Idéias antagônicas na Revolução Francesa: Rousseau e Sieyès nas origens do Estado francês contemporâneo RESUMO Fátima Maria Leitão Araújo(*) Ofulcrodaquestãoanalisadanesteartigoéainfluência das idéias iluministas na elaboração do arcabouço ideológicoejurídicodaRevoluçãoFrancesa,bemcomo doEstadofrancêspós-revolucionário.Apósminucioso estudo sobre os principais documentos políticos e constituições francesas, de 1789 a 1958, foi possível identificar as idéias de Rousseau (Representação Popular)easdeSieyès(RepresentaçãoNacional)como idéiaspolíticasdoséculoXVIII,que seergueramsobre as demais, tendo influência decisiva e incisiva na RevoluçãoFrancesae,porconseguinte,naestruturação doEstadofrancêscontemporâneo. ABSTRACT The aim of the question analysed in this article is the influence of illuminist ideas in the elaboration of the ideological and legal struture of FranceRevolution,as the post - revolutionary French. State. After detailed studyaboutthemainpoliticaldocumentsandFrench Constitutions from 1789 to 1958, it as been possible to indentify Rousseau’s (popular representation) and Sieyès’s (national representation) ideas, while political ideas from the 18th century that have risen over the others, influencing directly in FrenchRevolutionand, consequently, in the elaboration of contemporany FrenchState. Palavras-chave:Revolução Francesa, idéias políticas, representação popular, representação nacional, constituição. Keywords:French Revolution, political ideas, popular representation,nationalrepresentation,constitution. (*)Professora do Curso de História da FECLESC e UECE. Diretora da FECLESC-UECE. 7 Fátima Maria L.Araújo À guisa de introdução É conhecido que o enciclopedismo do século XVIII enaltecia o homem como ser racional. Quanto à filosofia política do enciclopedismo, ela tinha por objetivo a justificação do despotismo esclarecido, mas enfatizava que a liberdade se exprimia pela propriedade, estando esta inteiramente compactibilizadacomomonarca,comoemHobbes. Por outro lado, a crítica do absolutismo, em França, vai terseusexpoentesemMontesquieueRousseau,tantas vezescolocadoserroneamenteentreosenciclopedistas por autores desavisados de manuais de História. O autor de O Espírito das Leis só entende como monarquia legítima a que se encontrava subordinada àsleis.Rousseauvaimaislongeem OContratoSocial, elaborando sua doutrina com as idéias de liberdade e de igualdade, estabelecendo em definitivo a noção de soberania popular e a de vontade Geral. Estando à margem do Enciclopedismo, Montesquieu e Rousseau ligavam-se a este somente naquilo que tocava a precedência da razão. Em um, a monarquia era posta em valor, mas devia ser relativa à lei, nunca absoluta, mesmo que em nome da razão; em outro, a monarquia era inconcebível, porque a soberania era popular e o governo devia resultar da vontade geral. EmlinhaparalelaàsidéiasdeMontesquieueRousseau, surgiu em França um pensamento político em defesa dodireitodoEstadofrancêsemfacedopodersoberano do rei. Tal defesa é formulada por Mably, um francês convicto dequeaFrançatrazemsuahistóriaaraizda liberdade nacional, cujo ponto mais recuado está em Carlos Magno. Defende, em suma, uma monarquia democrática,segundoaqualosreisdeveriamgovernar o menos possível. Foi, portanto, Mably um dos primeirospensadoresarejeitarafórmuladedespotismo esclarecido patrocinado por Voltaire. Mas, vai ser com a emergência de Sieyès, quando da convocação dos Estados Gerais, que a idéia de nação passará a ter grande vigor. Sieyès estabelece a idéia de representaçãonacionalesuainfluênciabalizaráasfases inicial e final da Revolução Francesa. A sua brochura Qu’est–cequeleTiersÉtat? é bem o esforço de se tentar arupturadefinitivadosgrilhõesdasinjustiçasnaordem social e política vigente na FrançaAbsolutista.Assim, dentre essas idéias francesas do século XVIII, as de Rousseau e as de Sieyès se erguerão sobre as demais, 8 Políticas Públicas e Sociedade tendoinfluênciadecisivanaRevoluçãoFrancesae,por conseguinte, na estruturação do Estado francês contemporâneo. É o que veremos no presente trabalho. 1 A idéia de representação política em Rousseau e Sieyès EmOContratoSocial,Rousseaupropõeasoluçãopara o problema fundamental da vida do homem, ou seja, aautoconservaçãocomosersocial.É,pois,noContrato que se encontra a forma de associação que defende e protege de toda força comum a pessoa e os bens de cadaassociado,epelaqual, “cadaum,unindo-seatodos, nãoobedeçaportanto,senãoasimesmo,epermaneçatãolivre comoanteriormente” (ROUSSEAU,s/d:30)Aessênciado contrato de Rousseau resume-se em cláusula única: alienação total de cada associado com todos os seus direitos em favor de toda a comunidade. Deste modo, cada associado põe em comum sua pessoa e toda autoridadesobosupremocomandodavontadegeral. Somente essa vontade geral é que tem possibilidades de dirigir as forças do Estado. Assim sendo, Rousseau não se presta a ser o filósofo do individualismo, pois “apontou como papel do Estado reprimir os abusos da propriedade individual e manter o equilíbrio social pela legislação sobre a herança e pelo imposto progressivo” (SOBOUL, 1981). Essa tese igualitária, tanto no domínio social quanto no político, era coisa nova no século XVIII, e opunha irremediavelmente Rousseau aVoltaire, bem como aos enciclopedistas. ParaRousseau,ocontratosocialnãoéumcompromisso de governados para obedecer o governante, como no de Hobbes, mas um acordo entre indivíduos para subordinar “seus julgamentos, direitos e poderes às necessidadesejulgamentosdesuacomunidadecomoumtodo. Cadapessoaimplicitamenteparticipadetalcontratoaoaceitar aproteçãodasleiscomunitárias” (DURANT, s.d: 176). A vontade popular, que para Rousseau se traduz em “vontade geral”, foi levada tão a sério e tão literalmente que nos leva a afirmar que, para este filósofo,anaçãochegouaserconcebidacomo “umcorpo animadoporumasóvontade,àfeiçãodeumindivíduo,que também pode mudar de direção a qualquer momento, sem perder sua identidade” (ARENDT, 1988:61). Essa vontade una é resultado da soma das vontades individuais e, por isso, jamais haverá lugar, na teoria de O Contrato Social, para o culto ao individualismo, Idéias antagônicas na Revolução Francesa: Rousseau e Sieyès nas origens do Estado francês pois “...seulelavolontépeutédicterdeslois,lavolontégénérale qui,impersonnelledeparsa nature,nepeutvouloirquecequi estdansl’intérêtdetous” (GROENTHUYSEN, 1956 ). A partir da estruturação de seu contrato, Rousseau formula a idéia de representação política. Estado legítimoéaqueleemqueopovoexercesoberanamente o Poder Legislativo. O princípio da vida política está, portanto, na autoridade soberana. Segundo Rousseau, O Poder Legislativo é o coração do Estado; o Poder Executivo é o cérebro quepõeemmovimentotodasaspartes. O cérebro pode ser atingindo pela paralisiaeoindivíduocontinuaraviver ainda... Mas tão logo o coração deixe de funcionar, o animal perece (ROUSSEAU,s/d:91) Conclui-sequesomentesubsistiráoEstado,comaplena existência do poder legislativo. O soberano, o povo, não dispõedeoutraforçasenãoopoderlegislativo;sópoderá atuar pelas leis, ademais, “nãosendoasleismaisqueatos davontadegeral,nãopoderiaosoberanoagirsenãoquandoo povo se encontra reunido” (ROUSSEAU, s/d:91). Constituindo-seasoberaniaessencialmentenavontade geral, não poderá a mesma ser representada pois: osdeputadosdopovonãosão,nempodem serseusrepresentantes;sãoquandomuito seus comissários e nada podem concluir definitivamente.Sãonulasas leisqueo povo não tenha ratificado, deixam de serleis” (ROUSSEAU, s/d:96). Paraoautorde OContratoSocial, aidéiaderepresentação é uma criação moderna, pois, nas antigas repúblicas o povo jamais teve representantes. Diante de tal afirmativa, se edifica a idéia de soberania popular, expressãomáximadavontadegeral,queparaRousseau é “avontadeconstantedetodososmembrosdoEstadoeque devido a ela é que se tornam eles cidadãos e livres” (ROUSSEAU, s/d:106). Essa vontade geral não é simplesmenteavontadedetodos.SegundoDurant(s/ d:176), ela é “avontadedacomunidadedeterumavidae uma realidade além das vidas e das vontades dos membros individualmente...Suacaracterísticaédadanãoapenaspelas vontadesatuais,maspelahistóriapassadaefuturosobjetivos dacomunidade”.Assim,paraRousseau,asoberania não poderáserrepresentadapelamesmarazãoquenãopode ser alienada. O povo submetido às leis deve ser o seu autor. As leis seriam feitas pelo povo nas Assembléias Gerais,eestasassembléiasdeveriamficarinvestidasdo poder de reconduzir os candidatos eleitos. “Daí o Estadoidealteriadesersuficientementepequenoafimde permitir que os cidadãos se reunissem com freqüência” (DURANT,s/d:178). É latente em Rousseau a elaboração da idéia de uma soberania ilimitada. A imensidão do poder social encontra no povo, através da vontade geral, a sua representação.Mascomoseriapossívela exequibilidade de tal representação? O problema encontra a solução naidéiadovotopopular,poissomenteovotopermitirá que cada cidadão seja sempre livre, ao mesmo tempo que assegurará a concretização das leis como ato do consentimento de todos. Ademais, “cadaqual,dandoo seuvoto,profereoseuparecer,edocálculodosvotosextrai-sea declaraçãodavontade” (ROUSSEAU, s/d:107). A idéia de representação popular como única representação legítima só poderá existir na medida em que encontrar na vontade do povo a base de toda autoridade governamental.SegundoCrossman “Rousseauatribuia talvontadeumasoberaniatãoabsolutaquantoaatribuída por Hobbes a seu Leviatã” (CROSSMAN,1980:86) entendendo-se que o Leviatã de Hobbes expressa a vontadedomonarca.Háqueopovorepresentar-seasi mesmo para garantir a sua soberania. Em oposição à idéia de representação popular de Rousseau, ergue-se a noção de representação nacional formulada, já às portas da Revolução Francesa, por Sieyès.Partindodaconcepçãodenaçãocomooresultado deumaleicomumeumarepresentaçãocomum,Sieyès conclui que a França não constituía uma nação, pois na mesma só se tinha a proteção da lei comum. No Terceiro Estado encontrava-se, portanto, tudo o que é preciso para formar a nação. Mas, éprecisoentendercomoTerceiroEstado oconjuntodoscidadãosquepertencem à ordem comum; tudo o que é privilegiado pela lei, de qualquer forma,saidaordemcomum,constitui uma exceção à lei comum e, consequentemente, não pertence ao TerceiroEstado... (SIEYÈS,1988:72) SieyèsencontranoTerceiroEstadoaplenaestruturação danação.OTerceiroEstadoéapróprianação. “Anação éaorigemdetudooqueexiste;nasuavontade encontra-se a legalidade; ela é a própria lei, antes dela e acima dela só Políticas Públicas e Sociedade 9 Fátima Maria Leitão Araújo existe o direito natural” (SIEYÈS, 1988:117). Sendo a vontade nacional a origem de toda legalidade, ela se formará unicamente pelo direito natural. Assim é que Sieyèsdistinguetrêsépocasnaformaçãodassociedades políticas:aprimeirasecaracterizapelojogodasvontades individuais, cuja obra é a associação; na segunda temse a ação da vontade comum; na terceira, não é mais a vontade comum que age, mas sim a vontade comum representativa.Emsuaessência, ... a nação é tudo o que ela pode ser somentepeloqueelaé.Nãodependede suavontadeatribuir-semaisoumenos direitos que ela tem. Mesmo em sua primeira época, ela tem os direitos naturaisdeumanação.Nasegunda, elaosexerce;naterceira,elafazexercer pormeiodeseusrepresentantes tudoo queénecessárioparaasuaconservação e a da ordem na comunidade” (SIEYÈS, 1988:118). Para Sieyès o verdadeiro objetivo de uma assembléia nacional é anular todas as influências do interesse particular. O fim da assembléia representativa de uma nação terá que coincidir com os interesses e os fins da próprianação,poisavontadedeumanação nadamais édoque “oresultadodasvontadesindividuais,comoanação éareuniãodeindivíduos.Éimpossívelconceberumaassociação legítimaquenãotenha,comoobjetivo,asegurançacomum,a liberdade comum, enfim, a coisa pública” (SIEYÈS, 1988:141). A participação ativa dos cidadãos na vida política e na formação da lei social, ou seja, a sua qualidadederepresentávelsemanifestanodireito,esse que todos possuem não por deter qualquer privilégio, mas simplesmente por ser cidadão. Por essa razão, a Assembléia Nacional, e aqui vem uma significativa conseqüência, não é feita para se ocupar dos assuntos particulares dos cidadãos. Ela os considera como uma massa e sob o ponto de vista do interesse comum. E adverte Sieyès: “Tiremosdaíaconseqüêncianatural:queo direitodefazer-serepresentarsópertenceaoscidadãosporcausa dasqualidadesquelhessãocomunsenãodevidoàquelasque osdiferenciam” (SIEYÈS, 1988:144). Épatentetambém aí a negação do individualismo. A definição de nação e a conseqüente elaboração do entendimento de representação política em Sieyès, origina-se, segundo Fernando Whitaker da Cunha (1981:58), da “necessidade de uma época em criar um eufemismo,para justificaraimpossibilidadedeopovogovernar 10 Políticas Públicas e Sociedade diretamente e de criar, a bem dizer, uma teoria civilista do direito público”. Portanto, somente na representação nacional é que se encontra, segundo Sieyès, a fundamentação para a legalidade política. Rousseauarquitetouasuaidéiaderepresentaçãopolítica no princípio da soberania popular. A representação, para ele, só encontra legitimidade no mandato imperativo.Contrapondo-seàidéiadeRousseau,afirma categoricamenteSieyèsqueoprincípiodetodasoberania resideessencialmentenanação.Eésomenteatravésde representantes extraordinários que a nação poderá expressar a sua vontade. O Terceiro Estado formaria, portanto, uma Assembléia Nacional, onde os seus representantes seriam os legítimos depositários da vontadenacional.Rousseaunãoconcebealegitimidade dasociedadepolíticaatravésderepresentaçãodelegada; o termo democracia é por ele empregado como um governo no qual todas as leis são feitas por todo o povo reunido em assembléias gerais ... “Rousseau rejeita a democracia representativa sob a alegação de que os representantes iriam logo legislar em razão de seus próprios interesses ao invés do bem da população” (DURANT,s/d:178).EmSieyès,oTerceiroEstadopode considerar-se sob dois aspectos: “Noprimeirosevêcomo uma ordem. No segundo, ele é a nação. Como tal, seus representantesformamaassembléianacional:têmtodososseus poderes.Comosãoosúnicosdepositáriosdavontadegeral,não têmnecessidadedeconsultarseusconstituintessobreumadissensão quenãoexiste”(SIEYÈS,1988:139). Este ponto é , pois, o fulcro da divergência entre as idéias de Rousseau e as de Sieyès. E essas idéias entrarão em confronto no processoestruturaleconjunturaldaRevoluçãoFrancesa. 2 Representação nacional e representação popular. Coexistência das idéias políticas de Sieyès e Rousseau no curso revolucionário 2.1 A Assembléia Nacional da França e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão As palavras de Sieyès, em sua brochura QueéoTerceiro Estado?,encontramaudiênciaevãoserdecisivasparao estabelecimentodaAssembléiaNacionalnaFrança.Para Sieyès,oTerceiroEstadojánãoeramaisaordemserva, como antigamente. O Terceiro era tudo, a nobreza não passavadeumapalavra.EleachavaqueoTerceiroteria Idéias antagônicas na Revolução Francesa: Rousseau e Sieyès nas origens do Estado francês queadquirirosseusdireitospolíticos,promovendopor seus próprios esforços a estruturação nacional. Suas palavras foram incisivas e decisivas “Vão dizer que o TerceiroEstadosozinhonãopodeformarosEstadosGerais. Ainda bem: ele comporá uma Assembléia Nacional” (SIEYÈS, 1988:133). A concretização de tais idéias se materializava no fato histórico de 1789. É estabelecida a Assembléia Nacional da França e em pouco tempo nasceria o inusitado documento da DeclaraçãodosDireitosdoHomemedoCidadão.Com estasãodelineadososprincípiosfundamentaisdanova ordem social e política. A mesma servirá de fundamento para todas as constituições ulteriores, proporcionando, dessa forma, o alicerce para a construção do novo Estado. Em tal proclamação encontraremosaslinhasmestrasdasidéiasdaRevolução Francesa.Emcadaartigo,comprovam-seasinfluências das idéias que foram, sem sombra de dúvidas, os principaisagentesdoprocessotransformador. No título do documento encontraremos, de imediato, as influências das idéias de Rousseau, pois além dos direitos do homem, vem a ênfase nos direitos dos cidadãos. Em Rousseau tem-se que: “aessênciadocorpo político está no acordo da obediência e da liberdade, e estes termosvassaloesoberanosãocorrelaçõesidênticas,cujaidéiase reúnesobumúnicoconceito:cidadão”(ROUSSEAU,s/d:93). Temos, pois, a estruturação da vida civil, o homem passando a usufruir dos seus direitos de cidadania, a sua qualidade de cidadão passando a ser algo de fato. Mas é no artigo primeiro da Declaração que o espírito dasidéiasrousseaunianassefirmaráparaajustificação da instituição do novo Estado. Proclama esse artigo que: “Oshomensnascemlivreseiguaiscomrespeitoaosseus direitos; por conseguinte, as distinções civis somente podem fundar-se na utilidade pública” (cf. PAINE, 1964). É exatamenteemRousseauque encontraremosasidéias de liberdade e igualdade como conseqüência da naturezahumana.Ademais, “havendo nascidotodoslivres eiguais,nãoalienamaliberdadeanãoseremtrocadesua utilidade”(cf. PAINE, 1964) EstáRousseauinteironesse artigo primeiro da Declaração. Paine afirma que nos três primeiros artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão encontram-se a base de toda a liberdade: Nenhumpaíspodedizer-selivreseseu governo não se fundamenta nos princípiosqueelescontémenãocontinua apreservá-lospuros,etodadeclaração dosdireitosvalemaisparaomundoefará mais bemdoquetodasasleisenormas jamais promulgadas (cf. PAINE, 1964:91) A doutrina dos direitos naturais estava presente na DeclaraçãodeDireitos,servindocomofundamentação constitucional. Essa doutrina está contida no artigo segundo: “Ofimdetodasasassociaçõespolíticaséapreservação dosdireitosnaturaisdohomem,eessesdireitossãoliberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão” (PAINE, 1964:) Verifica-seaí,narealidade,umacópiadeLocke. Esseautor, um dos mentores do liberalismo moderno, parte do Estado de Natureza descrito como um Estado de perfeita liberdade e igualdade, governado por uma lei da natureza “que ensina a todos os homens, desde que desejem consultá-la, que sendo todos iguais e independentes, ninguém deve provocar danos aos demais no que se refere à vida,àsaúde,àliberdadeouàsposses” (BOBBIO,1988:12). Rousseau garante, por sua parte, a liberdade e a igualdade na vida civil. No artigo quarto da Declaração é proclamada a fundamentação da liberdade com a delimitação de seus princípios: A liberdade política consiste no poder fazer-setudooquenãoprejudicaoutrem. Oexercíciodosdireitosnaturaisdetodo homemnãotemoutroslimites,senãoos necessáriosparaasseguraraoutrohomem olivreexercíciodosmesmosdireitoseesses limitessãodetermináveissomentepela lei (PAINE, 1964) Para Rousseau, o pleno exercício desses direitos do homemsópoderáocorrernoEstadocivil,ondetodosos direitos são fixados pela lei. E vai mais além, quando anuncia que o objeto das leis é sempre geral, pois a lei considera os vassalos em corpo e as ações como sendo abstratas, jamais um homem como um indivíduo, nenhuma ação particular. “No tocante a essa idéia, vê-se imediatamentenãomaisserprecisoperguntaraquemcompete fazerasleis,poisqueelasconstituematosdavontadegeral” (ROUSSEAU,s/d:48). No artigo 6º da Declaração de direitos encontramos, na íntegra, esse conceito de lei como resultado da vontade geral. Os artigos da Declaração de Direitos tomam, pois, em grande parte, as idéias de Rousseau sobre os direitos com a sua evolução plena para a vida civil. A idéia de Políticas Públicas e Sociedade 11 Fátima Maria Leitão Araújo primaziadaleinasociedadeéjustificadaporJeanJacque Rousseau pelo fato desta representar a expressão da maioria. Além do mais, “nemopríncipeseencontraacima dasleis,poiseleémembrodoEstado;nemaleipodeserinjusta, poisqueninguéméinjustoconsigomesmo” (ROUSSEAU,s/ d:48). SãoflagrantesasinfluênciasdeRousseauparaa fundamentação da ideologia política e social da RevoluçãoFrancesa,mas,emconfrontocomessasidéias, ergue-se,nocontextodessamesmaRevolução,umaidéia nova. É a idéia de nação de Sieyès, que ademais se vai erigir como princípio básico da vida política pósrevolucionária. E é no artigo terceiro da Declaração de Direitos que se tem a exaltação da idéia de nação como fonte de toda soberania. A partir de então, a idéia de representação nacional acompanhará todo o curso da Revolução Francesa. Mas devemos proceder a uma análise mais atenta do que significa, em essência, essa idéiaderepresentaçãonacional,vistoque,naDeclaração de 1789, encontramos o princípio da soberania nacional. Além do mais, como os constituintes da Assembléia Nacional irão compatibilizar a idéia rousseauniana de lei como expressão da vontade geral, com a de representação nacional de Sieyès? Como já enfatizado, para Rousseau a soberania só poderá residir no povo, pois que outra coisa não sendo a soberania senão “o exercício da vontade geral, jamais se podealienar...Edamesmaforma,asoberaniaéindivisível, porque a vontade é geral, ou não é; é a vontade do corpo do povo...” (ROUSSEAU,s/d:38/39). Enquanto isso, em Sieyès, a soberania encontra-se na Nação, e a solução para o exercício de tal soberania está na prática da representaçãoextraordináriaelivrementedelegada.Os representantes dessa nação sairiam das circunscrições que deveriam ser estabelecidas no território nacional, facilitando, assim, o problema da dispersão de todos os indivíduos, integrantes da associação política. No dizer dopróprioSieyès: Os associados são muito numerosos e estãodispersosemumasuperfíciemuita extensa para exercitar eles próprios facilmentesuavontadecomum.Oque fazem?Separamtudooqueparavelar eproveréprecisoàsatençõespúblicas,e confiam o exercício dessa porção da vontadenacional,e,consequentemente, dopoder,aalgunsdentreeles.Essaéa origem de um governo exercido por procuração” (SIEYÈS, 1988:115). 12 Políticas Públicas e Sociedade Com Sieyès tem-se a origem da idéia de mandato livre, contraomandatoimperativo,deRousseau.Diantedisso, observamosnaDeclaraçãodeDireitosdoHomemedo Cidadão o confronto constante das idéias de Rousseau com as de Sieyès, fazendo surgir contradições que se compõemnotododetalDeclaração.Masénotórioque a Declaração dos Direitos perante a Assembléia Nacional perpetuará a idéia de nação como princípio de representação política. Segundo Paine, “No exórdio declaratório que prefacia a Declaração de Direitos, vemos o soleneemajestosoespetáculodeumanaçãoqueseinaugura, sob os auspícios do Criador, para estabelecer um governo” (SIEYÈS, 1988:91) Dessa forma, a idéia de primazia da lei na sociedade civil e política; a relevância do Poder Legislativo na gerência da vida estatal; a soberania nacional e a da lei como expressão da vontade geral, dentre outros, são conceitos, que, já presentes na Declaração de 1789, preparama fundamentaçãodasfuturasconstituiçõesda Françarevolucionária.Essacongériedoutrináriadecorre da premência histórica da Revolução. Para Chevalier, LaDeclarationest,nonseulement,un catéchismephilosophique,maisc’estaussi unecondamnationimplicitedesanciens abus,unecondamntiondesprivilèges; laloidoitêtrelamême,pourtous,soit qu’elleprotège,soitqu’ellepunisse.Cette formuledel’article6estexactamentle contre-pied des privilèges (CHEVALIER, 1952:28). O próprio Sieyès, antes de escrever seu mais famoso panfleto, havia produzido um ensaio contra os privilégios. A Declaração respondia, de imediato, à recusadoTerceiroEstadoaosprivilégios,contraosquais, de fato, se fez a Revolução. 2.2 Os textos constitucionais a partir de 1791-idéias em confronto A obra social da Constituinte estava consumada com a DeclaraçãodosDireitosdoHomemedoCidadão.Mas uma preocupação capital se fazia presente entre os constituintes,ouseja,emconcomitânciacomareforma financeira e institucional, o estabelecimento de uma Constituição. Somente a 3 de setembro de 1791, a AssembléiaNacionalestabeleceriaaslinhasmestrasdo Idéias antagônicas na Revolução Francesa: Rousseau e Sieyès nas origens do Estado francês governorevolucionário.EstavaconcluídaaConstituição que em sua letra, proclama a abolição de todas as instituições que feriam a liberdade e igualdade de direitos, idéias já largamente enfatizadas como princípios básicos da Declaração de Direitos. A obra políticadessaConstituiçãovemcomocomplementação do catecismo filosófico de 1789. A representação nacional à Sieyès é a idéia norteadora da Constituição de 1791. O artigo primeiro do Título III declara que: “La souveraineté est une, indivisible, inalienableetimprescriptible.ElleappartientlaNation;aucune section du peuple, ni aucun individu, ne peut s’en attribuer l’exercice” (cf. DUVERGER,s/d).Observamos,aqui,na verdade, um misto das idéias de Rousseau com as de Sieyès. A definição rousseauniana de soberania indivisível e inalienável encontra o seu ponto máximo nesteartigo.Entretanto,asatribuiçõesdetalsoberania são dadas à Nação, ficando, dessa forma, transparente a predominância do conceito de Sieyès como princípio essencial da representação política. A Constituição de 1791 tem um caráter conciliatório, fato esse que a levaria, indubitavelmente, ao estabelecimentodeumaformadegovernomonárquico, nos moldes de Montesquieu. Como todos os poderes emanavam dessa nação, conseqüentemente a vontade do rei não teria mais força de lei; é o que nos esclarece o artigo 3º (Cap. II, seção I): “Il n’y a point en France d’autoritésuperieureàcelledelaloi.LeRoineregnequepar elle,etcen’estqu’aunomdelaloi,qu’ilpeutexigerl’obéissance” (cf. DUVERGER,s/d). Fica patente, pois, que as idéias de Sieyès assumem significativa predominância no contexto da Constituição de 1791. Mas, um pouco mais tarde, os fatos históricos da Convenção trazem em sua essência asidéiasdesoberaniapopulardeRousseau.Robespierre fora, na Assembléia constituinte de 1791, fervoroso defensor dessas idéias e, com sua visão ultra– democrática, foi o mais ferrenho opositor do esclarecimentodocensoeleitoral,criadoporSieyés.Em 22 de outubro daquele ano, declarou com efeito RobespierreàAssembléia: Todososcidadãos,sejamquaisforem, têmodireitodeaspiraratodososgraus de representação. Nada disso está conformevossaDeclaraçãodeDireitos, perante a qual todo o privilégio, toda distinção e toda a execução devem desaparecer. A constituição estabelece queasoberaniaresidenopovo,emtodos osindivíduosdopovo.Cadaindivíduo tem,portanto,direitodeconcorreràlei, pelaqualéobrigado,eàadministração dacoisapública,quelhepertence;caso contrário,nãoéverdadeirooprincípio dequetodososhomenssejamiguaisem direitos, que qualquer homem seja cidadão(SOBOUL, 1981: 239). É, pois, nesse contexto ideológico que se apoiarão os jacobinos para a edificação de um Estado para eles verdadeiramenterevolucionário.AobradaAssembléia Constituinte, iniciada com a Declaração dos Direitos doHomemedoCidadão,éconduzidaobstinadamente pelos constituintes na tentativa de se reconstruir a França, através da universalização dos princípios que norteavam as idéias revolucionárias. Esses princípios encontram sua expressão ressonante no preâmbulo da Declaração de Direitos, quando se tem a afirmação de que a ignorância, a omissão ou o desprezo constituem as causas dos infortúnios públicos ou da corrupçãodos governos.Apesardessaobra,legadapelos constituintes, ter sido imensa por abranger todos os aspectos político, administrativo, religioso e econômico, o ensaio de monarquialiberalinstituídapelaConstituiçãode1791 teriacurtaduração.Atendênciarepublicanasetornava cada vez mais forte no seio da Revolução Francesa.Os jacobinos eram os mais fervorosos defensores da instalaçãodaRepúblicacomogarantiaparaaefetivação de uma revolução democrática. Assim, em 1792, após nova revolução popular, são introduzidos os decretos queirãorevogarosprincípiospreconizadoresdaprimeira Constituição revolucionária. A partir de setembro de 1792, a França passa a constituir-se em uma República una e indivisível. E é neste novo contexto da história política pósrevolucionário que surge Robespierre como figura dominante,trazendoemsuasaçõesostraçosdasidéias de Rousseau. Chegara o momento em que “oschefes montanheses,osjacobinossobretudo,seesforçavamparadarà realidadenacionalumconteúdopositivocapaz deincorporar asmassaspopulares” (SOBOUL, 1981:239). Robespierre anunciava uma nova organização política, capaz de realizar a unidade revolucionária do Terceiro Estado. A realeza está aniquilada, a nobreza e o clero desapareceram, o reinado da igualdade começa. Era Políticas Públicas e Sociedade 13 Fátima Maria Leitão Araújo evidente, portanto, a vontade dos jacobinos, principalmente de Robespierre, em criar um governo sustentado na soberania popular. Legislativo submete os projetos de lei ao parecer das assembléias primárias, e, dependendo de seus votos, é que esses projetos passarão a lei. A 24 de junho de 1793, é votada a primeira Constituição republicana da França, a chamada Constituição do ano I, adotada pela Convenção após tersidoaprovadaporumplebiscito.AnovaConstituição era precedida por uma Declaração de direitos que em sua essência ia mais longe do que a de 1789 e proclamando em seu artigo primeiro que “a meta da sociedadeéafelicidadecomum”. A partir de tal concepção, passa-se à elaboração da teoria que justificaria a nova ordem política. No artigo quarto, tem-se que: “La loi est l’expression libre e solemnelle de la volonté générale” (cf. DUVERGER, s/d). O enunciado desse artigo já traz uma conseqüência: sendo a lei a expressão livre da vontade geral, a mesma terá que ser igual para todos. Aqui, o alcance da lei se estende a um rumo muito mais profundo do que a simples legitimação da igualdade natural e civil do homem. Ela é quem vai darênfaseàidéiadeRousseausobreoobjetivoessencial do governo, ou seja, o de funcionar como um agente para promover, segundo os rumos da vontade geral, a execução das leis. Para que ocorra o exercício legítimo doPoderExecutivo,énecessárioquesecoloquecomometade qualquergovernoaproteçãodaliberdade.Noartigo9ºdessa Declaração de Direitos, encontramos a síntese de tais idéias: Laloidoitprotégerlalibertépubliqueetindividuellecontrel’opression deceuxquigouvernent” (cf. DUVERGER,s/d). Masahistórianosofereceacomprovaçãodeumaprática que se distancia, demasiadamente, do ideal dessa Constituição. A hostilidade dos jacobinos, principalmente de Robespierre, contra o governo que não fosse o sustentado pela soberania popular não os impediria de cair em uma inevitável ditadura. A separação de poderes assume um novo caráter nesta Constituição, pois não prevalece mais a teoria de Montesquieu, mas sim a idéia de Rousseau, a partir do estabelecimentodahierarquiadospoderes,obedecendo a uma ordem de relevância onde o Poder Legislativo ocupava o ápice da pirâmide. A separação dos poderes passou a ser tão restrita que se tornara quase imperceptível, isto em razão do enlace de atribuições, envolvendo esses poderes em uma espécie de complementação vertical de funções. Dando ênfase à idéiadequeoPoderExecutivo,napessoadogovernante, não dispõe de outra força senão o poder legislativo, foi estabelecido o sufrágio universal e não mais o sufrágio restrito e censitário da Constituição anterior. A população passa a ser, segundo o artigo 21, a única basedarepresentaçãonacional.Ademais,sendoopovo a fonte essencial do poder soberano, este é responsável pela nomeação imediata de seus deputados e pela deliberação das leis. Assim, a ratificação das leis tornase uma competência do próprio povo, visto que o 14 Políticas Públicas e Sociedade Assim,nodizerdeCROSSMAN(1980:94),Robespierre “utilizouoterrorparasupriracontra-revoluçãoeimpôsuma Constituição,modelodedemocraciaincorruptível,quesóexistiu no papel”. E foi dessa forma que as circunstâncias históricasdeterminaramorumodaforçarevolucionária, pois,àmedidaqueaRevoluçãoFrancesaavançava,seus adeptos tinham de enfrentar a sombria perspectiva de lutar, sozinhos e desamparados, em duas guerras simultâneas:umaguerracivilcontraosdesafetoseuma guerra estrangeira contra as potências coligadas da Europa.Essaduplacriseconcorreubastanteejustificou até o fato dos jacobinos terem assumido poderes ditatoriais. Tambémobrigouosfrancesesaumapolítica de interminável guerra contra o estrangeiro, primeiro defensiva depois agressiva, que culminou na ditadura militar de Napoleão. Após estudos sobre a literatura francesa pósrevolucionária, é possível afirmar que antes da Revolução os franceses amavam sua terra, sua língua, eram xenófobos convencidos de sua superioridade e imbuídosdaprópriaglória.Masnãotraziamdentrode si a representação de Nação como pessoa “superhumana”quepudesseconstituir“objetodeculto”.Esse culto vai criando formas autênticas na proporção em que a Revolução toma cada vez mais consistência, atravésdaevoluçãodomovimentoedaconscientização da necessidade do estabelecimento das instituições representativas. Mas somente com a própria evolução do processo democrático é que poderia surgir a convicção da necessidade da estruturação da nação e da representação nacional em toda a sua extensão. Ademais,essaidéiadessanaçãosemanifestarácomtoda intensidade na materialização do exército nacional ou nanaçãoarmada.Eénanovidadedessaexpressãoque NapoleãoBonapartetentaráfundamentaroseuimpério. AconsolidaçãodoEstadoimperialistadeNapoleãonos levaameditarsobretodoomanancialdecontribuições das idéias de Rousseau e Sieyès, para o processo Idéias antagônicas na Revolução Francesa: Rousseau e Sieyès nas origens do Estado francês revolucionário e a conseqüente formação do Estado francêscontemporâneo.Entretanto,apesardoImpério napoleônico ter representado uma parada na evolução dasidéiasrevolucionárias,foiNapoleãoumdosmaiores responsáveis pela estruturação administrativa, que levariaàsedimentaçãodasinstituiçõesdofuturoEstado republicano. É notório, pois, que as idéias de Rousseau e Sieyès imprimiriam as suas marcas na estruturação doEstadofrancêscontemporâneoeaidéiadeliberdade ressurgirá mais forte depois dos recuos que a marcha dosacontecimentoslheimpusera. Acomplexidadedaidéiaderepresentaçãonacional,tão magnificamentearquitetadaporSieyèsemsuabrochura Qu’Est-CequeLeTiersÉtat?, encontra-senaíntegranos Títulos XI e XII da atual Constituição da França. No artigo 72 do Título XI, que trata das Coletividades Territoriais,afirma-seque: “estascoletividadesterãoliberdade deadministrar-seasiprópriasmedianteconselhoseleitosdentro dascondiçõesprevistasporlei” . Maisadiante,seenfatizaque “nosdepartamentosenosterritórios,odelegadodogovernoestará encarregadodosinteressesnacionais...”. A vigorosa doutrina de Sieyés encontra a sua referência máxima na conceituação de comunidade e sua respectiva esfera de competência.Por conseguinte, o papeldacomunidade na Constituição da 5ª República seria o de tornar possível a idéia que Sieyès tinha sobre a legítima representação política. Para este, a nação deveria ser consultada em todos os momentos da vida política. Com o seu princípio de “governo do povo, pelo povo e para o povo “, a Constituição da 5ª República francesa pôde estabelecer a ordem necessária para que a Nação pudesse usufruir do legado ideológico da Revolução de 1789. E foi em Rousseau que a Constituição de 1958 encontrou a fundamentação de sua democracia social. Nesta Constituição se cumpre rigorosamente a teoria política do autor de O Contrato Social sobre a relação entre os poderes do Estado. A rígida separação de poderes nos moldes de Montesquieu não encontrou respaldo nesta Constituição. Ao Poder Legislativo, representadopeloParlamento,élegadoummanancial significativo de atribuições. O Parlamento se compõe da Assembléia Nacional e do Senado. O Poder Executivo complementa as atribuições do Legislativo. Como em Rousseau, o Poder Executivo está muito ligado ao Legislativo, pois o primeiro não poderá ser outra coisa senão a força a serviço da vontade geral; deverãotão-somenteseencarregardaexecuçãodasleis e da manutenção da liberdade. Quanto ao Poder Judiciário, embora se afirme, no artigo 64, que “o presidente da República garante a independência da autoridade judicial”, poderemos comprovar, mais adiante, que este funciona como um poder que complementa o Executivo, estando o primeiro totalmente atrelado ao segundo. Assim, a partir do momento em que os homens da RevoluçãoFrancesapassaramadizerqueopoderresidia no povo, a força que emanava dessa verdade arrasara completamente as instituições do Ancien Régime. As idéiasmestrasqueenalteciamaunidadedoEstadocomo um todo social sagrado; da soberania do povo; da lei como expressão da vontade geral e da representação nacional como legítima representação política, inspirariam os constituintes de 1789, triunfando sobre as ruínas da França absolutista, resistindo aos golpes nagrandecaminhadahistóricae,conseguindo,porfim, permanecerem mais vivas do que nunca no Estado francês contemporâneo. No Texto constitucional da 5ª República,emplenovigoremnossosdias,encontramos essacategóricaconfirmação. 3 Considerações finais DepoisdemuitasreviravoltasnahistóriadaFrançapósrevolucionária, ressurgem com maior nitidez as idéias que deram vida ao processo revolucionário. Faz-se presente o manacial doutrinário de Rousseau na vida constitucional e prática desta Nação francesa. Ao povo soberanoédadoopoderdedecidirsobreosdestinosde sua nação. A Constituição foi proposta pelo governo, mas o povo é quem foi o responsável pela sua adoção, através do referendum de 28 de setembro de 1958. A prática do referendum, adotado desde a Constituição jacobina de 1793, é bem o esforço de se pôr em prática as idéias de Rousseau no que tange à concepção da “vontade geral” como única fórmula de representação política. No Preâmbulo da Constituição da 5ª República francesa, “o povo francês proclama solenemente sua adesão aos direitos humanos e aos princípios da soberania nacional tais como foram definidos pela Declaração de 1789, confirmada e completadapeloPreâmbulode1946”.Adivisadanova República é “liberdade, igualdade e fraternidade” e, segundo o artigo 2º, a França é “uma República indivisível, leiga, democrática e social”, república esta que tem como prática doutrinária a representação nacional, idéia enfatizada largamente no conteúdo ideológico da primeira Constituição revolucionária. No artigo 3º, fica evidente a intocabilidade do princípio Políticas Públicas e Sociedade 15 Fátima Maria Leitão Araújo dessasoberania:“asoberanianacionalpertenceaopovo que a exerce através de seus representantes e por meio do referendum “. Como se observa, a idéia de representaçãonacionaldeSieyèsécomplementadapela de representação popular de Rousseau, já que a soberaniadestaNaçãosópoderáserexercidapelopovo por meio do sufrágio universal. CHEVALIER, J. J. As Grandes Obras Políticas, de MaquiavelaNossosDias. Tradução de Lydia Christina, RJ, Livraria agir Editora, 1986. _______________. HistoriedesInstitutionsPolitiquesde la France, de 1789 a Nous Jours. Paris, Librarie Dalloz, 1952. Ficapatente,pois,queacoexistênciapacíficaeasidéias deRousseaueSieyèsnoseiodaDeclaraçãodeDireitos, embora que se processando de forma contraditória, desembocaria em um tumultuoso percurso da vida constitucional francesa. Em cada fase da história revolucionáriaseverificaumconstanteconfrontoentre essas idéias. E, a despeito de se apresentarem antagônicas,promoveramaunidadedoEstadofrancês contemporâneo. CROSSMAN, R. H. S. BiografiadoEstadoModerno. S. Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1980. Nestalongatrajetóriaconstitucional,observamosaluta incessante de uma nação que buscava a estruturação de suas instituições para construir uma sociedade política longe de qualquer resquício do AnciénRégime. E mesmo quando a liberdade e a igualdade estavam ameaçadas, como no caso da ditadura jacobina, isto não significaria a aniquilação desse esforço em busca do ideal preconizado pela Revolução de 1789. A III República depois de 1875, se propõe a retomar o mais lídimo ideal revolucionário. DUVERGER, Maurice. Constitutions et Documents Politiques. Paris,PressesUniversitariesdeFrance,s.d. E após o aniquilamento da FrançanaSegundaGuerra Mundial, ainda então, ela teve forças para se reerguer e,emmeioaopredomínioportodaaEuropadasidéias socialistas,elasemantémfielàsidéiasqueprevaleceram em sua Revolução já então quase bissecular. A Constituição de 1958, como vimos, mantém-se na tradiçãodoconstitucionalismofrancês.Apartirdeentão, Sieyès e Rousseau se fundem na idéia de soberania nacional e popular, imprimindo suas marcas na vida política da França hodierna. Bibliografia ARENDT, Hannah. Da Revolução. Tradução de Fernando D. Vieira,S.Paulo,EditoraÁticaS/A e UNB, 1988. BOBBIO, Norberto. LiberalismoeDemocracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira, S. Paulo, Ed. Brasiliense, 1988. 16 Políticas Públicas e Sociedade CUNHA, F. Whitaker. RepresentaçãoPolítica e Poder. 2ª ed. Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 1981. DURANT, Will e Ariel. RousseaueaRevolução.AHistória daCivilização, v. X,RiodeJaneiro,DistribuidoraRecord de Serviços de Imprensa S. A. , s. d. FRANÇA. Constituição. Rio de Janeiro, Edições Trabalhistas S. A. , 1987. GROENTHUYSEN, B. Philosophie de la Révolution Française. Paris, Editions Gonthier, 1956. JOUVENEL,Bertrandde. AsOrigensdoEstadoModerno. UmaHistóriadasIdéiasPolíticasnoSéculoXIX. 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