ARTIGO Pedágio em Rodovias fere o direito de ir e vir? Nesse ano, em que a Constituição Federal completa 20 anos é oportuno debatermos alguns temas por ela abordados, e entre os inúmeros assuntos, a instituição de pedágios em rodovias versus a liberdade de locomoção merece uma reflexão da sociedade. As primeiras estradas brasileiras foram construídas no século XIX, já as rodovias surgiram em 1920 no Nordeste, em programas de combate às secas. Logo, não é de hoje que as estradas e as rodovias têm um importante papel na formação do Brasil. Em vários momentos da nossa história, foram implementados programas que impulsionaram a construção de rodovias: a criação do Fundo Rodoviário Nacional em 1946; a fundação da Petrobrás em 1954; a implantação da Indústria Automobilística Nacional em 1957, e; posteriormente, com a mudança da Capital Federal do Rio de Janeiro para Brasília em 1960. Programas desta natureza, aliados a falta de investimento em outros modais de transportes, como ferroviário, hidroviário e aeroviário, consolidaram as rodovias como a principal matriz de transporte do país, sendo responsável por 63% do transporte de carga e 95% do transporte de passageiro. No entanto, com a crise inflacionária da década de 70 e 80, os investimentos governamentais foram reduzidos, inclusive na infraestrutura rodoviária, resultando em rodovias mal conservadas, sem manutenção e insuficientes para a demanda de tráfego. Com a redemocratização do Brasil e da maioria dos paises da América Latina ocorrida nos anos 80, após longos períodos de governos militares, iniciaram discussões sobre o papel do Estado, que resultaram em instrumentos de revisões políticas, visando uma melhor disciplina e reforma fiscal, liberação comercial, privatizações, abertura a investimentos externos e até gastos públicos prioritários em educação e saúde. Essas reformas políticas utilizaram como pano de fundo o incremento na melhora dos níveis educacionais, que além de ser um fator de justiça e promoção social, colabora com a qualidade e eficiência na prestação de serviços públicos e privados, aumentando a possibilidade do país obter êxito no mercado global altamente competitivo. Desta forma, em meados dos anos 90, houve uma reorganização institucional que ampliou a participação da iniciativa privada por meio de parcerias e contratos de concessão, reduzindo o monopólio estatal em alguns setores, criando Agências HILDEIR AMORIM FAGUNDES – GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – EACH/USP ([email protected]) Artigo 1/3 Reguladoras e, transferindo para a iniciativa privada a prestação de determinados serviços, que antes eram oferecidos pelo poder público, apesar de serem essenciais a sociedade, e entre esses, a administração de rodovias. Em um país de dimensões continentais, com número expressivo de população e com uma diversidade geográfica, cultural e social imensa, a instituição de rodovias pedagiadas poder-se-ia limitar a livre locomoção das pessoas? Há aqueles que entendem que esse tipo de política pública deve ocorrer de forma cautelosa e responsável, para não comprometer o desenvolvimento nacional e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme estabelecido na Constituição Federal. Mas, também, há outros que tem a visão de que a falta de trafegabilidade das rodovias em conseqüência de um governo pouco eficaz é muito mais grave e oneroso para a sociedade. A resposta não é tão simples e nem compartilhada pela maioria, no entanto, a análise certamente passará pelos princípios constitucionais. A Carta Magna garante a todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros que aqui estiverem, a locomoção pelo território nacional. E, quando o Estado nega o acesso das pessoas, frente às condições rodoviárias, quer seja pela condição de trafegabilidade ou até pela instituição de pedágio, poderia caracterizar o impedimento do exercício de um direito, tirando o mérito da função essencial do Estado, sujeitando o Ente Maior a abaterse frente a sua incapacidade. O Estado tem a obrigação de manter as garantias fundamentais constitucionais, além de utilizar-se de modos eficazes para que os cidadãos as exerçam. Os cidadãos têm o direito às garantias, o Estado tem o dever de fornecê-las. Então, pode-se entender que a instituição de pedágio, assim como a falta de trafegabilidade de uma rodovia, agride o direito fundamental de ir e vir, contido no art. 5º, inciso XV da Constituição Federal: “é livre a locomoção no território nacional em, tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou sair com seus bens”. No artigo 60, § 4º, inciso IV, há a prescrição de que não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais, dentre os quais se insere o direito de ir e vir. A livre locomoção, então, faria parte das chamadas “cláusulas pétreas”, insuscetíveis de emenda ou reforma pelo poder constituinte derivado. A nossa carta maior, ainda prevê no inciso LXVIII, do art. 5º, o instrumento do hábeas-corpus, que é uma garantia constitucional em favor de quem sofre violência ou HILDEIR AMORIM FAGUNDES – GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – EACH/USP ([email protected]) Artigo 2/3 ameaça de constrangimento ilegal na sua liberdade de locomoção, por parte de autoridade legítima. Portanto, a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, que são essenciais para construir uma sociedade livre, justa e solidária, e garantir o desenvolvimento social, conforme estabelecido na Carta Magna, certamente passará pela melhoria da infra-estrutura, principalmente a rodoviária, devido à especificidade do setor, o que acontecerá quando todos os cidadãos tiverem condições de acessar a mais importante via de transporte do país. Hildeir Amorim Fagundes - Engenheiro Civil com atuação na área rodoviária e Estudante do Curso de Gestão de Políticas Públicas da USP. HILDEIR AMORIM FAGUNDES – GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – EACH/USP ([email protected]) Artigo 3/3