A HISTÓRIA DA NEUROPSICOLOGIA COGNITIVA. A espécie humana é, aparentemente, a única que está apta a pensar em si mesma como uma entidade dual, composta por uma parte física, finita e concreta, o corpo, e uma abstrata e transcendental, a mente. Através da última, os homens procuram no corpo as provas que justifiquem a existência da mente, e na mente, os recursos que possibilitam o conhecimento do corpo. Procurando localizar a atividade mental no corpo, egípcios e gregos apontaram, alternadamente, o coração e o cérebro como possíveis residências da mente. O médico romano Galeno (130-200), depois de constatar que os ferimentos cefálicos dos gladiadores produziam alterações comportamentais, decidiu que a mente só poderia estar situada no cérebro. Dois mil anos mais tarde, psicólogos cognitivos e estudiosos das neurociências dedicam-se ainda a localizar no cérebro as diferentes funções mentais. Saber se cada função mental esta relacionada à ativação de uma determinada área ou estrutura cerebral, ou se, indiferentemente da função mental, o cérebro se ativa como um todo, são os principais problemas das teorias “localizacionistas”, para as quais as “faculdades mentais podem ser localizadas em diferentes áreas do cérebro, e das teorias “holísticas”, para as quais o atividade cerebral é indiferenciada. Em 1500, Leonardo da Vinci conclui que todas as informações sensoriais se dirigem para um mesmo local do cérebro: o “senso communis”, morada do pensamento e do julgamento. Um pouco mais tarde, René Descartes (1596-1650) relaciona corpo e mente ao declarar que a mente influência o corpo da mesma forma como o corpo influência à mente. Embora em 1800 já se discutissem a origem e a localização dos fenômenos psicológicos a possibilidade de se realizarem estudos cerebrais experimentais não eram cogitada. Com a publicação em 1850, da “Origem das Espécies”, de Charles Darwin se acirra a problemática da condição cognitiva dos homens. Quando surgem, no século XIX, as primeiras evidências anatomo-fisiológicas de um cérebro constituído por múltiplas estruturas e funções, a crença em uma mente humana, abstrata e transcendental, constituída à imagem e semelhança de um deus único, eterno e absoluto, não mais se sustenta. A pretensão de Franz Joseph Gall (1758-1828) de conhecer os instintos e as faculdades intelectuais humanas através de uma estratégia objetiva, a Frenologia (do grego phrên, inteligência), ou seja, avaliando o formato craniano dos homens, foi considerada, na época, uma ousadia materialista. Embora rapidamente desacreditada, a Frenologia serviu como base para o surgimento de duas diferentes correntes teóricas, uma, formada por aqueles que, como Gall, consideravam a mente humana um limitado e heterogêneo conjunto de estruturas e funções materialmente localizáveis; e outra, formada por aqueles que acreditavam ser a mente uma entidade homogênea, indivisível e transcendental. Como o termo transcendental, que caracterizava a mente, se referia a um limite após o qual nada mais poderia ser inteligível e/ou conhecido, a sua investigação ontológica permanecia sujeita a critérios metodológicos, muitas vezes, pouco objetivos e quantificáveis. Permitindo que se englobasse ou se assimilasse algo considerado plural a algo considerado singular, muitos a um único, a transcendência era um conceito mais adequado às teorias cosmológicas que explicavam a origem do universo do que as que procuravam explicar a origem e o funcionamento mental dos homens. Em 1825, Jean-Baptiste Bouillaud é duramente criticado depois de ter tido a ousadia de localizar a linguagem em uma determinada região do córtex cerebral frontal. Como a ativação de um pedacinho de massa cefálica poderia gerar o divino dom da fala humana? Apesar de todas as correntes oposicionistas, e muito mais cauteloso do que Bouillaud, Paul Broca (1824-1880), em 1861, identifica como responsável pela linguagem, uma região cortical do lobo temporal esquerdo. Porém, ele declara que a pequena área do lobo temporal esquerdo respondia apenas pelo aspecto exterior e mecânico da linguagem, uma vez que o seu aspecto mental, o seu conteúdo lingüístico, este sim, passível de ser considerado divino, ninguém ainda localizara. Pouco tempo depois, em 1874, Carl Wernick (1848-1905) identifica, na superfície superior do lobo temporal esquerdo, a região cortical responsável pelo reconhecimento semântico das palavras, área esta que mais tarde passa a ser conhecida como a área de Wernick. No início do século XX, constatações tais como: o variável número de camadas constituintes do córtex cerebral, a diversidade das respostas comportamentais frente à estimulação, a lesão ou extirpação de regiões ou estruturas cerebrais possibilitaram que o neuroanatomista alemão Korbian Brodmann elaborasse um complexo mapa cerebral no qual cada área do córtex recebeu um número de acordo com a sua citoarquitetura. Desta forma, a “área 17” referente a depressão do lobo occipital era uma área visual , a “area 4”, localizada na parte anterior do sulco central do lobo frontal, motora, e assim por diante, até se completarem 52 áreas. Entretanto, o caráter ambíguo das teorias que, por um lado, defendiam uma mente localizável e fragmentada, e por outro uma mente, indivisível, imortal e transcendental, persistia. No início dos anos 50, o behaviorismo, teoria psicológica que privilegiava o estudo das expressões corporais observáveis em detrimento do estudo da mente, dominou a psicologia americana. Em 1956, um professor da Universidade de Harvard quebrou aquela hegemonia publicando um livro intitulado A Study of Thinking. Em vez de se interessar, como a maioria de seus pares, pelos comportamentos observáveis, J.S. Bruner e colaboradores procuraram desvendar as estratégias mentais utilizadas pelos sujeitos frente a determinadas tarefas, como, por exemplo, a classificação de cartas. Desta forma, eles tentavam compreender a seqüência das operações mentais que levavam a resolução de tais problemas. Em 1956, G. Miller, um jovem psicólogo da Universidade de Harvard, tenta atrair a atenção de seus colegas para os limites do psiquismo humano com o enigmático título de seu artigo: “O número mágico 7, mais ou menos 2”. Através deste trabalho, Miller pretendeu demonstrar que a memória imediata era limitada, incapaz de reter uma lista constituída com mais de sete elementos, e que para superar esta dificuldade, os sujeitos costumavam reagrupar os elementos da lista a ser memorizada em pequenos grupos. Isto só acontecia, segundo Miller, porque o cérebro é dotado de uma estrutura própria e limitada, não podendo, como pretendiam os behavioristas, ser comparado a um recipiente vazio. Ao contrário do corpo, a mente para Miller era a única parte do homem capaz de dar um “tratamento lógico” as informações captadas no mundo externo. Naquela mesma época, Noam Chomsky defendeu, em seu trabalho de 1957, que a humana, era uma espécie dotada de uma aptidão lingüística capaz de construir frases associando palavras segundo certas regras gramaticais. Ao tentar englobar, em 1970, os aspectos corporal e mental da condição humana numa única teoria, Jerry Fodor criou os conceitos de módulo (entidades periféricas, anatomicamente localizáveis), e o de “administrador central”, (entidade hierarquicamente mais elevada e isótropa, responsável pela preservação do espírito e da consciência). Desta forma, Fodor recria o antigo dualismo existente entre funções cerebrais anatomicamente localizáveis e uma função mental superior não corporalmente localizável. Em 1980, o inglês Tim Shallice localizou o “administrador central” de Fodor no lobo frontal e ressuscitando uma problemática infinita na qual um famoso homunculus ocupa um lugar de destaque. Segundo esta problemática, existiria no cérebro uma espécie de homenzinho responsável pelas funções cerebrais o qual seria, ele mesmo, dirigido por um outro “homenzinho”, que seria dirigido por um outro, e assim por diante. Defendendo uma teoria um pouco diferente da anterior, Wolf Singer de Frankfort propõe que um processo de sincronização temporal, e não mais um “administrador central”, responderia pela seleção do um conjunto de neurônios, portanto módulos localizáveis, que seriam ativados frente a uma determinada tarefa. Desta forma, uma rede neural momentânea emergiria, atraindo a atenção, a consciência, e todos os processos necessários à realização de uma determinada tarefa. Assim a mente, como uma entidade única, seria o resultado da associação transitória de módulos especializados e não mais de um “administrador central”, hierarquicamente superior, como anteriormente proposto por Fodor. O desenvolvimento de técnicas de observação do cérebro, como o registro da atividade elétrica dos neurônios, o exame por scanner das lesões cerebrais de pacientes vivos e, mais recentemente, a imagem do cérebro em ação, vieram reforçar a proposta localizacionista. Entretanto, até os anos 70, o termo “ciências cognitivas” não era utilizado. A partir de 1975, surge um “paradigma cognitivo” em torno do modelo simbólico de Fodor. Na mesma época uma fundação americana de caráter privado, a Fundação Sloan, decide, não só, a financiar pesquisas nesta área do conhecimento, como também a financiar uma revista, Cognitive Science, cujo primeiro exemplar apareceu em 1977. Em 1978, também sob os auspícios da mesma fundação, uma primeira visão a respeito do estado das ciências cognitivas e das disciplinas que delas participam é publicada. Dentre elas, a Filosofia, a Inteligência Artificial, a Lingüística, as Neurociências e a Antropologia. No início dos anos 80, multiplicam-se os manuais, os trabalhos de introdução e os livros de divulgação. Nesta mesma ocasião, não só, David Hubel e Torsten Wiesel ganham o prêmio Nobel por identificarem as áreas do sistema nervoso central implicadas na visão como também o ganha, Roger Sperry, por definir o papel que cada um dos hemisférios cerebrais desempenha nos processos cognitivos superiores. Por esta mesma época, Wilder Penfild mapeia as funções cerebrais do cérebro e Robert McLean descreve os três cérebros do homem. Em 1983 Jean Pierre Changeux publica o livro O Homem Neuronal. Nele, Changeux apresenta os avanços das ciências do cérebro e a pretensão de desvelar os segredos do pensamento. Em 1985, o psicólogo Howard Gardner publica a primeira História da Revolução Cognitiva com o sugestivo sub-título Uma nova ciência da mente. Dois anos mais tarde, na França, sob o título Nova Ciência da Mente, a revista Le Debat publica uma edição especial sobre o mesmo tema. No mesmo ano um colóquio é organizado em Cerisy. Os anos 90 recebem a denominação de “década do cérebro”. Sob o mesmo nome inaugurasem, sob a direção de Marc Jeannerod, em Lyon, na França, um instituto de ciências cognitivas Mas, sem dúvida, foram as técnicas de imagem cerebral, surgidas a partir dos anos 80, que possibilitaram aos neurocientístas a realização de um antigo desejo: observar, em tempo real ou quase, a atividade cerebral de pessoas durante a execução de determinadas tarefas. Embora, as primeiras pesquisas em neuroimagem, realizadas pelo sueco David H. Ingvar, tenham evidenciado uma hiper atividade nos lobos frontais de sujeitos que se esforçavam para não pensarem em nada, pesquisas mais recentes evidenciaram que quando os sujeitos realizam tarefas como o reconhecimento do sentido de palavras, fazem cálculos matemáticos, memorizam localizações espaciais ou se preparam para desempenhar atividades motoras, o córtex cerebral não age como um “administrador central”, uma entidade única que se ativa em bloco, mas sim, como um “mosaico” cujas peças se ativam independentemente uma das outras, dependendo da tarefa solicitada. As técnicas em neuroimagem também possibilitaram que se soubesse que a identificação de objetos conhecidos não ativa as mesmas áreas que são ativadas quando se olha para formas abstratas desprovidas de significação. O reconhecimento da atividade neural em forma de rede também foi uma conquista destas técnicas. Através delas constatou-se que a área 10 do córtex pré-frontal, a área 40 do parietal e a 23 do córtex cingulado participam de múltiplas tarefas cognitivas. Se, em um determinado momento elas fazem parte de uma determinada constelação neural, em outros, elas fazem parte de uma outra. Também através da neuroimagem observou-se que as alucinações mentais decorrem da ativação das mesmas áreas que se ativavam frente à estimulação sensorial externa. Com isso, concluiu-se que perceber objetos reais ou imaginários é, essencialmente, a mesma coisa. Entretanto, mesmo com todos estes avanços tecnológicos ainda pouco se sabe sobre as relações que a parte mais física, finita e concreta do homem, o seu cérebro, estabelece com a sua parte mais abstrata e transcendental, a sua mente. Conceitos lingüísticos como “significado” e “significante” definem bem o momento atual das neurociências. Embora a neurociência disponha dos recursos necessários para detectar os “significantes” sensoriais e motores que caracterizam a parte corporal dos homens até hoje não se dispõe de técnicas capazes de desvendar os “significados” psicológicos que caracterizam a sua parte mental. É neste sentido que a união dos saberes psicológicos cognitivos com os neurológicos é sempre fértil. A denominada “cognição motora” tem surgido como um novo e rico campo e pesquisas. Através dela um cérebro em permanente ação se impõe. A frase: “Antes de ser executada, a ação deve ser planificada, programada” se refere à crença de que dois universos excludentes e restritos: um mental, representacional e outro corporal, motriz convivem. Nesta antiga concepção, uma prévia “planificação” e “programação” mental da ação antecede e termina, invariavelmente, em uma movimentação corporal. Entretanto, na nova abordagem “cognitiva motora” uma alternativa para esta dualidade filosófica é apresentada. Em 1994, o fundador do Instituto de Ciências Cognitivas de Lyon, Marc Jeannerod comprovou que a simples representação mental do ato de correr, sem o esboço de qualquer movimento corporal e sem consumação de oxigênio ao nível muscular, faz com que o homem altere os seus sistemas cardíaco e respiratório. Na mesma época, Giacomo Rizzolatti descobre um tipo de neurônio que se ativa tanto quando o indivíduo executa um movimento, quanto quando ele observa visualmente o mesmo movimento ser executado por um outro sujeito, às mesmas células que se ativam durante as duas situações cognitivas ele deu o nome de “neurônios espelho”. Trabalhos como estes evidenciaram que o cérebro representa da mesma forma, ações executadas e não executadas. Ao se propor explorar os “estados mentais”, as “representações” e as “estratégias mentais”, as ciências cognitivas preparam o terreno para o estudo da consciência. Uma série de trabalhos a respeito dos comportamentos de imitação e de simulação já esta sendo realizada. Se, os mesmos neurônios ou zonas cerebrais se ativam quando um sujeito executa um gesto e quando ele vê um outro sujeito executá-lo, como poderia ele distinguir a sua ação da ação de um outro? Desde os anos 90, uma enorme quantidade de artigos filosóficos, neurobiológicos e psicológicos vem se ocupando destes temas. Perguntas como estas, envolvendo diferentes ramos do conhecimento, constituem os maiores desafios da neuropsicologia cognitiva. Um outro debate, de natureza filosófica, se refere às relações corpo/mente. Seria possível reduzir a atividade representacional (pensamento, linguagem, imaginação, sonhos) à simples atividade neural? Para a maior parte dos neuropsicólogos cognitivos a atividade representacional pressupõe substratos neurais (daí a necessidade de estudá-los), mas tanto esta atividade, quanto os substratos neurais que a sustentam dependem, para se desenvolver, dos fatores socio/culturais. Para saber mais leia: Dortier, Jean-François. Le cerveau et la pensée. La révolution des sciences cognitives. Paris: Sciences Humaines. 2003 Huxley, Francis. O Sagrado e o Profano: duas faces da mesma moeda. Rio de janeiro: Primor. 1977. Bear, Mark F.; Connors, Barry W.; Paradiso, Michael A. Neuroscience. Exploring the Brain. Maryland: Lippincott Williams &Wilkins. 2001. Jeannerod, Marc. De la psychologie mentale. Histoire des relations entre la psychologie et la biologie. Paris: Odile Jacob. 1996.