Artigo Original Perfil do Paciente que Inicia Hemodiálise de Manutenção em Hospital Público em Salvador, Bahia Profile of Patients Initiating Chronic Hemodialysis at a Public Hospital in Brazil Tiana Mascarenhas Godinho1*, Ticiana Goyanna Lyra1*, Priscila Soares Braga1*, Rachel Aguiar de Queiroz2, Jurema Amado Alves2, Angiolina Campos Kraychete3, Ernane Nelson Antunes Gusmão4, Antônio Alberto Lopes5 e Paulo Novis Rocha6 *Estes autores contribuíram igualmente para o trabalho. 1Estudantes de Medicina da Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia, FAMEB-UFBA (Av. Reitor Miguel Calmon, s/n, Vale do Canela, 40110-100, Salvador-BA); 2Residentes de Clínica Médica do Hospital Central Roberto Santos (Rua Direta do Saboeiro, s/n, Cabula, 41180-000, Salvador-BA); 3Coordenadora médica do Programa Nefro Bahia, Hospital Central Roberto Santos; 4Coordenador geral do Programa Nefro Bahia; 5Professor adjunto de Clínica Médica da FAMEB-UFBA; 6Professor substituto de Clínica Médica FAMEB-UFBA e pesquisador associado do Serviço de Imunologia do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Rua João das Botas, s/n, Canela, 40110-160, Salvador-BA) RESUMO Introdução: Este trabalho descreve o perfil do paciente que inicia hemodiálise (HD) de manutenção durante internamento em hospital do Sistema Único de Saúde. Métodos: Todos os pacientes maiores de 18 anos que receberam diagnóstico de doença renal em estágio final (DREF) e iniciaram HD durante internamento no Hospital Roberto Santos entre 08/2004 e 03/2005, foram submetidos a uma entrevista estruturada na admissão e seguidos até a alta hospitalar. Resultados: Avaliamos 122 pacientes. A média de idade foi 55±16 anos; 61% eram mulheres. A maioria (91%) relatou ter realizado pelo menos uma consulta médica no último ano, assim como exames de sangue/urina nos últimos cinco anos (aproximadamente 80%); contudo, quando detectamos DREF, 57% não sabiam que tinham doença renal e 71% não tinham sido examinados por nefrologista. Metade utilizava pronto socorro como local primário de atenção médica. A média de hemoglobina na admissão foi 7,7±2,3 g/dL; nenhum paciente recebeu previamente eritropoietina e 50% necessitaram de transfusão sangüínea durante hospitalização. Antes da HD, as médias de uréia, creatinina, cálcio e fósforo séricos foram, respectivamente, 254±105, 12±7, 7,8±1,3 e 7,3±2,5 mg/dL; a média da albumina sérica foi 2,7±0,8 g/dL. Antes do internamento, calcitriol foi administrado para 1 paciente e quelantes de fósforo para 2. Apenas 1 paciente iniciou HD por fístula e o restante por cateter temporário. O tempo médio de internamento foi 34±26 dias e a mortalidade hospitalar 19,7%. Discussão e Conclusões: Deficiências na atenção básica à saúde contribuem para o diagnóstico tardio da doença renal, gerando alta morbi-mortalidade durante hospitalização para iniciar HD. (J Bras Nefrol 2006;28(2):96-103) Descritores: Insuficiência renal crônica. Referência e consulta. Uremia. Eritropoetina. Fístula arteriovenosa. Hemodiálise. Catéteres de demora. Tempo de internação. Transfusão de sangue. Mortalidade. ABSTRACT Introduction: Herein we describe the profile of patients initiating maintenance hemodialysis (HD) during admission to a public hospital in Brazil. Methods: All patients older than 18 years who initiated HD for end-stage renal disease (ESRD) at Hospital Roberto Santos between 08/2004 and 03/2005 were interviewed at admission and followed till hospital discharge. Results: We evaluated 122 patients. Mean age was 55±16 years; 61% were female. At least one doctor visit was reported by 91% and approximately 80% reported blood/urine studies within the last 5 years; however, at the time of ESRD diagnosis, 57% did not know they had renal disease and 71% had not been seen by a nephrologist. Hospital emergency rooms were used as the main source of medical care by 49%. Mean hemoglobin at admission was 7.7±2.3 g/dL; no patient had been previously treated with erythropoietin and 50% underwent blood transfusions during admission. Metabolic parameters before the first dialysis were (mg/dL): urea 254±105, creatinine 12±7, calcium 7.8±1.3 and phosphorus 7.3±2.5; mean albumin level was 2.7±0.8 g/dL. Before admission, one patient had used calcitriol and 2 had used phosphate binders. One patient initiated HD through a fistula and the remaining through temporary catheters. Mean length of stay was 34±26 days and hospital mortality was 19.7%. Discussion and Conclusions: Inadequacies in primary care contribute to late diagnosis of renal disease, which is associated with high morbidity and mortality during admission to initiate dialysis. (J Bras Nefrol 2006;28(2):96-103) Keywords: ESRD. Referral. Uremia. Erythropoietin. Arteriovenous fistula. Hemodialysis. Indwelling catheters. Length of stay. Blood transfusion. Mortality. Recebido em 29/03/06 / Aprovado em 12/05/06 Endereço para correspondência: Prof. Dr. Paulo Novis Rocha Serviço de Imunologia, Universidade Federal da Bahia Hospital Universitário Professor Edgard Santos Rua João das Botas, s/n, 5º andar - Canela 40110-160 Salvador, BA, Brasil, Tel: 71 339-6320, 71 237-7353 – Fax: 71 245-7110 E-mail: [email protected] J Bras Nefrol Volume XXVIII - nº 2 - Junho de 2006 INTRODUÇÃO A doença renal crônica (DRC) é um grave e crescente problema de saúde pública no Brasil1. Dados da Sociedade Brasileira de Nefrologia revelam que, nos últimos 5 anos, houve um crescimento de 52% na população de pacientes com DRC em estágio final (DREF) mantidos em terapia renal substitutiva (TRS) no Brasil; apenas no último ano, esta população cresceu cerca de 10%, passando de 59.153 pacientes em Janeiro de 2004 para 65.121 pacientes em Janeiro de 20052. A grande maioria destes pacientes (89%) utiliza a hemodiálise (HD) como método de TRS. O investimento do governo brasileiro apenas em HD já ultrapassa 680 milhões de reais por ano3. Se levarmos em consideração todas as despesas com DRC, envolvendo diálise e transplante, os gastos anuais giram em torno de 1,4 bilhões de reais1. No sentido de aumentar a eficiência do programa é necessário aprimorar a qualidade dos cuidados ao portador de DRC. Uma das medidas utilizadas para avaliar os resultados do programa é a mortalidade que, entre os pacientes tratados por hemodiálise no Brasil, fica em torno de 16%4, sendo maior no primeiro ano5. Os dados disponíveis, no entanto, provavelmente subestimam a mortalidade relacionada a DRC, pois são obtidos principalmente de clínicas satélites e não levam em consideração as mortes ocorridas durante o início da terapia dialítica, que muitas vezes ocorrem em hospitais, em situações de atendimento emergencial. É importante também observar que estes dados não expressam a extensão do problema da DRC no Brasil. Após uma análise de certificados de óbito e dados da Secretaria de Saúde do estado de São Paulo, Sesso e colaboradores estimaram que 25,6% dos pacientes com DREF na cidade de São Paulo morreram no ano de 1991 sem receber diálise, principalmente os pacientes em extremos de idade e aqueles com DREF de etiologias que não nefropatia diabética ou glomerulopatia6. Tem sido mostrado que a instituição precoce de tratamento conservador (pré-dialítico) da DRC reduz a progressão para DREF7. Além disso, a detecção mais precoce da DRC está associada a um aumento da sobrevida após o início do tratamento dialítico crônico8. Infelizmente, uma grande parcela de pacientes com DRC só é diagnosticada quando a doença renal encontra-se em estágio muito avançado, quando se torna imperativo o início imediato da diálise para manutenção da vida. Isto explica porque uma fração expressiva de pacientes iniciam hemodiálise sem ter feito acompanhamento nefrológico prévio e sem um acesso vascular permanente. No entanto, existe uma carência de estudos sobre a real dimensão deste problema em nosso meio. Por isso, o presente estudo 97 prospectivo foi desenvolvido com os seguintes objetivos principais: 1) descrever o perfil do paciente que inicia HD durante internamento em hospital terciário do SUS em Salvador – Bahia; 2) determinar se estes pacientes receberam tratamento conservador pré-diálise; 3) avaliar o tempo de hospitalização e a mortalidade intra-hospitalar. MATERIAL Local O estudo foi realizado no Hospital Central Roberto Santos (HCRS), um hospital terciário da rede SUS em Salvador, na Bahia, com unidade de emergência e 549 leitos. Em Dezembro de 2003, o HCRS tornou-se a sede do Programa Nefro-Bahia, que é fruto de um convênio de cooperação técnica entre a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia e a Fundação Associação Baiana de Medicina de Pesquisa e Extensão na Área de Saúde e tem como finalidade implementar um programa de assistência integral aos portadores de doenças renais na Bahia. Desenho do estudo e Amostra Entre setembro de 2004 e março de 2005, foram avaliados todos os pacientes maiores de 18 anos com diagnóstico clínico de DREF que realizaram a primeira sessão de HD de suas vidas durante internamento no HCRS. O método de amostragem foi não-probabilístico e o tamanho determinado por conveniência (122 pacientes durante os 06 meses de estudo). Estes pacientes foram submetidos a uma entrevista estruturada e seguidos prospectivamente até a alta hospitalar. A entrevista consistiu na aplicação de um questionário contendo questões relacionadas aos dados demográficos, perfil sócioeconômico, acesso aos serviços de atenção primária à saúde, acesso ao especialista (Nefrologista) e ao conhecimento sobre a sua doença. Os resultados dos exames laboratoriais realizados antes da primeira HD foram obtidos através de revisão do prontuário hospitalar. Todos os pacientes foram seguidos prospectivamente até o término da hospitalização (alta ou óbito) para detecção dos seguintes desfechos: índice de transfusão sanguínea, tempo de hospitalização e mortalidade intra-hospitalar. Pacientes com suspeita clínica inicial de insuficiência renal aguda não foram entrevistados. Os pacientes com suspeita clínica de DREF que, durante o seguimento intrahospitalar, obtiveram melhora suficiente na função renal para se manter sem HD foram excluídos. Portanto, foram analisados apenas os dados dos pacientes com diagnóstico clínico de DREF e que permaneceram em HD de manutenção três vezes por semana. Definições e Critérios Clínicos O diagnóstico clínico de DREF foi feito por um nefrologista, baseado em dados da história clínica, exame físico, níveis de uréia, creatinina, hematócrito, cálcio, fósforo, tamanho e aspecto dos rins ao exame ultrassonográfico e evolução 98 clínica. O clearance de creatinina estimado pela fórmula de Cockroft-Gault foi menor que 15 ml/min/1,7m2 em todos os pacientes. Quanto ao perfil sócio econômico, os pacientes foram classificados de acordo com os Critérios de Classificação Econômica Brasil (CCEB)9. A classificação da cor da pele foi auto-referida. A indicação de transfusão sanguínea ficou a critério do Nefrologista ou do médico assistente; não tivemos acesso às variáveis que, além dos níveis de hematócrito e hemoglobina, podem ter influenciado esta decisão, como a presença de doença coronariana, sangramento ativo ou sinais e sintomas de anemia. A alta hospitalar ficou a critério da equipe multi-profissional, composta por médicos, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos. Não tivemos acesso às múltiplas variáveis que podem ter influenciado a duração do internamento de cada paciente. Não faz parte da rotina do nosso serviço aguardar confecção de fístula artério-venosa durante o internamento inicial. A maior parte dos pacientes deixa o hospital com cateter duplo-lúmen e uma consulta marcada no ambulatório de cirurgia vascular. Avaliação laboratorial A coleta foi realizada utilizando tubos BD Vacutainer da Becton Dickinson. Os exames bioquímicos foram realizados com aparelho Dimension AR da Dade Behring, utilizando amostras de soro. Os métodos e valores de referência (para adultos) utilizados foram: a) Uréia: método da urease, valores de referência (VR): 10 a 50 mg/dll; b) Creatinina: método do picrato, VR 0,6 a 1,3 mg/dL para homens e 0,4 a 1,1 mg/dL para mulheres; c) Cálcio: método colorimétrico, VR 8,5 a 11,0 mg/dL; d) Fósforo: método colorimétrico, VR 2,5 a 4,9 mg/dL; e) Albumina: método colorimétrico/ verde bromocresol, VR 3,4 a 5,0 g/dL; f) Potássio: método IMT (integrated multisensor technology), VR 3,5 a 5,5 mEq/L. Os exames de hematócrito e hemoglobina foram realizados com aparelho Pentra 120 Retic da ABX Diagnostics (método Automação), utilizando amostras de sangue total com EDTA. Os VR utilizados foram: a) Hematócrito: 41 a 50% para homens e 37 a 44% para mulheres; b) Hemoglobina: 13,5 a 16,5 g/dL para homens e 11,9 a 14,3 g/dL para mulheres. Aspectos éticos Todos os pacientes que aceitaram participar do estudo assinaram termo de consentimento livre e previamente esclarecido, que também foi assinado pelo entrevistador e por uma testemunha. Para os pacientes incapazes de assinar, foi aceito o consentimento verbal e assinatura da testemunha. Não houve recusas à participação. Análise estatística Variáveis quantitativas com distribuição normal foram descritas através da média e desvio padrão; a mediana também foi relatada para variáveis quantitativas que não seguiram distribuição normal. O teste t de Student para amostras independentes foi utilizado para comparação de variáveis entre o grupo de pacientes que morreram e grupo de sobreviventes. Hemodiálise em Hospital Público de Salvador Para identificar possíveis preditores de mortalidade, realizamos análises de regressão logística univariada e os resultados foram expressos sob forma de razão de chance (RC) e intervalo de confiança (IC) de 95%. Resultados que obtiveram P < 0,05 nos testes estatísticos foram considerados significantes. Todos os cálculos foram realizados utilizando o pacote estatístico SAS (versão 8.2, Cary, NC). RESULTADOS Entre setembro de 2004 e março de 2005, foram entrevistados 161 pacientes com suspeita clínica inicial de DREF que realizaram a primeira sessão de HD no HCRS; destes, 36 foram excluídos por modificação do diagnóstico para insuficiência renal aguda durante o seguimento intra-hospitalar. Dos 125 pacientes restantes com diagnóstico clínico de DREF, três foram excluídos por não permanecerem internados no HCRS. Portanto, 122 pacientes foram seguidos prospectivamente até a alta hospitalar. A Tabela 1 descreve as características demo- Tabela 1. Características demográficas e econômicas Variável N = 122 Idade (anos) 18 – 29 6,6% 30 – 39 9,1% 40 – 49 19,0% 50 – 59 28,1% 60 – 69 18,2% 70 – 79 12,4% ≥ 80 6,16% Sexo Masculino 39,3% Feminino 60,7% Cor da pele Branco 9,6% Negro 37,4% Mulato 46,1% Outra 7,0% Naturalidade Salvador 26,2% Outra 73,7% Procedência Salvador 48,4% Outra 51,6% Situação conjugal Solteiro 39,3% Casado 42,6% Divorciado/desquitado 5,7% Viúvo 11,5% Outro 0,8% Religião Católica 52,5% Outra 32,8% Não tem 14,7% Classe econômica A1 A2 B1 0,9% B2 2,6% C 15,5% D 62,9% E 18,1% Os valores foram corrigidos para o número de respostas obtidas para cada variável, com perda máxima de 6%. J Bras Nefrol Volume XXVIII - nº 2 - Junho de 2006 gráficas e econômicas da amostra estudada. A média (± DP) de idade foi 55±16 anos, variando de 20 a 91 anos. A faixa etária 50 – 59 anos foi a que apresentou o maior número de pacientes, sendo superior a 60% o percentual com idade inferior a 60 anos. As mulheres corresponderam a aproximadamente 61% da amostra e 52% dos pacientes não eram moradores da cidade de Salvador. Aproximadamente 95% dos pacientes pertenciam às classes econômicas C, D ou E. Aproximadamente a metade dos pacientes referiu alguma dificuldade para ir ao médico e realizar exames (Tabela 2). Destes, 59% referiram dificuldades relacionadas ao transporte (como a falta de dinheiro para passagem e as grandes distâncias) e 35% relataram “problemas com o SUS” (como a demora para marcação de consultas e exames, falta de médicos nos postos de saúde e má qualidade do atendimento); os 6% restantes relataram outras dificuldades como “falta de tempo”, “não liberação do trabalho pelo patrão” e “falta de acompanhante”. Aproximadamente 76% dos pacientes relataram que iam ao médico “a pé” ou de ônibus. Apesar disto, 91% dos pacientes realizaram pelo menos uma visita médica no ano que antecedeu a internação atual (sendo que a maioria realizou quatro ou mais visitas) e aproximadamente 81% dos pacientes realizaram exames de sangue e urina nos últimos cinco anos. No entanto, 49% utilizaram os serviços de emergência como local primário de atenção à saúde enquanto 47% utilizaram os centros ou postos de saúde. As prevalências de diabete melitus (DM) e hipertensão arterial sistêmica (HAS) na população Tabela 2. Acesso aos serviços de saúde Variável N = 122 Referiram dificuldades para ir ao médico 51,1% Referiram dificuldades para realizar exames 52,6% Realizaram exames de sangue nos últimos 5 anos 81,0% Realizaram exames de urina nos últimos 5 anos 81,9% Havia alteração no exame de urina? Sim 35,8% Não 43,2% Não lembra 22,1% Meio de transporte para atendimento de saúde A pé 39,4% Ônibus 36,2% Ambulância 3,2% Carro particular 19,1% Outros 2,1% Número de visitas médicas no ano passado Nenhuma 9,5% Uma 13,8% Duas 6,9% Três 5,2% Quatro ou mais 64,7% Local de atendimento primário à saúde Posto de saúde 38,8% Centro de saúde 7,8% Emergência 49,1% Outro 4,3% Os valores foram corrigidos para o número de respostas obtidas para cada variável, com perda máxima de 19%. 99 estudada foram de 32% e 81%, respectivamente (Tabela 3). A grande maioria dos pacientes referiu que vinha sendo tratada para estas condições, embora o grau de adequação da terapêutica não tenha sido avaliado no presente estudo. Vale ressaltar que apenas 23% dos diabéticos e 24% dos hipertensos sabiam que estas respectivas patologias podiam causar doença renal. A principal etiologia (presumida) de DREF foi HAS (41%), seguido de DM, em conjunto com HAS (28%) ou isoladamente (7%); em 16% dos casos, a etiologia foi desconhecida. No momento do diagnóstico de DREF, 57% dos pacientes desconheciam que tinham qualquer problema renal (Tabela 4). Apenas 28% dos pacientes estudados haviam consultado nefrologista antes do internamento e 5% realizaram biópsia renal. O uso de eritropoietina, calcitriol, quelantes de fósforo como parte do tratamento conservador para DRC foi ausente ou mínimo. Inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona e diuréticos foram usados com uma freqüência maior, como parte do Tabela 3. Antecedentes médicos e etiologia presumida da DREF Variável N = 122 Sabiam ter DM 32,1% Seguiam dieta 83,8% Usavam medicação 89,5% - oral 51,6% - insulina 48,4% Sabiam ter HAS 81,0% Seguiam dieta 73,4% Usavam medicação 90,4% Sabiam que DM causa nefropatia 22,6% Sabiam que HAS causa nefropatia 24,3% Etiologia presumida de DREF DM 6,6% HAS 41,0% DM+HAS 27,9% Glomerulonefrite crônica 2,5% Outra 5,7% Desconhecida 16,4% Os valores foram corrigidos para o número de respostas obtidas para cada variável, com perda máxima de 5%. DREF: Doença renal em estágio final; DM: Diabete melitus;HAS: Hipertensão arterial sistêmica. Tabela 4. Conhecimento prévio sobre a doença renal e utilização de tratamento conservador Variável N = 122 Sabiam ter doença renal Sim 43,1% Não 56,9% Consulta nefrológica prévia 28,7% Realizou biópsia renal 5,2% Tratamento conservador Eritropoetina – Quelante de fósforo 0,9% Calcitriol 0,9% I-ECA 50,9% ARA-II 2,6% Diurético 33,6% Já foi cogitada HD para seu tratamento * 32,2% Já foi cogitada DP para seu tratamento * 0,9% Já foi cogitado Tx para seu tratamento * 3,4% *HD = hemodiálise; DP = diálise peritoneal; TX = transplante Os valores foram corrigidos para o número de respostas obtidas para cada variável, com perda máxima de 1%. 100 tratamento de HAS. Uma percentagem pequena de pacientes referiu ter tido alguma discussão com um médico a respeito das diferentes modalidades de TRS, como HD (32%), diálise peritonial (1%) e transplante renal (3%). A Tabela 5 descreve o perfil metabólico da população antes da realização do primeiro tratamento dialítico. Os pacientes se apresentaram com uremia importante, com média de uréia > 250 mg/dL (mínimo 80, máximo 754), acompanhada de outros comemorativos, como: hipercalemia, hipocalcemia, hiperfosfatemia e anemia. Vale ressaltar que 71% dos pacientes tinham fósforo acima de 5,5 mg/dL, 65% tinham cálcio abaixo de 8,5 mg/dL e 84% tinham hemoglobina abaixo de 10 g/dL. Os níveis de albumina sérica também estavam reduzidos. O tratamento dialítico foi muitas vezes instituído em caráter emergencial, sendo a mediana de tempo entre a admissão e a realização da primeira HD de apenas dois dias. Com exceção de apenas um paciente, todos iniciaram HD através de cateter temporário. O internamento hospitalar destes pacientes foi longo (duração mediana de 30 dias), houve altas taxas de transfusão sanguínea (52%) e a mortalidade intrahospitalar foi de 19,7%. Para identificar possíveis fatores de risco para mortalidade, realizamos análises de regressão logística univariada utilizando o desfecho binário mortalidade (sim/não) como variável dependente e as seguintes variáveis independentes como preditores: idade, sexo, presença de DM ou HAS, níveis séricos de uréia, creatinina, hemoglobina e albumina sérica na Tabela 5. Dados clínico-laboratoriais do internamento atual Variável N = 122 Tempo entre admissão e 1ª HD (dias) Média ± DP 3,6 ± 5,8 Mediana 2 Parâmetros bioquímicos antes da 1ª HD Uréia (mg/dL) 256 ± 104,6 Creatinina (mg/dL) 12,5 ± 6,7 Potássio (mEq/L) 5,5 ± 1,2 # 7,8 ± 1,3 Cálcio (mg/dl) ## Fósforo (mg/dl) 7,3 ± 2,5 Hemoglobina (g/dL) 7,7 ± 2,3 Hematócrito (%) 23,4 ± 6,7 2,7 ± 0,8 Albumina (g/dL) ### Local onde realizou 1ª HD (%) Unidade de hemodiálise 97,5 UTI 2,5 Acesso vascular utilizado(%) Temporário 99,2 Fístula artério-venosa 0,8 Receberam hemotransfusão (%) 52,1 Desfecho do internamento (%) Alta 80,9 Óbito 19,7 Tempo de internamento (dias) Média ± DP 36,8 ± 26,2 Mediana 30 Os valores foram corrigidos para o número de dados presentes para cada variável: #= 46; ##= 24; ###= 53. DP: Diálise peritonial; HD: Hemodiálise. Hemodiálise em Hospital Público de Salvador admissão e realização de transfusão sanguínea. A idade foi a única variável estatisticamente associada com mortalidade: RC 1,040 (IC 95% 1,009 a 1,072; P = 0,0108) para cada ano de vida; a média de idade entre os sobreviventes foi de 53,4 ± 15,8, contra 63,0 ± 14,4 anos entre os que foram à óbito (P = 0,007). Os níveis de albumina sérica foram inversamente associados com mortalidade (RC 0,40; IC 95% 0,14 a 0,11; P = 0,0792), tendo os níveis mais baixos sido encontrados entre os pacientes que morreram, mas a diferença não atingiu significância estatística (2,3 ± 0,7 contra 2,8 ± 0,8; P = 0,067). DISCUSSÃO O relato desta experiência inicial das atividades do Programa Nefro-Bahia chama atenção para a situação dos pacientes com DRC em nosso meio. Os dados aqui descritos sugerem que deficiências na atenção primária à saúde levam ao diagnóstico tardio da doença renal, que, por sua vez, dificulta a referência destes pacientes para o nefrologista em tempo hábil. Como conseqüência, os pacientes iniciam HD através de cateter temporário e com péssimo controle metabólico, evidenciado pelas altas taxas de uréia, anemia severa, hiperfosfatemia e desnutrição (sugerida pelos baixos níveis de albumina sérica) no momento do internamento. Acreditamos que estes fatores contribuem para o internamento prolongado e a alta mortalidade hospitalar dos pacientes que iniciam HD em nosso meio. Trata-se de um estudo descritivo, realizado em um único centro, durante um período curto de observação e com amostragem relativamente pequena. No entanto, desde o início das atividades do Programa Nefro-Bahia, o HCRS vem se tornando o principal centro de referência em nefrologia do estado da Bahia, atraindo pacientes da capital e do interior. Acreditamos, portanto, que a população de pacientes renais atendida por este hospital representa bem a população de doentes renais que iniciam HD pelo SUS no estado da Bahia e, provavelmente, em outros estados brasileiros. Acreditamos também que o número de pacientes estudados é capaz de representar a população em questão; um estudo realizado pelo grupo de Angiologia do Programa Nefro-Bahia envolvendo 258 pacientes recrutados do mesmo hospital, mas em período diferente, identificou uma amostra de pacientes com características clínicas e demográficas semelhantes às da amostra do presente trabalho10. É fato notório entre os Nefrologistas que um elevado percentual de pacientes em nosso meio inicia o tratamento dialítico para DREF durante internamento hospitalar. No entanto, a maioria dos estudos epidemio- J Bras Nefrol Volume XXVIII - nº 2 - Junho de 2006 lógicos sobre pacientes em HD utiliza dados fornecidos pelas unidades satélites de HD crônica, havendo, portanto, uma escassez de trabalhos sobre o perfil destes pacientes no momento da hospitalização para início da terapia dialítica. O nosso estudo descreve o perfil clínico e sócio-demográfico dos pacientes que iniciam HD em um hospital terciário do SUS em Salvador, Bahia. Este é o primeiro trabalho desta natureza na Bahia que temos conhecimento. Diversos aspectos merecem destaque. Com relação à idade, houve uma predominância de pacientes na faixa entre 50 - 59 anos enquanto a maior parte dos pacientes em HD no Brasil se encontra na faixa dos 40 aos 50 anos4. Vale ressaltar o fato dos dados demográficos sobre pacientes em HD no Brasil serem obtidos das clínicas satélites de HD, retratando, portanto, uma população diferente da estudada. Outros autores também têm demonstrado que, comparado aos pacientes referidos ao especialista precocemente, os pacientes referidos tardiamente e os não-referidos tem idade mais avançada11. A predominância de mulheres (60,7%) entre os pacientes iniciando HD em nosso serviço também difere da realidade nacional. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revelam uma discreta predominância de mulheres no estado da Bahia (50,6%), mas que não é suficiente para explicar o resultado encontrado12. É provável que a diferença encontrada diminua ao avaliarmos um número maior de pacientes mas outros inquéritos em nosso centro também tem demonstrado uma predominância de mulheres10. Este estudo revelou que o HCRS serve de referência para grande quantidade de pacientes procedentes do interior da Bahia, que, muitas vezes, são referidos em situação emergencial para este hospital, retratando a precária situação da saúde em diversos municípios baianos, principalmente no que diz respeito ao tratamento de pacientes renais. Dados da SBN demonstram que, no ano de 2002, o estado da Bahia contava com 19 centros de HD, o que, corrigido para sua população, equivale a 1,43 centros por milhão de habitantes13. Esta média fica bem abaixo da nacional e do Nordeste, que é de 3,21 e 1,74 centros por milhão de habitantes, respectivamente13. Este fato coloca a Bahia em vigésimo colocado no ranking de serviços de HD no país, à frente apenas de Rondônia, Rio Grande do Norte, Sergipe, Maranhão, Pará, e Amazonas. Como a maioria dos centros de HD baianos se concentra em Salvador, os pacientes do interior do estado ficam em situação bastante difícil. O diagnóstico de DREF para muitos desses pacientes implica na necessidade de se mudar para uma cidade mais próxima a uma clínica de diálise, agravando ainda mais a situação social desta população. A existência de poucos serviços de HD na Bahia não 101 deve ser interpretada como reflexo de uma pequena quantidade de pacientes renais no estado. Dados da SBN revelam que o número de centros de HD tende a acompanhar o produto interno bruto do estado (o que não faria sentido do ponto de vista biológico). Desde o início do programa Nefro – Bahia em Dezembro de 2003 até Agosto de 2005, já foram realizados 15.024 procedimentos dialíticos no HCRS, revelando a existência de uma demanda reprimida de serviços de HD na Bahia. Segundo os Critérios de Classificação Econômica Brasil, a maioria da população brasileira se enquadra nas classes C (36%) e D (31%)9. Na grande Salvador, no entanto, existe uma predominância de indivíduos da classe D (38%), seguido da classe C (29%)9. Já a população de pacientes que inicia HD no HCRS pertence, em sua grande maioria, às classes D (63%) e E (18%). Isto equivale a uma renda média familiar mensal de 424 (classe D) e 207 (classe E) reais9, retratando a situação de pobreza dos pacientes renais em nosso estado, fato este que pode estar contribuindo para o acesso inadequado desta população aos serviços de saúde. É importante notar que um expressivo percentual de pacientes utilizaram serviços de emergência como local primário de atenção à saúde. Este foi um dos grandes problemas identificados pelo presente estudo e pode explicar a discrepância entre o aparente acesso aos serviços de saúde (evidenciado pelo número de visitas médicas e realização de exames) e a precária condição de saúde dos pacientes ao iniciar HD. É apenas durante o acompanhamento ambulatorial regular em postos ou centros de saúde que estes pacientes podem receber tratamento adequado, visando o controle de fatores de risco de eventos fatais e a melhoria da qualidade de vida. É também durante este acompanhamento regular que os médicos têm a oportunidade de educar os pacientes a respeito da sua doença, intervenção de grande valia para aumentar a aderência ao tratamento. No entanto, nosso trabalho mostra que mais de 75% dos pacientes não sabiam que DM ou HAS causam doença renal. Ainda mais chocante é o fato de que 57% dos pacientes que chegam ao hospital com DREF desconheciam que tinham problema renal. Estes dados revelam inadequações no acesso dos pacientes aos serviços de atenção primária à saúde em nosso estado. Está bem documentado que o tratamento conservador da DRC pré-diálise é capaz de retardar a progressão para DREF e, naqueles que progridem, aumentar a sobrevida após início da HD7,8. A maioria dos experts acredita que a melhor maneira de conter a epidemia de DRC que assola o Brasil e o mundo é tratar adequadamente as doenças crônicas que levam a doença renal, como DM e HAS, além de identificar e tratar adequadamente os pacientes em estágios iniciais da DRC. 102 Preocupam, portanto, os dados acima que evidenciam deficiências na atenção primária à saúde. Preocupa também o fato de que 71% dos pacientes não tiveram acesso ao nefrologista antes de iniciar HD. A nãoreferência ao nefrologista impossibilita um diagnóstico etiológico que, em alguns casos, pode permitir tratamento específico. Apenas 5,2% dos pacientes estudados tiveram diagnóstico confirmado por biópsia. Como a esmagadora maioria dos pacientes não realizou tratamento conservador para DRC, acreditamos que mesmo os 29% dos pacientes que chegaram ao nefrologista antes da HD, o fizeram de forma tardia, tendo o especialista apenas realizado o papel de identificar a gravidade do quadro e encaminhar o paciente para internamento e realização de HD. A utilização de eritropoeitina corrige a anemia de pacientes com DRC, reduz a ocorrência de hipertrofia ventricular esquerda e a necessidade de transfusão14. Esta medicação é distribuída gratuitamente pelo SUS e o seu uso está indicado para manter a hemoglobina de pacientes com DRC entre 11-12 g/dL. No entanto, 84% dos pacientes estudados chegaram ao hospital com hemoglobina abaixo de 10 g/dL, mas nenhum utilizou eritropoeitina antes da admissão. Devido à gravidade da anemia, 52% realizaram transfusão sanguínea durante a hospitalização sendo, portanto, expostos a antígenos HLA, o que pode aumentar o tempo na lista de espera para um transplante renal. O perfil metabólico antes da primeira HD (tabela 5) apenas retrata a gravidade do quadro clínico dos pacientes estudados. Os valores médios de uréia, creatinina, cálcio, fósforo, potássio são semelhantes aos descritos por Abdulkader e colaboradores, que estudaram uma população de pacientes não-referidos11. Vale também ressaltar a presença de hipoalbuminemia, que reflete desnutrição/ inflamação e tem sido associada a mau prognóstico. Mas talvez o principal problema gerado pela referência tardia ou nãoreferência ao nefrologista seja a não colocação de acesso vascular permanente em tempo hábil15. Estes pacientes que iniciam HD de forma emergencial precisam fazê-lo através de cateteres temporários, que estão relacionados a diversas complicações imediatas e tardias e são responsáveis por grande parte da morbi-mortalidade que acomete esta população10,16. Todos os fatores até então relatados (não referência para o especialista, ausência de tratamento conservador, início de HD de forma emergencial e através de cateter temporário) convergem para explicar o longo período de internamento e a alta taxa de mortalidade intra-hospitalar observados. No presente estudo, 19,7% dos pacientes morreram antes mesmo de chegar às clínicas satélites para realizar HD de manutenção. Esta mortalidade não é computada pela maioria dos estudos de sobrevida em HD, Hemodiálise em Hospital Público de Salvador pois estes costumam excluir os pacientes que morrem em menos de três meses do início do tratamento. Em resumo, o nosso estudo traçou o perfil dos pacientes que iniciam HD num hospital terciário do SUS em Salvador – BA. Trata-se de uma população empobrecida, grande parte proveniente do interior da Bahia, e que passa a ter consciência da doença renal apenas quando está preste a iniciar o tratamento dialítico. Conseqüentemente, não há tempo para avaliação com o nefrologista para investigação diagnóstica, instituição de tratamento conservador e preparação para TRS. Por isso, os pacientes iniciam HD em situação emergencial, através de cateter temporário e com péssimo controle metabólico, o que leva a internamentos prolongados e altas taxas de mortalidade. Como reverter esta situação? Uma recente portaria do Ministério da Saúde determina a implantação de Redes Estaduais de Assistência em Nefrologia17. Isto implica na criação de serviços e centros de referência em Nefrologia, de natureza estadual ou privada, que deverão prestar atenção integral ao doente renal em todas as fases, desde o atendimento ambulatorial em estágios iniciais de DRC até as diversas modalidades de TRS, envolvendo diálise e transplante17. Neste sentido, o Programa NefroBahia é uma iniciativa pioneira do estado da Bahia que, quando em pleno funcionamento, deverá atender a todas estas exigências. Mas será preciso também investir na atenção primária à saúde de um modo geral, facilitando acesso dos pacientes a postos de saúde e capacitando os profissionais da rede básica a identificar e tratar DM, HAS e a DRC em seus estágios iniciais. É apenas com a articulação dos centros de Nefrologia com todos os níveis de atenção à saúde (baixa, média e alta complexidade, assim como os serviços de emergência) que a situação do paciente renal revelada neste trabalho poderá ser revertida. AGRADECIMENTOS À equipe multi-profissional do Programa NefroBahia e aos profissionais do Hospital Roberto Santos, pelos serviços prestados aos nossos pacientes e ao Professor Gildásio Carvalho, pela metodologia referente à Avaliação Laboratorial. REFERÊNCIAS 1. Romao JE, Jr. Doença Renal Crônica: Definição, Epidemiologia e Classificação. J Bras Nefrol 2004; 26(Supl 1):1-3. 2. Sociedade Brasileira de Nefrologia. Censo 2004/2005 - SBN. [cited 2005Mar10]. Available from: URL: www.sbn.org.br/ Censo/censo20042005.htm. J Bras Nefrol Volume XXVIII - nº 2 - Junho de 2006 3. Minstério da Saúde do Brasil. Investimento do Ministério da Saúde - doenças renais - 18/10/02. [cited 2005 May 10]. Available from: URL: http://portalweb05.saude.gov.br/portal/ saude/area.cfm?id_area=367. 4. Romao JE, Jr. Dados Sobre a Doença Renal Crônica no Brasil. [cited 2005May10]. Available from: URL: www.sbn.org.br/ Censo/epidemiologia2004.pps. 5. Lopes AA, Batista PB, Costa FA, Nery MM, Lopes GB. 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