RELATÕRIO VERSUS: REGIÃO METROPOLITANA DE PERNAMBUCO Vivemos em uma sociedade cada vez mais individualista, onde as pessoas que preocupam muito com o ter, com o seu bem-estar, com a sua família, o seu emprego, o seu estudo, o seu, o seu, o seu. Nesse sentido, uma bolha se forma ao nosso redor e a vida do outro não preocupa tanto...o outro parado no sinal pedindo dinheiro, o outro que passa fome, o outro que não tem onde morar...Nesse sentido, são importantes espaços de reflexão sobre a sociedade e o sistema no qual estamos inseridos, a fim de entender não só a sociedade, mas no que ela se fundamenta. Ao contrário do que eu pensei pelo nome, o VERSUS, Vivências e Estágios na Realidade do SUS, não se fundamenta apenas no estudo do Sistema de Saúde no qual estamos inseridos, mas também mostra que o estudo em saúde também é o estudo dos determinantes sociais em saúde, como renda, terra, transporte, participação social, visto que quando esses itens não funcionam adequadamente, a saúde da população não vai bem, pois uma coisa interfere na outra. Por isso também, é necessário que os pacientes entrem em um estado de imersão, já que só afastados da lógica da sociedade é que podemos entende-la em sua profundidade. Então, imersos com mais 25 viventes e os facilitadores, viveu-se um verdadeiro desafio de conviver com as mais variadas personalidades e indivíduos, uma reflexão profunda de sociedade e do que está arraigado nela, como as mais diversas formas de opressão, machismo, racismo, LGBTfobia, uma troca de sentimentos e emoções ao perceber que fazemos parte disso, tanto como oprimidos como opressores, um estudo sobre os mais diversos movimentos sociais, e acima de tudo uma descoberta do SUS voltado para os pacientes psiquiátricos, tão estigmatizados e abandonados dentro do sistema: passou-se então a ver esses pacientes em sua essência, e não só a doença que faz parte deles. Nesse sentido, estudar como se estrutura a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) foi fundamental para entender a mudança de paradigma que vem ocorrendo desde a lei 10216- a Lei Antimanicomial- que pretende extinguir os Hospitais Psiquiátricos e cuidar desses pacientes sobre uma nova ótica, a ótica da RAPS, que engloba os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e as Residências Terapêuticas, que pretendem tirar esse paciente do encarceramento dos manicômios e mostrar que a ressocialização é possível. O VERSUS na RAPS, foi uma vivência realizada na Região Metropolitana de Pernambuco e foi dividido didaticamente em três módulos: módulo 1, Como Funciona a Sociedade; módulo 2, Redes de Atenção à Saúde; módulo 3, Papel do Sujeito na História. Nesses 13 dias de imersão, todos nós viventes ficamos em um alojamento de nome CERVAC, que trabalha na ótica da reabilitação e valorização de crianças com deficiência, que se localiza no Morro da Conceição, em Recife. Durante o tempo de vivência, de 29 de julho a 10 de agosto, só saímos do alojamento para realização das atividades que estavam diretamente relacionadas ao VERSUS. O lema desse VERSUS foi “Desconstruir para Construir”, o que já fez sentido no primeiro módulo, que serviu basicamente para mostrar o funcionamento da sociedade e do sistema capitalista, governo, políticas públicas e sociais. Também, conhecemos a história do Morro da Conceição, que é marcada por grandes lutas por direitos, através de conversa com grandes protagonistas dessa história, com Padre Reginaldo e Conceição. A fim de quebrar preconceitos e conhecer a cultura negra, visitamos um terreiro de Candomblé, participamos de uma cerimônia de oferenda, fomos recebidos com grande cordialidade por Conceição e o Pai de santo seu sobrinho, que esclareceu a todos os nossos questionamentos da forma mais clara possível, além de relatar todos os preconceitos sofridos por sua religião e seus praticantes, que muitas vezes precisam esconder suas crenças. Dando continuidade a esse módulo, discutimos sobre as opressões as quais muitas pessoas sofrem diariamente, conhecendo as raízes do racismo, do machismo e da LGBTfobia, e nos damos conta de que muitos de nós, por mais que aquilo fosse mantido bem escondido, ou que tentássemos esconder, ao puxar na memória havíamos sofrido algum tipo de opressão ou oprimido alguém. Então, os sentimentos vieram à tona, e nos demos conta de que não era um exagero por parte de militantes de movimentos sociais, mas que era uma realidade e que deveríamos lutar todos os dias contra aquelas situações que até matavam inocentes. No segundo módulo, o mais aguardado, pudemos conhecer a história de como a loucura foi enfrentada e conceituadas nos vários momentos da história, conhecer o modelo italiano criado por Franco Basaglia, no qual o Brasil está se inspirando para fazer a sua reforma antimanicomial. Vivemos um período de mudança, visto que o foco está saindo da doença mental, para ser o paciente como um todo, o encarceramento deixa de ser uma solução, para vivermos a ressocialização. Entendemos então que a Lei Antimanicomial foi importante, mas é apenas um passo pequeno diante de todas as mudanças que são necessárias para tirar o manicômio das pessoas, tanto os pacientes quando os profissionais que trabalham da saúde mental. Esse módulo comtemplou muitas vivências e atividades fora do alojamento, fomos divididos em grupos para visitar as mais diversas etapas dessa rede de atenção psicossocial. Tive a oportunidade de visitar um hospital psiquiátrico, o Ulisses Pernambucano e ter contato com os pacientes e com uma enfermeira, que foi nos mostrando não só o espaço, mas como era o procedimento de tratamento daqueles pacientes que ali moravam. Nós chegamos lá com um certo receio e preconceito, que foi facilmente rompido por aqueles pacientes, seus olhares, sorrisos e suas histórias. Ali pude me dar conta de que eram pessoas como todas nós e que não mereciam ser encarceradas, perder os seus direitos mais elementares, por cause de uma sociedade que não os compreendia. Cada rosto curioso e perdido daqueles serviu de motivo para que entendêssemos que hospitais psiquiátricos não eram a solução e deveriam ser fechados. Mas então, qual era a solução? Então, visitamos um CAPS, que é apenas mais um instrumento dessa rede, que se subdivide em CAPS infantil, álcooldrogas e adulto. Lá, os pacientes não são internados permanentemente, são tratados e enviados novamente para a casa. Sim, é uma solução, mas também percebemos que o manicômio está dentro das pessoas, que a estrutura não consegue fazer com que os profissionais vejam aqueles indivíduos como seres humanos e não doentes, e os próprios pacientes não conseguem por muitas vezes sair dessa condição de encarceramento, mesmo livres. Também conversamos com responsáveis por residências terapêuticas, que são casas para onde os pacientes dos hospitais psiquiátricos são levados quando já perderam o vínculo com os seus familiares. Nessas casas moram de 8 a 10 pacientes com os seus cuidadores. Lá, eles têm mais autonomia, o seu próprio dinheiro, e são vistos como indivíduos, tendo a sua liberdade e sendo ressocializados. Em todas as cuidadoras com as quais conversamos, vimos o brilho no olhar de quem tinha a oportunidade de receber um ex-interno de um hospital psiquiátrico, ensinar aquelas pessoas as coisas mais básicas: usar o vaso sanitário, cozinhar, fazer compras; e ver aquela pessoa desabrochar, viver sua própria vida, namorar e ser visto como uma pessoa comum. Conhecemos também estruturas como da Unidade Básica de Saúde e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, que funcionam como auxiliares da RAPS, visto que encaminham aqueles pacientes ao CAPS, e tem um maior contato com os pacientes, conseguem ver sua evolução e funcionam como a porta de entrada daqueles pacientes na rede. Assim, conseguimos perceber que há uma solução e algo já está sendo feito para mudar a lógica dos manicômios, o que nos deixou esperançosos. Percebemos que há pessoas que lutam todos os dias para que essa realidade mude, que aos poucos as pessoas vão vendo a loucura de outra forma e que é possível sim conviver com os transtornos, que acabam sendo parte daquela pessoa e não o todo como antes era visto. Ao analisar o conceito de loucura também, ficou claro que é algo fluido, que muda constantemente e que cada um de nós temos um pouco de loucura, já que a linha que separa a loucura da dita normalidade é muito tênue, todos nós estamos sujeitos a ultrapassá-la. Por fim, no terceiro módulo, depois de toda essa carga de informação recebida, pudemos refletir sobre a nossa responsabilidade como agente de mudança dessa realidade. Esse módulo começou com uma vivência no acampamento Che Guevara do MST. Chegando lá, tivemos uma conversa com um militante do movimento e quebrar muitos preconceitos que tínhamos por não receber a informação correta da grande mídia, conhecer a história do acampamento, que abarcava 90 famílias e 17 anos de ocupação com 3 desapropriações. Fomos muito bem recebidos e tivemos a oportunidade de conhecer diversos moradores, de entrar na casa deles e compartilhas de suas histórias de vida. Em todas as casas, sem exceção, fomos recebidos de braços abertos, e pudemos desfrutar de um pedaço da história daquelas pessoas, que não tinham acesso a direitos mínimos, como saúde, educação e água de qualidade. Mesmo assim, quando perguntadas se gostavam de morar ali, todas com os olhos marejados respondiam que ali era o seu cantinho, que não poderiam viver sem aquele pedacinho de terra que lutaram tanto para conquistar. Depois dessa vivência intensa, conhecemos a história de vários movimentos sociais e fomos convidados a construir um que mais nos chamasse atenção, e a nos ver como parte transformadora da realidade tão injusta que conhecemos. O que ficou no final disso tudo, foi uma imensa vontade de fazer a diferença, de não mais fechar os olhos para todas as injustiças que vemos. Nunca se conheceu tanto a sociedade como nesse momento em que se viveu “fora” dela. O VERSUS é uma experiência incrível, que me fez entender tudo de outra forma, e é capaz de gerar profissionais mais humanizados, com outra visão de mundo e da realidade. Como sugestão, gostaria apenas que ficássemos literalmente imersos, sem celular, para que vivêssemos tudo com a maior intensidade possível. Sem o viés dos movimentos sociais, estudando o SUS apenas academicamente, não conseguiríamos compreender tanto e tão bem porque a saúde do nosso país não é a ideal. Tudo que fica em mim depois dessa experiência é um sentimento de agradecimento por tudo que me foi proporcionado e uma vontade enorme de poder construir em meu Estado um VERSUS como o que vivi, para poder despertar os mesmos sentimentos que me foram despertados, de querer fazer a diferença e construir um país melhor.