O ser humano precisa acreditar que o paradoxo de nascer, viver e

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TEXTO SUPLEMENTAR – ATUALIDADES NO ENSINO MÉDIO – 3º ANO - 1º TRIMESTRE 2016
SENTIDO E SIGNIFICADO
De um lado, afugentamos a tecnologia como forasteira, imaginando-a estranha a nós. De outro lado, elas vão
se aproximando e penetrando em todas as micronervuras de nossa vida.
Entrevista | Lucia Santaella
O ser humano precisa acreditar que o paradoxo de nascer, viver e ter que morrer um
dia – de algum modo – faz sentido. E, subjacente a essa dinâmica antropológica bioevolutivamente
constituída, o homem não se cansa de buscar esses significados e sentidos. Implícito a essa
conjuntura complexa e rebuscada, trafegam signos, símbolos, significações e sentidos, que são as
formas de representação da realidade que nós mesmos construímos para poder dialogar e lidar com
a realidade. Nesse sentido, a professora de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, Lucia Santaella,
afirma que “a Semiótica é a Ciência que tem por objetivo de investigação todas as linguagens
possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer
fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido”. Num mundo
predominantemente técnico e segmentado em especialidades, Santaella é uma acadêmica que ousa
emitir valores e significações trans e pluridisciplinares.
FILOSOFIA • Fale-nos um pouco sobre a questão do sentido e do significado simbólico humano,
enquanto propriedades e funções bioevolutivamente constituídos em nós há milênios.
SANTAELLA • O ser humano não é a única espécie simbólica do planeta. Os animais também o
são: formigas trabalham e se constituem como um coletivo inegavelmente inteligente; abelhas
dançam, raposas mentem, e assim por diante. Isso se não mencionarmos os animais domesticados,
como os gatos e os cães, cujas sutilezas simbólicas os seus donos conhecem bem. Certamente,
estou tomando o adjetivo simbólico em um sentido generoso não exclusivo do humano, ou seja,
como um programa codificado. A rigor, se formos suficientemente longe, isso nos levará à
constatação de que a própria vida é simbólica, dado que se constitui – sabemos disso desde a
descoberta do código genético em meados do século XX – como um programa altamente codificado.
O que o humano tem de específico em meio a isso, e que justamente lhe dá especificidade em
relação aos outros seres vivos da biosfera, encontra-se no fato de que o humano é o único ser que
fala. A linguagem nos constitui. Ela funciona como uma dádiva, uma potência que permitiu ao
humano sobreviver coletivamente, enquanto outros seres fisicamente poderosos foram
desaparecendo. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de uma dádiva paradoxal, pois a fala traz consigo a
consciência que é indissoluvelmente consciência da morte. Uma consciência que dotou o humano
de potência aguda para a sobrevivência. É dessa potência loquens que derivou o homo faber, o
sapiens, e agora o homo digitalis. O que isso significa? O humano foi cobrindo o planeta com
marcas crescentes de si mesmo, pois linguagem é devir. Daí a marca irredutivelmente evolutiva que
é constitutiva do ser humano.
A linguagem nos constitui. Ela funciona como uma potência que permitiu ao humano
sobreviver coletivamente, enquanto outros seres fisicamente poderosos foram
desaparecendo.
FILOSOFIA • E quanto ao fato do nosso cérebro e consciência – ativamente, sempre, o tempo todo
– completarem a realidade, de acordo com o seu próprio repertório cognitivo, enquanto dialogamos
estruturalmente com ela. Qual é a sua posição acerca disso?
SANTAELLA • Quanto mais os meios de aferição da realidade e os discursos que a interpretam
crescem, tanto mais complexo, surpreendente e desconcertante o mundo se revela. Portanto, o
conhecimento e os incansáveis jogos de linguagem, que o ser humano produz, estão sempre
apostando corrida com aquilo que chamamos de realidade. Estamos sempre em dívida com o
conhecimento que tem seu destino na incompletude. Isso ocorre porque, para nós, a realidade é
irremediavelmente mediada pela linguagem, esta entendida em sentido lato, não apenas como
discurso, texto verbal, mas englobando notações, imagens, sons, programas de computador,
bibliotecas, filmes, visualização de dados, etc. Não há acesso não mediado à realidade. Até mesmo
a percepção já é mediada. Olhamos e recebemos instantaneamente como resposta um julgamento
perceptivo que nos informa sobre o que é que estamos vendo. Até mesmo nossas relações
amorosas são mediadas pelas fantasias que os dispositivos de subjetivação a que estamos
submetidos impõem sobre nós, conforme nos ensinaram Foucault e Agamben.
FILOSOFIA • As tecnociências, desde os seus primórdios, sempre tenderam a enxergar o
organismo biológico humano como uma máquina. Há até quem acredite que a realidade natural e a
própria vida biológica possam, um dia, ser decifradas e replicadas algoritmicamente. Ademais,
abundam por aí, com efeito, as metáforas maquínicas, para fazer referência ao – extraordinário,
diga-se – vivo e fisiológico. Qual é a sua posição sobre isso?
SANTAELLA • Desde a segunda metade dos anos 1990, tenho refletido sobre a questão do corpo.
Fui levada a isso pela mão e pelos trabalhos dos artistas em um período em que se colocava diante
de nós a exigência de se pensar por que o corpo se tornara um tema problemático. Da Biologia e
Medicina, seus redutos tradicionalmente mais legítimos, as interrogações sobre o corpo nos seus
aspectos psíquicos, comunicacionais, culturais, antropológicos, filosóficos e fisiológicos foram
recorrentemente tomando conta de todos os discursos da cultura. Em função disso, passei a pensar
o corpo como sintoma da cultura, subtítulo de um dos meus livros publicado pela Ed. Paulus. O
corpo, ele próprio, acabou por se converter em um dos sintomas-chave da cultura contemporânea.
Foi nessa época que comecei a explorar as metáforas por meio das quais o corpo foi sendo
historicamente imaginado. De acordo com Norbert Wiener, a uma era mítica, golêmica correspondeu
o modelo do corpo como uma figura de barro, maleável e mágica. À era do relógio, século XVII e
XVIII, correspondeu a imagem do corpo como mecanismo. Então, no século XIX, na era do motor
elétrico, surgiu a imagem do corpo como máquina, o corpo como um glorioso motor de aquecimento,
queimando algum tipo de combustível em vez do glicogênio dos músculos humanos, cuja bomba
propulsora encontrava-se no coração. A revolução cibernética, por sua vez, quando a engenharia de
forças foi suplantada pela engenharia da comunicação e do controle, o corpo passou a ser visto
como um sistema eletrônico. Então, desde a publicação do manifesto ciborgue, de Donna Haraway,
em 1985, o corpo veio a ser interrogado sob o signo do ciborgue, metade orgânico e metade
cibernético, misto de hardware e wetware (um computador em cada célula viva), um híbrido de
carbono e silício. É interessante perceber que, desde que o corpo saiu da casca de ovo da mitologia,
sua imagem passou a apresentar algum parentesco com o maquínico, o que é bastante
contraditório. Ao mesmo tempo em que o ser humano preza e se identifica com a integridade e
pureza orgânica do seu corpo, a Ciência e a Filosofia proliferam alianças do corpo com as máquinas.
Aliás, no caso, a Ciência e a Filosofia parecem ter bem mais razão do que as fantasias que
alimentamos no nosso imaginário do corpo. Tanto elas têm razão que hoje o código da vida foi
decifrado a ponto de poder ser manipulado como se manipulam as partes de uma máquina.
Ao mesmo tempo em que o ser humano preza e se identifica com a integridade e pureza
orgânica do seu corpo, a Ciência e a Filosofia proliferam alianças do corpo com as
máquinas.
FILOSOFIA • Com que olhos a senhora enxerga essa onda tecnologizante, e, por isso mesmo
tecnoideológica e tecnicizante, que ressignifica a natureza e a nossa própria constituição biológica,
segundo seus próprios parâmetros e ditames tecnicistas?
SANTAELLA • Sem cair nas explicações facilitadoras e encobridoras que tudo pretendem
compreender sob o título de “determinismo tecnológico”, a tecnologia, na verdade, está inscrita no
destino humano. O ser humano sonha com a integridade plena do seu ser, a despeito e à teimosa
revelia dos ensinamentos da Psicanálise que nos colocam cara a cara com o fato de que a
constituição do eu, de saída, se dá de modo estilhaçado. Para nós, não existe plenitude, com
exceção dos momentos fugazes, inagarráveis, evanescentes que chamamos de felicidade. São
esses brevíssimos acenos fugidios de plenitude que mantêm acesa a chama desse sonho que não
nos abandona. É justamente esse sonho que alimenta a ilusão de que nossa constituição orgânica é
autossuficiente, dispensando quaisquer extensões técnicas e tecnológicas. Ora, foram essas
extensões que garantiram a sobrevivência do humano na biosfera. Entretanto, de alguns séculos
para cá, digamos, desde a instauração do sistema capitalista de produção, vêm se acelerando, cada
vez mais, o crescimento, a multiplicação e a diversidade dessas extensões a um ponto tal de
exacerbação que chega a nos amedrontar. Desse medo deriva a fobia humana em relação às
tecnologias. Entretanto, essa fobia é também paradoxal, pois ela oculta seu outro lado, que é o da
fascinação, especialmente porque as tecnologias foram igualmente se tornando tecnologias de
extensão do psiquismo humano. Elas emergiram na era da reprodutibilidade como são as
tecnologias de Gutenberg, da fotografia, do cinema, etc., sendo imediatamente seguidas pelas
tecnologias da difusão, rádio e televisão e, desde os anos 1980, as sociedades e a vida privada
estão se vendo invadidas, em função da mediação computacional fixa, e então móvel, por
tecnologias da inteligência e da exacerbação comunicativa.
FILOSOFIA • Que papel desempenham as mídias digitais nessa conjuntura?
SANTAELLA • Há anos, tenho defendido com eloquência a ideia de que as mídias e os signos que
por elas circulam estão crescendo no mundo. Quais mídias existiam antes da revolução industrial?
Desenhos, pinturas, gravuras, esculturas, arquitetura, sons executados no aqui e agora da voz ou de
instrumentos, o teatro e a dança que são artes da presença, o circo para o entretenimento popular, o
livro ainda dependente da mão humana compondo os chumbinhos para a impressão tipográfica,
certamente a fala, enfim, todos eles, com exceção da linguagem escrita e das imagens gravadas,
esculpidas ou espacialmente construídas, eram meios ainda muito dependentes de seu
armazenamento na memória biológica do ser humano. Uma memória mortal, diga-se de passagem,
o que respondia por certa lentidão na transmissão do patrimônio cultural de uma geração a outra. A
revolução industrial, então a eletroeletrônica e, atualmente, a digital, foi povoando a superfície da
Terra com uma profusão de imagens, sons, filmes, vídeos, hipermídia que estenderam a precária
memória biológica para memórias externalizadas, meios de armazenamento fora da dependência do
cérebro individual humano. Não é por outra razão que as expressões “memória coletiva” e
“inteligência coletiva” se notabilizaram. De fato, o planeta hoje pulsa e palpita em um ininterrupto
fluxo de linguagens, de vozes consonantes e dissonantes, de controvérsias, de imagens do bem e
do mal, em suma, de uma segunda natureza, se é que se possa assim dizer, pois não creio que uma
primeira natureza tenha jamais existido para o ser humano. Porque fala, nomeia, compreende e
julga, o humano foi, de saída, expulso do paraíso natural. Uma das razões de sua desventura, entre
muitas outras, é estar na natureza, compartilhar sua natureza animal com outros animais, mas, ao
mesmo tempo, estar fora da natureza, sem descanso, transformando-a ininterruptamente. Por
estarmos na linguagem, estamos onde não somos, somos onde não estamos.
A realidade é mais vasta do que o alcance de nosso cérebro. Isso se dá especialmente porque o real, ele mesmo, é dinâmico, transformação contínua
FILOSOFIA • Edgar Morin afirma que ele é uma espécie de “contrabandista dos saberes”, e é por
isso que “os guardas das fronteiras atiram nele”. Como transversalizadora nata que é: “os guardas
das fronteiras também atiram na senhora?”. E, especialmente, quais são as suas considerações
sobre a questão da trans ou da pluridisciplinaridade?
SANTAELLA • Pode ser que atirem em mim, mas para dizer a verdade, não os percebo. Sempre fui
arrebatada por uma sede tão intensa de aprender, de saber o que estão pensando e mesmo
sentindo aqueles que enfrentaram e enfrentam os mesmos desafios intelectuais e éticos que tento
enfrentar, que esses guardas, se existem, me são invisíveis. Toco minha vida buscando as estrelas
que me guiam. Elas brilham no meu parque de diversões, a saber, na minha biblioteca em que estão
enfileirados os milhares de livros que das estantes me lançam piscadelas secretas. Sei o quanto é
difícil começar, e, mais ainda, persistir quando tudo parece conspirar contra nós em um país em que
o valor da cultura e do conhecimento é minimizado. Quanto à interdisciplinaridade, de modo breve,
posso dizer que as dificuldades para instaurá-la remontam à estrutura das escolas e universidades
que, desde o século XIX, configuram o saber de modo atomizado, apenas com aquilo que é
necessário à formação relativamente especializada de profissionais para assumir posições no
mercado de trabalho capitalista. Novas dinâmicas de formação do saber estão sendo
experimentadas em escolas nos países avançados com tradição de sucesso educacional. Quanto ao
Brasil, não tenho muitas esperanças, pois nossa estrutura escolar continua sob o domínio férreo da
sociedade disciplinar, tão bem estudada por Foucault. Isso me leva a pensar que introduzir novas
tecnologias não salvará o desastre da Educação no Brasil enquanto a estrutura panóptica não se
abrir para a libertação do controle de currículos inflexíveis e do paternalismo, marca do nosso ensino
que se estende até ao nível de pós-graduação.
FILOSOFIA • Como a filosofia de Charles Sanders Peirce se faz importante no pensamento
contemporâneo, e quais os principais conceitos e contribuições dele?
SANTAELLA • Peirce é uma longa história. É uma filosofia que contém um grande número de
fatores de originalidade radical, o que dificulta enormemente sua compreensão. Para começar,
Peirce era matemático, físico, astrônomo, químico, com um tipo de mente formado em laboratório,
mas era também lógico, o primeiro psicólogo experimental dos Estados Unidos, conhecia Biologia,
Geologia, amante de línguas, filósofo, etc. Como acompanhar um pensamento com tal versatilidade?
Na História da Filosofia ocidental, dominantemente dicotômica que, aliás, costumo chamar de praga
das dicotomias no Ocidente, Peirce foi o primeiro e ainda único a criar uma lógica ternária, ou seja,
uma lógica concebida em sentido muito amplo, não restrita à lógica simbólica, dedutiva, mas
abrangendo os outros dois tipos de raciocínio, a indução e a abdução, a lógica da descoberta. Tudo
isso está enraizado em uma fenomenologia de punho próprio, despida de quaisquer traços
transcendentalistas, distinta da Fenomenologia continental. Dessa fenomenologia derivam as bases
para a Semiótica, teoria geral dos signos. Esta se constitui em uma das ciências normativas, com
duas outras, a Ética e a Estética. Essa tríade é inseparável. Só depois de palmilhado esse caminho
é que a Metafísica pode ser pensada. Criou o Pragmaticismo, assim rebatizado para ficar a salvo
dos raptores, quer dizer, dos pragmatismos melosamente humanistas que se multiplicaram a partir
de sua criança. Sua semiótica é, portanto, uma disciplina filosófica. Ela tem por função lançar as
bases elementares do modo como funcionam todos os tipos de signos, de quaisquer espécies,
humanos e não humanos, quais são seus poderes de referência e potenciais interpretativos. Apesar
da diversidade de campos a que se dedicou, o fio condutor do pensamento de Peirce estava dirigido
para as maneiras como as ciências chegam aos resultados que buscam, ou seja, que métodos são
adotados por elas.
De acordo com Lucia Santaella, a Semiótica é a ciência que tem por
objetivo de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que
tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e
qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e
de sentido.
FILOSOFIA • A Semiótica, apesar de ser disciplina recente das Humanas, tem despertado enorme
interesse na comunidade científica e em estudantes, já que ela – teoricamente, por operar com a
simbologia básica das nossas comunicações cotidiárias – estaria presente em todas as nossas
relações sociológicas. A senhora poderia nos dizer mais sobre isso?
SANTAELLA • O boom da Semiótica se deu nos anos 1970, na rebarba do boom do estruturalismo.
Essa onda passou. Hoje, ela é uma área de conhecimento de grande interesse dos jovens,
especialmente na América Latina, países cuja presença das multilinguagens – música, corporeidade,
visualidade, etc. – na vida cotidiana é bastante intensa. A dificuldade da Semiótica para se
institucionalizar deriva do fato de que não existe uma profissão de semioticista. Portanto, ela acaba
se constituindo como uma coadjuvante de outras áreas de conhecimento. Sua importância é
fundamental na medida em que ajuda a desenvolver o que chamo de “consciência de linguagem”, a
única expressão em que cabe a palavra “consciência”, quer dizer, a linguagem como constituição
inalienável do humano, que faz do ser humano um ser social por excelência, pois todo e qualquer
signo é, por natureza, social.
Não há separação entre a inteligência humana e uma inteligência artificial, pelo menos
não no estágio evolutivo em que se encontra a inteligência no planeta hoje.
FILOSOFIA • Sobre as IA, eu pergunto: “poderia uma inteligência qualquer (a humana, por exemplo)
criar uma inteligência mais inteligente que ela mesma?” E, independentemente de ser negativa ou
afirmativa a sua resposta, quais – a seu ver – seriam os principais desdobramentos desses
acontecimentos?
SANTAELLA • Não consigo pensar essa separação entre a inteligência humana e uma inteligência
artificial ou qualquer outro tipo de inteligência, pelo menos não no estágio evolutivo em que se
encontra a inteligência no planeta hoje. A inteligência humana foi crescendo no acoplamento com as
tecnologias desenvolvidas pelo próprio ser humano. De uns tempos para cá, as tecnologias foram se
tornando, cada vez mais intensamente, tecnologias da inteligência. Os computadores e os
programas que os fazem funcionar são aparelhos que estendem nossas capacidades mentais. Eles
estão indissociavelmente acoplados à inteligência do humano. Portanto, essa fantasia sobre uma
máquina mais inteligente que o humano, que dominará e destruirá o humano, de resto, um alimento
perfeito para tantos filmes de Hollywood, não é senão um resíduo da ideia de que o humano e sua
inteligência se constituem como uma essência imutável que as máquinas e seus artifícios vêm
macular ou podem ultrapassar. Na realidade, a oposição corrente entre inteligência humana e
inteligência artificial tem suas raízes, ao fim e ao cabo, em um individualismo empedernido. De fato,
a inteligência de qualquer indivíduo, por mais genial que esse indivíduo possa ser, tornou-se
insignificante diante da inteligência coletiva que a espécie humana fez crescer fora de qualquer
cérebro individual, até chegarmos ao ponto em que hoje nos encontramos, ou seja, um ponto que
nos obriga a pensar como um cérebro coletivo, desprendidos do reconfortante “eguinho” cartesiano.
FILOSOFIA • Tendo em vista a sua vasta experiência a respeito dessa revolução de fato
extraordinária que vivemos nos dias atuais, o que você pensa das pretensas “consciências
inorgânicas e/ ou artificiais”?
SANTAELLA • O conceito de consciência é suficientemente complicado. Na ciência cognitiva, que
vem buscando compreender esse conceito, os pesquisadores estão longe de chegar a um acordo. A
pesquisa sobre isso nos conduz a uma perfeita torre de Babel. E veja que os cientistas e filósofos
cognitivos marginalizam a psicanálise. Imagine se as questões do inconsciente fossem levadas em
consideração pelos cognitivistas: a confusão seria ainda mais intrincada. Enquanto os
neurocientistas cultivam a promessa de que as neuroimagens das sinapses cerebrais irão um dia
explicar o fenômeno da consciência, inclusive da autoconsciência, outros afirmam peremptoriamente
que isso será impossível. Quanto a mim, fico com Peirce, ou melhor, simplifico Peirce e tomo a
palavra “consciência” como uma metáfora de que lançamos mão para nos referirmos a nós mesmos,
os humanos. Sob esse ponto de vista, falar em consciência inorgânica ou artificial soa como um
contrassenso, pois consciência seria o mais humano entre todos os privilégios humanos. Por isso,
prefiro pensar não em consciência inorgânica, mas em mente e pensamento inorgânicos. Se
expandirmos o sentido de “mente” aquém e além do humano, compreendendo-a como um processo
de crescimento contínuo por meio de processos de reprodução, veremos que, desde sempre, a
mente esteve presente na natureza. Retomo aqui uma passagem de Peirce bastante convincente: “o
pensamento não está necessariamente conectado a um cérebro. Ele aparece no trabalho das
abelhas, dos cristais e por todo o mundo puramente físico; e não se pode negar que ele realmente
está ali, assim como não se pode negar que as cores, formas, etc., dos objetos ali realmente estão”.
Não estamos diante das vicissitudes da história de territórios e povos, mas de uma dupla
conversão: a Terra se tornou agente político, a política se tornou
agente geológico.
FILOSOFIA • Diante das tecnociências, o que o humano fará de si?
SANTAELLA • Batendo na mesma tecla, as tecnologias sempre estiveram
acopladas ao humano. A diferença encontra-se no fato de que nos seus
inícios a tecnologia estava intimamente ligada à organicidade do corpo
humano e do corpo da natureza. Depois da revolução industrial, elas foram
adquirindo um estatuto cada vez mais inteligente, instaurando uma relação
com o humano que não é mais corporalmente visível e, por isso mesmo,
muito mais íntima do corpo e da mente. Paradoxalmente, quanto mais
íntimas se tornam, mais estranhamento provocam no ser humano.
Heidegger estudou a diferença entre as técnicas pré e pós-industrialização.
Seu estudo sobre esse tema é bastante complexo e nos dá muito a pensar. A Semiótica peirceana se trata
Entretanto, Heidegger não testemunhou os efeitos da revolução digital, ou de uma indagação subjacente
voltada para a busca de
seja, da revolução computacional como extensão da mente e da inteligência
entendimento dos meios pelos
humanas. No fundo, é a inteligência humana que está crescendo quais a inteligência, entre
inexoravelmente. Há que se levar em consideração, contudo, que essa elas, a humana, cresce no
universo.
inteligência não tem muito a ver com a razão ascética, pura, estudada por
Kant. Nem mesmo as outras duas críticas de Kant dão conta dela. É por isso
que o impacto da Psicanálise é tão grande. Esta revelou que o humano é
ambivalente, contraditório, paradoxal. Um amigo e inimigo de si mesmo. Como já declarou Edgar
Morin, somos homo faber, loquens, sapiens, ludens, mas também, e tudo indica que, sobretudo,
somos demens. É essa mistura que torna impossível responder à interrogação sobre o que o
humano fará de si mesmo. As tendências, diante dos impasses, desafios e dilemas do presente, são
sempre extremadas e, portanto, facilitadoras. Ou se cai em um ceticismo cínico, ou se debanda para
o outro lado de um otimismo ingênuo. Em um texto muito ilustrativo sobre The function of reason (A
função da razão), escrito em 1929, Whitehead discute a oposição entre o princípio físico da
degradação da energia do universo, o segundo princípio da termodinâmica, e a outra tendência do
universo para a renovação em um movimento ascendente. Esta se manifesta em sua forma mais
otimizada nos processos da vida. Fazendo uma analogia, que espero não ser abusiva, creio que
essas duas forças convivem no humano. Portanto, não nos resta outra coisa senão manter pelo
menos uma réstia de esperança de que as forças da vida podem ser mais fortes do que as forças de
destruição.
FILOSOFIA • Em suas recentes prospecções teóricas a senhora tem se ocupado também dos
significativos impactos que a espécie humana está causando no seu ambiente, o planeta Terra, fato
este que, surpreendentemente, tem provocado uma espécie de nova era geológica, não é isso? O
Antropoceno?
SANTAELLA • Nas últimas décadas, foi se criando um consenso entre os cientistas de que a
biosfera deixou de se comportar dentro dos padrões do Holoceno, o período geológico em que nos
encontramos: a atmosfera, o clima, os oceanos e o ecossistema estão todos operando fora das
normas holocênicas. A antroposfera, a camada humana que cresceu dentro da biosfera e suas
pegadas sobre a Terra, tornou-se sobremaneira pesada, o que está decididamente dando passagem
a um novo período geológico que está sendo chamado de Antropoceno. De meados do século XX
para cá, entre outros desastres ecológicos, a era nuclear deixou uma assinatura radioativa sobre a
superfície da Terra, a demografia e a economia global cresceram dez vezes em algumas décadas,
junto a isso está se dando a perda da biodiversidade, quando o ritmo de extinção das espécies da
biosfera está correndo ao passo de cem a mil vezes mais rapidamente. O problema ainda maior é
que, acompanhando esse ritmo, estamos consumindo exponencialmente mais recursos da natureza.
Como dizem os especialistas, não estamos mais meramente diante das vicissitudes da história de
territórios e povos, de geos e politeia, mas de uma dupla conversão: a Terra se tornou agente
político, a política se tornou agente geológico.
Alexandre Quaresma é escritor ensaísta, pesquisador de tecnologias e consequências socioambientais, com
especial interesse na crítica da tecnologia. É membro da Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e
Meio Ambiente (RENANOSOMA), vinculado à Fundação Amazônica de Defesa da Biosfera (FDB) e membro
do Conselho Editorial de Ciência e Sociedade da Revista Internacional de Ciencia y Sociedad, do Common
Ground Publishing. [email protected]
REFERÊNCIAS
SANTAELLA, Lucia (1983). O que é Semiótica? Brasília: Editora Brasiliense, 1983.
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