a postura do medico frente a recusa do paciente ao tratamento

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
KAROL KLASSEN
A POSTURA DO MÉDICO FRENTE À RECUSA DO PACIENTE AO
TRATAMENTO
CURITIBA
2012
KAROL KLASSEN
A POSTURA DO MÉDICO FRENTE À RECUSA DO PACIENTE AO
TRATAMENTO
Projeto de Monografia apresentado ao Curso de
Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da
Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito
parcial para a obtenção do título de Bacharel em
Direito.
Orientador: Professor Martim Afonso Palma
CURITIBA
2012
TERMO DE APROVAÇÃO
KAROL KLASSEN
A POSTURA DO MÉDICO FRENTE À RECUSA DO PACIENTE AO
TRATAMENTO
Esta monografia foi julgada e aprovada para a obtenção do título de Bacharel no
Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do
Paraná.
Curitiba, ___________________________de 2012.
____________________________________________________
Orientador: Martim Afonso Palma
____________________________________________________
Examinador
____________________________________________________
Examinador
____________________________________________________
Examinador
À minha mãe, com todo o amor que
houver nesta vida.
Agradeço pelo apoio de todos que, de
alguma forma, ajudaram a concretizar
este trabalho.
Agradeço
também
pelo
apoio
do
professor Martim Afonso Palma pelas
orientações dadas.
“O médico conhece todas as misérias
físicas do homem; o jurista toda a sua
maldade.”
Schopenhauer
RESUMO
Busca-se com este trabalho analisar a questão da postura a ser adotada pelo
profissional médico ao se deparar com pacientes que recusem o tratamento a ser
executado. Para tanto, a análise estará baseada na legislação médica, na
constitucional, na civil e na penal, buscando assim um panorama geral da situação
na legislação brasileira. Assim será possível verificar qual a conduta a ser adotada
nos casos de conflitos de direitos e nos casos envolvendo risco de vida do paciente.
Palavras-chave: Direito à vida. Direito à saúde. Direito à crença. Postura
médica. Conflito de direitos. Risco de vida. Autonomia do paciente.
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 10
2
NA LEGISLAÇÃO MÉDICA ........................................................................... 12
2.1
DECLARAÇÃO DE GENEBRA ....................................................................... 12
2.1.1 Juramento de Hipócrates ................................................................................ 13
2.2
PRINCIPAIS PRINCÍPIOS MÉDICOS............................................................. 13
2.2.1 Princípio da informação................................................................................... 14
2.2.2 Princípio da autonomia do paciente ................................................................ 14
2.2.3 Princípio da beneficência ................................................................................ 17
2.3
CÓDIGO INTERNACIONAL DE ÉTICA MÉDICA ........................................... 19
2.4
RESOLUÇÃO CFM 1021/1980 ....................................................................... 20
2.5
RESOLUÇÃO CFM 1995/2012 ....................................................................... 21
3
NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DA REPÚBLICA ......................................... 22
3.1
O BRASIL COMO UM ESTADO DE DIREITO ................................................ 22
3.2
DIREITOS FUNDAMENTAIS .......................................................................... 23
3.3
DIREITO À VIDA ............................................................................................. 24
3.3.1 Conceito de vida ............................................................................................. 24
3.3.2 A vida como um bem coletivo ......................................................................... 25
3.3.3 Supremacia do direito à vida ........................................................................... 26
3.4
DIREITO À SAÚDE ......................................................................................... 27
3.4.1 Direito nacional à saúde .................................................................................. 27
3.4.2 Direito internacional à saúde ........................................................................... 29
3.5
DIREITO À CRENÇA ...................................................................................... 30
3.5.1 Conceito de religião......................................................................................... 31
3.5.2 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová ........................................ 32
4
NO DIREITO CIVIL ......................................................................................... 35
4.1
A RELAÇÃO MÉDICO PACIENTE COMO RELAÇÃO CONTRATUAL .......... 35
4.1.1 Obrigação do médico como obrigação de meio .............................................. 36
4.2
RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO .................................................... 37
4.2.1 Responsabilidade do estabelecimento médico ............................................... 38
4.2.2 Responsabilidade do médico como profissional liberal ................................... 38
5
NO DIREITO PENAL ...................................................................................... 41
5.1
OMISSÃO DE SOCORRO .............................................................................. 41
5.2
CONSTRANGIMENTO ILEGAL ...................................................................... 43
6
CONCLUSÃO ................................................................................................. 45
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 49
10
1 INTRODUÇÃO
Atualmente, em questões de medicina e saúde, percebe-se uma crescente
tendência à relativização do dever médico de resguardar a vida ao máximo. Isso
vem ocorrendo por motivos variados que vão desde a crença religiosa até o
sentimento de piedade em casos de pacientes com doenças terminais. Surgem
então várias dúvidas quanto aos limites desta relativização e se isso é correto. Até
que ponto deve haver o consentimento do paciente para que o tratamento seja
realizado? Até onde vai esta autonomia? Não seria o direito à vida maior do que
qualquer outro? Qual deve ser o posicionamento médico frente a tais questões?
Algumas situações têm tido destaque, como é o caso de transfusão de
sangue em Testemunhas de Jeová, greves de fome, condutas de contenção de
pacientes, e os casos dos pacientes com doenças terminais que não querem mais
viver.
Tais situações têm em comum a presença da recusa de tratamento médico
por parte do paciente. Simplesmente abre-se mão do direito à vida em detrimento de
algo que o paciente entenda como maior, seja uma convicção religiosa, um desejo
de protesto, o fim de um sofrimento físico, ou mesmo o desejo de morrer sem
tratamentos, desde que fúteis.
Ocorre que o paciente não está sozinho e, do outro lado da situação,
encontra-se o médico. Este jurou proteger a vida em todas as circunstâncias,
deixando de lado convicções diversas a isso. O Juramento de Hipócrates, atualizado
em 1948 pela Declaração de Genebra, permanece atual até hoje é usado como
juramento dos profissionais médicos que se formam.
Ademais, temos o direito à vida como fundamental e garantido pela lei maior,
a Constituição da República. Por isso, não se pode simplesmente ignorar o dever de
garantir a vida em todos os seus aspectos, concedendo autonomia suficiente aos
pacientes e deixando que estes decidam quando o direito à vida deve existir e
quando deve ser suprimido.
11
Para tanto, o presente trabalho busca discutir a questão da autonomia do
paciente nas dimensões em que vem sendo empregadas atualmente, e garantir que
a lei seja cumprida, tutelando a vida como bem mais precioso do Estado.
De forma mais específica, busca-se realizar uma análise mais detida acerca
da legislação brasileira em vigor no sentido ético médico, constitucional, civil, penal e
moral, verificando se colide ou não com a questão legal suscitada.
Assim, busca-se esclarecer que pode haver uma diferença entre o que está
de acordo com a legislação, de forma positivada, e o que acaba acontecendo devido
à relativização desta, ocasionando uma forma de neoconstitucionalismo. Ambos
coexistem atualmente, mas neste trabalho busca-se defender apenas um deles, qual
seja, o positivismo, uma vez que vivemos em um Estado democrático de direito,
conforme a Constituição assegura.
Este trabalho pretende analisar os diplomas existentes no sentido de resolver
os casos concretos. Para tanto, me utilizarei do Código de Ética Médica, do Código
Internacional de Ética Médica da Associação Médica Mundial, bem como da
resolução 1.021 do CFM, de 1980.
A Constituição Brasileira será fundamental para que haja um enfoque nos
principais princípios e direitos fundamentais ali garantidos. Até porque, estando em
desacordo com a lei maior, difícil seria sua sustentação ganhar força.
Ainda, como pilares importantes para o presente trabalho, temos o Código
Civil e o Código Penal. São neles que verificarei a questão da obrigação e da
responsabilidade do médico quando deixa de agir por recusa do paciente, bem como
as consequências penais atribuídas ao médico por tais práticas.
Quando há menores envolvidos, torna-se fundamental adentrar também no
Estatuto da Criança e do Adolescente como forma de resguardar os direitos dos que
ainda não têm a sua capacidade plena.
Posto isso, da maneira que se pretende, ficarão claros os momentos em que
a autonomia do paciente deve prevalecer, e quando ela não se sobressairá frente ao
dever do médico de agir e salvar a vida que está em suas mãos.
12
2 NA LEGISLAÇÃO MÉDICA
Antigamente qualquer enfermidade era considerada como uma manifestação do
sobrenatural, e que para tratá-la era preciso adentrar em um mundo místico. O
conhecimento humano mudou desde então, mas ocorre que alguns preceitos
permaneceram, de forma a demonstrar que a possibilidade científica, de forma
alguma é sinônimo de conveniência jurídica e ética (SÉGUIN, 2001, p. 10-11).
Já dentro da estrutura social brasileira, a nossa Constituição adota, segundo a
mesma autora (2001, p. 17): “A liberdade de exercício profissional, subordinado
apenas à regulamentação da atividade, sem a exigência e a tirania das corporações
de ofício que caracterizaram a Idade Média Européia”.
Com isso, mesmo havendo pensamentos diversos acerca da medicina, o
profissional médico deve seguir o Código de Ética Médica e sempre orientar a sua
conduta profissional pelas determinações do mesmo (DINIZ, 2002, p. 224).
2.1 DECLARAÇÃO DE GENEBRA
A Declaração de Genebra teve sua origem no juramento de Hipócrates. Tendo
sido adotada pela Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em Genebra,
na Suíça, em Setembro de 1948, segue o conteúdo do juramento feito ainda nos
dias de hoje acerca da obrigação médica de seguir o princípio da beneficência e agir
quando necessário, respeitando a vida humana acima de tudo:
Na hora de ser admitido como um membro da profissão médica:
"[...] A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação. [...]
Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da
profissão médica. [...] Não permitirei que concepções religiosas, nacionais,
raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus
pacientes. Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua
concepção. [...]" (FRANÇA, 2010, p. 248-249).
Para entendermos melhor a origem de tal juramento, torna-se necessário
investigar mais a fundo a questão do Juramento de Hipócrates, a fim de que se
possa perceber que desde há muitos séculos tem-se a ideia de dever de
beneficência do médico ao paciente.
13
2.1.1 Juramento de Hipócrates
Considera-se de fundamental importância o disposto no Juramento de
Hipócrates, nascido 400 anos antes de Cristo e praticante de medicina na época. Ele
conduzia a medicina dentro de um alto conteúdo ético, deixando o diagnóstico de
tratar-se de uma inspiração divina para constituir um processo lógico que dependia
de observações de sinais e sintomas (FRANÇA, 2010, p.13). Diz o autor, de forma
ainda mais concisa acerca do pensamento hipocrático: “Era a morte da medicina
mágica e o nascimento da medicina clínica”.
Foi ocorrendo uma mudança significativa na forma de entender a medicina. Na
Alexandria, o paciente era visto como uma patologia, sendo que para Hipócrates, de
Kós, o paciente era entendido como uma entidade biológica, um enfermo individual
que recebia influências do meio externo. Assim, percebendo que a doença estava
ligada à realidade do indivíduo, substituiu os preceitos religiosos pela ética
(SÉGUIN, 2001, p. 15).
Entretanto, apenas a partir do século XV é que surgiu uma noção mais forte
sobre os deveres e obrigações dos médicos, orientados para um coletivo e social,
sem, no entanto, se desvincular da fonte hipocrática (FRANÇA, 2010, p. 19).
O Juramento de Hipócrates determina, entre outras coisas, que se apliquem os
regimes para o bem do doente segundo o poder e entendimento do médico, nunca
para causar dano ou mal a alguém (SÉGUIN, 2001, p. 15). Ainda segundo a autora,
o saber médico estava baseado em três princípios básicos, quais sejam: “1)
favorecer ou, pelo menos, não prejudicar o doente; 2) abster-se do impossível,
portanto, não atuar quando a doença é letal e 3) atacar a causa do dano”.
Aqui, portanto, resta demonstrado desde já que o princípio da beneficência não é
algo recente, já sendo pensado a respeito nos primórdios da humanidade.
2.2 PRINCIPAIS PRINCÍPIOS MÉDICOS
Nas relações entre médicos e pacientes há que se seguir as normas éticas e
jurídicas pré-estabelecidas, bem como os princípios norteadores da profissão
médica, quais sejam, o da beneficência e não maleficência, o do dever de
14
informação ao paciente, o do sigilo profissional, o do respeito à autonomia e ao
consentimento livre e esclarecido (DINIZ, 2002, p. 555).
2.2.1 Princípio da informação
Inicialmente, é fundamental na profissão médica que se preste informações ao
paciente acerca da sua situação e opções de tratamento. Tal princípio está garantido
no art. 34 do Código de Ética Médica, onde diz ser vedado ao médico: “Deixar de
informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do
tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo,
nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. Portanto, a informação
torna-se fundamental em todo o decorrer da relação médica.
Desta maneira o paciente é informado pelo médico sobre a necessidade de
determinadas condutas ou intervenções e sobre seus riscos e consequências. O ato
médico não implica um poder excepcional sobre a vida ou a saúde do paciente, a
não ser nos casos envolvendo risco de vida. Portanto, o dever de informar é
imperativo como requisito prévio para o consentimento do paciente, chamado
consentimento prévio (FRANÇA, 2010, p. 209).
2.2.2 Princípio da autonomia do paciente
Interligado ao princípio da informação, está o princípio da autonomia do
paciente, sendo o consentimento livre e esclarecido, como um ato voluntário
baseado em uma informação médica. Esta informação deve ser clara, simples e
fácil, de maneira que o paciente possa entendê-la, englobando também o
entendimento acerca do diagnóstico, prognóstico, terapia, duração, consequências,
passos pós-tratamento,
cuidados
especiais
necessários,
previsão
de
alta,
consequências de uma não aceitação do tratamento, os possíveis riscos, vantagens
e desvantagens envolvidas no tratamento (DINIZ, 2002, p. 579).
De forma mais sucinta, CORRÊA (2010, p. 99) diz que: “O princípio da
autonomia determina o respeito pela decisão livre do paciente, resguardando, assim,
sua dignidade e seu direito de autodeterminação”.
15
É possível perceber a incidência deste princípio no Código de Ética Médica,
em seu capítulo I – Princípios Fundamentais, no inciso XXI, onde diz: “No processo
de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e
as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos
procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que
adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas”.
Tal princípio decorre de uma mudança histórica da medicina, que perdeu sua
ligação com o sagrado e passou a ser encarada como ciência. Este fato gerou uma
compreensão do paciente como centro autônomo da decisão, tendo o direito de,
inclusive recusar a tratamentos, desde que não se encontre em risco de vida.
Portanto, deve haver agora uma relação de igualdade entre paciente e médico,
deixando de lado a ideia de “paternalismo clínico” (TEIXEIRA, A., 2010, p. 245-247).
Ainda no âmbito histórico, pode-se dizer que foi com o Código de Nuremberg
que esta mudança teve início, tendo em vista que este remete ao Tribunal Militar
Internacional, ocorrido ao final da Segunda Guerra Mundial a fim de processar
médicos nazistas por experimentação em prisioneiros em campos de concentração
(TEIXEIRA, A., 2010, p. 241-242). A autora esclarece ainda que: “Este foi o primeiro
documento internacional que tratou da necessidade do consentimento do paciente
em pesquisas, juízo que se expandiu para a relação médico-paciente”.
Após a realização deste documento, muitos outros surgiram neste mesmo
sentido, com o intuito de garantir a autonomia do paciente, sendo um deles o Código
de Ética Médica. Em seu capítulo IV – Direitos Humanos, garante:
É vedado ao médico:
Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante
legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso
de risco iminente de morte.
Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir
livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua
autoridade para limitá-lo.
16
Art. 28. Desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em qualquer
instituição na qual esteja recolhido, independentemente da própria vontade.
No mesmo diploma legal, no capítulo V – Relação com Pacientes e
Familiares, em seu art. 31: “É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente
ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas
diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”.
A Declaração de Lisboa, de onde originou-se a Declaração dos Direitos do
Paciente, garante:
a) O paciente tem o direito a autodeterminação e tomar livremente suas
decisões. O médico informará o paciente das consequências de suas
decisões;
b) Um paciente adulto mentalmente capaz tem o direito de dar ou retirar
consentimento a qualquer procedimento diagnóstico ou terapêutico. O
paciente tem o direito à informação necessária e tomar suas próprias
decisões. O paciente deve entender qual o propósito de qualquer teste ou
tratamento, quais as implicações dos resultados e quais seriam as
implicações do pedido de suspensão do tratamento;
c) O paciente tem o direito de recusar participar em pesquisa ou em ensaio
de medicamento.
Quanto aos pacientes inconscientes:
a) Se o paciente está inconsciente ou, em caso contrário, impossibilitado de
se expressar, seu consentimento informado deve ser obtido sempre que
possível de um representante legalmente indicado ou legalmente pertinente.
b) Se um representante legalmente indicado não está disponível, mas se
uma intervenção médica é necessitada urgentemente, o consentimento do
paciente pode ser presumido, a menos que seja óbvio e além de qualquer
dúvida, com base em expressão de convicção prévia e firmada pelo
paciente ou que em face de sua convicção ele recusaria o consentimento à
intervenção naquela situação.
c) No entanto, os médicos sempre devem tentar salvar a vida de um
paciente inconsciente quando devido a uma tentativa de suicídio.
Também a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos garante o
direito ao consentimento do paciente quando diz:
Qualquer intervenção médica preventiva, diagnóstica e terapêutica só deve
ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido do indivíduo
envolvido, baseado em informação adequada. O consentimento deve,
17
quando apropriado, ser manifesto e poder ser retirado pelo indivíduo
envolvido a qualquer momento e por qualquer razão, sem acarretar
desvantagem ou preconceito.
Tendo em vista os textos legais apresentados, percebe-se que o paciente tem
o direito de opor-se a uma terapia, de optar por um tratamento que entenda menos
rigoroso, de aceitar ou não uma intervenção cirúrgica, com o objetivo de beneficiar o
seu bem-estar físico e psíquico (DINIZ, 2002, p. 579). Entretanto, esta autonomia
encontra o seu limite no art. 31 do Código de Ética Médica (supra citado), em razão
de iminente perigo de vida, tornando-se a prática médica uma necessidade
inadiável. Desta forma, sob a pena de omissão de socorro, o médico deve agir a fim
de salvar o paciente, realizando tudo que sua ciência e consciência impuserem
(DINIZ, 2002, p. 583).
O princípio da autonomia faz com que os profissionais tenham que revelar as
informações obrigatoriamente, verificando e assegurando o esclarecimento e a
voluntariedade, encorajando assim a tomada de decisão adequada (CHILDRESS,
BEAUCHAMP, p. 144, 2002).
Portanto, o paciente tem sim autonomia para determinar se aceita ou não o
tratamento médico, porém, esta autonomia não é absoluta, encontrando a sua
barreira em uma imperiosa e inadiável necessidade do ato médico salvador, frente a
um iminente perigo de vida. Nesses casos o tratamento arbitrário é válido, não
havendo antijuridicidade nem a exigência de um consentimento por parte do
paciente (FRANÇA, 2010, p. 18).
2.2.3 Princípio da beneficência
Há que se observar também o princípio da beneficência, sendo que, do latim
bonum facere (fazer o bem), tal princípio indica a obrigatoriedade do médico de
promover primeiramente o bem do paciente, sendo que há confiança envolvida
neste processo (SANTOS, 1998, p. 42-43 apud FABRIZ, 2003).
Há disposição legal expressa no Código de Ética Médica nesse sentido no
capítulo I – Princípios Fundamentais, onde diz, nos seguintes incisos:
18
II - O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em
benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua
capacidade profissional”.
V - Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e
usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente.
VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre
em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar
sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para
permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.
VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado
a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem
não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso
de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à
saúde do paciente.
Nos trechos legais supra citados fica possível perceber a preocupação do
legislador em destacar a importância do princípio da beneficência, sendo que, em
todas as situações, o médico deve zelar pelos seus pacientes. Alega França (2010,
p. 176) que: “O Código de Ética Médica elegeu o princípio da beneficência como
hierarquia coerente acima do princípio da autonomia”.
CORRÊA (2010, p. 99) define o princípio da beneficência como sendo: “O
dever de fazer o bem e evitar o mal para o paciente, de acordo com os parâmetros
dos conhecimentos da medicina e de seu julgamento profissional”. A autora ainda
define tal princípio como sendo a ponderação entre benefícios e riscos inerentes a
um procedimento médico, buscando sempre maximizar os benefícios e reduzir os
riscos ao paciente.
Desta forma, a atitude esperada deste princípio deve partir do médico, no
decorrer de toda a sua carreira, realizando ações no sentido de beneficiar os outros,
não apenas não prejudicando, como também contribuindo para a melhoria do bemestar do paciente. Tal princípio é fundamental quando há vulnerabilidade, sendo que
este geralmente é fator impeditivo de decisões autônomas por parte do paciente,
devendo o médico agir ao seu favor (TEIXEIRA, A., 2010, p. 243-244).
19
O médico deve fazer tudo que lhe é possível a fim de salvar o paciente,
conforme o que segue:
Cabe ao médico “o dever de fornecer ampla informação quanto ao
diagnóstico e ao prognóstico”, além do “emprego de todas as técnicas
disponíveis para a recuperação do paciente, aprovados pela comunidade
científica e legalmente permitidas”, uma vez que o foco é “a tutela do melhor
interesse do enfermo em favor de sua dignidade e integridade física e
psíquica” (TEPEDINO, 2006, p. 90 apud TEIXEIRA, A., 2010).
Desta forma, temos que o profissional médico deve utilizar-se de todos os
artifícios possíveis para a aplicação do princípio da beneficência ao paciente. Tratase este, de um princípio norteador de condutas, sendo que, por fundar-se nas
máximas non nocere e bonum facere, engloba também o princípio da não
maleficência (primum non nocere), ou seja, não causar dano algum a ninguém
(FABRIZ, 2003, p. 107).
Sobre o princípio da não maleficência, garante o Código de Ética Médica, no
capítulo III – Responsabilidade Profissional, em seu art. 1º, que: “É vedado ao
médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como
imperícia, imprudência ou negligência”.
Percebe-se, portanto, que o princípio da beneficência prevalece em relação
ao da autonomia do paciente nos casos de urgência. Isso porque diz o bom senso e
a lei que, quando o tratamento é inadiável ou indispensável, estando o próprio
interesse do paciente em jogo, deve o médico realizar tudo aquilo que sua ciência e
sua consciência impõem. A iniciativa do médico em tais situações deve considerar
apenas e tão somente o seu próprio entendimento, sendo que o mal deve ser
remediado sem demora (FRANÇA, 2010, p. 18).
2.3 CÓDIGO INTERNACIONAL DE ÉTICA MÉDICA
O Código Internacional de Ética Médica, aceito pela 3ª Assembleia Geral da
Associação Médica Mundial, realizada em Londres em 1949, no seu capítulo sobre
20
deveres médicos, declara que: “O médico deve ter sempre presente o cuidado de
conservar a vida humana”, e que: “deve a seu paciente completa lealdade e
empregar em seu favor todos os recursos da ciência” (FRANÇA, 2010, p. 21).
Aqui, portanto, mais uma vez destaca-se a premente obrigação que tem o
médico em aplicar o princípio da beneficência em favor dos seus pacientes.
2.4 RESOLUÇÃO CFM 1021/1980
O Conselho Federal de Medicina, diante do número crescente de casos de
recusa de transfusão de sangue, por razão religiosa, editou a Resolução nº 1.021 de
26 de setembro de 1980. Foi adotado o Parecer nº 21/80, que diz que o problema da
recusa de transfusão de sangue por pessoas adeptas Testemunha de Jeová, deve
ser encarado pelos médicos sob duas circunstâncias (DINIZ, 2002, p. 223).
Na primeira, a transfusão de sangue seria apenas uma indicação, não havendo,
portanto, perigo imediato para a vida do paciente se ele se recusasse a tal
indicação. Neste caso o médico teria que respeitar o direito à autonomia do
paciente. Já na segunda situação, se encontrando o paciente com iminente perigo
de vida, a transfusão de sangue não é uma escolha, mas sim uma medida
terapêutica indispensável para salvá-lo, e então o médico não pode deixar de
praticá-la, mesmo havendo oposição, pois está amparado pelo princípio da
beneficência, que diz que ele deve agir nestas circunstâncias (DINIZ, 2002, p. 223224).
Disso resultam os dois artigos seguintes, que concluem e definem a conduta a
ser tomada:
Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico,
obedecendo a seu Código de Ética Médica, devera observar a seguinte
conduta:
1º - Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade
do paciente ou de seus responsáveis.
2º - Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de
sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus
responsáveis.
21
Daí resulta a obrigação do médico de agir nestes casos, ultrapassando a
autonomia do paciente e indo de encontro com o princípio da beneficência,
fundamental na prática médica. Importante aqui destacar o perigo de vida como
sendo a situação onde existe a possibilidade concreta de êxito letal, e que para
evitar isso seja necessário a atuação rápida, decisiva e inadiável a fim de evitar o
evento morte (FRANÇA, 2010, p. 175). O autor diz ainda que a emergência e a
urgência são situações médicas de fácil entendimento para o profissional da área,
não sendo preciso muito esforço para perceber quando a situação ocorre.
2.5 RESOLUÇÃO 1995/2012
Há que se verificar ainda a incidência do que dispõe a Resolução 1995 de
2012, que aborda a questão da manifestação da vontade do paciente, de forma
antecipada.
O artigo 1º da referida resolução estabelece que a vontade do paciente de se
dar de maneira prévia e de expressa, discorrendo sobre os cuidados e tratamentos
que quer ou não receber quando estiver incapacitado e não puder expressar sua
vontade.
Desta forma, garante o artigo 2º que, sempre que o paciente se encontrar
nessas condições, cabe ao médico levar em consideração as diretivas antecipadas
de vontade. Caso um representante tenha sido designado previamente, será ele que
o médico deverá ouvir e levar em consideração as suas informações. Cabe ao
médico ainda, registrar no prontuário, as vontades antecipadas do paciente, que lhe
foram diretamente comunicadas pelo enfermo.
Ocorre que tais diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante
têm o seu limite nos preceitos estabelecidos no Código de Ética Médica, não
podendo, portanto, ir contra o que lá se encontra estabelecido.
E, por fim, caso não haja a quem recorrer acerca da vontade do paciente ou de
seus representantes ou familiares, cabe ao médico recorrer ao Comitê de Bioética
da instituição, ou à Comissão de Ética Médica do hospital, ou ainda ao Conselho
Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos
éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente. É, portanto, desta
22
forma que o médico deve agir, conforme o texto da Resolução de nº 1995 de agosto
de 2012.
3 NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DA REPÚBLICA
Quando se analisa a questão legislativa acerca de um assunto, torna-se
fundamental abordar a lei maior envolvida, qual seja, neste caso, a Constituição
Federal.
3.1 O BRASIL COMO UM ESTADO DE DIREITO
O art. 1º da Constituição Federal de 1988 diz que a República Federativa do
Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Trata-se de um princípio
fundamental onde Estado de Direito é aquele cujo poder político se submete ao
império da lei e não às vontades pessoais do governante (MONTEIRO, 2003, p.
102).
Desta forma, seguindo este pensamento acerca da definição de Estado de
Direito, nos diz Canotilho que:
Ao decidir-se por um Estado de Direito a Constituição visa conformar as
estruturas do poder político e a organização da sociedade segundo a
medida do direito, compreendendo-se o direito aí como um meio de
ordenação racial e vinculativa de uma comunidade organizada e, para
cumprir esta função ordenadora, o direito estabelece regras e medidas,
prescreve formas e procedimentos e cria instituições (CANOTILHO, p. 239
apud MONTEIRO, 2003, p. 105-106).
Conclui-se então que o Brasil, por ser definido no art. 1º da Constituição
Federal como um Estado de Direito, deve assegurar que os indivíduos presentes no
país cumpram os ditames legais, garantindo assim a função ordenadora da norma
disposta nos códigos, leis e afins.
23
3.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS
Direitos ou princípios fundamentais são elementos que dão coerência geral ao
sistema normativo, sendo que servem como critério de interpretação e de
integração, tendo ainda, a sua aplicabilidade e ação imediatas (MIRANDA, p. 514515 apud SILVA, J., 2009, p. 32). Alexandre Moraes conceitua os direitos
fundamentais pela ótica dos direitos humanos, como:
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que tem
por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção
contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições
mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana. Sintetizando
o conceito, podemos afirmar que os direitos humanos fundamentais são os
considerados indispensáveis à pessoa humana (MORAES, 2005, p. 21
apud CABRERA, 2006, p. 26).
Nesse sentido, é importante que as normas que contêm os direitos
fundamentais tenham eficácia e efetividade. Para isso, há que se observar o
conteúdo do dispositivo, sendo que é o direito positivo o objetivo buscado. Garante,
portanto, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, § 1º que: “As normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (SILVA, J.,
2009, p. 59).
Importante salientar que os direitos fundamentais são inatos, absolutos,
invioláveis, intransferíveis, indisponíveis, imprescritíveis, inalienáveis e, acima de
tudo, irrenunciáveis. Desta forma, alguns deles podem até não ser exercidos, mas
isso não quer dizer que tenham sido renunciados, pois isso não se admite jamais.
Ainda, por não terem os direitos fundamentais um conteúdo econômico-patrimonial,
não podem ser negociados em hipótese alguma. E quanto a sua prescrição, eles
jamais deixam de ser exigíveis (SILVA, J., 2009, p. 60).
Pode-se dizer que essas mesmas características estão presentes quando de
trata de direitos fundamentais das crianças, porém, de forma mais forte ainda. Isso
ocorre devido à condição especial de seus titulares (crianças e adolescentes), e da
proteção integral que a eles é garantida, abrangendo a totalidade de seus direitos
(PAULA, 2000, p. 194-195 apud CABRERA, 2006, p. 25).
24
O Estatuto da Criança e do Adolescente tem um tópico específico sobre
direitos fundamentais, especificando em um capítulo, os referentes ao direito à vida
e à saúde, onde é garantida a sua tutela. Sabe-se, por óbvio, que o rol de direitos
fundamentais elencados no Estatuto da Criança e Adolescente não exclui o rol
constitucional, sendo que, inclusive, complementam-se. Isso é possível porque a
própria Constituição Federal, no seu art. 5º, §2º, deixa claro que os direitos e
garantias expressos no texto constitucional não excluem outros decorrentes do
regime e dos princípios por ele adotados, ou dos tratados internacionais em que o
Brasil seja parte (CABRERA, 2006, p. 27).
3.3 DIREITO À VIDA
O direito à vida é garantido na Constituição Federal de 1988 no seu art. 5º
onde diz: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Este direito
deve ser garantido pelo Estado não somente aos cidadãos brasileiros, mas a todo
indivíduo que se encontre em território nacional (FABRIZ, 2003, p. 266).
3.3.1 Conceito de vida
A vida humana, objeto do direito garantido pela Constituição Federal de 1988,
é encarada da seguinte maneira por José Afonso da Silva:
[...] a vida constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De
nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais,
como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a
vida humana num desses direitos. No conteúdo de seu conceito se
envolvem o direito à dignidade da pessoa humana [...], o direito à
privacidade [...], o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade
moral e, especialmente, o direito à existência (SILVA, J., 1993, p. 182 apud
CATÃO, 2004, p. 163).
25
Conforme De Plácido e Silva (1982, p. 490 apud CATÃO, 2004, p. 160), a
palavra vida vem: “do latim vita, de vivere (viver, existir), e designa propriamente a
força interna substancial, que anima ou dá ação própria aos seres organizados,
revelando o estado de atividade deles”. Pedro Lenza (p.470 apud CABRERA, 2006,
p. 27), diz que o direito à vida, de forma mais genérica: “abrange tanto o direito de
não ser morto, privado da vida, portanto o direito de continuar vivo, como também o
direito de ter uma vida digna”.
Entende-se então o direito à vida como tendo, além das características dos
demais direitos fundamentais, conforme citado anteriormente, acima de tudo, caráter
absoluto, com reconhecido dever do Estado de proteger a vida, inclusive contra a
vontade de seu titular (TEIXEIRA, A., 2010, p. 301).
Desta forma, apesar do direito à vida poder ser encarado de várias maneiras,
de acordo com as diferentes culturas, temos que abordar tal direito de maneira a
levar-se apenas em conta a vida biológica, baseando-se na dicotomia vida e morte
exclusivamente (FABRIZ, 2003, p. 268-269).
3.3.2 A vida como um bem coletivo
A vida é uma garantia constitucional, da qual ninguém pode dispor
incondicionalmente. Isso porque não existe apenas o interesse individual, mas
também o interesse de outro titular de direito, qual seja, a sociedade, para a qual o
indivíduo não é apenas uma unidade demográfica, mas acima de tudo, um grande
valor social e político (URBAN, 2003, p. 194).
Portanto, em situações de emergência, diz DINIZ (2002, p. 217) que: “deve
prevalecer o valor da vida do paciente e do interesse da comunidade, pois a vida é
um bem coletivo, que interessa mais à sociedade do que ao indivíduo”. A autora tem
este pensamento sobre as situações de urgência, que necessitam de inadiável
tratamento médico, intervenção cirúrgica e até mesmo transfusão de sangue não
consentida, pois deve prevalecer o bem maior, qual seja, a vida.
Ainda, os avanços biotecnológicos têm feito com que o direito à vida seja
analisado por uma ótica multidisciplinar, percebendo que há várias possibilidades de
26
encará-lo como através de questões de ordem moral, social e jurídica (FABRIZ,
2003, p. 272). Segundo o mesmo autor, a vida tornou-se fonte de esperança de toda
a humanidade, não nos pertencendo mais, mas sim à própria natureza, devendo ser
encarada não apenas como um simples direito. Da vida deve surgir a visão de
condição fundamental de onde se originam todas as demais coisas, no universo
sociocultural (FABRIZ, 2003, p. 271).
3.3.3 Supremacia do direito à vida
Como visto, a vida corresponde a um direito fundamental do indivíduo, sendo
que isto tem prioridade sobre todas as coisas, e sem a qual nada fará sentido. Então
o direito à vida sempre prevalecerá, inclusive perante a liberdade religiosa, de
integridade física ou mental etc. Tem-se que, existindo conflito entre dois direitos,
incidirá o princípio do mais relevante, no caso, o da vida (DINIZ, 2002, p. 25). Neste
sentido, a autora discorre sobre a obrigação do médico:
Parece-nos que o profissional da saúde deve respeitar tal liberdade,
intervindo apenas no estágio final da resistência física, usando de todos os
meios da ciência médica para impedir o óbito, pois o valor vida é anterior ao
da liberdade. Esta só pode subsistir enquanto houver vida. De que serviria a
liberdade se extinta a vida? Se o médico não alimentar alternativamente o
grevista de fome, ou não fizer a necessária transfusão de sangue, alegando
objeção de consciência, praticará crime de omissão de socorro ou de
induzimento ao suicídio, tornando-se cúmplice do resultado morte, por sua
conduta antiética. A liberdade pessoal não pode ser tolerada quando implica
retirada da própria vida, por não ser absoluta, visto que está juridicamente
limitada por princípios de ordem pública, como os de não matar, não induzir
ao suicídio, não omitir socorro e o de ajudar quem está prestes a falecer. A
vida é um bem muito superior à liberdade de querer morrer (DINIZ, 2002, p.
221).
Sobre esta supremacia do direito à vida, garante ainda Catão (2004, p. 160):
“Inegavelmente, o direito à vida é o primeiro e mais importante dos direitos
fundamentais, sendo reconhecido pelo Estado por meio do Direito positivo”.
Também sobre esta questão, confirma Fabriz (2003, p. 273) que: “A vida é a
premissa maior, donde tudo o mais deve ser derivativo. Em conclusão, ninguém
deve ser privado arbitrariamente de sua vida”.
27
Por isso, em casos envolvendo recusa pelos pais, de tratamento a um filho
menor, por motivos religiosos, tem-se que tal renúncia é ato personalíssimo.
Ademais, o direito de liberdade religiosa dos pais termina quando surge o direito do
filho de viver, somado isso ao dever do Estado de preservar a incolumidade pessoal
de todos (FRANÇA, p. 205 apud DINIZ, 2002, p. 220).
Conclui então, Pontes de Miranda que, entre os direitos à vida e à liberdade
de religião, no caso de poder escolher apenas um deles, que terá absoluta
incidência o direito à vida, por ser mais relevante (MIRANDA, p. 23 apud DINIZ,
2002, p. 222). Tal autora diz ainda que: “O sacrifício de consciência é um bem
menor do que o sacrifício eventual de uma vida”. Esta conclusão caminha na mesma
direção do que diz José Afonso da Silva (2009, p. 68), sendo que: “De nada
adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais – como a
intimidade, a liberdade – se não erigisse a vida humana num desses direitos”.
3.4 DIREITO À SAÚDE
É preciso ver o direito à saúde como um desdobramento do direito à vida,
sendo que o direito a uma vida digna compreende a garantia das necessidades
vitais básicas do ser humano, em cujo rol está incluso o direito à saúde (CABRERA,
2006, p. 28).
Assim, com o direito à vida, o direito à saúde vem recebendo destaque na
comunidade jurídica, buscando cada vez mais encontrar formas de garantir a tutela
adequada deste direito, somado à efetividade esperada. Para que isso ocorra, a
tutela tem que se dar em níveis nacionais e internacionais, porém em graus
diferentes (TEIXEIRA, A., 2010, p. 9).
3.4.1 Direito nacional à saúde
No Brasil, a Constituição Federal de 1934 foi a primeira a abordar o tema
“saúde”, mas apenas em questões de competência para legislar. O tratamento
diferenciado a este direito, ganhando ligação à tutela da pessoa humana tornou-se
realidade na Constituição apenas em 1988 (TEIXEIRA, A., 2010, p. 12).
28
A saúde é um direito de ordem social, disposto expressamente no art. 196 da
Constituição Federal de 1988 da seguinte forma:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação.
Portanto, conforme o artigo citado, para o cumprimento devido da tutela ao
direito à saúde, exige-se do Estado1 não uma postura passiva, mas sim prestações
positivas no sentido de garantia (TEIXEIRA, E., 2008, p. 24). O Estado deve garantir
acesso universal e igualitário a essas ações, buscando não só a proteção da saúde,
mas também a sua promoção e, acima de tudo, a sua recuperação, momento no
qual, o médico tem o seu papel efetivado (CATÃO, 2004, p. 87).
Assim, a saúde, em um estado democrático de direito, representa um dos
bens mais fundamentais, sendo considerado um bem irrevogável e indispensável,
cabendo ao Estado a sua garantia (FRANÇA, 2010, p. 93). Dessa forma, diz ainda o
autor que, a vida e a saúde das pessoas têm relevante significado na manutenção
da ordem pública e na segurança do Estado, sendo considerada uma questão
prioritária, inclusive em projetos sociais, fazendo assim, com que a saúde tenha
também um sentido político.
Sabendo que o direito à saúde deve ser garantido pelo Estado, cabe também
entender quem são os sujeitos beneficiados pela norma do art. 196. A relação
jurídica constitucional estabelecida em “a saúde é direito de todos” tem de um lado o
direito que ela confere; e de outro, os sujeitos desse direito, expressos pelo signo
“todos”. Este é um signo de universalização, e que precisa aos brasileiros e
estrangeiros residentes no Brasil (SILVA, 2009, p. 782).
1
A missão do médico é minimizar o sofrimento humano e resguardar a vida e a saúde, bens
supremos da pessoa, sujeitando-se à tutela estatal, pois a Constituição, em seu art. 196, consagra a
saúde como direito de todos e dever do Estado.
29
O Estatuto da Criança e do Adolescente garante, em seu art. 7º, que deve ser
garantido o direito à vida e à saúde das crianças e adolescentes, por meio de
políticas sociais que possibilitem condições dignas de existência. Para tanto, é
garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção,
proteção e recuperação da saúde (CABRERA, 2006, p. 28). Esta garantia, somada
ao princípio da proteção integral, devem garantir que as crianças e adolescentes
tenham sempre seus direitos tratados com prioridade, com especial atenção aos
direitos à vida e à saúde, não permitindo que outros interesses interfiram nisso.
Pode-se então afirmar, conforme Cabrera (2006, p. 29) que: “o direito à saúde
é corolário do direito à vida, constituindo direito fundamental da pessoa humana,
passível de intervenção judicial na hipótese de negativa ou deficiência de
atendimento”. Entretanto, esta garantia de tutela ao direito à saúde não está restrito
ao nosso país, sendo que é um assunto de suma importância e colocado em pauta
em nível mundial.
3.4.2 Direito internacional à saúde
Internacionalmente, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu
art. 25, está determinado que: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz
de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, [...]”. Ainda no âmbito
internacional, na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto São José da
Costa Rica), mesmo não tratando especificamente da saúde de forma individual,
garante ela de forma geral ao resguardar o direito à vida e, abordando também a
questão da saúde pública (TEIXEIRA, A., 2010, p. 10).
Ainda, de forma mais específica quanto ao dever do médico no que tange ao
direito à saúde, observa a Declaração de Helsinque II, adotada pela 18ª Assembleia
Geral da Associação Médica Mundial, na Finlândia, em 1964, e revista pela 29ª
Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em Tóquio, em 1975, que: “é
missão do médico salvaguardar a saúde do povo” (FRANÇA, 2010, p. 21).
De todo o exposto até o presente momento, conclui-se que é sim missão do
médico minimizar o sofrimento humano, e resguardar a vida e a saúde, como bens
30
supremos do indivíduo, sujeitando-se também à tutela estatal, uma vez que o art.
196 da Constituição Federal consagra a saúde como um direito de todos e dever do
Estado (DINIZ, 2002, p. 218).
3.5 DIREITO À CRENÇA
Garante a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso VI que: “É inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas
liturgias”. Tal inciso garante de forma clara que todos têm direito de aderir a qualquer
crença religiosa, ou ainda, de recusar qualquer delas, podendo, inclusive, se tornar
ateu (SILVA, J., 2009, p. 95).
Há que se observar que a questão da crença está inserida em algo maior,
qual seja, a liberdade religiosa. Esta é uma liberdade espiritual e a sua
exteriorização é a manifestação do pensamento. A liberdade religiosa abarca três
formas de expressão: a liberdade de crença, a liberdade de culto e a liberdade de
organização religiosa (SILVA, J., 2009, p. 95).
A liberdade religiosa também é defendida pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos, em seu art. 12 e parágrafos2. Ocorre que até mesmo neste caso,
há a ressalva de limitar tal liberdade com base na lei, quando se torne necessária
para proteger os direitos e as liberdades das demais pessoas. Assim, o direito à
2
Artigo 12 - Liberdade de consciência e de religião
§1º - Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade
de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a
liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em
público como em privado.
§2º - Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de
conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.
§3º - A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às
limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde
ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.
31
liberdade religiosa não prevalece perante o direito à saúde ou o direito à vida
(JAYME, 2005, p. 144-145).
Para o presente trabalho há a intenção de se abordar apenas a questão da
liberdade religiosa, por estar este segmento ligado ao tema abordado, de forma
inseparável.
3.5.1 Conceito de religião
Conforme a etimologia da palavra religião, esta significa “estar atento,
considerar, observar, manter-se unido”. A religião seria então o cumprimento atento
do dever, onde a pessoa religiosa se mantém atenta e unida a um poder mais
elevado, a algo que é maior que a pessoa do crente. Religião significa ainda, estar
atado ou manter-se unido ao divino (ALVAREZ; FERREZ, 2005, p. 55).
Apresentou-se o conceito etimológico do termo religião, existindo, porém,
variados conceitos de outras naturezas para a mesma palavra. Para Gilmar Ferreira
Mendes (2008, p. 417), será inequivocamente religião: “o sistema de crenças que se
vincula a uma divindade, que professa uma vida além da morte, que possui um texto
sagrado, que envolve uma organização e que apresenta rituais de oração e de
adoração”.
Charles Hainchelin, em seu livro “As origens da religião”, cita um trecho de
Engels que conceitua religião de forma brilhante:
A religião não é mais do que o reflexo fantástico, no cérebro humano, dos
poderes exteriores que dominam sua existência cotidiana, reflexo no qual os
poderem terrestres assumem a forma de poderes supreterrestres. No início
da história, são as potências da natureza que, primeiro, estão sujeitas a
este reflexo e que, na evolução posterior, passam pelas personificações
mais diversas e mais variadas, entre os diversos povos [...]. Mas, logo, ao
lado dos poderes sobrenaturais, entram em ação, também, poderes sociais,
que se erguem diante dos homens e os dominam com a mesma aparência
natural e, também, tão estranhos e inexplicáveis, de início, quanto as forças
da natureza. Agora, as personagens fantásticas, que refletiam, inicialmente,
apenas as forças misteriosas da natureza, começam a receber atributos
sociais, tornam-se as representantes dos poderes históricos (ENGELS apud
HAINCHELIN apud GALDINO, 2006, p. 12).
32
Desta forma, com base nos conceitos, na lei e, em especial na citação de
Engels, é possível concluir que a religião é a ligação do crente com algo superior em
que ele acredita e tem forte convicção. Ocorre que não deve haver dominação tão
forte a ponto de criar grandes variações no cérebro humano, gerando uma
dominação cega e que passe por cima de valores e princípios mais fortes que a
própria religião, como é o caso do direito fundamental à vida.
3.5.2 Transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová
Acerca do tema do presente trabalho, de forma aprofundada no assunto
religião, o caso das Testemunhas de Jeová há de vir à tona. Isto ocorre devido ao
conflito entre direitos e liberdades fundamentais, sendo que de um lado estão a
liberdade religiosa, a intimidade e o direito à disposição corporal, e do outro lado
estão a integridade física, a saúde e principalmente a vida (CORRÊA, 2010, p. 111).
Torna-se então fundamental definir o conceito da religião Testemunha de
Jeová. Em tal religião não é admitida a transfusão de sangue alogênico, nem mesmo
em situações onde haja grave perigo de vida, por entender que há uma ordem
bíblica3 de que o sangue é sagrado (DINIZ, 2002, p. 210).
Ocorre que, em regra, a transfusão de sangue ocorre justamente por haver
um caráter de urgência, não havendo outra alternativa de tratamento cabível para
resguardar a vida no momento. Portanto, com tamanha urgência, e diante da
situação apresentada, não há como abrir mão do procedimento de transfusão de
sangue, mesmo sendo a pessoa uma Testemunha de Jeová (DINIZ, 2002, p. 211).
Há que se considerar, conforme defendido, que o direito à vida é o mais
importante existente na Constituição Federal, ganhando assim, preferência sobre
todos os demais. Com base em tais argumentos, é oportuno trazer ao presente
trabalho uma jurisprudência acerca do assunto. Trata-se de um caso onde o Tribunal
3
Levítico, 17:10-14; Atos, 15-28, 29.
33
de Justiça do Rio Grande do Sul4 negou autorização para transfusão de sangue em
Testemunha de Jeová, porque no caso não havia risco de vida. A decisão deixa bem
claro, entretanto, que se houvesse tal urgência, a autorização seria concedida, pois
a pessoa não pode dispor da própria vida, ainda que por motivos religiosos. Isso
ocorre porque em nosso ordenamento jurídico a tutela da vida prevalece em
detrimento da garantia de liberdade religiosa, como é possível perceber na
jurisprudência trazida ao presente trabalho (CORRÊA, 2010, p. 112).
Há que se entender que muitas vezes a resistência em aceitar a decisão do
paciente assenta-se em argumentos pertinentes à racionalidade da recusa. Assim, a
vontade do paciente não deve ser acatada por estar contaminada por crenças
religiosas e pressões da comunidade de fiéis à qual ele pertence. Ademais, o
paciente não é considerado competente para avaliar informações de diagnóstico,
tratamento e riscos envolvidos, tendo em vista que esta análise apresenta um nível
de dificuldade bastante alto, não só pela falta de conhecimento técnico por parte do
paciente, mas também pelo estado de vulnerabilidade em que a pessoa se encontra
quando sua saúde é afetada (CORRÊA, 2010, p. 113-114).
Portanto, com base nestes fatores, somados ao princípio da beneficência,
conclui-se que (CULVERT, 1999, p. 56-58 apud CORRÊA, 2010, p. 113): “se os
4
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Cautelar. Transfusão de sangue. Testemunhas de
Jeová. Não cabe ao Poder Judiciário, no sistema jurídico brasileiro, autorizar altas hospitalares e
autorizar ou ordenar tratamentos médico-cirúrgicos e/ou hospitalares, salvo casos excepcionalíssimos
e salvo quando envolvidos os interesses de menores. Se iminente o perigo de vida, é direito e dever
do médico, empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra
a vontade deste, de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por
motivos religiosos. Importa ao médico e ao hospital demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica
apoiadas em séria literatura médica, mesmo que haja divergências quanto ao melhor tratamento. O
Judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da atividade hospitalar. Se a
transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura médico-científica (não
importando naturais divergências), deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo
contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida
(art. 146, § 3º, inciso I do Código Penal). [...] Há princípios gerais de ética e de direito, que aliás
norteiam a Carta das Nações Unidas que precisam se sobrepor às especificidades culturais e
religiosas; sob pena de se homologarem as maiores brutalidades; entre eles estão os princípios que
resguardam os direitos fundamentais relacionados com a vida e a dignidade humanas. Religiões
devem preservar a vida e não exterminá-las. Apelante: Irmandade de Santa Casa de Misericórdia de
Porto Alegre. Apelado: Rubilar Cougo Goulart. Apelação Cível n. 595000373. Relator Sérgio
Gischkow Pereira. 6ª Câmara Cível. 28 mar. 1995.
34
benefícios são grandes e, em contrapartida, os riscos são mínimos, a recusa do
paciente deve ser julgada como irracional”.
No tocante ao direito referente a menores de idades, garante art. 5º, inciso
VIII do referido diploma legal que: “Ninguém será privado de direitos por motivo de
crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para
eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei”. Tal artigo entra em total acordo com o presente caso, no
tocante à transfusão de sangue em Testemunha de Jeová criança e, portanto,
absolutamente incapaz. É preciso ter em mente que o direito de crença não pode
sobrepor-se ao de viver do menor, sob pena de os pais praticarem crime de
abandono de material e moral e serem destituídos do poder familiar. A escolha
alternativa à transfusão de sangue só pode ocorrer caso não haja risco iminente de
vida. Com caráter de urgência e risco de vida, a objeção de consciência torna-se
ilegítima, pois coloca em perigo direitos de terceiro (SOUZA, apud DINIZ, 2002, P.
219). O autor ainda garante que: “A repulsa do objetor somente será legítima se não
conflitar com direito fundamental de terceiro, como o é o direito à vida”.
Sobre a obrigatoriedade de realizar a transfusão de sangue em Testemunha
de Jeová menor de idade, mesmo sem o consentimento dos pais, Genival Veloso de
França (2010, p. 205) garante que: “O direito de liberdade religiosa dos pais termina
quando surge o direito do filho de viver, e, além disso, o Estado tem o dever de
preservar a incolumidade pessoal de todos”.
Portanto, conclui-se que, independente da idade do paciente, havendo
urgência e risco de vida, a transfusão de sangue deve sim ser realizada, mesmo que
vá de encontro com as crenças religiosas do Testemunha de Jeová 5, pois o direito
fundamental à vida tem preferência sobre todos os demais. Desta forma, no
tratamento médico ou cirúrgico em caráter de urgência, a liberdade não está
condicionada ao consentimento do paciente ou de seus representantes legais, mas
ao real interesse do doente e da comunidade. Ademais, o paciente não é
5
Há desnecessidade de autorização judicial para cirurgia e transfusão de sangue em paciente
necessitado que se recusa à prática desse ato por questão religiosa, por isso ser do estrito
cumprimento do dever legal do médico (TJSP, 6ª Câm. De Direito Privado, AC 264.210-1, Suzano,
Rel. Testa Marchi, j. 01.08.1996, v.u.).
35
conhecedor da maneira ou dos meios para chegar à cura, sendo que somente o
médico tem este conhecimento técnico e, portanto, deverá decidir tecnicamente o
que é mais razoável para seu paciente (FRANÇA, 2010, p. 178).
4 NO DIREITO CIVIL
Primeiramente cabe estabelecer a diferenciação entre delito civil e delito
penal, sendo que nos dois casos há a quebra de um dever pelo agente. Ocorre que
no delito penal há a violação do preceito instituído para a defesa da sociedade como
um todo, enquanto no delito civil (ato ilícito), há a infração de norma sobre o
interesse privado (URBAN, 2003, p. 198 – 199).
4.1 A RELAÇÃO MÉDICO PACIENTE COMO RELAÇÃO CONTRATUAL
Aqui há uma divergência de doutrinadores sobre a natureza do negócio
celebrado entre o médico e seu paciente, sendo que alguns entendem que se trata
de um mero contrato de prestação de serviço, e outros, como os suíços e os
alemães, entendem se tratar de um contrato sui generis. Isso porque é possível
entender a atividade do médico como além de questões apenas técnicas,
avançando também para funções de conselheiro, guarda e protetor do enfermo
(CAVALIERI FILHO, 2007, p. 360).
A doutrina brasileira entende essa relação como de natureza de contrato de
prestação de serviço, reforçada ainda pelo Código de Defesa do Consumidor.
Conforme o art. 2º desta lei, o paciente coloca-se como consumidor. Já conforme no
art. 3º o médico é visto como fornecedor de serviços (VENOSA, 2010, p. 148).
Dentro desta definição contratual é possível ainda definir de forma mais
específica a obrigação do médico, sendo que esta, mais uma vez, é agir, como
segue:
A obrigação contraída pelo médico é espécie do gênero obrigação de fazer,
em regra infungível, que pressupõe atividade do devedor, energia de
36
trabalho, material ou intelectual, em favor do paciente (credor). Implica
diagnóstico, prognóstico e tratamento: examinar, prescrever, intervir,
aconselhar. A prestação devida pelo médico é sua própria atividade,
consciente, cuidadosa, valendo-se dos conhecimentos científicos
consagrados – em busca da cura (KFOURI NETO, 2002, p. 226).
Desta forma, dentro da categoria contratual de prestação de serviços, com
obrigação de fazer, há o dever do médico de agir, intervindo sempre que entender
necessário, baseando-se em seus conhecimentos científicos consagrados, como
supra citado.
A relação entre médico e paciente pode ainda ser de natureza extracontratual,
quando decorrer de um dever legal, que não tenha sido originado em um acordo
realizado entre o paciente e o profissional. É o que acontece nos casos de
emergência, onde o profissional tem o dever de prestar assistência mesmo que não
haja o consentimento do paciente (URBAN, 2003, p. 201).
Tem-se que é uma relação extracontratual porque nesses casos a existência
de um contrato entre médico e paciente não fica muito clara, como quando um
médico cuida de algum transeunte em via pública ou socorre um vizinho acometido
de mal súbito (VENOSA, 2010, p. 154).
Stocco (1999, apud URBAN, 2003, p. 201) garante que “a responsabilidade
extracontratual e a contratual regulam-se racionalmente pelos mesmos princípios,
porque a ideia de responsabilidade é una”. Então é preciso entender esta questão
do ponto de vista obrigacional, sabendo que o médico tem obrigações inerentes à
sua profissão. Ainda, a melhor maneira de evitar ações por responsabilidade
médica, é garantir uma boa relação médico-paciente (FRANÇA, 2010, p. 203).
4.1.1 Obrigação do médico como obrigação de meio
Além dessa questão contratual, é importante definir se a obrigação do médico
é de meio ou de resultado a fim de se demonstrar qual é a sua real função.
37
De forma sucinta esclarece Venosa (2010, p.154): “Não se tratando de
cirurgia plástica estética, a obrigação contraída pelo médico, quer no contrato, quer
fora dele, é de meio, e não de resultado”.
Tem-se a obrigação de resultado como sendo aquela onde há um fim
desejado por quem contratou, e que por sua vez o contratado deve cumprir
(URBAN, 2003, p. 201). Tal característica, entretanto, não pode dizer respeito à
obrigação dos médicos, tendo em vista que eles trabalham com processos
biológicos e que as reações são certas vezes imprevisíveis, chegando a fugir da real
intenção do profissional, impedindo um resultado final garantido (URBAN, 2003, p.
202).
Em contrapartida, tem-se a definição de obrigação de meio, aquela inerente
aos médicos, como sendo:
Aquela em que o contrato não se compromete com o resultado final, mas
assume prestar um serviço com a diligência e cuidado exigidos dentro das
condições que lhe são permitidas, com os recursos disponíveis. A obrigação
de meio requer apenas prudência e diligência na prestação do serviço para
atingir um resultado sem, no entanto, prever se irá alcançá-lo; daí não haver
o comprometimento na sua obtenção (URBAN, 2003, p. 201).
Portanto, a obrigação realista assumida pelos médicos é a de garantir aos
pacientes todos os cuidados conscienciosos e atentos, conforme os ensinamentos
da ciência e de sua formação, não se comprometendo a curar, mas sim a fazer tudo
que lhe for possível, dentro das regras e métodos da profissão (CAVALIERI FILHO,
2007, p. 306).
Tem-se então que a obrigação contratual dos médicos é classificada como de
meio, onde então o próprio empenho do médico, e os cuidados que toma são o
objeto do contrato (URBAN, 2003, p. 201).
4.2 RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO
Define França (2010, p. 207): “Responsabilidade é o justo e necessário, não
só no sentido moral, mas também dentro de um sistema de obrigações e deveres,
38
diante do que é lícito e devido”. França (2010, p. 205) define ainda a
responsabilidade, mais especificamente a médica, como: “a obrigação que podem
sofrer os médicos em virtude de certas faltas por eles cometidas no exercício de sua
profissão”.
4.2.1 Responsabilidade do estabelecimento médico
Não se encontra aqui o foco do presente trabalho, mas é importante indicar
que há uma diferença entre a responsabilidade civil dos médicos como profissionais
liberais, e a dos estabelecimentos médicos, sendo que esta última é objetiva. Então
se há uma pessoa jurídica onde o profissional liberal trabalhe como empregado ou
fazendo parte da sociedade, esta responderá objetivamente (CAVALIERI FILHO,
2007, p. 361).
4.2.2 Responsabilidade do médico como profissional liberal
Como já analisado, a obrigação do médico então é de meio e não de
resultado, sendo que então ele não tem a obrigação de chegar a um fim esperado,
qual seja, a cura do paciente, mas sim garantir que seja feito o possível no decorrer
do tratamento. Disso resulta que a responsabilidade médica, embora contratual, é
subjetiva e a culpa deve ser provada (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 360).
Venosa (2010, p. 153) complementa essa questão no mesmo sentido quando
diz: “A responsabilidade do médico ou de outro profissional da saúde é subjetiva,
dependendo, portanto, da comprovação de culpa”.
Há, portanto, que se demonstrar que o resultado funesto, a morte, foi
ocasionada por negligência, imprudência ou imperícia do médico, sendo estas as
modalidades de culpa (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 361).
39
Dessa mesma forma dispõe a lei, conforme disposto no art. 951 do Código
Civil, onde diz: “O disposto nos arts. 948, 949 e 9506 aplica-se ainda no caso de
indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por
negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o
mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho”.
De forma mais abrangente, o Código Civil, no capítulo dos atos ilícitos,
assegura mais uma vez que, havendo negligência, imprudência ou omissão
voluntária, e ocorrendo o dano, torna-se o ato um ilícito, conforme art. 186 do
mesmo diploma legal acima citado: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária,
negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Fala-se, portanto, da culpa, a qual deve ser demonstrada e comprovada, pois
a responsabilidade do médico é subjetiva, como já visto. A culpa pode decorrer de
uma ação (ato comissivo) ou de uma omissão (ato omissivo) da onde resulta uma
consequência prejudicial a outrem, consequência esta imprevista, mas previsível
(NERY JUNIOR, NERY, 2008, p. 360).
Confirmando este posicionamento, França (2010, p. 206) assegura: “Para que
haja responsabilidade civil, não é necessário precisar se existiu intenção; basta que
tenha
havido
negligência,
imprudência,
imperícia
grosseira
e,
portanto,
inescusáveis”.
O artigo seguinte, sendo o art. 187 também do Código Civil, é igualmente
fundamental para o presente trabalho no sentido de afirmar que o médico, como um
titular de direito, comete ato ilícito se exceder os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. O abuso ocorre quando
resultante do exercício não regular do direito (NERY JUNIOR, NERY, 2008, p. 368).
Diante do exposto conclui-se que o médico, como profissional liberal que
responde subjetivamente pelos seus atos, comete ato ilícito se age com culpa ou
6
O art. 948 diz respeito aos casos de homicídio; o art. 949 refere-se aos casos de lesão ou outra
ofensa à saúde; e por fim, o art. 950 fala sobre defeito no tratamento.
40
exerce sua atividade fora dos limites impostos pela lei. Assim, um médico que não
intervenha em caso de risco de vida de um paciente, conforme o explanado até o
momento, incorre no art. 186 ou no art. 187 do Código Civil. Acerca da forma como o
ofício do médico deve ser encarado, vejamos:
Na responsabilidade, tal como se pode entender da lei civil, não se trata de
capacidade, mais ou menos ampla, ou de talento mais ou menos brilhante,
mais ou menos sólido, senão somente da garantia contra a imprudência, a
negligência, a pressa e uma ignorância crassa a respeito daquilo que se
devia necessariamente saber e praticar em uma profissão (FRANÇA, 2010,
p. 206).
Tal explanação só vem confirmar a premente necessidade de que o médico,
como profissional liberal, exerça a sua função em conformidade com a lei e com os
ensinamentos técnicos que adquiriu em sua formação.
Ainda o Código de Defesa do Consumidor manifesta-se sobre o tema, no § 4º
do art. 14 onde garante que: “A responsabilidade profissional dos profissionais
liberais será apurada mediante a verificação de culpa”, ou seja, mais uma vez
reforça-se o caráter subjetivo do ofício do profissional médico, que se agir com
negligência, imprudência ou imperícia, cometerá ato ilícito.
Explica-se o disposto no § 4º do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor
pela natureza intuitu personae dos serviços prestados pelos profissionais liberais e,
portanto, pelos médicos também, considerando que estes inspiram confiança aos
seus pacientes. É justamente por isso que não responde de forma objetiva, mas sim
subjetiva, dependendo da demonstração do dano (DENARI, 2004, p. 196).
A respeito da natureza intuitu personae do serviço prestado pelo médico, bem
como sobre a responsabilidade de agir quando necessário, Venosa (2010, p. 154)
discorre: “Quando a iniciativa do médico é unilateral, quando passa a tratar de
pessoa, ainda que contra a vontade dela, a responsabilidade profissional emerge da
conduta, e não do contrato”.
Dessa forma, assegura-se além do direito do médico de intervir em casos de
emergência, um dever inerente de sua profissão, e que pode incorrer em ato ilícito
41
se não observado. Há, portanto, que se cumprir os ditames legais brasileiros e as
especificações técnicas decorrentes do ofício médico.
5 NO DIREITO PENAL
No presente caso, o direito penal vem tutelar tanto o direito à vida, no crime
de omissão de socorro, quanto o direito à liberdade individual no crime de
constrangimento ilegal. Porém, em ambos os casos irá se verificar que o dever do
médico de agir se sobressai.
5.1 OMISSÃO DE SOCORRO
Há ainda que se observar os reflexos penais envolvidos no ramo médico
quando o assunto é o dever do médico de agir frente à recusa de tratamento por
parte do paciente.
Havendo risco de vida do paciente, o médico não pode acatar a sua recusa
de tratamento, sob pena de responder pelo crime de omissão de socorro. Assim, um
médico que deixa de realizar uma transfusão de sangue diante de um iminente
perigo de vida, simplesmente porque o paciente ou seus familiares não permitem,
comete omissão de socorro (FRANÇA, 2010, p. 178). Sobre tal crime, dispõe o
Código Penal:
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco
pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou
ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses
casos, o socorro da autoridade pública:
Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta
lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
A omissão de socorro trata de obrigações que deveriam ser cumpridas e não
o são. A objetividade jurídica deste tipo penal é o dever de assistência e
solidariedade entre os homens para a proteção da vida e da saúde do cidadão. Temse como sujeito passivo principal deste crime, a pessoa em grave e iminente perigo,
em tais proporções capazes de desencadear um grave dano, como a morte. Nestes
42
casos, mesmo que a vítima não queira ser socorrida existirá o crime, isso porque a
incolumidade física e a vida são bens indisponíveis (GONÇALVES, 2002, p. 84-85).
Verifica-se que subjetivamente há que se ter dolo, seja direto ou eventual.
Exige-se também o conhecimento da situação típica e dos meios de realização da
conduta devida. Assim, resta inegável o dolo do médico que, percebendo uma
situação de urgência e risco de vida, não atende o paciente por negativa deste
(PRADO, 2003, p. 573).
Neste mesmo sentido, pressupõe-se então a existência de dolo de não
socorrer, sendo esta uma vontade consciente para que a pessoa em iminente perigo
não seja salva. Importante frisar que o dever de solidariedade humana não pode ser
recusado, principalmente por médicos e profissionais da saúde (SÉGUIN, 2001, p.
293).
Importante também verificar a situação descrita no parágrafo único do artigo
citado, onde diz que a pena será aumentada caso haja o resultado morte. O nexo
causal neste crime deve ser analisado de forma inversa, já que o crime é omissivo.
Desta forma, somente será aplicada a qualificadora se ficar provado que, caso o
médico tivesse socorrido o paciente, poderia ter evitado a sua morte (GONÇALVES,
2002, p. 87).
Tem se tornado corriqueira a situação de recusa de tratamento em hospitais
com o argumento de preceito religioso. Porém, é fundamental ter em mente que é
inadmissível o abandono de pessoa gravemente enferma à sua própria sorte. Desta
forma, eventual recusa de paciente em receber tratamento, não exime o médico de
responsabilidade, posto que tem o dever de agir nestas situações (SÉGUIN, 2001, p.
295).
Somado ao que preceitua o art. 135 do Código Penal, temos o art. 13 do
mesmo diploma legal, que diz:
Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é
imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão
sem a qual o resultado não teria ocorrido.
[...]
§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia
agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
Com base no artigo citado, conclui-se que o dever do médico em agir, nos
casos de urgência, mesmo com a recusa do paciente, encontra-se amparado em
43
dois locais do Código Penal, sendo nos artigos 13 e o 135. Ambos tratam da
omissão, sendo que o art. 13 é mais genérico, mas não menos importante. Percebese que os médicos estão enquadrados no §2º, a, pois eles têm a obrigação, por lei
de cuidado, proteção e vigilância do paciente. Neste sentido, oportuno acrescentar
uma jurisprudência7 pertinente ao tema (PRADO, 2003, p. 86).
5.2 CONSTRANGIMENTO ILEGAL
Se no crime de omissão de socorro pune-se pela falta da ação necessária, no
crime de constrangimento ilegal pune-se pela prática forçada de um ato. O artigo
que disciplina tal crime é o 146 do Código Penal, e diz:
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou
depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de
resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não
manda:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.
[...]
§ 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:
I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou
de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;
Neste tipo penal, o bem jurídico tutelado é a liberdade individual, ou seja, a
liberdade pessoal de autodeterminação da vontade e da ação. Enquadra-se aqui
também o caso dos médicos que buscam, em situações de urgência, agir conforme
os ensinamentos médicos e com base no princípio da beneficência, indo contra a
liberdade individual do paciente, que se nega ao tratamento (PRADO, 2003, p. 604).
Para garantir então que o médico não seja punido pelos seus atos, quando
este busca salvar a vida do paciente, há a excludente no próprio artigo, em seu
parágrafo 3º, inciso I. Assim, o consentimento do paciente passa a ser irrelevante
nos casos onde haja a necessidade imediata de intervenção médica ou cirúrgica por
haver risco de vida do paciente. É uma forma de proteção tanto ao médico, que não
7
Apelação criminal – Homicídio culposo – Conduta comissiva por omissão – Imperícia – Codenunciados – Sentença absolutória – “Provimento do recurso para condenar o agente que se omitiu
no dever de prestação de atendimento médico-emergencial adequado a paciente de pronto-socorro
hospitalar. Evidenciado o nexo de causalidade entre a conduta omissiva da ré e a morte da vítima,
que deixou de receber da acusada atendimento emergencial aos primeiros sintomas de choque
anafilático, impõe-se a sua condenação na forma do art. 13, caput, e §2º, do Código Penal. [...]
Recurso parcialmente provido. Unânime” (TJDF – 1ª – T. Crim. – APR 19990110592767 – Rel. Otávio
Augusto – DJU 06.03.2002, p. 120).
44
será atingido pelo tipo penal do caput do artigo 146, quanto ao paciente, que terá o
seu direito à vida sempre resguardado e protegido (URBAN, 2003, p. 193-194).
A proteção do médico também ocorre por força do art. 23 do Código Penal,
que trata das excludentes de ilicitude, quando diz:
Art. 23 - Não há crime quando o Agente pratica o fato:
I - em estado de necessidade;
[...]
III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Entende-se claramente que quando o médico age contra a vontade do
paciente, e havendo o risco iminente de vida8, tal ação enquadra-se no inciso III do
referido artigo, pois há o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do
direito, inerentes ao profissional médico (PRADO, 2003, p. 139).
Em algumas circunstâncias, em razão do caráter emergencial, não há como
obter o consentimento do paciente ou do seu representante legal, devendo então o
médico agir a fim de evitar a morte, configurando assim a hipótese do inciso I do art.
23 do Código Penal, o estado de necessidade (CORRÊA, 2010, p. 104-105).
Conclui-se então que a liberdade individual é tutelada pelo artigo 146,
entretanto, a lei abre exceções ao direito (e dever) médico de agir em casos de
urgência, sendo que tais exceções estão dispostas em dois momentos do Código
Penal, sendo no inciso I do parágrafo 3º do artigo 146 e no inciso III do artigo 23,
que trata das excludentes de ilicitude.
8
Já se decidiu que, “uma vez comprovado efetivo perigo de vida para a vítima, não cometeria o
médico nenhum delito que, mesmo contrariando a vontade expressa dos por ela responsáveis, â
mesma tivesse ministrado transfusão de sangue” (RJDTACrim, 7:175).
45
6 CONCLUSÃO
Após muita leitura acerca do tema, constata-se que se trata de assunto
bastante polêmico. Em tempos passados havia o paternalismo médico, mas
acreditei que isso houvesse se diluído por conta dos novos modos de encarar a o
mundo, a sociedade e a vida, na chamada era pós-moderna.
Entretanto, o que se percebe hoje é que, apesar de ainda haver certa
credibilidade no profissional médico, muita gente procura ajuda na religião. Essa
ajuda diz respeito a questões de todas as áreas, inclusive a de saúde. Assim, muitos
depositam a sua fé na religião, confiando no poder divino em detrimento do
conhecimento médico.
O argumento religioso, as alegações de sofrimento e as causas de protesto
têm sido as mais frequentes justificativas para os diversos tipos de recusa de
tratamento médico, sendo que as situações mais recorrentes são, a recusa à
transfusão de sangue em Testemunha de Jeová, a eutanásia, a ortotanásia, a
distanásia, as ordens de não reanimar e a greve de fome. Não era meu intuito aqui,
abordar cada caso especificamente, pois para isso seria necessária a elaboração de
um novo trabalho inteiro e completo para cada tema individualizado.
Buscou-se demonstrar, de forma geral, por áreas do Direito, qual deveria ser
a postura adotada pelo profissional médico, quando o paciente se recusasse a
receber o tratamento proposto. Assim, no âmbito ético da medicina, conclui-se que o
médico deve, sempre que possível, prestar todo tipo de informação ao paciente,
acerca do diagnóstico, tratamentos possíveis e riscos ou consequências existentes.
Prestado tal esclarecimento, deve então ser preservada e respeitada a autonomia
deste. Porém, isso tudo encontra limite na situação emergencial e no risco iminente
de vida, casos em que o médico deve agir, independente de consentimento do
paciente, a fim de buscar o princípio da beneficência e salvar a vida que está em
suas mãos.
Constitucionalmente conclui-se que o direito à vida ainda é o mais importante
dos direitos fundamentais, devendo prevalecer perante qualquer outro. Assim, o
direito à liberdade religiosa fica relativizado, sendo que é garantido pela Constituição
apenas quando não entrar em conflito com algum outro direito maior do que ele
46
próprio, como ocorre nos casos de risco de vida e necessidade de transfusão de
sangue em Testemunhas de Jeová. O médico age em total conformidade com a lei
quando, no caso citado, transfunde o sangue para salvar a vida de alguém que se
encontrava em risco de vida e que, mesmo assim, se negava a receber o sague de
outra pessoa. Portanto, deve-se relativizar o direito de liberdade religiosa quando o
da vida encontra-se ameaçado, por ser este o primeiro a ser resguardado.
Com base no Direito Civil, conclui-se que a relação médico-paciente é
contratual e tem obrigação de meio, não de fim. Assim, o médico deve agir para
evitar eventos danosos, como a morte, porém, não há a obrigação de curar o
enfermo, mas sim a obrigação de exaurir os caminhos existentes. Nesta obrigação
de meio, o profissional médico responde de forma subjetiva, onde há que se
comprovar a existência de negligência, imprudência ou imperícia, além da
comprovação do dano e do nexo de causalidade. Desta forma, entende-se que, se
um médico deixa de atender um paciente em situação emergencial, e este vem a
falecer, há a existência de culpa, sendo que era dever do médico agir e não agiu,
causando o evento danoso.
Na esfera penal a conclusão é de que o médico pode responder pelo crime de
omissão de socorro caso deixe de prestar atendimento ao paciente em risco de vida.
Já quanto ao crime de constrangimento ilegal, que poderia ser argumentado, uma
vez que o médico fere a liberdade individual do enfermo, este não se aplica, pois tal
situação se enquadra na exceção de estrito cumprimento do dever legal ou exercício
regular do direito.
Observa-se então uma coerência lógica na legislação brasileira quando
determina, em todas as esferas analisadas, o claro dever do médico de agir quando
se deparar com um paciente com risco eminente de vida, mas que, mesmo assim
recuse tratamento. Não há então, um só motivo que obrigue o médico a agir de
forma contrária, acatando ao pedido do enfermo que se encontra morrendo. O
profissional médico só deve garantir que a vontade do paciente seja executada
quando houver margem para tal escolha, sem que ela prejudique a vida e a
integridade física do paciente.
47
É preciso entender que este trabalho não é contra a religião, mas sim a favor
da lei e do direito à vida. Assim, a religião não está acima de tudo, muito menos
acima da vida, tendo em vista que isso seria logicamente um contrassenso, pois,
como garantir o direito à liberdade religiosa se não houver o direito à vida garantido
previamente? É possível aprofundar este pensamento quando entende-se que de
nada adianta garantir qualquer direito sem antes garantir o da vida, pois nada pode
acontecer a um indivíduo sem que haja a vida.
Entendo que defender o dever do médico de agir nos casos citados neste
trabalho não significa que o homem não seja mais o verdadeiro dono de seu corpo
ou que caiba ao Estado decidir arbitrariamente o rumo das pessoas. Acredito,
entretanto, que o que deve ser evitado, é a banalização do direito à vida, tendo
como argumento qualquer direito menor e, portanto, menos importante.
Garante o artigo primeiro da Constituição Federal que o Brasil é um Estado de
Direito, onde as leis devem ser seguidas, e os atos executados conforme
preceituado legalmente. Portanto, há que se fazer cumprir o texto da lei e, como
amplamente demonstrado aqui, ele garante que o direito à vida é o mais importante,
sendo o bem supremo a ser tutelado pelo Estado e por todos. Demonstrou-se
também que a lei garante ser dever do médico agir quando se deparar, em situações
de urgência, com pacientes em risco de vida. Resta inequívoca, portanto, tal
conclusão.
Por fim, importante destacar que há textos pregando a necessidade de
normas mais humanas e eticamente aceitas, normas que acompanhem os avanços
da medicina e que apontem critérios para que o morrer dignamente seja uma
realidade. Entretanto, a lei jamais agradará a todos, e que problemas polêmicos
envolvendo-a sempre surgirão, sendo que, apenas uma ponta do iceberg será
percebida. Mesmo assim, enquanto a lei não se adapta aos costumes e interesses
do povo, ela há de ser cumprida por todos, exatamente na forma em que está
disposta. Só assim haverá segurança jurídica sem que seja preciso buscar o poder
judiciário. Ainda, quanto ao direito à vida, busco defender que ele não se torne um
discurso abstrato e sem sentido, mas algo efetivamente protegido pela lei.
48
Um início de mudança neste sentido é possível ser encontrado no anteprojeto
do novo Código Penal, no art. 121, §4º onde trata de descriminalizar a prática da
eutanásia decorrente da vontade do paciente ou de seus familiares. Percebe-se
assim que está havendo uma evolução acerca do tema na sociedade brasileira.
49
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