Cabrera (2006, p. 29) que: “o direito à saúde é corolário do direito à vida, constituindo direito fundamental da pessoa humana, passível de intervenção judicial na hipótese de negativa ou deficiência de atendimento”. Entretanto, esta garantia de tutela ao direito à saúde não está restrito ao nosso país, sendo que é um assunto de suma importância e colocado em pauta em nível mundial. 3.4.2 Direito internacional à saúde Internacionalmente, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 25, está determinado que: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, [...]”. Ainda no âmbito internacional, na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica), mesmo não tratando especificamente da saúde de forma individual, garante ela de forma geral ao resguardar o direito à vida e, abordando também a questão da saúde pública (TEIXEIRA, A., 2010, p. 10). Ainda, de forma mais específica quanto ao dever do médico no que tange ao direito à saúde, observa a Declaração de Helsinque II, adotada pela 18ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, na Finlândia, em 1964, e revista pela 29ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em Tóquio, em 1975, que: “é missão do médico salvaguardar a saúde do povo” (FRANÇA, 2010, p. 21). De todo o exposto até o presente momento, conclui-se que é sim missão do médico minimizar o sofrimento humano, e resguardar a vida e a saúde, como bens 30 supremos do indivíduo, sujeitando-se também à tutela estatal, uma vez que o art. 196 da Constituição Federal consagra a saúde como um direito de todos e dever do Estado (DINIZ, 2002, p. 218). 3.5 DIREITO À CRENÇA Garante a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso VI que: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Tal inciso garante de forma clara que todos têm direito de aderir a qualquer crença religiosa, ou ainda, de recusar qualquer delas, podendo, inclusive, se tornar ateu (SILVA, J., 2009, p. 95). Há que se observar que a questão da crença está inserida em algo maior, qual seja, a liberdade religiosa. Esta é uma liberdade espiritual e a sua exteriorização é a manifestação do pensamento. A liberdade religiosa abarca três formas de expressão: a liberdade de crença, a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa (SILVA, J., 2009, p. 95). A liberdade religiosa também é defendida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em seu art. 12 e parágrafos2. Ocorre que até mesmo neste caso, há a ressalva de limitar tal liberdade com base na lei, quando se torne necessária para proteger os direitos e as liberdades das demais pessoas. Assim, o direito à 2 Artigo 12 - Liberdade de consciência e de religião §1º - Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. §2º - Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. §3º - A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. 31 liberdade religiosa não prevalece perante o direito à saúde ou o direito à vida (JAYME, 2005, p. 144-145). Para o presente trabalho há a intenção de se abordar apenas a questão da liberdade religiosa, por estar este segmento ligado ao tema abordado, de forma inseparável. 3.5.1 Conceito de religião Conforme a etimologia da palavra religião, esta significa “estar atento, considerar, observar, manter-se unido”. A religião seria então o cumprimento atento do dever, onde a pessoa religiosa se mantém atenta e unida a um poder mais elevado, a algo que é maior que a pessoa do crente. Religião significa ainda, estar atado ou manter-se unido ao divino (ALVAREZ; FERREZ, 2005, p. 55). Apresentou-se o conceito etimológico do termo religião, existindo, porém, variados conceitos de outras naturezas para a mesma palavra. Para Gilmar Ferreira Mendes (2008, p. 417), será inequivocamente religião: “o sistema de crenças que se vincula a uma divindade, que professa uma vida além da morte, que possui um texto sagrado, que envolve uma organização e que apresenta rituais de oração e de adoração”. Charles Hainchelin, em seu livro “As origens da religião”, cita um trecho de Engels que conceitua religião de forma brilhante: A religião não é mais do que o reflexo fantástico, no cérebro humano, dos poderes exteriores que dominam sua existência cotidiana, reflexo no qual os poderem terrestres assumem a forma de poderes supreterrestres. No início da história, são as potências da natureza que, primeiro, estão sujeitas a este reflexo e que, na evolução posterior, passam pelas personificações mais diversas e mais variadas, entre os diversos povos [...]. Mas, logo, ao lado dos poderes sobrenaturais, entram em ação, também, poderes sociais, que se erguem diante dos homens e os dominam com a mesma aparência natural e, também, tão estranhos e inexplicáveis, de início, quanto as forças da natureza. Agora, as personagens fantásticas, que refletiam, inicialmente, apenas as forças misteriosas da natureza, começam a receber atributos sociais, tornam-se as representantes dos poderes históricos (ENGELS apud HAINCHELIN apud GALDINO, 2006, p. 12). 32 Desta forma, com base nos conceitos, na lei e, em especial na citação de Engels, é possível concluir que a religião é a ligação do crente com algo superior em que ele acredita e tem forte convicção. Ocorre que não deve haver dominação tão forte a ponto de criar grandes variações no cérebro humano, gerando uma dominação cega e que passe por cima de valores e princípios mais fortes que a própria religião, como é o caso do direito fundamental à vida. 3.5.2 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová Acerca do tema do presente trabalho, de forma aprofundada no assunto religião, o caso das Testemunhas de Jeová há de vir à tona. Isto ocorre devido ao conflito entre direitos e liberdades fundamentais, sendo que de um lado estão a liberdade religiosa, a intimidade e o direito à disposição corporal, e do outro lado estão a integridade física, a saúde e principalmente a vida (CORRÊA, 2010, p. 111). Torna-se então fundamental definir o conceito da religião Testemunha de Jeová. Em tal religião não é admitida a transfusão de sangue alogênico, nem mesmo em situações onde haja grave perigo de vida, por entender que há uma ordem bíblica3 de que o sangue é sagrado (DINIZ, 2002, p. 210). Ocorre que, em regra, a transfusão de sangue ocorre justamente por haver um caráter de urgência, não havendo outra alternativa de tratamento cabível para resguardar a vida no momento. Portanto, com tamanha urgência, e diante da situação apresentada, não há como abrir mão do procedimento de transfusão de sangue, mesmo sendo a pessoa uma Testemunha de Jeová (DINIZ, 2002, p. 211). Há que se considerar, conforme defendido, que o direito à vida é o mais importante existente na Constituição Federal, ganhando assim, preferência sobre todos os demais. Com base em tais argumentos, é oportuno trazer ao presente trabalho uma jurisprudência acerca do assunto. Trata-se de um caso onde o Tribunal 3 Levítico, 17:10-14; Atos, 15-28, 29. 33 de Justiça do Rio Grande do Sul4 negou autorização para transfusão de sangue em Testemunha de Jeová, porque no caso não havia risco de vida. A decisão deixa bem claro, entretanto, que se houvesse tal urgência, a autorização seria concedida, pois a pessoa não pode dispor da própria vida, ainda que por motivos religiosos. Isso ocorre porque em nosso ordenamento jurídico a tutela da vida prevalece em detrimento da garantia de liberdade religiosa, como é possível perceber na jurisprudência trazida ao presente trabalho (CORRÊA, 2010, p. 112). Há que se entender que muitas vezes a resistência em aceitar a decisão do paciente assenta-se em argumentos pertinentes à racionalidade da recusa. Assim, a vontade do paciente não deve ser acatada por estar contaminada por crenças religiosas e pressões da comunidade de fiéis à qual ele pertence. Ademais, o paciente não é considerado competente para avaliar informações de diagnóstico, tratamento e riscos envolvidos, tendo em vista que esta análise apresenta um nível de dificuldade bastante alto, não só pela falta de conhecimento técnico por parte do paciente, mas também pelo estado de vulnerabilidade em que a pessoa se encontra quando sua saúde é afetada (CORRÊA, 2010, p. 113-114). Portanto, com base nestes fatores, somados ao princípio da beneficência, conclui-se que (CULVERT, 1999, p. 56-58 apud CORRÊA, 2010, p. 113): “se os 4 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Cautelar. Transfusão de sangue. Testemunhas de Jeová. Não cabe ao Poder Judiciário, no sistema jurídico brasileiro, autorizar altas hospitalares e autorizar ou ordenar tratamentos médico-cirúrgicos e/ou hospitalares, salvo casos excepcionalíssimos e salvo quando envolvidos os interesses de menores. Se iminente o perigo de vida, é direito e dever do médico, empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao médico e ao hospital demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica apoiadas em séria literatura médica, mesmo que haja divergências quanto ao melhor tratamento. O Judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da atividade hospitalar. Se a transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura médico-científica (não importando naturais divergências), deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida (art. 146, § 3º, inciso I do Código Penal). [...] Há princípios gerais de ética e de direito, que aliás norteiam a Carta das Nações Unidas que precisam se sobrepor às especificidades culturais e religiosas; sob pena de se homologarem as maiores brutalidades; entre eles estão os princípios que resguardam os direitos fundamentais relacionados com a vida e a dignidade humanas. Religiões devem preservar a vida e não exterminá-las. Apelante: Irmandade de Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Apelado: Rubilar Cougo Goulart. Apelação Cível n. 595000373. Relator Sérgio Gischkow Pereira. 6ª Câmara Cível. 28 mar. 1995. 34 benefícios são grandes e, em contrapartida, os riscos são mínimos, a recusa do paciente deve ser julgada como irracional”. No tocante ao direito referente a menores de idades, garante art. 5º, inciso VIII do referido diploma legal que: “Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”. Tal artigo entra em total acordo com o presente caso, no tocante à transfusão de sangue em Testemunha de Jeová criança e, portanto, absolutamente incapaz. É preciso ter em mente que o direito de crença não pode sobrepor-se ao de viver do menor, sob pena de os pais praticarem crime de abandono de material e moral e serem destituídos do poder familiar. A escolha alternativa à transfusão de sangue só pode ocorrer caso não haja risco iminente de vida. Com caráter de urgência e risco de vida, a objeção de consciência torna-se ilegítima, pois coloca em perigo direitos de terceiro (SOUZA, apud DINIZ, 2002, P. 219). O autor ainda garante que: “A repulsa do objetor somente será legítima se não conflitar com direito fundamental de terceiro, como o é o direito à vida”. Sobre a obrigatoriedade de realizar a transfusão de sangue em Testemunha de Jeová menor de idade, mesmo sem o consentimento dos pais, Genival Veloso de França (2010, p. 205) garante que: “O direito de liberdade religiosa dos pais termina quando surge o direito do filho de viver, e, além disso, o Estado tem o dever de preservar a incolumidade pessoal de todos”. Portanto, conclui-se que, independente da idade do paciente, havendo urgência e risco de vida, a transfusão de sangue deve sim ser realizada, mesmo que vá de encontro com as crenças religiosas do Testemunha de Jeová 5, pois o direito fundamental à vida tem preferência sobre todos os demais. Desta forma, no tratamento médico ou cirúrgico em caráter de urgência, a liberdade não está condicionada ao consentimento do paciente ou de seus representantes legais, mas ao real interesse do doente e da comunidade. Ademais, o paciente não é 5 Há desnecessidade de autorização judicial para cirurgia e transfusão de sangue em paciente necessitado que se recusa à prática desse ato por questão religiosa, por isso ser do estrito cumprimento do dever legal do médico (TJSP, 6ª Câm. De Direito Privado, AC 264.210-1, Suzano, Rel. Testa Marchi, j. 01.08.1996, v.u.). 35 conhecedor da maneira ou dos meios para chegar à cura, sendo que somente o médico tem este conhecimento técnico e, portanto, deverá decidir tecnicamente o que é mais razoável para seu paciente (FRANÇA, 2010, p. 178). 4 NO DIREITO CIVIL Primeiramente cabe estabelecer a diferenciação entre delito civil e delito penal, sendo que nos dois casos há a quebra de um dever pelo agente. Ocorre que no delito penal há a violação do preceito instituído para a defesa da sociedade como um todo, enquanto no delito civil (ato ilícito), há a infração de norma sobre o interesse privado (URBAN, 2003, p. 198 – 199). 4.1 A RELAÇÃO MÉDICO PACIENTE COMO RELAÇÃO CONTRATUAL Aqui há uma divergência de doutrinadores sobre a natureza do negócio celebrado entre o médico e seu paciente, sendo que alguns entendem que se trata de um mero contrato de prestação de serviço, e outros, como os suíços e os alemães, entendem se tratar de um contrato sui generis. Isso porque é possível entender a atividade do médico como além de questões apenas técnicas, avançando também para funções de conselheiro, guarda e protetor do enfermo (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 360). A doutrina brasileira entende essa relação como de natureza de contrato de prestação de serviço, reforçada ainda pelo Código de Defesa do Consumidor. Conforme o art. 2º desta lei, o paciente coloca-se como consumidor. Já conforme no art. 3º o médico é visto como fornecedor de serviços (VENOSA, 2010, p. 148). Dentro desta definição contratual é possível ainda definir de forma mais específica a obrigação do médico, sendo que esta, mais uma vez, é agir, como segue: A obrigação contraída pelo médico é espécie do gênero obrigação de fazer, em regra infungível, que pressupõe atividade do devedor, energia de 36 trabalho, material ou intelectual, em favor do paciente (credor). Implica diagnóstico, prognóstico e tratamento: examinar, prescrever, intervir, aconselhar. A prestação devida pelo médico é sua própria atividade, consciente, cuidadosa, valendo-se dos conhecimentos científicos consagrados – em busca da cura (KFOURI NETO, 2002, p. 226). Desta forma, dentro da categoria contratual de prestação de serviços, com obrigação de fazer, há o dever do médico de agir, intervindo sempre que entender necessário, baseando-se em seus conhecimentos científicos consagrados, como supra citado. A relação entre médico e paciente pode ainda ser de natureza extracontratual, quando decorrer de um dever legal, que não tenha sido originado em um acordo realizado entre o paciente e o profissional. É o que acontece nos casos de emergência, onde o profissional tem o dever de prestar assistência mesmo que não haja o consentimento do paciente (URBAN, 2003, p. 201). Tem-se que é uma relação extracontratual porque nesses casos a existência de um contrato entre médico e paciente não fica muito clara, como quando um médico cuida de algum transeunte em via pública ou socorre um vizinho acometido de mal súbito (VENOSA, 2010, p. 154). Stocco (1999, apud URBAN, 2003, p. 201) garante que “a responsabilidade extracontratual e a contratual regulam-se racionalmente pelos mesmos princípios, porque a ideia de responsabilidade é una”. Então é preciso entender esta questão do ponto de vista obrigacional, sabendo que o médico tem obrigações inerentes à sua profissão. Ainda, a melhor maneira de evitar ações por responsabilidade médica, é garantir uma boa relação médico-paciente (FRANÇA, 2010, p. 203). 4.1.1 Obrigação do médico como obrigação de meio Além dessa questão contratual, é importante definir se a obrigação do médico é de meio ou de resultado a fim de se demonstrar qual é a sua real função. 37 De forma sucinta esclarece Venosa (2010, p.154): “Não se tratando de cirurgia plástica estética, a obrigação contraída pelo médico, quer no contrato, quer fora dele, é de meio, e não de resultado”. Tem-se a obrigação de resultado como sendo aquela onde há um fim desejado por quem contratou, e que por sua vez o contratado deve cumprir (URBAN, 2003, p. 201). Tal característica, entretanto, não pode dizer respeito à obrigação dos médicos, tendo em vista que eles trabalham com processos biológicos e que as reações são certas vezes imprevisíveis, chegando a fugir da real intenção do profissional, impedindo um resultado final garantido (URBAN, 2003, p. 202). Em contrapartida, tem-se a definição de obrigação de meio, aquela inerente aos médicos, como sendo: Aquela em que o contrato não se compromete com o resultado final, mas assume prestar um serviço com a diligência e cuidado exigidos dentro das condições que lhe são permitidas, com os recursos disponíveis. A obrigação de meio requer apenas prudência e diligência na prestação do serviço para atingir um resultado sem, no entanto, prever se irá alcançá-lo; daí não haver o comprometimento na sua obtenção (URBAN, 2003, p. 201). Portanto, a obrigação realista assumida pelos médicos é a de garantir aos pacientes todos os cuidados conscienciosos e atentos, conforme os ensinamentos da ciência e de sua formação, não se comprometendo a curar, mas sim a fazer tudo que lhe for possível, dentro das regras e métodos da profissão (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 306). Tem-se então que a obrigação contratual dos médicos é classificada como de meio, onde então o próprio empenho do médico, e os cuidados que toma são o objeto do contrato (URBAN, 2003, p. 201). 4.2 RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO Define França (2010, p. 207): “Responsabilidade é o justo e necessário, não só no sentido moral, mas também dentro de um sistema de obrigações e deveres, 38 diante do que é lícito e devido”. França (2010, p. 205) define ainda a responsabilidade, mais especificamente a médica, como: “a obrigação que podem sofrer os médicos em virtude de certas faltas por eles cometidas no exercício de sua profissão”. 4.2.1 Responsabilidade do estabelecimento médico Não se encontra aqui o foco do presente trabalho, mas é importante indicar que há uma diferença entre a responsabilidade civil dos médicos como profissionais liberais, e a dos estabelecimentos médicos, sendo que esta última é objetiva. Então se há uma pessoa jurídica onde o profissional liberal trabalhe como empregado ou fazendo parte da sociedade, esta responderá objetivamente (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 361). 4.2.2 Responsabilidade do médico como profissional liberal Como já analisado, a obrigação do médico então é de meio e não de resultado, sendo que então ele não tem a obrigação de chegar a um fim esperado, qual seja, a cura do paciente, mas sim garantir que seja feito o possível no decorrer do tratamento. Disso resulta que a responsabilidade médica, embora contratual, é subjetiva e a culpa deve ser provada (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 360). Venosa (2010, p. 153) complementa essa questão no mesmo sentido quando diz: “A responsabilidade do médico ou de outro profissional da saúde é subjetiva, dependendo, portanto, da comprovação de culpa”. Há, portanto, que se demonstrar que o resultado funesto, a morte, foi ocasionada por negligência, imprudência ou imperícia do médico, sendo estas as modalidades de culpa (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 361). 39 Dessa mesma forma dispõe a lei, conforme disposto no art. 951 do Código Civil, onde diz: “O disposto nos arts. 948, 949 e 9506 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho”. De forma mais abrangente, o Código Civil, no capítulo dos atos ilícitos, assegura mais uma vez que, havendo negligência, imprudência ou omissão voluntária, e ocorrendo o dano, torna-se o ato um ilícito, conforme art. 186 do mesmo diploma legal acima citado: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Fala-se, portanto, da culpa, a qual deve ser demonstrada e comprovada, pois a responsabilidade do médico é subjetiva, como já visto. A culpa pode decorrer de uma ação (ato comissivo) ou de uma omissão (ato omissivo) da onde resulta uma consequência prejudicial a outrem, consequência esta imprevista, mas previsível (NERY JUNIOR, NERY, 2008, p. 360). Confirmando este posicionamento, França (2010, p. 206) assegura: “Para que haja responsabilidade civil, não é necessário precisar se existiu intenção; basta que tenha havido negligência, imprudência, imperícia grosseira e, portanto, inescusáveis”. O artigo seguinte, sendo o art. 187 também do Código Civil, é igualmente fundamental para o presente trabalho no sentido de afirmar que o médico, como um titular de direito, comete ato ilícito se exceder os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. O abuso ocorre quando resultante do exercício não regular do direito (NERY JUNIOR, NERY, 2008, p. 368). Diante do exposto conclui-se que o médico, como profissional liberal que responde subjetivamente pelos seus atos, comete ato ilícito se age com culpa ou 6 O art. 948 diz respeito aos casos de homicídio; o art. 949 refere-se aos casos de lesão ou outra ofensa à saúde; e por fim, o art. 950 fala sobre defeito no tratamento. 40 exerce sua atividade fora dos limites impostos pela lei. Assim, um médico que não intervenha em caso de risco de vida de um paciente, conforme o explanado até o momento, incorre no art. 186 ou no art. 187 do Código Civil. Acerca da forma como o ofício do médico deve ser encarado, vejamos: Na responsabilidade, tal como se pode entender da lei civil, não se trata de capacidade, mais ou menos ampla, ou de talento mais ou menos brilhante, mais ou menos sólido, senão somente da garantia contra a imprudência, a negligência, a pressa e uma ignorância crassa a respeito daquilo que se devia necessariamente saber e praticar em uma profissão (FRANÇA, 2010, p. 206). Tal explanação só vem confirmar a premente necessidade de que o médico, como profissional liberal, exerça a sua função em conformidade com a lei e com os ensinamentos técnicos que adquiriu em sua formação. Ainda o Código de Defesa do Consumidor manifesta-se sobre o tema, no § 4º do art. 14 onde garante que: “A responsabilidade profissional dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”, ou seja, mais uma vez reforça-se o caráter subjetivo do ofício do profissional médico, que se agir com negligência, imprudência ou imperícia, cometerá ato ilícito. Explica-se o disposto no § 4º do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor pela natureza intuitu personae dos serviços prestados pelos profissionais liberais e, portanto, pelos médicos também, considerando que estes inspiram confiança aos seus pacientes. É justamente por isso que não responde de forma objetiva, mas sim subjetiva, dependendo da demonstração do dano (DENARI, 2004, p. 196). A respeito da natureza intuitu personae do serviço prestado pelo médico, bem como sobre a responsabilidade de agir quando necessário, Venosa (2010, p. 154) discorre: “Quando a iniciativa do médico é unilateral, quando passa a tratar de pessoa, ainda que contra a vontade dela, a responsabilidade profissional emerge da conduta, e não do contrato”. Dessa forma, assegura-se além do direito do médico de intervir em casos de emergência, um dever inerente de sua profissão, e que pode incorrer em ato ilícito 41 se não observado. Há, portanto, que se cumprir os ditames legais brasileiros e as especificações técnicas decorrentes do ofício médico. 5 NO DIREITO PENAL No presente caso, o direito penal vem tutelar tanto o direito à vida, no crime de omissão de socorro, quanto o direito à liberdade individual no crime de constrangimento ilegal. Porém, em ambos os casos irá se verificar que o dever do médico de agir se sobressai. 5.1 OMISSÃO DE SOCORRO Há ainda que se observar os reflexos penais envolvidos no ramo médico quando o assunto é o dever do médico de agir frente à recusa de tratamento por parte do paciente. Havendo risco de vida do paciente, o médico não pode acatar a sua recusa de tratamento, sob pena de responder pelo crime de omissão de socorro. Assim, um médico que deixa de realizar uma transfusão de sangue diante de um iminente perigo de vida, simplesmente porque o paciente ou seus familiares não permitem, comete omissão de socorro (FRANÇA, 2010, p. 178). Sobre tal crime, dispõe o Código Penal: Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. A omissão de socorro trata de obrigações que deveriam ser cumpridas e não o são. A objetividade jurídica deste tipo penal é o dever de assistência e solidariedade entre os homens para a proteção da vida e da saúde do cidadão. Temse como sujeito passivo principal deste crime, a pessoa em grave e iminente perigo, em tais proporções capazes de desencadear um grave dano, como a morte. Nestes 42 casos, mesmo que a vítima não queira ser socorrida existirá o crime, isso porque a incolumidade física e a vida são bens indisponíveis (GONÇALVES, 2002, p. 84-85). Verifica-se que subjetivamente há que se ter dolo, seja direto ou eventual. Exige-se também o conhecimento da situação típica e dos meios de realização da conduta devida. Assim, resta inegável o dolo do médico que, percebendo uma situação de urgência e risco de vida, não atende o paciente por negativa deste (PRADO, 2003, p. 573). Neste mesmo sentido, pressupõe-se então a existência de dolo de não socorrer, sendo esta uma vontade consciente para que a pessoa em iminente perigo não seja salva. Importante frisar que o dever de solidariedade humana não pode ser recusado, principalmente por médicos e profissionais da saúde (SÉGUIN, 2001, p. 293). Importante também verificar a situação descrita no parágrafo único do artigo citado, onde diz que a pena será aumentada caso haja o resultado morte. O nexo causal neste crime deve ser analisado de forma inversa, já que o crime é omissivo. Desta forma, somente será aplicada a qualificadora se ficar provado que, caso o médico tivesse socorrido o paciente, poderia ter evitado a sua morte (GONÇALVES, 2002, p. 87). Tem se tornado corriqueira a situação de recusa de tratamento em hospitais com o argumento de preceito religioso. Porém, é fundamental ter em mente que é inadmissível o abandono de pessoa gravemente enferma à sua própria sorte. Desta forma, eventual recusa de paciente em receber tratamento, não exime o médico de responsabilidade, posto que tem o dever de agir nestas situações (SÉGUIN, 2001, p. 295). Somado ao que preceitua o art. 135 do Código Penal, temos o art. 13 do mesmo diploma legal, que diz: Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. [...] § 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; Com base no artigo citado, conclui-se que o dever do médico em agir, nos casos de urgência, mesmo com a recusa do paciente, encontra-se amparado em 43 dois locais do Código Penal, sendo nos artigos 13 e o 135. Ambos tratam da omissão, sendo que o art. 13 é mais genérico, mas não menos importante. Percebese que os médicos estão enquadrados no §2º, a, pois eles têm a obrigação, por lei de cuidado, proteção e vigilância do paciente. Neste sentido, oportuno acrescentar uma jurisprudência7 pertinente ao tema (PRADO, 2003, p. 86). 5.2 CONSTRANGIMENTO ILEGAL Se no crime de omissão de socorro pune-se pela falta da ação necessária, no crime de constrangimento ilegal pune-se pela prática forçada de um ato. O artigo que disciplina tal crime é o 146 do Código Penal, e diz: Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. [...] § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo: I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; Neste tipo penal, o bem jurídico tutelado é a liberdade individual, ou seja, a liberdade pessoal de autodeterminação da vontade e da ação. Enquadra-se aqui também o caso dos médicos que buscam, em situações de urgência, agir conforme os ensinamentos médicos e com base no princípio da beneficência, indo contra a liberdade individual do paciente, que se nega ao tratamento (PRADO, 2003, p. 604). Para garantir então que o médico não seja punido pelos seus atos, quando este busca salvar a vida do paciente, há a excludente no próprio artigo, em seu parágrafo 3º, inciso I. Assim, o consentimento do paciente passa a ser irrelevante nos casos onde haja a necessidade imediata de intervenção médica ou cirúrgica por haver risco de vida do paciente. É uma forma de proteção tanto ao médico, que não 7 Apelação criminal – Homicídio culposo – Conduta comissiva por omissão – Imperícia – Codenunciados – Sentença absolutória – “Provimento do recurso para condenar o agente que se omitiu no dever de prestação de atendimento médico-emergencial adequado a paciente de pronto-socorro hospitalar. Evidenciado o nexo de causalidade entre a conduta omissiva da ré e a morte da vítima, que deixou de receber da acusada atendimento emergencial aos primeiros sintomas de choque anafilático, impõe-se a sua condenação na forma do art. 13, caput, e §2º, do Código Penal. [...] Recurso parcialmente provido. Unânime” (TJDF – 1ª – T. Crim. – APR 19990110592767 – Rel. Otávio Augusto – DJU 06.03.2002, p. 120). 44 será atingido pelo tipo penal do caput do artigo 146, quanto ao paciente, que terá o seu direito à vida sempre resguardado e protegido (URBAN, 2003, p. 193-194). A proteção do médico também ocorre por força do art. 23 do Código Penal, que trata das excludentes de ilicitude, quando diz: Art. 23 - Não há crime quando o Agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; [...] III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Entende-se claramente que quando o médico age contra a vontade do paciente, e havendo o risco iminente de vida8, tal ação enquadra-se no inciso III do referido artigo, pois há o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito, inerentes ao profissional médico (PRADO, 2003, p. 139). Em algumas circunstâncias, em razão do caráter emergencial, não há como obter o consentimento do paciente ou do seu representante legal, devendo então o médico agir a fim de evitar a morte, configurando assim a hipótese do inciso I do art. 23 do Código Penal, o estado de necessidade (CORRÊA, 2010, p. 104-105). Conclui-se então que a liberdade individual é tutelada pelo artigo 146, entretanto, a lei abre exceções ao direito (e dever) médico de agir em casos de urgência, sendo que tais exceções estão dispostas em dois momentos do Código Penal, sendo no inciso I do parágrafo 3º do artigo 146 e no inciso III do artigo 23, que trata das excludentes de ilicitude. 8 Já se decidiu que, “uma vez comprovado efetivo perigo de vida para a vítima, não cometeria o médico nenhum delito que, mesmo contrariando a vontade expressa dos por ela responsáveis, â mesma tivesse ministrado transfusão de sangue” (RJDTACrim, 7:175). 45 6 CONCLUSÃO Após muita leitura acerca do tema, constata-se que se trata de assunto bastante polêmico. Em tempos passados havia o paternalismo médico, mas acreditei que isso houvesse se diluído por conta dos novos modos de encarar a o mundo, a sociedade e a vida, na chamada era pós-moderna. Entretanto, o que se percebe hoje é que, apesar de ainda haver certa credibilidade no profissional médico, muita gente procura ajuda na religião. Essa ajuda diz respeito a questões de todas as áreas, inclusive a de saúde. Assim, muitos depositam a sua fé na religião, confiando no poder divino em detrimento do conhecimento médico. O argumento religioso, as alegações de sofrimento e as causas de protesto têm sido as mais frequentes justificativas para os diversos tipos de recusa de tratamento médico, sendo que as situações mais recorrentes são, a recusa à transfusão de sangue em Testemunha de Jeová, a eutanásia, a ortotanásia, a distanásia, as ordens de não reanimar e a greve de fome. Não era meu intuito aqui, abordar cada caso especificamente, pois para isso seria necessária a elaboração de um novo trabalho inteiro e completo para cada tema individualizado. Buscou-se demonstrar, de forma geral, por áreas do Direito, qual deveria ser a postura adotada pelo profissional médico, quando o paciente se recusasse a receber o tratamento proposto. Assim, no âmbito ético da medicina, conclui-se que o médico deve, sempre que possível, prestar todo tipo de informação ao paciente, acerca do diagnóstico, tratamentos possíveis e riscos ou consequências existentes. Prestado tal esclarecimento, deve então ser preservada e respeitada a autonomia deste. Porém, isso tudo encontra limite na situação emergencial e no risco iminente de vida, casos em que o médico deve agir, independente de consentimento do paciente, a fim de buscar o princípio da beneficência e salvar a vida que está em suas mãos. Constitucionalmente conclui-se que o direito à vida ainda é o mais importante dos direitos fundamentais, devendo prevalecer perante qualquer outro. Assim, o direito à liberdade religiosa fica relativizado, sendo que é garantido pela Constituição apenas quando não entrar em conflito com algum outro direito maior do que ele 46 próprio, como ocorre nos casos de risco de vida e necessidade de transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová. O médico age em total conformidade com a lei quando, no caso citado, transfunde o sangue para salvar a vida de alguém que se encontrava em risco de vida e que, mesmo assim, se negava a receber o sague de outra pessoa. Portanto, deve-se relativizar o direito de liberdade religiosa quando o da vida encontra-se ameaçado, por ser este o primeiro a ser resguardado. Com base no Direito Civil, conclui-se que a relação médico-paciente é contratual e tem obrigação de meio, não de fim. Assim, o médico deve agir para evitar eventos danosos, como a morte, porém, não há a obrigação de curar o enfermo, mas sim a obrigação de exaurir os caminhos existentes. Nesta obrigação de meio, o profissional médico responde de forma subjetiva, onde há que se comprovar a existência de negligência, imprudência ou imperícia, além da comprovação do dano e do nexo de causalidade. Desta forma, entende-se que, se um médico deixa de atender um paciente em situação emergencial, e este vem a falecer, há a existência de culpa, sendo que era dever do médico agir e não agiu, causando o evento danoso. Na esfera penal a conclusão é de que o médico pode responder pelo crime de omissão de socorro caso deixe de prestar atendimento ao paciente em risco de vida. Já quanto ao crime de constrangimento ilegal, que poderia ser argumentado, uma vez que o médico fere a liberdade individual do enfermo, este não se aplica, pois tal situação se enquadra na exceção de estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito. Observa-se então uma coerência lógica na legislação brasileira quando determina, em todas as esferas analisadas, o claro dever do médico de agir quando se deparar com um paciente com risco eminente de vida, mas que, mesmo assim recuse tratamento. Não há então, um só motivo que obrigue o médico a agir de forma contrária, acatando ao pedido do enfermo que se encontra morrendo. O profissional médico só deve garantir que a vontade do paciente seja executada quando houver margem para tal escolha, sem que ela prejudique a vida e a integridade física do paciente. 47 É preciso entender que este trabalho não é contra a religião, mas sim a favor da lei e do direito à vida. Assim, a religião não está acima de tudo, muito menos acima da vida, tendo em vista que isso seria logicamente um contrassenso, pois, como garantir o direito à liberdade religiosa se não houver o direito à vida garantido previamente? É possível aprofundar este pensamento quando entende-se que de nada adianta garantir qualquer direito sem antes garantir o da vida, pois nada pode acontecer a um indivíduo sem que haja a vida. Entendo que defender o dever do médico de agir nos casos citados neste trabalho não significa que o homem não seja mais o verdadeiro dono de seu corpo ou que caiba ao Estado decidir arbitrariamente o rumo das pessoas. Acredito, entretanto, que o que deve ser evitado, é a banalização do direito à vida, tendo como argumento qualquer direito menor e, portanto, menos importante. Garante o artigo primeiro da Constituição Federal que o Brasil é um Estado de Direito, onde as leis devem ser seguidas, e os atos executados conforme preceituado legalmente. Portanto, há que se fazer cumprir o texto da lei e, como amplamente demonstrado aqui, ele garante que o direito à vida é o mais importante, sendo o bem supremo a ser tutelado pelo Estado e por todos. Demonstrou-se também que a lei garante ser dever do médico agir quando se deparar, em situações de urgência, com pacientes em risco de vida. Resta inequívoca, portanto, tal conclusão. Por fim, importante destacar que há textos pregando a necessidade de normas mais humanas e eticamente aceitas, normas que acompanhem os avanços da medicina e que apontem critérios para que o morrer dignamente seja uma realidade. Entretanto, a lei jamais agradará a todos, e que problemas polêmicos envolvendo-a sempre surgirão, sendo que, apenas uma ponta do iceberg será percebida. Mesmo assim, enquanto a lei não se adapta aos costumes e interesses do povo, ela há de ser cumprida por todos, exatamente na forma em que está disposta. Só assim haverá segurança jurídica sem que seja preciso buscar o poder judiciário. Ainda, quanto ao direito à vida, busco defender que ele não se torne um discurso abstrato e sem sentido, mas algo efetivamente protegido pela lei. 48 Um início de mudança neste sentido é possível ser encontrado no anteprojeto do novo Código Penal, no art. 121, §4º onde trata de descriminalizar a prática da eutanásia decorrente da vontade do paciente ou de seus familiares. Percebe-se assim que está havendo uma evolução acerca do tema na sociedade brasileira. 49 REFERÊNCIAS ALVAREZ, Juan Carlos; FERRER, Jorge José. Para fundamentar a bioética. São Paulo: Edições Loyola, 2005. BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Edições Loyola, 2002. CABRERA, Carlos Cabral. Direitos da criança, do adolescente e do idoso: doutrina e legislação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. CATÃO, Marconi do Ó. Biodireito: transplantes de órgãos humanos e direitos de personalidade. São Paulo: Madras, 2004. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 7ª edição. 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