> artigos Mariana Le Brun e Silvia Zornig Grupo Criar-te: oficina de criatividade no cuidado de mães e bebês prematuros em UTI neonatal* The present report intends to analyze the Criar-te Group. A therapeutic workshop of creativity, destined to welcome mothers of premature babies interned in the Newborn ICU (Intensive Care Unit). Facing their premature newborn babies, the mothers may experience regret, failure and feelings of incompetence, making the attachment process more difficult. Parents’ expectations and plans regarding the newborn can suffer an abrupt interruption due to the baby’s organic condition. In the Criar-te mother’s group, the members of the group make gifts for their newborn babies with the objective to retake their capacity to imagine and fantasize about them. The group’s aim is to rescue the maternal competence, offering the participants the possibility to form an attachment to their babies, based on love and attention far beyond the baby’s medical needs. > Key words: Prematurity, therapeutic workshop, creativity *> Equipe participante do projeto de pesquisa: Gabriela Altaf, Nina Almeida Braga, Denise Morsch, Otavio Souza, Silvia Zornig, Mariana Le Brun pulsional > revista de psicanálise > artigos > p. 5-12 ano XVII, n. 181, março/2005 O presente trabalho tem por objetivo analisar o Grupo Criar-te, uma oficina terapêutica de criatividade destinada a acolher mães de bebês prematuros internados em UTI Neonatal. Diante de seus bebês prematuramente nascidos, as mães podem experimentar sensações de culpa, fracasso e incompetência que dificultam o processo de vinculação. Planos e sonhos podem ser interrompidos quando o real orgânico do bebê vem para primeiro plano. No Grupo Criar-te as mães confeccionam presentes para os seus bebês com o objetivo de que nelas seja retomada a capacidade de imaginar. Concomitantemente, pretende-se resgatar a competência materna, oferecendo-se às participantes a possibilidade de dedicarem a seus bebês um cuidado que está para além de suas necessidades médicas. > Palavras-chave: Prematuridade, oficina terapêutica, criatividade >7 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVII, n. 181, março/2005 >8 Introdução Os bebês e suas primeiras histórias têm preenchido diversos estudos de teóricos e pesquisadores da contemporaneidade que localizam nas primeiras relações estabelecidas entre a mãe e seu bebê o momento inaugural de instauração da subjetividade. Assim sendo, o período anterior ao nascimento, visto como uma etapa preparatória e fundamental para a vinculação mãe-bebê, tem constituído também um tema recorrente e merecerá aqui uma breve análise, no intuito de que se possa esclarecer o que o parto prematuro vem a interromper. Por nove meses um bebê permanece circunscrito no ventre, protegido e embalado neste espaço fértil no qual germina não apenas o feto, mas também a fantasia materna. Durante a gestação, a imaginação da mãe se concentra em seu bebê lhe garantindo contornos para além de seu corpo físico, que gradualmente toma forma. Ao embrião são paulatinamente atribuídos traços, características de personalidade, temperamento, predileções e tanto mais quanto permitirem os devaneios maternos. (Stern, 1997). Este movimento geralmente ganha força a partir dos quatro meses, quando o feto começa a ser mais bem sentido e suas manifestações de vida tornam sua existência mais palpável. Nesta época, existe um acréscimo na riqueza e na especificidade das representações maternas acerca de seu bebê. Após os sete meses, entretanto, quando atingem seu ápice, as representações acerca do bebê imaginadas pela gestante geralmente se dissolvem e anuviam. Daniel Stern entende que, desta forma, “as mães intuitivamente protegem seu bebê-que- está-por-chegar e a si mesmas de uma potencial discordância entre o bebê real e um bebê representado de forma excessivamente específica” (1997, p. 28). Mais precisamente, para evitar desapontamentos, as representações positivas são esquecidas e desfeitas, ao passo que as representações negativas seguem sendo tecidas subterraneamente. Com a proximidade do parto, é real e iminente o nascimento dentro da família de um novo e pequeno membro, que irá reorganizar todo o funcionamento precedente de seus genitores e parentes. Todas estas mudanças podem ser mais bem suportadas quando as expectativas para esta chegada não estão muito fechadas, podendo ser reformuladas após o nascimento do bebê. Este período de preparação é de fundamental importância para que a mãe entre num estado num estado de imensa sensibilidade, denominado de “preocupação materna primária” (Winnicott, 2000), o qual as habilita a se colocarem no lugar de seus bebês e oferecer-lhes cuidados adequados. Como indica Winnicott, este estado de loucura “temporária” é necessária para o estabelecimento do vínculo, não estando aí implicada a exigência de uma aptidão superior, quase mágica, mas sim, tão somente, de uma devoção comum. Todo este período de preparação, no entanto, não garante necessariamente que uma mãe, ao ver-se diante do filho tão esperado, o ame de imediato. A afeição pode desenvolver-se gradualmente, em geral dentro da primeira semana de vida do bebê (Klauss & Kennel, 1992). Durante este tempo, variável de acordo com cada caso, a mãe possivelmente trata de realizar ainda alguns O encontro antecipado: vicissitudes da prematuridade O parto prematuro, geralmente de forma abrupta, interrompe o tempo da gestação e instaura um tempo suspenso. Não existe nenhum registro no passado que possa ofe- recer aos pais qualquer diretriz a respeito do que sentir e de como agir frente a um bebê nascido no pânico e no imprevisto e que lhes é bruscamente arrancado dos braços para receber cuidados intensivos. E o que pensar sobre o futuro deste filho, cuja sobrevivência e cuja normalidade estão postas em xeque? As mães vêem-se mergulhadas num presente descolado do futuro e do passado, diante de um bebê que é, na maioria das vezes, tão diferente do esperado, de aparência pequena e doente, e que tem de ficar por um período afastado do convívio familiar que lhe garantiria inserção e filiação. O nascimento, então, ao não ser incluído em uma narrativa coerente, torna-se uma ruptura sem precedentes e não uma continuidade que garantiria a amarração entre o bebê idealizado e o bebê real. Ao incidir justamente no final do período gestacional, durante o qual a mãe estaria se desfazendo de representações por demais específicas para poder se vincular ao recémnascido, o parto prematuro interrompe a preparação para a chegada do bebê real, trazendo ao mundo, antes do tempo, um bebê que não se assemelha ao que foi até então imaginado. Ou seja, os bebês nascidos prematuramente correm o risco de não serem antecipados como sujeitos justamente pela vertente traumática do parto prematuro que coloca o real orgânico em evidência radical (Zornig, 2001). Neste sentido, a possibilidade materna de antecipar um sujeito além do organismo biológico, fica prejudicada justamente pela descontinuidade temporal instaurada pela situação de prematuridade. Como aponta Winnicott ao retomar o texto de Lacan sobre o estádio do espelho, o bebê pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVII, n. 181, março/2005 ajustes necessários para fazer daquele pequeno corpo que se move e chora o filho digno de suas apostas. Ao ver-se diante deste bebê que lhe saiu do ventre e que é, impreterivelmente, de algum modo diferente do filho imaginado, a mãe tem de realizar “uma operação de reconhecimento que permite a inscrição que situa o bebê na filiação, na história parental, numa série desde a qual passa a ser contado” (Jerusalisky, 2002, p. 117, grifo das autoras). As representações acerca do bebê têm de ser reconstruídas, agora a partir das linhas gerais oferecidas pelo bebê real (Stern, 1997). Os esquemas maternos sobre si mesma também têm de sofrer alterações, na medida em que o nascimento do filho se dá concomitantemente ao tornar-se uma mãe real. Toda a sua esfera de interesses tem de ser redirecionada, cumprindo o objetivo primeiro de oferecer ao filho bem-estar. Este bebê que recém chega ao mundo lhe exigirá uma soma incomensurável de esforços. Entretanto, desde o princípio, o bebê oferece sinais a suas mães, como movimentos oculares e corporais, que lhes permitem formar com o filho um forte vínculo afetivo (Klauss & Kennel, 1992). Estas respostas, assim como a saúde do recém-nascido, facilitam a permanência do bebê real como mantenedor das expectativas parentais, na medida em que oferecem subsídios para que seja antecipado em suas conquistas. >9 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVII, n. 181, março/2005 >10 ao olhar para o rosto da mãe, vê sua própria imagem, imagem que lhe propicia a vivência de uma unidade, de uma totalidade. A instauração desta relação especular, desta antecipação subjetiva do bebê é extremamente dificultada no caso de bebês nascidos prematuramente e internados nas Unidades de Tratamento Intensivo. Cabe aos médicos, e não aos pais, como seria no caso de bebês nascidos a termo e sem complicações, tomar as providências e as decisões quanto ao bem-estar e à sobrevivência do recém-nascido. No espaço artificial e imediatista de uma UTI Neonatal, onde o saber médico é privilegiado, as mães podem se sentir alijadas do cuidado de seus bebês, impossibilitadas de fazer uso de seu saber inconsciente no tocante à maternidade. O espaço para as histórias individuais e familiares, saberes construídos ao longo do tempo, amarrando futuro, passado e presente, podem ocupar lugar de menor importância diante da exigência de procedimentos médicos em horários regulares, substituindo-se o tempo da narrativa pelo tempo descontínuo da urgência. Dentro do ambiente intensivista, a mãe pode não encontrar o reasseguramento social de importância fundamental, quanto à sua capacidade para exercer a maternagem. Nos últimos meses de gravidez, quando a barriga já está bastante pronunciada, toda a sociedade passa a reconhecer a gestante como mãe, outorgando-lhe um estatuto particular que a faz sentir-se forte e importante (Mathelin, 1999). O parto prematuro ocorre num momento em que ainda não se constituiu de maneira firme a imagem daquela mulher como mãe. Ao contrário, no período em que tal reconhecimento deveria ser solidificado, a mãe se vê às voltas com a sensação de incompetência, podendo pensar que não foi capaz de sustentar seu filho protegido em seu ventre até os nove meses (Mathelin, 1999; Klauss & Kennel, 1992). Desconfiada em relação a si mesma, a mãe pode afastar-se de seu filho no intuito de protegê-lo. Como aponta Catherine Mathelin, “se a ambivalência está presente em cada nascimento, o parto prematuro coloca em primeiro plano a sensação de ser perigosa para seu bebê” (1999, p. 67). As fantasias de destrutividade maternas não podem ser dissipadas diante de um bebê que, saudável, demonstraria não ser atingido por elas. Um bebê prematuro é sonolento, menos responsivo e ensaia poucos movimentos de corpo, o que nos conduz ao questionamento de Mathelin: “Como sentir-se mãe de um bebê que não dá sinal, que não mama no seio, que não olha (...), que não fabrica mãe?” (1999, p. 67). Sabemos que o recémnascido exerce um papel fundamental na modulação da maternagem que lhe é oferecida, legitimando a competência de sua cuidadora com sua saúde, com olhares e gestos que a procuram. Em contrapartida, o bebê prematuro precisa investir suas energias para o processo de auto-regulação, não podendo reassegurar sua mãe de estar exercendo bem esta função. Como nos ressalta Druon (1997), estes pequenos bebês que permanecem por um período internados em UTI Neonatal não estão nem no útero materno e nem tampouco no exterior. Circunscritos no espaço das incubadoras, estão num lugar intermediário. Estão ali de passagem, em direção ao lugar definitivo que irão ocupar, em casa, O Grupo Criar-te O Grupo Criar-te é uma oficina terapêutica de criatividade voltada às mães de recémnascidos prematuros em UTI Neonatal, realizada semanalmente no Instituto Fernandes Figueira desde fevereiro de 2001. Durante as reuniões são confeccionados pelas participantes objetos para os bebês internados, como álbuns de bebê, cestas, caixas, porta-retratos, quadrinhos com mensagens e móbiles. Às mães é oferecida apenas a matéria-prima para as possíveis criações, acompanhada de algumas sugestões a respeito do que pode ser ali produzido. Cabe às monitoras garantir ape- nas um contorno àquela multiplicidade de cores, recortes, formatos e falas que vão surgindo através das mãos que criam, se movimentam e procuram em meio a desejos e fantasias. O mínimo de interferência é esperado, ocorrendo somente quando solicitada pelas participantes. As discussões que porventura se estabelecem durante as atividades do grupo são também inteiramente livres. As palavras que entre as mães circulam são como reflexos de espelhos e constroem uma rede com seus feixes. Os laços entre as mães são reforçados pela troca de histórias semelhantes e pela liberdade que lhes é concedida pelas coordenadoras para construir o espaço do Criar-te. Winnicott equiparou o brincar à saúde ao correlacionar o brincar à possibilidade de exercício da criatividade. A experiência do brincar traz em si a instauração de um espaço potencial onde existe um interjogo entre a fantasia e a realidade, entre o mundo interno e a realidade compartilhada. Brincar significa vivenciar a transicionalidade, o ir e vir, a criação de um objeto e a destruição do mesmo. Brincar, numa ótica winnicottiana, significa relativizar a dor de nossa existência. Neste sentido, não é o objeto que é transicional, mas sua representação. Ou seja, o brincar enquanto espaço transicional permite a transição de um estado em que a criança está fundida com a mãe para “um estado em que está em relação com ela como algo externo e separado” (Winnicott, 1975, p. 30). Para o autor, a clínica deve operar de modo análogo, constituindo um espaço no qual duas pessoas brincam juntas. O Grupo Criar-te, em concordância com as proposições de Winnicott, oferece às pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVII, n. 181, março/2005 junto a seus pais e familiares. De modo análogo, suas mães não são mais gestantes, mas geralmente não conseguem se sentir plenamente mães no exercício de suas funções, visto que não podem prescindir dos cuidados dos profissionais especializados para garantir a sobrevivência dos filhos. Assim sendo, a UTI Neonatal abriga tanto para o recém-nato como para sua mãe, um período de transição. O tempo de internação dos bebês, além de garantir-lhes o funcionamento autônomo do corpo, pode então atuar a favor da vinculação mãe-bebê se o ambiente do hospital funcionar como espaço para elaboração das vivências traumáticas da prematuridade. Neste sentido, a assistência psicológica à díade, integrada a um trabalho interdisciplinar congregando profissionais de diversas áreas que atuam na UTI, faz-se fundamental. O presente artigo destaca e apresenta o Grupo Criar-te como uma modalidade de intervenção psicológica possível no cuidado da mãe e do bebê prematuro em UTI Neonatal. >11 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVII, n. 181, março/2005 >12 mães de um espaço de lazer e relaxamento no qual a criatividade lúdica se manifesta livremente a serviço da confecção de presentes para os bebês internados. O espaço do Criar-te contrasta em relação ao ambiente intensivista, cujas regras não podem ser estabelecidas pelas mães, mas sim pela instituição e pelos médicos que momentaneamente acolhem os seus bebês. Por este motivo, é tão fundamental que as mães possam exercer sua escolha em não participar do grupo, não estando aí implicada qualquer conotação de resistência. Entende-se que a própria negativa é terapêutica na medida em que as mães podem fazer valer sua vontade sem terem medo de sua destrutividade. As atividades do grupo se realizam semanalmente e esta “sobrevivência” possibilita às mães depositar confiança na assistência psicológica que lhes é dedicada. Algo análogo ao espaço transicional que se interpõe entre a mãe e seu bebê toma parte durante o Grupo Criar-te. Winnicott pressupõe um estado de fusão mãe-bebê inicial durante o qual o bebê vivencia uma experiência de onipotência viabilizada pela adaptação materna às suas necessidades. Ao oferecer ao bebê aquilo que ele pode conceber, a mãe garante ao filho a ilusão de haver criado tudo aquilo que recebe. De maneira gradual, a mãe pode despreocuparse de oferecer a seu filho uma adaptação (quase) completa às suas necessidades, reconhecendo no mesmo a capacidade para suportar graus cada vez maiores de frustração. O uso dos objetos transicionais ocorre justamente neste momento em que a diferenciação eu/não eu produz no bebê uma angústia de separação enorme pelo reco- nhecimento da existência da mãe como diferenciada e fora de seu controle, ao mesmo tempo em que evidencia sua dependência a seus cuidados. Assim, os objetos e fenômenos transicionais ao mesmo tempo apontam para a experiência de separação, produzindo um efeito de união enquanto substitutos da figura materna. No caso da mãe, quando encontra o filho, recém-saído do ventre que o recobria, não apenas fisicamente, mas também imaginariamente, existe a expectativa de que haja uma sobreposição entre a realidade objetiva e aquilo que foi subjetivamente idealizado. Entretanto, um espelhamento perfeito entre o bebê imaginado e o bebê real é impossível, do mesmo modo que uma adaptação irrestrita por parte da mãe às necessidades do bebê, o que garantiria uma sobreposição exata entre o que o mesmo é capaz de conceber e o que de fato recebe. É neste contexto que Winnicott recorre ao termo “mãe suficientemente boa”, ressaltando sua possibilidade de identificação e não sua onipotência. Um bebê nascido prematuramente, contudo, defronta sua mãe com um real demasiadamente distinto do esperado e sem qualquer anunciação, fazendo com que sua capacidade de se colocar no lugar de seu filho, de investi-lo narcisicamente fique prejudicada.. Através dos objetos produzidos no Criar-te as mães são estimuladas a pensar a respeito de seus bebês, ofertando-lhes presentes que não condizem com sua condição atual de bebês internados. São confecções que se assemelham a um enxoval, cuja preparação é hábito rotineiro entre grande parte das mães, favorecendo a imaginação materna acerca de seu bebê. De acordo com pode aquele bebê realizar e o que desejam que realize (Jerusalinsky, 2002) e, para que isto seja possível, é necessário que entre os dois pólos não se institua uma distância muito grande, mas sim uma proximidade suficiente a que se dê a alternância entre o que é imaginado e o que se concretiza em ato. Tal qual o uso de objetos e fenômenos transicionais, as atividades realizadas durante o grupo promovem uma separação correlata a uma reunião entre a mãe e seu bebê. A participação no Criar-te tem como exigência um afastamento físico dos recém-nascidos, distância esta preenchida pela confecção de presentes que oferecem uma via alternativa de interação com os recém-nascidos, mediada pelo lúdico. Na colocação de Winnicott: O objeto constitui um símbolo da união da mãe e do bebê (...). O uso de um objeto simboliza a união de duas coisas agora separadas, bebê e mãe, no ponto, no tempo e no espaço, do início de seu estado de separação. (1975, p. 135) O Grupo Criar-te possibilita a saída da unidade, mas de um modo que as mães podem continuar a se dedicar a seus filhos, através dos objetos que são para eles criados e que os fazem simbolicamente presentes e cuidados. Mais do que isso, podem as participantes oferecer a seus filhos um cuidado que está para além de suas necessidades médicas. Neste sentido, o Criar-te favorece um resgate da competência materna, posto que as mães verificam em suas criações um tipo bem-sucedido de cuidado. Por este motivo, é tão importante que os objetos feitos durante o grupo sejam sentidos pelas mães como produções próprias e autênticas, reflexo de suas capacidades, pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVII, n. 181, março/2005 Mathelin, “preparar o enxoval fabrica, para além da roupa, os braços, as pernas, a imagem do corpo do bebê na cabeça da mãe” (1999, p. 66). Durante as reuniões, referências à internação e à prematuridade dos recém-nascidos são trazidas nas trocas das participantes entre si e com as coordenadoras do grupo, sendo fundamental que o estado de saúde dos bebês seja contemplado. Neste sentido, o Grupo Criar-te comporta uma área intermediária entre o bebê real, diferenciado da mãe, e o bebê imaginado, sob seu controle mágico, e tudo aquilo que é neste espaço confeccionado serve a aproximá-los, podendo exercer uma função análoga à dos fenômenos e objetos transicionais. O Grupo Criar-te procura favorecer a vinculação da mãe com seu filho real, através do filho idealizado, promovendo o resgate da capacidade materna de imaginar a respeito de seu bebê, já nascido e temporariamente sob cuidados intensivos. É neste sentido que dizemos que tal modalidade de intervenção visa a aproximar o bebê imaginado e o bebê real e não a realizar a passagem do primeiro ao segundo, pois como nos aponta Myriam Sjezer, “a aceitação do filho real não pressupõe a morte da criança imaginária” (1999, p. 60). Pelo contrário, pressupõe que, diante do filho real, possa a mãe seguir imaginando e lhe criando planos, assim antecipando suas conquistas. Naturalmente as reais qualidades e capacidades do filho devem ser contempladas, de modo que as idealizações não se interponham como barreiras à vinculação com um bebê que nunca poderia cumprir as expectativas lançadas. É esperado que os pais possam oscilar entre a constatação do que >13 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVII, n. 181, março/2005 >14 o que reitera a importância de as coordenadoras oferecerem apenas um contorno mínimo às atividades. É muito comum que, durante uma primeira participação no Criar-te, as mães se mostrem descrentes quanto às suas habilidades. Incentivadas, começam a vasculhar por entre os materiais, a combinar cores, a colar recortes numa produção que se vai compondo aos poucos e cuja forma final é para todos surpreendente. Assim sendo, a seguinte colocação de Winnicott é fundamental para o entendimento do caráter terapêutico da oficina de criatividade: “Uma psicoterapia do tipo profundo pode ser realizada sem trabalho interpretativo. (...) o momento significativo é aquele em que a criança se surpreende a si mesma, e não o momento da minha arguta interpretação” (1975, p. 75). Apesar do autor estar se referindo ao trabalho com crianças, em outros textos, como em “Variedades Clínicas da Transferência” (1955-6), enfatiza a necessidade do analista acompanhar o processo analítico do paciente adulto, adaptando-se às suas necessidades e não interpretando de forma abrupta. Espera-se que a surpresa extraída a partir dos objetos confeccionados no Criar-te possa ser reproduzida dentro do ambiente intensivista, através da certeza gradualmente conquistada pelas mães de que podem, ainda na UTI, ocupar-se dos cuidados de seus filhos. E tal dedicação depende de sua sensibilidade materna, do saber construído sobre seu filho durante a gestação, do encontro após o nascimento, de condições que devem ser favorecidas, acolhidas, reconhecidas e não determinadas a partir de regras preconcebidas. Considerações finais Desde sua implementação o Grupo Criar-te vem se mostrando como uma modalidade de intervenção eficaz no cuidado de mães e bebês prematuros internados em UTI Neonatal. As atividades propostas pelos encontros, aliadas à técnica com que são encaminhadas, conferem singularidade a esta oficina de criatividade. A partir de um referencial winnicottiano, o Criar-te vem propiciando às mães a possibilidade de reencontrar em seus bebês a porção de sonho de que são feitos em parte. Pretende-se auxiliá-las a sair da paralisia que pode causar a irrupção traumática do real pelo nascimento inesperado de um bebê que imediatamente necessita ser internado. Através dos álbuns, cestas e porta-retratos que vão sendo livremente confeccionados, a capacidade materna de imaginar a respeito de seus filhos é facilitada e, conforme nos aponta Mathelin, “os bebês se constroem, em parte, graças à possibilidade de devaneio das mães” (1999, p. 23). No entender de Winnicott, “no brincar a criança manipula fenômenos externos a serviço do sonho e veste fenômenos externos escolhidos com significado e sentimento oníricos” (1975, p. 76). As participantes do Criar-te criam, a partir de seus devaneios, um novo enxoval para seus bebês que momentaneamente estão internados, e assim lhes oferecem vestes que irão definir seus contornos para além da prematuridade, para além da incidência traumática do real orgânico. E, neste mesmo movimento, as participantes se criam e se recriam, como mães, que então podem assumir junto a seus filhos os seus lugares. Artigo recebido em novembro de 2004 Aprovado para publicação em março de 2005 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVII, n. 181, março/2005 Referências DROUN, Catherine. Ajuda ao bebê e aos seus pais em terapia intensiva neonatal. In: WANDERLEY, Daniele de Brito (org.). Agora eu era o rei: os entraves da prematuridade. Salvador: Ágalma; 1999, p. 35-54. JERUSALISKY, Julieta. Enquanto o futuro não vem – A psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês. Salvador: Editora Álgama, 2002. KLAUSS & KENNELL. Pais/Bebê: A formação do apego. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. MATHELIN, Catherin. O sorriso da Gioconda. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. SZEJER, Myriam. Palavras para nascer: a escuta psicanalítica na maternidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999, p. 53-132. STERN, Daniel. A constelação da maternidade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. _____ O ambiente e os processos maturacionais. Porto Alebre: Artes Médicas, 1983. _____ A natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1999. _____ Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000. _____ Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ZORNIG, Silvia. Prematuridade e trauma. In: Tempo psicanalítico. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2001. v. 33. >15