1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS PERSPECTIVAS SOCIAIS E EDUCACIONAIS DE ROUSSEAU Ademir Quintilio Lazarini* 1- O sentido da obra Hoje, no limiar do Terceiro Milênio, pode parecer um contra-senso discutir a proposta de formação humana enunciada por Rousseau há mais de dois séculos, como pode parecer tarefa vã insistir em estudar um autor sobre o qual se escreveu em quase todas as línguas e cuja obra foi reiteradamente esquartejada e analiticamente esquadrinhada em inúmeros temas e subtemas. Nenhum desses argumentos, no entanto, nos livra de Rousseau. Reintegrado no seu pensamento, que foi pulverizado pela ação devastadora da especialização e tendo a seu favor a história tal como ela se fez, Rousseau se mostra muito atual neste momento de ingresso no século XXI. Com base nessa tese, o presente estudo objetiva reintegrar o pensamento de Rousseau para explicitar a questão sobre a qual o Pensador de Genebra se debruçou, marcando sua singularidade no movimento iluminista do século XVIII, e que continua sendo a questão da nossa época com seu critério de verdade instaurado na prática social. Sem desconsiderar a incalculável literatura existente sobre o autor, esta reflexão parte da premissa de que, para além da leitura de um Rousseau combativo do Antigo Regime no quadro das lutas sociais do século XVIII ou de um Rousseau que confrontou suas idéias com as diferentes perspectivas ideológicas da época, redundando no seu isolamento completo, existe um Rousseau que apontou criticamente para aspectos fundamentais da modelo societário burguês ainda em sua fase embrionária, muito antes, portanto, dela materializar suas contradições mais gravosas, tal como no século XIX, e depois expandi-las de forma cada vez mais globalizada na atualidade. Essa premissa sustenta-se na crítica à fragmentação do ideário rousseauniano ou na incoerência de procurar compreendê-lo distinguindo o educador do literato, do político, sociólogo, antropólogo, romancista e do filósofo. Um exemplo disso pode ser constatado quando se analisa sua perspectiva de formação humana limitada ao Emílio, que é o considerado o seu tratado de educação e, comumente, separado do conjunto de suas obras pelos especialista da área. Professor Assistente do DFE (Departamento de Fundamentos da Educação) – UEM (Universidade Estadual de Maringá. * 2 A extrema especialização promovida pelo desenvolvimento da sociedade capitalista em todos os setores da vida, levou a reboque as análises acerca das questões sociais de qualquer época. A presente reflexão procura fugir dessa lógica, enfocando o conjunto das obras rousseanunianas no quadro geral da sociabilidade do século XVIII e naquilo que elas podem ser úteis para o entendimento da contemporaneidade. Portanto, trata-se de uma discussão que busca abarcar as questões políticas, econômicas, filosóficas e educacionais no interior da totalidade social em que estão inseridas. As propostas educacionais aparecem explicitamente ou implicitamente em vários pontos do conjunto da sua obra. Na realidade, Rousseau procurou tratar as questões educacionais dentro da generalidade da vida. Sua preocupação fundamental era fornecer subsídios que pudessem ser úteis à realização de profundas reformas no conjunto societário. Para ele, somente essas transformações de conjunto poderiam promover uma nova forma de educação. Rousseau não deixou de ser específico ao ser genérico em termos educacionais, pois em várias passagens de seus escritos, criticou veementemente a educação formal de sua época, baseada nos princípios metafísicos da escolástica. Contra ela, utilizou argumentos no sentido de mostrar que não se tratava apenas de uma instituição equivocada que poderia ser reformulada. A questão fundamenta é que o aparato educacional do seu tempo expressava as perspectivas sociais daquela que era um dos sustentáculos fundamentais do Antigo Regime: a Igreja Católica. Por isso, entendia que não se tinha muito o que fazer a partir das instituições de ensino, visto que elas objetivavam formar homens que dessem continuidade a um modelo social anacrônico. Entretanto, não foram apenas as instituições do Antigo Regime que mereceram o repúdio de Rousseau. A emergente sociedade burguesa e suas instituições que se afirmavam com todo o vigor na Inglaterra desde a “Revolução Gloriosa” de 1688, também foram alvo dos ataques críticos rousseaunianos. É nesse ponto que reside a singulariade e atualidade do seu pensamento, pois apontou criticamente para a prevalência dos interesses particulares sobre o interesse social em geral engendrado pela nova ordem social, antes mesmo dela se mostrar por inteiro. Rousseau não problematizou a sociedade emergente em termos meramente maniqueístas. Sua base analítica está fundada na concretude dos fatos produzidos pela burguesia, onde que ela tivesse alcançado a hegemonia econômica e política. A Inglaterra, maior expressão dessa nova ordem, que tanto empolgou os iluministas em meados do século XVIII e que posteriormente serviu de protótipo social às formulações dos economistas políticos clássicos, não empolgou o 3 Pensador de Genebra. Para ele, a sociedade inglesa havia promovido novas formas de dominação econômica e política que escravizava a maior parte dos ingleses, ainda que eles pudessem pensar o contrário. Ao se posicionar enfaticamente como um crítico geral das principais forças sociais da sua época, Rousseau acabou isolando-se dos filósofos que se dividiam entre as duas tendências sociais em curso, isto é, dos absolutistas defensores do Antigo Regime e dos iluministas postados ao lado das práticas sociais burguesas. A singularidade das suas perspectivas deriva exatamente desse ceticismo geral com que encarava as formas de sociabilidade engendradas pela aristocracia (clerical e leiga), com seu ordenamento social baseado em privilégios feudais, como da burguesia, que transformava tudo (inclusive os homens) em artigo de comércio par obtenção de lucro. Rousseau entendia que essas duas formas de egoísmo produziam inexoravelmente uma sociabilidade adversa ao desenvolvimento humano por estarem fincadas na subordinação da coletividade aos interesses particulares. A sua questão fundamental era mostrar que tanto o regime aristocrático como o burguês não seriam capazes de formar e efetivar o homem solidário, entendido por ele como o verdadeiro cidadão. Portanto, tirar dos escritos de Rousseau argumentos a favor da “formação para a cidadania” no interior da atual ordem vigente, significa entrar numa contradição insolúvel com os fundamentos do seu ideário, incorrendo-se numa sofística insustentável. A negação dessa possibilidade foi feita por ele há mais de duzentos anos, quando a burguesia ainda não havia expressado concretamente sua maturação social, que só veio ocorrer em meados do século XIX com a implementação da grande indústria mecanizada. Rousseau afirmava enfaticamente que sob a lógica da nova ordem social emergente em seu tempo, estava surgindo um homem encoberto pela máscara do aparente, dissimulando agir em prol da sociedade em geral, mas na realidade agindo apenas em beneficio próprio. 2. Rousseau e a educação oficial contemporânea Como parte integrante do establishment atual, os sistemas educacionais atuam no sentido de dar sustentação e aperfeiçoar as instituições vigentes. Em que pese as diferenças específicas entre os diversos países, o eixo básico de todos os órgãos responsáveis pela educação estão 4 pautados no sentido de lhe atribuir o papel de regeneradora dos problemas sociais e implementadora de níveis de civilização mais elevados. No Brasil, a nova lei de educação de dezembro de 1996, chamada de LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que se espelha nas leis educacionais dos países mais desenvolvidos, revela essa intenção de colocar a educação enquanto elemento essencial de regeneração e aperfeiçoamento social. Em seu enunciado fundamental a respeito dos “Princípios e Fins da Educação Nacional”, essa propositura aparece nos seguintes termos: Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios e nos ideais da solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (LDB, 1996, p. 1) A tentativa de se atribuir aos sistemas educacionais o papel de mentores das práticas sociais acaba revelando as contradições insolúveis do modelo societário atual, e por conseguinte, a impotência das idealizações enunciadas nos projetos de educação diante de tais contradições. Quando se propões que o sistema de ensino promova a formção do “cidadão” dentro dos princípios da “solidariedade humana”, é porque a sociedade em suas múltiplas relações não pode conseguir realizar isso. Essa impossibilidade deriva exatamente da base sob a qual se estrutura a existência humana na sociedade capitalista, ou seja, o individualismo enquanto expressão cotidiana da perversa lógica competitiva. Portanto, ao se intitularem como agentes dos ensinamentos da “cidadania” segundo os princípios da “solidariedade”, as instituições educacionais nada mais fazem do que repetirem conceitos abstratos sem qualquer possibilidade de aplicabilidade prática. Isso porque, a lógica imanente da dinâmica social rechaça essa perspectiva. Afinal, os interesses individuais não confluem nessa sociedade para o interesse social em geral, ao contrário, eles são colidentes. Os representantes da ordem social vigente não podem admitir explicitamente essa situação, pois se agissem assim, estariam aceitando a falência do status quo. Os subterfúgios ideológicos que utilizam não são simplesmente produto subjetivo da volição, mas sim a única saída que lhes resta. Se fossem reagir com realismo provavelmente seguiriam o caminho apontado pelo escritor francês Max Nordau, quando em fins do século XIX, imaginou uma escola do êxito onde os alunos aprenderiam todos os artifícios da concorrência, da dissimulação, do aprendizado em tirar vantagem em todas as situações, do aproveitamento oportunista em relação à ignorância de 5 outrem, etc. Enfim, se a escola enunciasse e preparasse explicitamente o educando para a vida tal como ela é, seus projetos e enunciados deveriam trazer com síntese última a formação de um pícaro. Isso porque, o valor supremo da sociedade capitalista reside na acumulação da riqueza individual. Algo muito bem caracterizado e explicitado de forma crua e direta pelo mencionado autor. Dois são os modos com os quais o homem pode ser bem sucedido no mundo; um é o de valer-se de sua capacidade, o outro o de aproveitar-se dos erros alheios. (...) O professor estaria plenamente autorizado a falar nos termos seguintes: ‘Não te fatigues para apresentar obras excelentes, não faças falar por ti os teus trabalhos. (...) A multidão tem pouco juízo; impõem-lhe o teu; a multidão é fraca e negligente; guarda-te de seres profundos e de pedir-lhes trabalho mental; a multidão é estúpida: apresenta-te com tal estrépito, que mesmo os ouvidos mais rebeldes te ouçam, os olhos mais preguiçosos e idiotas te vejam; a multidão desconhece a ironia e aceita ao pé da letra tudo quando se lhe diz: fala pois francamente e sobretudo com a maior clareza possível acerca do ma que quiseres divulgar dos teus rivais, e do bem que pretenderes fazer acreditar a teu respeito. A multidão não tem memória: podes tomar, pois, sem te importares com coisa alguma, a estrada que melhor parecer conformar-se com as tuas intenções: conseguindo o teu alvo ninguém mais se recordará dos meios por ti empregados par atingi-los. Estes princípios, me filho, te farão rico e forte’ (Nordau, 1954: 97-98) Nordau não é um cínico, mas sim um realista que revela os verdadeiros caminhos práticos para a efetivação da realização pessoal pública e privada dentro dos ditames da sociedade burguesa. O cinismo está presente naqueles que evocam com clamor a necessidade de objetivar a formação do “cidadão solidária” numa sociedade cujas práticas sociais estão fundadas na primazia do interesse individual sobre o societário em geral, onde a organização produtiva e distributiva estão mediadas pelo fundamento primordial da lucratividade e não pela real interação solidária do atendimento das verdadeiras necessidades humanas em geral. Essa impossibilidade real da efetivação do “cidadão solidário” no interior das perspectiva sociais engendradas pela burguesia foi apontada por Rousseau a mais de duzentos anos, quando a sociedade capitalista ainda não tinha se efetivado plenamente. O que diria Rousseau dois séculos depois, quando a contradição entre o público e o privado se manifesta concretamente na luta entre capital e trabalho, explicitando a riqueza enquanto apropriação privada do trabalho socialmente realizado? O que diria também, sobre esses conceitos de igualdade de direito, justiça social, políticas públicas que povoam os discursos educacionais? Afinal, que “cidadão solidário” é esse que se deseja formar conservando-se, no entanto, a contradição fundamental de onde derivam todas as outras? 6 REFERÊNCIAS: MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Editora Moraes, {s.d}. ___________. O capital:crítica da Economia Política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994, 1º v. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. 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