Idéias antagônicas na Revolução Francesa: Rousseau e Sieyès nas

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Idéias antagônicas
na Revolução
Francesa: Rousseau
e Sieyès nas origens
do Estado francês
contemporâneo
RESUMO
Fátima Maria Leitão Araújo(*)
Ofulcrodaquestãoanalisadanesteartigoéainfluência
das idéias iluministas na elaboração do arcabouço
ideológicoejurídicodaRevoluçãoFrancesa,bemcomo
doEstadofrancêspós-revolucionário.Apósminucioso
estudo sobre os principais documentos políticos e
constituições francesas, de 1789 a 1958, foi possível
identificar as idéias de Rousseau (Representação
Popular)easdeSieyès(RepresentaçãoNacional)como
idéiaspolíticasdoséculoXVIII,que seergueramsobre
as demais, tendo influência decisiva e incisiva na
RevoluçãoFrancesae,porconseguinte,naestruturação
doEstadofrancêscontemporâneo.
ABSTRACT
The aim of the question analysed in this article is the
influence of illuminist ideas in the elaboration of the
ideological and legal struture of FranceRevolution,as
the post - revolutionary French. State. After detailed
studyaboutthemainpoliticaldocumentsandFrench
Constitutions from 1789 to 1958, it as been possible
to indentify Rousseau’s (popular representation) and
Sieyès’s (national representation) ideas, while political
ideas from the 18th century that have risen over the
others, influencing directly in FrenchRevolutionand,
consequently, in the elaboration of contemporany
FrenchState.
Palavras-chave:Revolução Francesa, idéias políticas,
representação popular, representação nacional,
constituição.
Keywords:French Revolution, political ideas, popular
representation,nationalrepresentation,constitution.
(*)Professora do Curso de História da FECLESC e UECE. Diretora da
FECLESC-UECE.
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Fátima Maria L.Araújo
À guisa de introdução
É conhecido que o enciclopedismo do século XVIII
enaltecia o homem como ser racional. Quanto à
filosofia política do enciclopedismo, ela tinha por
objetivo a justificação do despotismo esclarecido, mas
enfatizava que a liberdade se exprimia pela
propriedade, estando esta inteiramente
compactibilizadacomomonarca,comoemHobbes. Por
outro lado, a crítica do absolutismo, em França, vai
terseusexpoentesemMontesquieueRousseau,tantas
vezescolocadoserroneamenteentreosenciclopedistas
por autores desavisados de manuais de História. O
autor de O Espírito das Leis só entende como
monarquia legítima a que se encontrava subordinada
àsleis.Rousseauvaimaislongeem OContratoSocial,
elaborando sua doutrina com as idéias de liberdade e
de igualdade, estabelecendo em definitivo a noção de
soberania popular e a de vontade Geral.
Estando à margem do Enciclopedismo, Montesquieu
e Rousseau ligavam-se a este somente naquilo que
tocava a precedência da razão. Em um, a monarquia
era posta em valor, mas devia ser relativa à lei, nunca
absoluta, mesmo que em nome da razão; em outro, a
monarquia era inconcebível, porque a soberania era
popular e o governo devia resultar da vontade geral.
EmlinhaparalelaàsidéiasdeMontesquieueRousseau,
surgiu em França um pensamento político em defesa
dodireitodoEstadofrancêsemfacedopodersoberano
do rei. Tal defesa é formulada por Mably, um francês
convicto dequeaFrançatrazemsuahistóriaaraizda
liberdade nacional, cujo ponto mais recuado está em
Carlos Magno. Defende, em suma, uma monarquia
democrática,segundoaqualosreisdeveriamgovernar
o menos possível. Foi, portanto, Mably um dos
primeirospensadoresarejeitarafórmuladedespotismo
esclarecido patrocinado por Voltaire.
Mas, vai ser com a emergência de Sieyès, quando da
convocação dos Estados Gerais, que a idéia de nação
passará a ter grande vigor. Sieyès estabelece a idéia de
representaçãonacionalesuainfluênciabalizaráasfases
inicial e final da Revolução Francesa. A sua brochura
Qu’est–cequeleTiersÉtat? é bem o esforço de se tentar
arupturadefinitivadosgrilhõesdasinjustiçasnaordem
social e política vigente na FrançaAbsolutista.Assim,
dentre essas idéias francesas do século XVIII, as de
Rousseau e as de Sieyès se erguerão sobre as demais,
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Políticas Públicas e Sociedade
tendoinfluênciadecisivanaRevoluçãoFrancesae,por
conseguinte, na estruturação do Estado francês
contemporâneo. É o que veremos no presente
trabalho.
1 A idéia de representação
política em Rousseau e
Sieyès
EmOContratoSocial,Rousseaupropõeasoluçãopara
o problema fundamental da vida do homem, ou seja,
aautoconservaçãocomosersocial.É,pois,noContrato
que se encontra a forma de associação que defende e
protege de toda força comum a pessoa e os bens de
cadaassociado,epelaqual, “cadaum,unindo-seatodos,
nãoobedeçaportanto,senãoasimesmo,epermaneçatãolivre
comoanteriormente” (ROUSSEAU,s/d:30)Aessênciado
contrato de Rousseau resume-se em cláusula única:
alienação total de cada associado com todos os seus
direitos em favor de toda a comunidade. Deste modo,
cada associado põe em comum sua pessoa e toda
autoridadesobosupremocomandodavontadegeral.
Somente essa vontade geral é que tem possibilidades
de dirigir as forças do Estado. Assim sendo, Rousseau
não se presta a ser o filósofo do individualismo, pois
“apontou como papel do Estado reprimir os abusos da
propriedade individual e manter o equilíbrio social pela
legislação sobre a herança e pelo imposto progressivo”
(SOBOUL, 1981). Essa tese igualitária, tanto no
domínio social quanto no político, era coisa nova no
século XVIII, e opunha irremediavelmente Rousseau
aVoltaire, bem como aos enciclopedistas.
ParaRousseau,ocontratosocialnãoéumcompromisso
de governados para obedecer o governante, como no
de Hobbes, mas um acordo entre indivíduos para
subordinar “seus julgamentos, direitos e poderes às
necessidadesejulgamentosdesuacomunidadecomoumtodo.
Cadapessoaimplicitamenteparticipadetalcontratoaoaceitar
aproteçãodasleiscomunitárias” (DURANT, s.d: 176). A
vontade popular, que para Rousseau se traduz em
“vontade geral”, foi levada tão a sério e tão
literalmente que nos leva a afirmar que, para este
filósofo,anaçãochegouaserconcebidacomo “umcorpo
animadoporumasóvontade,àfeiçãodeumindivíduo,que
também pode mudar de direção a qualquer momento, sem
perder sua identidade” (ARENDT, 1988:61). Essa
vontade una é resultado da soma das vontades
individuais e, por isso, jamais haverá lugar, na teoria
de O Contrato Social, para o culto ao individualismo,
Idéias antagônicas na Revolução Francesa: Rousseau e Sieyès nas origens do Estado francês
pois “...seulelavolontépeutédicterdeslois,lavolontégénérale
qui,impersonnelledeparsa nature,nepeutvouloirquecequi
estdansl’intérêtdetous” (GROENTHUYSEN, 1956 ).
A partir da estruturação de seu contrato, Rousseau
formula a idéia de representação política. Estado
legítimoéaqueleemqueopovoexercesoberanamente
o Poder Legislativo. O princípio da vida política está,
portanto, na autoridade soberana. Segundo Rousseau,
O Poder Legislativo é o coração do
Estado; o Poder Executivo é o cérebro
quepõeemmovimentotodasaspartes.
O cérebro pode ser atingindo pela
paralisiaeoindivíduocontinuaraviver
ainda... Mas tão logo o coração deixe
de funcionar, o animal perece
(ROUSSEAU,s/d:91)
Conclui-sequesomentesubsistiráoEstado,comaplena
existência do poder legislativo. O soberano, o povo, não
dispõedeoutraforçasenãoopoderlegislativo;sópoderá
atuar pelas leis, ademais, “nãosendoasleismaisqueatos
davontadegeral,nãopoderiaosoberanoagirsenãoquandoo
povo se encontra reunido” (ROUSSEAU, s/d:91).
Constituindo-seasoberaniaessencialmentenavontade
geral, não poderá a mesma ser representada pois:
osdeputadosdopovonãosão,nempodem
serseusrepresentantes;sãoquandomuito
seus comissários e nada podem concluir
definitivamente.Sãonulasas leisqueo
povo não tenha ratificado, deixam de
serleis” (ROUSSEAU, s/d:96).
Paraoautorde OContratoSocial, aidéiaderepresentação
é uma criação moderna, pois, nas antigas repúblicas o
povo jamais teve representantes. Diante de tal
afirmativa, se edifica a idéia de soberania popular,
expressãomáximadavontadegeral,queparaRousseau
é “avontadeconstantedetodososmembrosdoEstadoeque
devido a ela é que se tornam eles cidadãos e livres”
(ROUSSEAU, s/d:106). Essa vontade geral não é
simplesmenteavontadedetodos.SegundoDurant(s/
d:176), ela é “avontadedacomunidadedeterumavidae
uma realidade além das vidas e das vontades dos membros
individualmente...Suacaracterísticaédadanãoapenaspelas
vontadesatuais,maspelahistóriapassadaefuturosobjetivos
dacomunidade”.Assim,paraRousseau,asoberania não
poderáserrepresentadapelamesmarazãoquenãopode
ser alienada. O povo submetido às leis deve ser o seu
autor. As leis seriam feitas pelo povo nas Assembléias
Gerais,eestasassembléiasdeveriamficarinvestidasdo
poder de reconduzir os candidatos eleitos. “Daí o
Estadoidealteriadesersuficientementepequenoafimde
permitir que os cidadãos se reunissem com freqüência”
(DURANT,s/d:178).
É latente em Rousseau a elaboração da idéia de uma
soberania ilimitada. A imensidão do poder social
encontra no povo, através da vontade geral, a sua
representação.Mascomoseriapossívela exequibilidade
de tal representação? O problema encontra a solução
naidéiadovotopopular,poissomenteovotopermitirá
que cada cidadão seja sempre livre, ao mesmo tempo
que assegurará a concretização das leis como ato do
consentimento de todos. Ademais, “cadaqual,dandoo
seuvoto,profereoseuparecer,edocálculodosvotosextrai-sea
declaraçãodavontade” (ROUSSEAU, s/d:107). A idéia
de representação popular como única representação
legítima só poderá existir na medida em que encontrar
na vontade do povo a base de toda autoridade
governamental.SegundoCrossman “Rousseauatribuia
talvontadeumasoberaniatãoabsolutaquantoaatribuída
por Hobbes a seu Leviatã” (CROSSMAN,1980:86)
entendendo-se que o Leviatã de Hobbes expressa a
vontadedomonarca.Háqueopovorepresentar-seasi
mesmo para garantir a sua soberania.
Em oposição à idéia de representação popular de
Rousseau, ergue-se a noção de representação nacional
formulada, já às portas da Revolução Francesa, por
Sieyès.Partindodaconcepçãodenaçãocomooresultado
deumaleicomumeumarepresentaçãocomum,Sieyès
conclui que a França não constituía uma nação, pois
na mesma só se tinha a proteção da lei comum. No
Terceiro Estado encontrava-se, portanto, tudo o que é
preciso para formar a nação. Mas,
éprecisoentendercomoTerceiroEstado
oconjuntodoscidadãosquepertencem
à ordem comum; tudo o que é
privilegiado pela lei, de qualquer
forma,saidaordemcomum,constitui
uma exceção à lei comum e,
consequentemente, não pertence ao
TerceiroEstado... (SIEYÈS,1988:72)
SieyèsencontranoTerceiroEstadoaplenaestruturação
danação.OTerceiroEstadoéapróprianação. “Anação
éaorigemdetudooqueexiste;nasuavontade encontra-se a
legalidade; ela é a própria lei, antes dela e acima dela só
Políticas Públicas e Sociedade
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Fátima Maria Leitão Araújo
existe o direito natural” (SIEYÈS, 1988:117). Sendo a
vontade nacional a origem de toda legalidade, ela se
formará unicamente pelo direito natural. Assim é que
Sieyèsdistinguetrêsépocasnaformaçãodassociedades
políticas:aprimeirasecaracterizapelojogodasvontades
individuais, cuja obra é a associação; na segunda temse a ação da vontade comum; na terceira, não é mais a
vontade comum que age, mas sim a vontade comum
representativa.Emsuaessência,
... a nação é tudo o que ela pode ser
somentepeloqueelaé.Nãodependede
suavontadeatribuir-semaisoumenos
direitos que ela tem. Mesmo em sua
primeira época, ela tem os direitos
naturaisdeumanação.Nasegunda,
elaosexerce;naterceira,elafazexercer
pormeiodeseusrepresentantes tudoo
queénecessárioparaasuaconservação
e a da ordem na comunidade”
(SIEYÈS, 1988:118).
Para Sieyès o verdadeiro objetivo de uma assembléia
nacional é anular todas as influências do interesse
particular. O fim da assembléia representativa de uma
nação terá que coincidir com os interesses e os fins da
próprianação,poisavontadedeumanação nadamais
édoque “oresultadodasvontadesindividuais,comoanação
éareuniãodeindivíduos.Éimpossívelconceberumaassociação
legítimaquenãotenha,comoobjetivo,asegurançacomum,a
liberdade comum, enfim, a coisa pública” (SIEYÈS,
1988:141). A participação ativa dos cidadãos na vida
política e na formação da lei social, ou seja, a sua
qualidadederepresentávelsemanifestanodireito,esse
que todos possuem não por deter qualquer privilégio,
mas simplesmente por ser cidadão. Por essa razão, a
Assembléia Nacional, e aqui vem uma significativa
conseqüência, não é feita para se ocupar dos assuntos
particulares dos cidadãos. Ela os considera como uma
massa e sob o ponto de vista do interesse comum. E
adverte Sieyès: “Tiremosdaíaconseqüêncianatural:queo
direitodefazer-serepresentarsópertenceaoscidadãosporcausa
dasqualidadesquelhessãocomunsenãodevidoàquelasque
osdiferenciam” (SIEYÈS, 1988:144). Épatentetambém
aí a negação do individualismo.
A definição de nação e a conseqüente elaboração do
entendimento de representação política em Sieyès,
origina-se, segundo Fernando Whitaker da Cunha
(1981:58), da “necessidade de uma época em criar um
eufemismo,para justificaraimpossibilidadedeopovogovernar
10
Políticas Públicas e Sociedade
diretamente e de criar, a bem dizer, uma teoria civilista do
direito público”. Portanto, somente na representação
nacional é que se encontra, segundo Sieyès, a
fundamentação para a legalidade política.
Rousseauarquitetouasuaidéiaderepresentaçãopolítica
no princípio da soberania popular. A representação,
para ele, só encontra legitimidade no mandato
imperativo.Contrapondo-seàidéiadeRousseau,afirma
categoricamenteSieyèsqueoprincípiodetodasoberania
resideessencialmentenanação.Eésomenteatravésde
representantes extraordinários que a nação poderá
expressar a sua vontade. O Terceiro Estado formaria,
portanto, uma Assembléia Nacional, onde os seus
representantes seriam os legítimos depositários da
vontadenacional.Rousseaunãoconcebealegitimidade
dasociedadepolíticaatravésderepresentaçãodelegada;
o termo democracia é por ele empregado como um
governo no qual todas as leis são feitas por todo o povo
reunido em assembléias gerais ... “Rousseau rejeita a
democracia representativa sob a alegação de que os
representantes iriam logo legislar em razão de seus
próprios interesses ao invés do bem da população”
(DURANT,s/d:178).EmSieyès,oTerceiroEstadopode
considerar-se sob dois aspectos: “Noprimeirosevêcomo
uma ordem. No segundo, ele é a nação. Como tal, seus
representantesformamaassembléianacional:têmtodososseus
poderes.Comosãoosúnicosdepositáriosdavontadegeral,não
têmnecessidadedeconsultarseusconstituintessobreumadissensão
quenãoexiste”(SIEYÈS,1988:139). Este ponto é , pois,
o fulcro da divergência entre as idéias de Rousseau e as
de Sieyès. E essas idéias entrarão em confronto no
processoestruturaleconjunturaldaRevoluçãoFrancesa.
2 Representação nacional e
representação popular.
Coexistência das idéias
políticas de Sieyès e
Rousseau
no
curso
revolucionário
2.1 A Assembléia Nacional da
França e a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão
As palavras de Sieyès, em sua brochura QueéoTerceiro
Estado?,encontramaudiênciaevãoserdecisivasparao
estabelecimentodaAssembléiaNacionalnaFrança.Para
Sieyès,oTerceiroEstadojánãoeramaisaordemserva,
como antigamente. O Terceiro era tudo, a nobreza não
passavadeumapalavra.EleachavaqueoTerceiroteria
Idéias antagônicas na Revolução Francesa: Rousseau e Sieyès nas origens do Estado francês
queadquirirosseusdireitospolíticos,promovendopor
seus próprios esforços a estruturação nacional. Suas
palavras foram incisivas e decisivas “Vão dizer que o
TerceiroEstadosozinhonãopodeformarosEstadosGerais.
Ainda bem: ele comporá uma Assembléia Nacional”
(SIEYÈS, 1988:133). A concretização de tais idéias se
materializava no fato histórico de 1789. É
estabelecida a Assembléia Nacional da França e em
pouco tempo nasceria o inusitado documento da
DeclaraçãodosDireitosdoHomemedoCidadão.Com
estasãodelineadososprincípiosfundamentaisdanova
ordem social e política. A mesma servirá de
fundamento para todas as constituições ulteriores,
proporcionando, dessa forma, o alicerce para a
construção do novo Estado. Em tal proclamação
encontraremosaslinhasmestrasdasidéiasdaRevolução
Francesa.Emcadaartigo,comprovam-seasinfluências
das idéias que foram, sem sombra de dúvidas, os
principaisagentesdoprocessotransformador.
No título do documento encontraremos, de imediato,
as influências das idéias de Rousseau, pois além dos
direitos do homem, vem a ênfase nos direitos dos
cidadãos. Em Rousseau tem-se que: “aessênciadocorpo
político está no acordo da obediência e da liberdade, e estes
termosvassaloesoberanosãocorrelaçõesidênticas,cujaidéiase
reúnesobumúnicoconceito:cidadão”(ROUSSEAU,s/d:93).
Temos, pois, a estruturação da vida civil, o homem
passando a usufruir dos seus direitos de cidadania, a
sua qualidade de cidadão passando a ser algo de fato.
Mas é no artigo primeiro da Declaração que o espírito
dasidéiasrousseaunianassefirmaráparaajustificação
da instituição do novo Estado. Proclama esse artigo
que: “Oshomensnascemlivreseiguaiscomrespeitoaosseus
direitos; por conseguinte, as distinções civis somente podem
fundar-se na utilidade pública” (cf. PAINE, 1964). É
exatamenteemRousseauque encontraremosasidéias
de liberdade e igualdade como conseqüência da
naturezahumana.Ademais, “havendo nascidotodoslivres
eiguais,nãoalienamaliberdadeanãoseremtrocadesua
utilidade”(cf. PAINE, 1964) EstáRousseauinteironesse
artigo primeiro da Declaração.
Paine afirma que nos três primeiros artigos da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
encontram-se a base de toda a liberdade:
Nenhumpaíspodedizer-selivreseseu
governo não se fundamenta nos
princípiosqueelescontémenãocontinua
apreservá-lospuros,etodadeclaração
dosdireitosvalemaisparaomundoefará
mais bemdoquetodasasleisenormas
jamais promulgadas (cf. PAINE,
1964:91)
A doutrina dos direitos naturais estava presente na
DeclaraçãodeDireitos,servindocomofundamentação
constitucional. Essa doutrina está contida no artigo
segundo: “Ofimdetodasasassociaçõespolíticaséapreservação
dosdireitosnaturaisdohomem,eessesdireitossãoliberdade,
propriedade, segurança e resistência à opressão” (PAINE,
1964:) Verifica-seaí,narealidade,umacópiadeLocke.
Esseautor, um dos mentores do liberalismo moderno,
parte do Estado de Natureza descrito como um Estado
de perfeita liberdade e igualdade, governado por uma
lei da natureza “que ensina a todos os homens, desde que
desejem consultá-la, que sendo todos iguais e independentes,
ninguém deve provocar danos aos demais no que se refere à
vida,àsaúde,àliberdadeouàsposses” (BOBBIO,1988:12).
Rousseau garante, por sua parte, a liberdade e a
igualdade na vida civil. No artigo quarto da Declaração
é proclamada a fundamentação da liberdade com a
delimitação de seus princípios:
A liberdade política consiste no poder
fazer-setudooquenãoprejudicaoutrem.
Oexercíciodosdireitosnaturaisdetodo
homemnãotemoutroslimites,senãoos
necessáriosparaasseguraraoutrohomem
olivreexercíciodosmesmosdireitoseesses
limitessãodetermináveissomentepela
lei (PAINE, 1964)
Para Rousseau, o pleno exercício desses direitos do
homemsópoderáocorrernoEstadocivil,ondetodosos
direitos são fixados pela lei. E vai mais além, quando
anuncia que o objeto das leis é sempre geral, pois a lei
considera os vassalos em corpo e as ações como sendo
abstratas, jamais um homem como um indivíduo,
nenhuma ação particular. “No tocante a essa idéia, vê-se
imediatamentenãomaisserprecisoperguntaraquemcompete
fazerasleis,poisqueelasconstituematosdavontadegeral”
(ROUSSEAU,s/d:48). No artigo 6º da Declaração de
direitos encontramos, na íntegra, esse conceito de lei
como resultado da vontade geral.
Os artigos da Declaração de Direitos tomam, pois, em
grande parte, as idéias de Rousseau sobre os direitos
com a sua evolução plena para a vida civil. A idéia de
Políticas Públicas e Sociedade
11
Fátima Maria Leitão Araújo
primaziadaleinasociedadeéjustificadaporJeanJacque
Rousseau pelo fato desta representar a expressão da
maioria. Além do mais, “nemopríncipeseencontraacima
dasleis,poiseleémembrodoEstado;nemaleipodeserinjusta,
poisqueninguéméinjustoconsigomesmo” (ROUSSEAU,s/
d:48). SãoflagrantesasinfluênciasdeRousseauparaa
fundamentação da ideologia política e social da
RevoluçãoFrancesa,mas,emconfrontocomessasidéias,
ergue-se,nocontextodessamesmaRevolução,umaidéia
nova. É a idéia de nação de Sieyès, que ademais se vai
erigir como princípio básico da vida política pósrevolucionária. E é no artigo terceiro da Declaração de
Direitos que se tem a exaltação da idéia de nação como
fonte de toda soberania. A partir de então, a idéia de
representação nacional acompanhará todo o curso da
Revolução Francesa. Mas devemos proceder a uma
análise mais atenta do que significa, em essência, essa
idéiaderepresentaçãonacional,vistoque,naDeclaração
de 1789, encontramos o princípio da soberania
nacional. Além do mais, como os constituintes da
Assembléia Nacional irão compatibilizar a idéia
rousseauniana de lei como expressão da vontade geral,
com a de representação nacional de Sieyès?
Como já enfatizado, para Rousseau a soberania só
poderá residir no povo, pois que outra coisa não sendo
a soberania senão “o exercício da vontade geral, jamais se
podealienar...Edamesmaforma,asoberaniaéindivisível,
porque a vontade é geral, ou não é; é a vontade do corpo do
povo...” (ROUSSEAU,s/d:38/39). Enquanto isso, em
Sieyès, a soberania encontra-se na Nação, e a solução
para o exercício de tal soberania está na prática da
representaçãoextraordináriaelivrementedelegada.Os
representantes dessa nação sairiam das circunscrições
que deveriam ser estabelecidas no território nacional,
facilitando, assim, o problema da dispersão de todos os
indivíduos, integrantes da associação política. No dizer
dopróprioSieyès:
Os associados são muito numerosos e
estãodispersosemumasuperfíciemuita
extensa para exercitar eles próprios
facilmentesuavontadecomum.Oque
fazem?Separamtudooqueparavelar
eproveréprecisoàsatençõespúblicas,e
confiam o exercício dessa porção da
vontadenacional,e,consequentemente,
dopoder,aalgunsdentreeles.Essaéa
origem de um governo exercido por
procuração” (SIEYÈS, 1988:115).
12
Políticas Públicas e Sociedade
Com Sieyès tem-se a origem da idéia de mandato livre,
contraomandatoimperativo,deRousseau.Diantedisso,
observamosnaDeclaraçãodeDireitosdoHomemedo
Cidadão o confronto constante das idéias de Rousseau
com as de Sieyès, fazendo surgir contradições que se
compõemnotododetalDeclaração.Masénotórioque
a Declaração dos Direitos perante a Assembléia
Nacional perpetuará a idéia de nação como princípio
de representação política. Segundo Paine, “No exórdio
declaratório que prefacia a Declaração de Direitos, vemos o
soleneemajestosoespetáculodeumanaçãoqueseinaugura,
sob os auspícios do Criador, para estabelecer um governo”
(SIEYÈS, 1988:91)
Dessa forma, a idéia de primazia da lei na sociedade
civil e política; a relevância do Poder Legislativo na
gerência da vida estatal; a soberania nacional e a da lei
como expressão da vontade geral, dentre outros, são
conceitos, que, já presentes na Declaração de 1789,
preparama fundamentaçãodasfuturasconstituiçõesda
Françarevolucionária.Essacongériedoutrináriadecorre
da premência histórica da Revolução. Para Chevalier,
LaDeclarationest,nonseulement,un
catéchismephilosophique,maisc’estaussi
unecondamnationimplicitedesanciens
abus,unecondamntiondesprivilèges;
laloidoitêtrelamême,pourtous,soit
qu’elleprotège,soitqu’ellepunisse.Cette
formuledel’article6estexactamentle
contre-pied
des
privilèges
(CHEVALIER, 1952:28).
O próprio Sieyès, antes de escrever seu mais famoso
panfleto, havia produzido um ensaio contra os
privilégios. A Declaração respondia, de imediato, à
recusadoTerceiroEstadoaosprivilégios,contraosquais,
de fato, se fez a Revolução.
2.2 Os textos constitucionais a
partir de 1791-idéias em
confronto
A obra social da Constituinte estava consumada com a
DeclaraçãodosDireitosdoHomemedoCidadão.Mas
uma preocupação capital se fazia presente entre os
constituintes,ouseja,emconcomitânciacomareforma
financeira e institucional, o estabelecimento de uma
Constituição. Somente a 3 de setembro de 1791, a
AssembléiaNacionalestabeleceriaaslinhasmestrasdo
Idéias antagônicas na Revolução Francesa: Rousseau e Sieyès nas origens do Estado francês
governorevolucionário.EstavaconcluídaaConstituição
que em sua letra, proclama a abolição de todas as
instituições que feriam a liberdade e igualdade de
direitos, idéias já largamente enfatizadas como
princípios básicos da Declaração de Direitos. A obra
políticadessaConstituiçãovemcomocomplementação
do catecismo filosófico de 1789.
A representação nacional à Sieyès é a idéia norteadora
da Constituição de 1791. O artigo primeiro do Título
III declara que: “La souveraineté est une, indivisible,
inalienableetimprescriptible.ElleappartientlaNation;aucune
section du peuple, ni aucun individu, ne peut s’en attribuer
l’exercice” (cf. DUVERGER,s/d).Observamos,aqui,na
verdade, um misto das idéias de Rousseau com as de
Sieyès. A definição rousseauniana de soberania
indivisível e inalienável encontra o seu ponto máximo
nesteartigo.Entretanto,asatribuiçõesdetalsoberania
são dadas à Nação, ficando, dessa forma, transparente
a predominância do conceito de Sieyès como princípio
essencial da representação política.
A Constituição de 1791 tem um caráter conciliatório,
fato esse que a levaria, indubitavelmente, ao
estabelecimentodeumaformadegovernomonárquico,
nos moldes de Montesquieu. Como todos os poderes
emanavam dessa nação, conseqüentemente a vontade
do rei não teria mais força de lei; é o que nos esclarece o
artigo 3º (Cap. II, seção I): “Il n’y a point en France
d’autoritésuperieureàcelledelaloi.LeRoineregnequepar
elle,etcen’estqu’aunomdelaloi,qu’ilpeutexigerl’obéissance”
(cf. DUVERGER,s/d).
Fica patente, pois, que as idéias de Sieyès assumem
significativa predominância no contexto da
Constituição de 1791. Mas, um pouco mais tarde, os
fatos históricos da Convenção trazem em sua essência
asidéiasdesoberaniapopulardeRousseau.Robespierre
fora, na Assembléia constituinte de 1791, fervoroso
defensor dessas idéias e, com sua visão ultra–
democrática, foi o mais ferrenho opositor do
esclarecimentodocensoeleitoral,criadoporSieyés.Em
22 de outubro daquele ano, declarou com efeito
RobespierreàAssembléia:
Todososcidadãos,sejamquaisforem,
têmodireitodeaspiraratodososgraus
de representação. Nada disso está
conformevossaDeclaraçãodeDireitos,
perante a qual todo o privilégio, toda
distinção e toda a execução devem
desaparecer. A constituição estabelece
queasoberaniaresidenopovo,emtodos
osindivíduosdopovo.Cadaindivíduo
tem,portanto,direitodeconcorreràlei,
pelaqualéobrigado,eàadministração
dacoisapública,quelhepertence;caso
contrário,nãoéverdadeirooprincípio
dequetodososhomenssejamiguaisem
direitos, que qualquer homem seja
cidadão(SOBOUL, 1981: 239).
É, pois, nesse contexto ideológico que se apoiarão os
jacobinos para a edificação de um Estado para eles
verdadeiramenterevolucionário.AobradaAssembléia
Constituinte, iniciada com a Declaração dos Direitos
doHomemedoCidadão,éconduzidaobstinadamente
pelos constituintes na tentativa de se reconstruir a
França, através da universalização dos princípios que
norteavam as idéias revolucionárias. Esses princípios
encontram sua expressão ressonante no preâmbulo da
Declaração de Direitos, quando se tem a afirmação de
que a ignorância, a omissão ou o desprezo constituem
as causas dos infortúnios públicos ou da corrupçãodos
governos.Apesardessaobra,legadapelos constituintes,
ter sido imensa por abranger todos os aspectos político,
administrativo, religioso e econômico, o ensaio de
monarquialiberalinstituídapelaConstituiçãode1791
teriacurtaduração.Atendênciarepublicanasetornava
cada vez mais forte no seio da Revolução Francesa.Os
jacobinos eram os mais fervorosos defensores da
instalaçãodaRepúblicacomogarantiaparaaefetivação
de uma revolução democrática. Assim, em 1792, após
nova revolução popular, são introduzidos os decretos
queirãorevogarosprincípiospreconizadoresdaprimeira
Constituição revolucionária.
A partir de setembro de 1792, a França passa a
constituir-se em uma República una e indivisível. E é
neste novo contexto da história política pósrevolucionário que surge Robespierre como figura
dominante,trazendoemsuasaçõesostraçosdasidéias
de Rousseau. Chegara o momento em que “oschefes
montanheses,osjacobinossobretudo,seesforçavamparadarà
realidadenacionalumconteúdopositivocapaz deincorporar
asmassaspopulares” (SOBOUL, 1981:239). Robespierre
anunciava uma nova organização política, capaz de
realizar a unidade revolucionária do Terceiro Estado. A
realeza está aniquilada, a nobreza e o clero
desapareceram, o reinado da igualdade começa. Era
Políticas Públicas e Sociedade
13
Fátima Maria Leitão Araújo
evidente, portanto, a vontade dos jacobinos,
principalmente de Robespierre, em criar um governo
sustentado na soberania popular.
Legislativo submete os projetos de lei ao parecer das
assembléias primárias, e, dependendo de seus votos, é
que esses projetos passarão a lei.
A 24 de junho de 1793, é votada a primeira
Constituição republicana da França, a chamada
Constituição do ano I, adotada pela Convenção após
tersidoaprovadaporumplebiscito.AnovaConstituição
era precedida por uma Declaração de direitos que em
sua essência ia mais longe do que a de 1789 e
proclamando em seu artigo primeiro que “a meta da
sociedadeéafelicidadecomum”. A partir de tal concepção,
passa-se à elaboração da teoria que justificaria a nova
ordem política. No artigo quarto, tem-se que: “La loi
est l’expression libre e solemnelle de la volonté générale” (cf.
DUVERGER, s/d). O enunciado desse artigo já traz
uma conseqüência: sendo a lei a expressão livre da
vontade geral, a mesma terá que ser igual para todos.
Aqui, o alcance da lei se estende a um rumo muito
mais profundo do que a simples legitimação da
igualdade natural e civil do homem. Ela é quem vai
darênfaseàidéiadeRousseausobreoobjetivoessencial
do governo, ou seja, o de funcionar como um agente
para promover, segundo os rumos da vontade geral, a
execução das leis. Para que ocorra o exercício legítimo
doPoderExecutivo,énecessárioquesecoloquecomometade
qualquergovernoaproteçãodaliberdade.Noartigo9ºdessa
Declaração de Direitos, encontramos a síntese de tais idéias:
Laloidoitprotégerlalibertépubliqueetindividuellecontrel’opression
deceuxquigouvernent” (cf. DUVERGER,s/d).
Masahistórianosofereceacomprovaçãodeumaprática
que se distancia, demasiadamente, do ideal dessa
Constituição. A hostilidade dos jacobinos,
principalmente de Robespierre, contra o governo que
não fosse o sustentado pela soberania popular não os
impediria de cair em uma inevitável ditadura.
A separação de poderes assume um novo caráter nesta
Constituição, pois não prevalece mais a teoria de
Montesquieu, mas sim a idéia de Rousseau, a partir do
estabelecimentodahierarquiadospoderes,obedecendo
a uma ordem de relevância onde o Poder Legislativo
ocupava o ápice da pirâmide. A separação dos poderes
passou a ser tão restrita que se tornara quase
imperceptível, isto em razão do enlace de atribuições,
envolvendo esses poderes em uma espécie de
complementação vertical de funções. Dando ênfase à
idéiadequeoPoderExecutivo,napessoadogovernante,
não dispõe de outra força senão o poder legislativo, foi
estabelecido o sufrágio universal e não mais o sufrágio
restrito e censitário da Constituição anterior. A
população passa a ser, segundo o artigo 21, a única
basedarepresentaçãonacional.Ademais,sendoopovo
a fonte essencial do poder soberano, este é responsável
pela nomeação imediata de seus deputados e pela
deliberação das leis. Assim, a ratificação das leis tornase uma competência do próprio povo, visto que o
14
Políticas Públicas e Sociedade
Assim,nodizerdeCROSSMAN(1980:94),Robespierre
“utilizouoterrorparasupriracontra-revoluçãoeimpôsuma
Constituição,modelodedemocraciaincorruptível,quesóexistiu
no papel”. E foi dessa forma que as circunstâncias
históricasdeterminaramorumodaforçarevolucionária,
pois,àmedidaqueaRevoluçãoFrancesaavançava,seus
adeptos tinham de enfrentar a sombria perspectiva de
lutar, sozinhos e desamparados, em duas guerras
simultâneas:umaguerracivilcontraosdesafetoseuma
guerra estrangeira contra as potências coligadas da
Europa.Essaduplacriseconcorreubastanteejustificou
até o fato dos jacobinos terem assumido poderes
ditatoriais. Tambémobrigouosfrancesesaumapolítica
de interminável guerra contra o estrangeiro, primeiro
defensiva depois agressiva, que culminou na ditadura
militar de Napoleão.
Após estudos sobre a literatura francesa pósrevolucionária, é possível afirmar que antes da
Revolução os franceses amavam sua terra, sua língua,
eram xenófobos convencidos de sua superioridade e
imbuídosdaprópriaglória.Masnãotraziamdentrode
si a representação de Nação como pessoa “superhumana”quepudesseconstituir“objetodeculto”.Esse
culto vai criando formas autênticas na proporção em
que a Revolução toma cada vez mais consistência,
atravésdaevoluçãodomovimentoedaconscientização
da necessidade do estabelecimento das instituições
representativas. Mas somente com a própria evolução
do processo democrático é que poderia surgir a
convicção da necessidade da estruturação da nação e
da representação nacional em toda a sua extensão.
Ademais,essaidéiadessanaçãosemanifestarácomtoda
intensidade na materialização do exército nacional ou
nanaçãoarmada.Eénanovidadedessaexpressãoque
NapoleãoBonapartetentaráfundamentaroseuimpério.
AconsolidaçãodoEstadoimperialistadeNapoleãonos
levaameditarsobretodoomanancialdecontribuições
das idéias de Rousseau e Sieyès, para o processo
Idéias antagônicas na Revolução Francesa: Rousseau e Sieyès nas origens do Estado francês
revolucionário e a conseqüente formação do Estado
francêscontemporâneo.Entretanto,apesardoImpério
napoleônico ter representado uma parada na evolução
dasidéiasrevolucionárias,foiNapoleãoumdosmaiores
responsáveis pela estruturação administrativa, que
levariaàsedimentaçãodasinstituiçõesdofuturoEstado
republicano. É notório, pois, que as idéias de Rousseau
e Sieyès imprimiriam as suas marcas na estruturação
doEstadofrancêscontemporâneoeaidéiadeliberdade
ressurgirá mais forte depois dos recuos que a marcha
dosacontecimentoslheimpusera.
Acomplexidadedaidéiaderepresentaçãonacional,tão
magnificamentearquitetadaporSieyèsemsuabrochura
Qu’Est-CequeLeTiersÉtat?, encontra-senaíntegranos
Títulos XI e XII da atual Constituição da França. No
artigo 72 do Título XI, que trata das Coletividades
Territoriais,afirma-seque: “estascoletividadesterãoliberdade
deadministrar-seasiprópriasmedianteconselhoseleitosdentro
dascondiçõesprevistasporlei” . Maisadiante,seenfatizaque
“nosdepartamentosenosterritórios,odelegadodogovernoestará
encarregadodosinteressesnacionais...”. A vigorosa doutrina
de Sieyés encontra a sua referência máxima na
conceituação de comunidade e sua respectiva esfera de
competência.Por conseguinte, o papeldacomunidade
na Constituição da 5ª República seria o de tornar
possível a idéia que Sieyès tinha sobre a legítima
representação política. Para este, a nação deveria ser
consultada em todos os momentos da vida política.
Com o seu princípio de “governo do povo, pelo povo e
para o povo “, a Constituição da 5ª República francesa
pôde estabelecer a ordem necessária para que a Nação
pudesse usufruir do legado ideológico da Revolução de
1789. E foi em Rousseau que a Constituição de 1958
encontrou a fundamentação de sua democracia social.
Nesta Constituição se cumpre rigorosamente a teoria
política do autor de O Contrato Social sobre a relação
entre os poderes do Estado. A rígida separação de
poderes nos moldes de Montesquieu não encontrou
respaldo nesta Constituição. Ao Poder Legislativo,
representadopeloParlamento,élegadoummanancial
significativo de atribuições. O Parlamento se compõe
da Assembléia Nacional e do Senado. O Poder
Executivo complementa as atribuições do Legislativo.
Como em Rousseau, o Poder Executivo está muito
ligado ao Legislativo, pois o primeiro não poderá ser
outra coisa senão a força a serviço da vontade geral;
deverãotão-somenteseencarregardaexecuçãodasleis
e da manutenção da liberdade. Quanto ao Poder
Judiciário, embora se afirme, no artigo 64, que “o
presidente da República garante a independência da
autoridade judicial”, poderemos comprovar, mais
adiante, que este funciona como um poder que
complementa o Executivo, estando o primeiro
totalmente atrelado ao segundo.
Assim, a partir do momento em que os homens da
RevoluçãoFrancesapassaramadizerqueopoderresidia
no povo, a força que emanava dessa verdade arrasara
completamente as instituições do Ancien Régime. As
idéiasmestrasqueenalteciamaunidadedoEstadocomo
um todo social sagrado; da soberania do povo; da lei
como expressão da vontade geral e da representação
nacional como legítima representação política,
inspirariam os constituintes de 1789, triunfando sobre
as ruínas da França absolutista, resistindo aos golpes
nagrandecaminhadahistóricae,conseguindo,porfim,
permanecerem mais vivas do que nunca no Estado
francês contemporâneo. No Texto constitucional da 5ª
República,emplenovigoremnossosdias,encontramos
essacategóricaconfirmação.
3 Considerações finais
DepoisdemuitasreviravoltasnahistóriadaFrançapósrevolucionária, ressurgem com maior nitidez as idéias
que deram vida ao processo revolucionário. Faz-se
presente o manacial doutrinário de Rousseau na vida
constitucional e prática desta Nação francesa. Ao povo
soberanoédadoopoderdedecidirsobreosdestinosde
sua nação. A Constituição foi proposta pelo governo,
mas o povo é quem foi o responsável pela sua adoção,
através do referendum de 28 de setembro de 1958. A
prática do referendum, adotado desde a Constituição
jacobina de 1793, é bem o esforço de se pôr em prática
as idéias de Rousseau no que tange à concepção da
“vontade geral” como única fórmula de representação
política. No Preâmbulo da Constituição da 5ª
República francesa, “o povo francês proclama
solenemente sua adesão aos direitos humanos e aos
princípios da soberania nacional tais como foram
definidos pela Declaração de 1789, confirmada e
completadapeloPreâmbulode1946”.Adivisadanova
República é “liberdade, igualdade e fraternidade” e,
segundo o artigo 2º, a França é “uma República
indivisível, leiga, democrática e social”, república esta
que tem como prática doutrinária a representação
nacional, idéia enfatizada largamente no conteúdo
ideológico da primeira Constituição revolucionária. No
artigo 3º, fica evidente a intocabilidade do princípio
Políticas Públicas e Sociedade
15
Fátima Maria Leitão Araújo
dessasoberania:“asoberanianacionalpertenceaopovo
que a exerce através de seus representantes e por meio
do referendum “. Como se observa, a idéia de
representaçãonacionaldeSieyèsécomplementadapela
de representação popular de Rousseau, já que a
soberaniadestaNaçãosópoderáserexercidapelopovo
por meio do sufrágio universal.
CHEVALIER, J. J. As Grandes Obras Políticas, de
MaquiavelaNossosDias. Tradução de Lydia Christina,
RJ, Livraria agir Editora, 1986.
_______________. HistoriedesInstitutionsPolitiquesde
la France, de 1789 a Nous Jours. Paris, Librarie Dalloz,
1952.
Ficapatente,pois,queacoexistênciapacíficaeasidéias
deRousseaueSieyèsnoseiodaDeclaraçãodeDireitos,
embora que se processando de forma contraditória,
desembocaria em um tumultuoso percurso da vida
constitucional francesa. Em cada fase da história
revolucionáriaseverificaumconstanteconfrontoentre
essas idéias. E, a despeito de se apresentarem
antagônicas,promoveramaunidadedoEstadofrancês
contemporâneo.
CROSSMAN, R. H. S. BiografiadoEstadoModerno. S.
Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1980.
Nestalongatrajetóriaconstitucional,observamosaluta
incessante de uma nação que buscava a estruturação
de suas instituições para construir uma sociedade
política longe de qualquer resquício do AnciénRégime.
E mesmo quando a liberdade e a igualdade estavam
ameaçadas, como no caso da ditadura jacobina, isto
não significaria a aniquilação desse esforço em busca
do ideal preconizado pela Revolução de 1789. A III
República depois de 1875, se propõe a retomar o mais
lídimo ideal revolucionário.
DUVERGER, Maurice. Constitutions et Documents
Politiques. Paris,PressesUniversitariesdeFrance,s.d.
E após o aniquilamento da FrançanaSegundaGuerra
Mundial, ainda então, ela teve forças para se reerguer
e,emmeioaopredomínioportodaaEuropadasidéias
socialistas,elasemantémfielàsidéiasqueprevaleceram
em sua Revolução já então quase bissecular. A
Constituição de 1958, como vimos, mantém-se na
tradiçãodoconstitucionalismofrancês.Apartirdeentão,
Sieyès e Rousseau se fundem na idéia de soberania
nacional e popular, imprimindo suas marcas na vida
política da França hodierna.
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