universidade federal do ceará

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
ASPECTOS DE SEGURANÇA JURÍDICA NO BRASIL
JOSÉ DAVI CAVALCANTE MOREIRA
Fortaleza - Ceará
2010
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
ASPECTOS DE SEGURANÇA JURÍDICA NO BRASIL
Dissertação apresentada como pré-requisito parcial
a obtenção do grau de Mestre em Direito junto ao
Programa de Pós-Graduação em Direito da
Faculdade de Direito da Universidade Federal do
Ceará, tendo como orientador o Professor Doutor
Francisco Régis Frota Araújo.
José Davi Cavalcante Moreira
Fortaleza
Agosto/2010
3
“Olhe profundamente no coração dos homens e veja
o que deleita e o que desgosta o homem sábio.”
Marco Aurélio.
4
A meus pais, José Filho e Socorro, pelo amor e incentivo
de sempre.
A Alice Oliveira de Souza, pelas ótimas idéias, por não
me deixar esmorecer e pelo amor.
Ao Professor Francisco Régis Frota Araújo, pela
orientação, acessibilidade e toda a ajuda ao longo dessa
jornada.
Aos Professores Maria Lírida Calou de Araújo e
Mendonça e Regnoberto Marques de Melo Jr., por me
honrarem tomando assento na banca examinadora.
Aos docentes da UFC, a quem agradeço na pessoa do
Professor Francisco Gérson Marques de Lima, minha
gratidão.
A Lígia Maria Silva de Melo de Casimiro, Cristiane
Xavier de Souza, Andrine Oliveira Nunes, Marilene
Diogo Silva Arrais e Maria Lírida Calou de Araújo e
Mendonça sem cujas contribuições, cada uma a seu modo,
esse trabalho jamais teria o mesmo valor.
Aos amigos da Petrobras, meus pares e superiores, que
compreenderam a necessidade de concluir essa missão e
ofereceram o suporte necessário.
A todos que me incentivaram, muito obrigado.
5
RESUMO
O presente estudo tem como principal objetivo chamar atenção para a falta de
pesquisas focadas no princípio da segurança jurídica, o qual não deixa ter sua
importância no Estado de Direito, mas é muito pouco discutido e poderia ter
uma amplitude ainda maior com o desenvolvimento oferecido pelo debate
acadêmico e sua implementação com maior intensidade pelos aplicadores do
direito. Igualmente importante é expor a situação de desequilíbrio institucional
que há muito mina o desenvolvimento do Brasil, fragilizando as instituições e
nos mantendo no caminho do subdesenvolvimento. Vistos tais aspectos, fica
patente a importância da segurança jurídica em toda a atuação do Estado. A
partir do entendimento de que a segurança jurídica é princípio constitucional,
buscamos situá-lo no contexto das constituições brasileiras desde a e 1824 até
a de 1988, encontrando, salvo uma exceção, menção à segurança jurídica em
todas elas. Percebida a importância do princípio, já que vem sendo perene no
ordenamento jurídico brasileiro, com o objetivo de estabelecer o princípio no
ordenamento jurídico, compreendendo-o como garantia, princípio e direito
fundamental. Superada a apresentação da segurança jurídica, seu histórico
constitucional e sua condição jurídico-filosófica, passamos a abordar diversos
aspectos que fragilizam a segurança jurídica, expondo as implicações do
mesmo, quais instituições são atingidas e em que medida é causada a
insegurança por cada um deles, evidenciando o desequilíbrio institucional já
indicado. Evidenciados os fatores de insegurança que nos afligem, abordamos,
sempre com base em sólida doutrina, a importância da segurança jurídica nos
Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, a fim de que fique claro que o
Estado Democrático de Direito não coexiste com a insegurança, que impede o
objetivo básico do Estado: prover segurança aos cidadãos.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito; Direito; Segurança jurídica;
Princípio; Constituição; Histórico; Ameaças; Importância.
6
ABSTRACT
This study has as it‟s main objective to draw attention to the lack of researches
focused on the legal security principle, that still is important to the Rule of Law,
but is very little discussed and could have a very wider reach with development
form academic discussion and it‟s more intense implementation by the legal
workers. Is also important to show the institutional unbalance that since a long
time ago jeopards the Brazilian development. Seen these aspects, is patent the
legal security‟s importance for the state‟s actions. Starting from the
comprehension of the legal security as a constitutional principle, we searched to
put it on the history of the Brazilian Constitutions since 1924 to 1988, finding,
with Just one exception, mentions of legal security in all of them. Seen the
importance of the principle, that is being permanent on the Brazilian law system,
with the objective of to establish the principle on the Brazilian juridical order,
understanding it as a warranty, principle and fundamental right. Overcome the
presentation of the legal security, it‟s historical facts and juridical and
philosophical history, are approach many aspects that weaken the legal
security, showing it‟s implications, wich institutions are affected and the
measure of the insecurity caused for each of them, putting in evidence the
institutional unbalance already mentioned. Shown the aspects of insecurity that
worry us, we approach, firmly based on the juridical lessons, the importance of
the legal security to the Judicial, Legislative and Executive powers, in order to
sustain that the Rule of Law does not coexist with the insecurity, that bock the
basic state‟s objective: to provide security to the citizens.
Keywords: Rule of Law; Law; Legal security; Principle; Constitution; History;
Menaces; Importance.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................8
CAPÍTULO 1
SEGURANÇA JURÍDICA..................................................................................11
1.1 Histórico.......................................................................................................12
1.2 Dimensão subjetiva da segurança jurídica..................................................18
1.2.1 Direito adquirido........................................................................................26
1.2.2 Ato jurídico perfeito...................................................................................29
1.2.3 Coisa julgada............................................................................................30
1.3 Dimensão subjetiva da segurança jurídica..................................................33
1.3.1 Proteção da confiança..............................................................................35
1.4 Segurança jurídica e constituição................................................................40
1.4.1 Segurança como garantia.........................................................................41
1.4.2 Segurança como princípio........................................................................47
1.4.3 Segurança como direito fundamental.......................................................52
CAPÍTULO 2
ASPECTOS DA AUSÊNCIA DE SEGURANÇA JURÍDICA.............................59
2.1 Emendas constitucionais e legislação casuística........................................60
2.2 A desarmonia dos poderes..........................................................................91
2.3 Medidas provisórias.....................................................................................99
2.4 A interferência judicial na função legislativa e a segurança jurídica..........105
2.5 A relativização da coisa julgada.................................................................117
CAPÍTULO 3
A IMPORTÃNCIA DA EFETIVIDADE DA SEGURANÇA JURÍDICA.............125
3.1 A proibição do retrocesso..........................................................................125
3.2 Efetivação do princípio da segurança jurídica...........................................133
3.2.1 Importância da segurança jurídica no âmbito judicial.............................134
8
3.2.2 Importância da segurança jurídica no âmbito legislativo........................138
3.2.3 Importância da segurança jurídica no âmbito executivo.........................143
CONCLUSÃO..................................................................................................148
REFERÊNCIAS...............................................................................................154
9
INTRODUÇÃO
A segurança jurídica, princípio consagrado no ordenamento jurídico
brasileiro, com seu enunciado estabelecido no artigo 5º, inciso XXXVI da
Constituição Federal, representa uma das mais importantes e sólidas garantias
que o ordenamento jurídico oferece aos cidadãos. Tendo em mente que o
Estado, segundo a teoria contratualista, cujo grande expoente é Rousseau,
representou o pacto dos cidadãos que trocaram parte de sua liberdade pela
segurança a ser provida pelo Estado, logo, o citado princípio é a mais básica
das obrigações do ente coletivo.
Apesar da importância da segurança jurídica, são escassos os estudos
específicos, com outros indicando sua existência ou fazendo correlações, o que
não contribui para a efetivação do princípio, nem para sua adequada
compreensão, o que, em última análise, dificulta a máxima efetividade da
Constituição, posto que um de seus mais básicos princípios é debatido num
plano inferior à sua devida importância.
O presente estudo, calcado em pesquisa bibliográfica, em especial
abordando a doutrina jurídica, mas também considerando questões filosóficas
e sociais, tem o objetivo principal de fomentar a discussão acerca a segurança
jurídica. Temos como objetivos específicos demonstrar a relação do princípio
da segurança jurídica com o constitucionalismo, expor suas fragilidades e a
importância de sua efetivação, também indicar situações que afetam
negativamente a segurança jurídica em todos os poderes, ilustrando com
exemplos e analisando as relações institucionais, de maneira a aferir sua
presença em todas as esferas da ação estatal, por último, demonstrar a
importância da segurança jurídica como parte fundamental da atuação dos três
poderes.
10
Quanto à filiação à área de concentração do Programa de Pós
Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, todo o
trabalho é focado na ordem jurídica constitucional, assim como ao eixo
temático dos direitos fundamentais, dada a condição da segurança jurídica
como princípio, garantia e direito fundamental, consagrado na Constituição
Federal entre os direitos e garantias fundamentais, sendo, com efeito, cláusula
pétrea, não admitindo iniciativa no sentido de sua abolição. Tendo em vista o
objetivo principal de fomentar o debate sobre a segurança jurídica a fim de
contribuir para sua efetivação e ampliar sua aplicabilidade, assim como os
demais objetivos, é clara a filiação à linha de pesquisa “a implementação dos
direitos fundamentais e as políticas públicas”, sobretudo considerando o
interesse de implementação da segurança jurídica, aprofundando a linha de
pesquisa, a situamos como ligada à linha de “políticas públicas e direitos
fundamentais”. Dessa forma, entendemos completamente atendidos os focos
de pesquisa e vinculação ao programa de que fazemos parte.
Por evidente que fica, a tese é a existência e importância da segurança
no ordenamento encimado pela Constituição Federal, exposto logo de início; a
antítese é a fragilização do princípio, apesar das garantias que o cercam; e a
síntese/tese é a importância do princípio para o Estado Democrático de Direito,
permeando os poderes
Judiciário,
Legislativo
e
Executivo,
atingindo,
inevitavelmente, todo o Estado e todos os cidadãos.
De início, no primeiro capítulo analisaremos a relação entre a segurança
jurídica e a Constituição, expondo suas dimensões objetiva e subjetiva,
relacionando-as aos papéis do cidadão e do Estado, diferenciando-as, além de
expor a segurança jurídica dentro do contexto de princípio constitucional,
situando-o enquanto garantia, valor e direito fundamental. Os esforços se
destinam a expor ao leitor um panorama da segurança jurídica, com a
finalidade de propiciar o entendimento acerca do alcance do princípio,
necessária para o progresso desejado.
11
Seguindo os estudos, no segundo capítulo, considerando que a
efetivação dos princípios constitucionais em geral não se dá de maneira
apropriada do ponto de vista republicano, focamos nos fatores que decorrem
da ausência da segurança jurídica, sempre com relação aos três poderes. A
análise dos aspectos de insegurança tem importância na medida em que sua
compreensão permitirá o combate aos mesmos, no interesse da máxima
efetividade da Constituição, cuidado que surge com a abordagem da relação
entre todas as esferas do Estado republicano, assim como as conseqüências
disso para o Estado Democrático de Direito.
Empós, vistas as questões segurança jurídica e sua relação com a
constituição no primeiro capítulo, outras de insegurança, no segundo, serão
debatidos no terceiro e último capítulo, aspectos de importância da segurança
jurídica para os podres Judiciário, Legislativo e Executivo, a fim de estabelecer,
enfim, a noção de que o Estado somente solidifica sua existência com ações
capazes de suprir as necessidades dos cidadãos, cumprindo sua parte no
contrato social: a oferta de segurança.
O tema é da maior importância, mas a comunidade jurídica, salvo
algumas exceções pontuais na seara tributária, ainda não atentou para o nível
de importância da segurança jurídica para o Estado Democrático de Direito, e
mesmo para a continuidade da organização estatal, propiciando aos cidadãos a
garantia de preservação de seu patrimônio jurídico, a proteção da confiança
legítima depositada nas instituições e negócios jurídicos, o que tem influência
direta na pacificação e normalidade das relações sociais.
Esperamos trazer mais atenção à necessidade premente de mais
estabilidade e segurança aos cidadãos, dada a fragilidade das instituições
brasileiras, valendo-nos da presente dissertação para oferecer um contributo à
Academia, ao Direito e, principalmente, aos cidadãos.
12
1. SEGURANÇA JURÍDICA
A segurança jurídica tem lugar entre os princípios do direito, elencado na
Constituição Federal no inciso XXXVI do artigo 5º, o qual determina que “a lei
não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”,
aqui já se evidenciam dois pontos importantes:
a) segurança jurídica é princípio constitucional, mesmo que não direta e
textualmente explícito, mas com seus caracteres postos entre os direitos e
garantias fundamentais;
b) a impossibilidade de exclusão do princípio da segurança jurídica, visto
que o artigo 5º da CF é cláusula pétrea, na forma do parágrafo 4º do artigo 60
da Lei Maior: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente
a abolir: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e
periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais".
Nesse diapasão, cumpre esclarecer que a compreensão da segurança
jurídica como princípio impõe que ela seja considerada como uma das balizas
para tudo o que tenha ligação com o direito. Tanto a ação estatal quanto as
relações desse com os cidadãos e dos cidadãos entre si devem observar o
direito à segurança jurídica, dessa forma ficam protegidos tanto o patrimônio
jurídico como um todo quanto as dimensões da própria segurança jurídica.
Especificando as dimensões da segurança jurídica, são duas: objetiva e
subjetiva. Na dimensão objetiva, a proteção é oposta pelo cidadão ao Estado,
sendo o cidadão protegido contra as mudanças na política estatal hábeis a
prejudicar ou fragilizar seu direito à estabilidade, à previsibilidade que lhe
permite planejar seus passos sem que sofra mudanças buscas, sendo, em
13
temos simples, uma parcela do direito à segurança, nesse caso, segurança
político-instittucional.
Na dimensão subjetiva, a proteção é oposta pelo cidadão aos seus
pares, sendo a proteção da confiança depositada nos negócios jurídicos e
direitos em geral de que não serão, por exemplo, os contratos, ou qualquer
outra relação, alterados de modo a afetar o patrimônio jurídico já consolidado.
Aqui o princípio da segurança jurídica suporta os particulares, assegurando aos
atos praticados sob certa regulamentação não serão afetados por outra que
advenha, seria possível falar num direito à estabilidade conferido aos cidadãos.
Partindo das premissas acima expostas, abordaremos a gênese do
princípio da segurança jurídica no ordenamento brasileiro, assim como suas
dimensões, na forma atual, fundamentando os posicionamentos adotados.
1.1 Histórico
Vislumbramos os primeiros traços de segurança jurídica ainda com o
Digesto, acompanhado do posicionamento de Ulpiano, conforme informa
Almiro do Couto e Silva:
O exemplo mais antigo e talvez mais célebre do que acabamos de
afirmar está no fragmento de Ulpiano, constante do Digesto, sob o
título «de ordo praetorum» (D1.14.1), no qual o grande jurista
clássico narra o caso do escravo Barbarius Philippus que foi
nomeado pretor em Roma. Indaga Ulpiano: «Que diremos do
escravo que, conquanto ocultando essa condição, exerceu a
dignidade pretória? O que editou, o que decretou, terá sido talvez
nulo? Ou será válido por utilidade daqueles que demandaram
perante ele, em virtude de lei ou de outro direito?». E responde pela
1
afirmativa.
1
COUTO E SILVA. Almiro do. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança no Direito
Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos
administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº
9.784/99). Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº. 2,
abril/maio/junho, 2005. Disponível na Internet:<www.direitodoestado.com.br>. Acesso em 07 de julho de
2009. p. 05.
14
Posteriormente, na Constituição inglesa de 1215, na qual foi estatuída a
proteção à propriedade privada, decorrendo do devido processo legal:
(39) No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his
rights or possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his
standing in any other way, nor will we proceed with force against him,
or send others to do so, except by the lawful judgement of his equals
or by the law of the land.
[…]
(60) All these customs and liberties that we have granted shall be
observed in our kingdom in so far as concerns our own relations with
our subjects. Let all men of our kingdom, whether clergy or laymen,
2
observe them similarly in their relations with their own men.
Contudo, o presente estudo apenas registrará esse estágio inicial e
avançará direto às constituições brasileiras, demonstrando a evolução do
instituto no direito pátrio.
Nas Constituições brasileiras a noção de segurança jurídica, ainda que
sem essa denominação já se fazia presente desde 1824, no artigo 179, inciso
XXVIII:
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos
Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a
propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira
seguinte.
[...]
.III. A sua disposição não terá effeito retroactivo.
[...]
2
“(39) Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou despido de seus direitos ou posses, ou
considerado fora-da-lei ou exilado, ou privado de sua posição em nenhum sentido, não usaremos a força
contra ele, ou mandaremos ninguém para fazê-lo, exceto pelo julgamento legal de seus iguais ou pela lei
da terra.
[…]
(60) Todos esses costumes e liberdades que nós temos garantido deverão ser observados em nosso reino
nos assuntos de nossas relações com outros sujeitos. Que todos os homens de nosso reino, sejam clérigos
ou leigos, os observe similarmente em suas relações com seus próprios homens.” (Tradução livre do
autor) Fonte: MAGNA CARTA. The British Library. Desenvolvido pela Biblioteca Britânica. Internet.
Disponível em: http://www.bl.uk/treasures/magnacarta/translation/mc_trans.html. Acesso em 23 de julho
de 2009. Seções 39 e 60.
15
XXVIII. Ficam garantidas as recompensas conferidas pelos serviços
feitos ao Estado, quer Civis, quer Militares; assim como o direito
3
adquirido a ellas na fórma das Leis.[...]
Aqui se percebe que mesmo na Constituição de 1824, outorgada, com
resquícios do absolutismo e escrita sem nenhuma participação popular,
contemplou textualmente a sua própria irretroatividade e a proteção ao direito
adquirido, demonstrando que tal noção já era tida em alta conta mesmo no
nascente império brasileiro, assim como a vinculação dessa à legalidade.
Entendemos que a proteção às “recompensas conferidas pelos serviços
feitos ao Estado” tem ligação com direitos adquiridos, visto que são
incorporação ao patrimônio jurídico de cidadãos e são assim referidas logo em
seguida pelo próprio texto. Na Carta de 1891 a proteção se fez presente
através da vedação à leis retroativas:
Art 11 - É vedado aos Estados, como à União:
[...]
3 º ) prescrever leis retroativas.
4
[...]
A proteção aqui se fez contra a retroatividade das Leis, que
indubitavelmente remete à idéia de segurança jurídica, até por impedir que
novos regramentos alcancem situações que se aperfeiçoaram sob a égide de
outras regulamentações.
Em 1934 surge o texto na feição que se tornou célebre e permanece
atual, figurando no artigo 113, “3”:
Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à
3
BRASIL. Constituição (1824). Constituicão Politica do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro. Internet.
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>.
Acesso em 04 de julho de 2009.
4
BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de
Janeiro.
Internet.
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em 04 de
julho de 2009. Acesso em 04 de julho de 2009.
16
liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade,
nos termos seguintes:
[...]
3) A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a
coisa julgada.
5
[...]
A redação contempla as três grandes formas de proteção da segurança
jurídica abordadas no ordenamento brasileiro, é a mesma redação utilizada na
Constituição de 1988. A proteção foi ampliada se comparada com os textos
anteriores, preservando a proteção decorrente da legalidade, no tocante ao
direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, e quanto às decisões judiciais, com a
proteção à coisa julgada.
Na Constituição de 19376 há o único hiato acerca da segurança jurídica
nas
constituições
brasileiras,
compreensível,
mas
jamais
justificável,
historicamente por conta do período ditatorial de Getúlio Vargas, o “Estado
Novo”, que tinha bastante identificação com os regimes totalitários europeus da
época, onde valores democráticos e garantistas não eram bem quistos.
1946 representou a volta da garantia de segurança jurídica em nível
constitucional, ressaltamos novamente, sem esse nome e de forma limitada,
mas representa um progresso em relação à ausência comentada acima:
Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida,
à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...]
§ 3º - A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e
7
a coisa julgada.
5
BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de
Janeiro.
Internet.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em 04 de
julho de 2009.
6
BRASIL. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro. Internet.
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>.
Acesso em 04 de julho de 2009.
7
BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro. Internet.
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm>.
Acesso em 04 de julho de 2009.
17
A redação da Constituição de 19678 repetiu, em seu artigo 150, § 3º, a
da carta de 1946, assim também se deu com a Emenda Constitucional nº 1, de
19699, apenas mudando a localização, que passou ao artigo 153, § 3º.
A “Constituição cidadã”, promulgada em 1988, elencou entre os direitos
e garantias fundamentais a proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico
perfeito e à cosa julgada, sendo a forma atual de proteção em nível
constitucional da segurança jurídica:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada;
10
[...]
A proteção constitucional à segurança jurídica se dá em nível menor que
o desejável, contudo, como nos demais princípios e garantias, não há óbice ao
aumento da proteção conferida. Apenas três leis federais fazem expressa
menção à segurança jurídica no ordenamento brasileiro, são as leis n.ºs: 9.784,
de 29 de janeiro de 1.999, a qual “Regula o processo administrativo no âmbito
da Administração Pública Federal”; 9.868, de 11 de novembro de 1.999, que
“Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade
e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal
Federal...”; 9.882, de 03 de dezembro de 1.999, que “Dispõe sobre o processo
e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos
termos do § 1o do art. 102 da Constituição Federal...”.
8
BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Internet.
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>.
Acesso em 04 de julho de 2009.
9
BRASIL. Constituição (1967). Emenda constitucional n. 1. Dá nova redação a diversos dispositivos,
alterando
e
inserindo
textos.
Brasília,
DF.
Internet.
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso
em 04 de julho de 2009.
10
BRASIL. Constituição (1988). Constituição de República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Internet.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso
em 04 de julho de 2009.
18
A primeira lei apontada, 9.784/99, além do pioneirismo, traz a noção de
segurança jurídica permeando especialmente três dispositivos, deixando claro
o caráter de regulamentar a proteção que foi difusamente exposta pela
Constituição; seu artigo 2º dispõe:
Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos
princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade,
proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório,
segurança jurídica, interesse público e eficiência. [...]
A segunda e a terceira leis mencionadas trazem disposições
semelhantes, com sutil diferença de redação, tratando da modulação dos
efeitos da declaração de inconstitucionalidade, estatuindo, em seus artigos 27
e 11, respectivamente o comando de que:
Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo [...] e
tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional
interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de
dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela
declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu
trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Aqui está textual e claramente a segurança jurídica como princípio da
administração pública, assim como de razão forte o bastante para afastar a
regra de eficácia ex tunc para as decisões do Pretório Excelso, adotando, pois,
de forma mais direta e moderna o que se apresenta de maneira abstrata e
antiga na Constituição Federal.
Importante que fique registrada a existência de apenas os precedentes
acima citados, na legislação federal, fazendo menção à segurança jurídica,
denotando que ainda é árido o terreno em nosso ordenamento jurídico.
19
1.2 Dimensão objetiva da segurança jurídica
A segurança jurídica é compreendida em duas dimensões, a objetiva e a
subjetiva, aqui diferenciadas pela esfera que cada uma abrange: a primeira
trata de fatores externos que afetam o cidadão, ao passo que a segunda
primeiramente protege o sujeito e, via de conseqüência, afeta os fatores
externos na intenção de assegurar a dita proteção. Mesmo não sendo um
princípio expresso na Constituição Federal, não se duvida de que é real o
principio da segurança jurídica, assim, seu estudo se reveste de especial
importância pela necessidade de estabelecer seus caracteres sem ter tantas
referências no texto constitucional.
Importante destacar que a segurança jurídica, na forma que entendemos
atualmente, mais sistematizada que a vaga disposição constitucional que
temos no Brasil, foi talhada pela jurisprudência alemã, que se espalhou para o
direito comunitário europeu e então vem se irradiando para outros
ordenamentos. Gilmar Ferreira Mendes11 expõe a origem germânica da
definição, também destaca que o princípio do Estado de Direito contém
igualmente a segurança jurídica e a legalidade, situando-as no mesmo nível.
Princípios implícitos não são novidade na Constituição brasileira, tanto é
assim que José Afonso da Silva há muito cunhou sua definição de que existem
na Constituição normas que não necessariamente se apresentam de forma
clara insculpidas no texto, estando implícitas, mas trazem carga constitucional,
chamando-as de normas-princípio ou normas fundamentais. Expondo as
normas-princípio, José Afonso da Silva ensina que “as normas fundamentais
de que derivam logicamente (e em que, portanto, já se manifestam,
implicitamente) as normas particulares regulando imediatamente relações e
situações específicas da vida social”.12
11
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 261
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2.ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1982, p. 65.
12
20
O entendimento do mestre gaúcho não é isolado, na Espanha, Eduardo
García de Enterría expõe que não se pode distinguir entre os preceitos
constitucionais, ao contrário, todos estão no mesmo patamar:
[...] Importa ahora precisar que tanto el Tribunal Constitucional al
enjuicionar las Leyes (como ele ejercicio del resto de sus
competencias), como los jueces y Tribunales ordinarios, como todos
los sujetos publicos o privados, en cuanto vinculados por la
Constituición y llamados a su aplicación directa y otros meramente
programáticos, que carecerían de valor normativo [...] no todos los
artículos de la Constituición tienem un mismo alcance y significación
normativas, pero todos, rotundamente, enunciam efectivas normas
jurídicas [...] sea cual sea su possible imprecisión o indeterminación
13
[...]
Voltando aos doutrinadores pátrios, Luís Roberto Barroso reafirma a
imperatividade das normas programáticas:
As normas constitucionais programáticas, dirigidas que são aos
órgãos estatais, hão de informar, desde o seu surgimento, a atuação
do Legislativo, ao editar leis, bem como da Administração e do
Judiciário ao aplicá-las, de ofício ou contenciosamente. Desviandose os atos quaisquer dos Poderes da diretriz lançada pelo comando
normativo superior, viciam-se por inconstitucionalidade, pronunciável
14
pela instância superior competente.
Quanto à segurança jurídica, princípio que é, se aplica o mesmo
entendimento exposto acima, notadamente na sua dimensão objetiva, em que
os comando são dirigidos diretamente ao Estado. Importante ressaltar o
conceito de segurança jurídica trazido por Cármem Lúcia Antunes Rocha, útil
para compreender a segurança jurídica
A segurança jurídica consiste na garantia da estabilidade e de
certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de
antemão que, uma vez envolvidas em determinada relação jurídica,
13
“[...] Importa agora precisar que tanto o Tribunal Constitucional ao levar a juízo as Leies (como o
exercício do resto de suas competências), como os juízes t Tribunais ordinários, como todos os sujeitos
públicos ou privados, enquanto vinculados pela Constituição e chamados a sua aplicação direta e outros
meramente programáticos, que careceriam de valor normativo [...] não todos os artigos da Constituição
tem o mesmo alcance y significação normativas, mas todos, teimosamente, enunciam efetivas normas
jurídicas [...] seja qual for sua possível imprecisão ou indeterminação [...]” (Tradução livre do autor).
ENTERRÍA, Eduardo García de. La constitución como norma y el tribunal constitucional. 3. ed.
Madrid: Editorial Civitas, 1983, p. 68.
14
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e efetividade das suas normas – limites e
possibilidades da Constituição brasileira. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 117.
21
esta se mantém estável, mesmo se modificar a base legal sob a qual
15
se estabeleceu [...]
O conceito acima se volta bastante para o cidadão, mas não encobre
totalmente a dimensão objetiva também se faz presente, já que a estabilidade
se espera nas relações privadas, ela é necessária nas relações que dependam
de alguma forma do Poder Público.
Em sua dimensão objetiva, a segurança jurídica trata de limitar a ação
estatal que possa vir a ser prejudicial ao cidadão, não se aceitando que haja
retroatividade pura e simples dos atos administrativos e mesmo da legislação,
resguardando o direito adquirido.
Aqui fica patente que se protege o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada contra interferências estatais. A proteção se volta
especialmente contra a retroatividade, já que, salvo má fé ou outro tipo de
fraude, os direitos já incorporados ao patrimônio jurídico, os atos jurídicos já
concluídos e as decisões transitadas em julgado se constituíram dentro da
ordem jurídica então estabelecida.
De forma posterior, superveniente, modificar o ordenamento de maneira
a atingir o patrimônio jurídico de que quer que seja não poderia ser aceito pelo
cidadão, já que uma situação jurídica constituída e estabilizada não pode ser
modificável a qualquer tempo, ferindo a segurança que o Estado se propõe a
fornecer. Não se está aqui a fazer a apologia da imutabilidade, é possível que
situações sejam modificadas, o que não se pode é fazer isso sem motivo de
grande relevância para a coletividade, gerando prejuízos na esfera individual a
alguns.
15
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O Princípio da Coisa Julgada e o Vício da Inconstitucionalidade.
In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes (Org). Constituição e Segurança Jurídica: Direito Adquirido, Ato
Jurídico Perfeito e Coisa Julgada - Estudos em Homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo
Horizonte: Fórum, 2004. p. 168.
22
J. J. Gomes Canotilho explica o princípio da segurança jurídica, tratando
como sinônimo a proteção à confiança, da seguinte forma:
[...] o cidadão poder confiar em que aos seus actos ou às decisões
públicas incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas e
relações, praticados ou tomadas de acordo com as normas jurídicas
vigentes, se ligam os efeitos jurídicos duradouros, previstos ou
calculados com base nessas mesmas normas. Estes princípios
apontam basicamente para: (1) a proibição de leis retroactivas; (2) a
inalterabilidade do caso julgado; (3) a tendencial irrevogabilidade de
16
actos administrativos constitutivos de direitos [...]”
Ainda o professor português ensina que a segurança jurídica é inerente
ao Estado de Direito, assim como a dimensão objetiva daquele princípio se liga
“à durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social
e das situações jurídicas”.17
O Brasil confessando-se um Estado Democrático de Direito, o que se
depreende de forma direta já do preâmbulo da Constituição, não pode se furtar
a resguardar o que a própria Constituição já alberga, promovendo a
estabilidade jurídica e, dessa forma, efetivando o princípio da segurança
jurídica, com fulcro na própria noção de Estado de Direito. O princípio aqui
apresenta-se como norte indicado ao Estado e deve ser por esse aplicado
indistintamente a todos os cidadãos, sua natureza é objetiva. Assim,
reconhecemos que uma dimensão da segurança jurídica é objetiva, sem
prejuízo de ampliação das dimensões, mas impedindo a restrição.
No mesmo sentido expresso acima, ensina Giovani Bigolin 18, o que pode
ser complementado com a lição de Leandro Paulsen, afirmando que não se
pode divorciar a segurança jurídica do Estado de Direito, sob pena de ferir o
império da legalidade que essa organização estatal pressupõe:
Na medida em que o Estado de Direito se apresenta assim, como
um modelo de supremacia do Direito a exigir a realização de certos
16
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1995. p. 373.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional ... p. 374.
18
BIGOLIN, Giovani. Segurança jurídica: a estabilização do ato administrativo. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2007.
17
23
valores, como o respeito aos direitos fundamentais pelos próprios
indivíduos e pelo Estado e a vedação da arbitrariedade, bem como a
pressupor determinadas garantias institucionais, como a separação
dos poderes e o acesso ao Judiciário, apresenta-se como
subprincípio, assim entendido o princípio do qual se pode extrair
outros princípios decorrentes que concorrem para a realização do
valor maior naquele consubstanciado, mas que guardam, cada um,
19
sua esfera de autonomia normativa [...]
Chega a segurança jurídica a um nível de importância tamanho, ainda
que não explicitada diretamente no texto constitucional, que Paulo de Barros
Carvalho chega a considerá-la um “sobreprincípio”, ao qual vincula o Estado
imperiosamente:
A segurança jurídica é, por excelência, um sobreprincípio. Não
temos notícia de que algum ordenamento a contenha como regra
explícita. Efetiva-se pela atuação de princípios, tais como o da
legalidade, da anterioridade, da igualdade, da irretroatividade, da
universalidade da jurisdição e outros mais. Isso, contudo, contudo,
em termos de concepção estática, da análise das normas enquanto
tais, de avaliação de um sistema normativo sem considerarmos suas
projeções sobre o meio social. Se nos detivermos num direito
positivo, historicamente dado, e isolarmos o conjunto de suas
normas (tanto as somente válidas como também as vigentes),
indagando dos teores e sua racionalidade; do nível de congruência e
harmonia que as proposições apresentam; dos vínculos de
coordenação e de subordinação que armam os vários patamares da
ordem posta; da rede de relações sintáticas e semânticas que
respondem pela tessitura do todo – então será possível emitirmos
um juízo de realidade que conclusa pelo primado da segurança,
justamente porque neste ordenamento empírico estão cravados
aqueles valores que operam para realizá-lo. Se a esse tipo de
verificação circunscrevermos nosso Interesse pelo sistema, mesmo
que não identifiquemos a primazia daquela diretriz, não será fácil
implantá-la. Bastaria instituir os valores que lhe servem de suportes,
os princípios que, conjugados, formariam os fundamentos a partir
dos quais se levanta. Vista por esse ângulo, difícil será
encontrarmos uma ordem jurídico-normativa que não ostente o
20
princípio da segurança.
Vê-se aqui a divergência doutrinária ao comentar a segurança jurídica, o
consenso é que ela decorre do Estado de Direito. A divergência é que os
constitucionalistas entendem a segurança jurídica como um subprincípio do
19
PAULSEN, Leandro. Segurança jurídica, certeza do direito e tributação: a concretização da
certeza quanto à instituição de tributos através das garantias da legalidade, da irretroatividade e da
anterioridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
20
LEITE, George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais – considerações em torno das
normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2004. p.260.
24
Estado de Direito, ao passo que os tributaristas a entendem como um princípio
maior do qual decorrem outros, como, por exemplo, a anterioridade tributária.
Não temos a pretensão de pôr fim à celeuma, a qual entendemos como
diferentes pontos de vista válidos conforme o prisma que se use para visualizar
o princípio: Para os constitucionalistas o Estado de Direito é ponto central, já
para os que estudam os tributos a segurança é essencial para a adequação
entre a necessidade arrecadatória do Estado e a proteção aos contribuintes.
Conforme os ensinamentos acima transcritos, destacamos, para esse
momento, a dimensão objetiva da segurança jurídica, compreendida como a
garantia imposta ao Estado, a favor do cidadão, de que os princípios, normas,
direitos, políticas e quaisquer meios de ação estatal se darão de maneira
conforme a Constituição e não sofrerão mudanças de rumo salvo se justificado
por relevante razão de interesse público.
À vista do conceito acima cunhado, cumpre verificar que a segurança
jurídica decorre da Constituição, da noção de Estado como provedor de
segurança e da legítima expectativa dos cidadãos contra a instabilidade
institucional do Estado. A mera leitura da Constituição Federal, que dirige
proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, faz ver a
dimensão objetiva da segurança jurídica, senão como explicar que a proteção
aqui mencionada se dirige primeiramente à Lei?
A preocupação do constituinte de 1824, assim como de seus
antecessores, conforme já exposto, até 1988, foi, principalmente com a Lei que
viesse a prejudicar a segurança jurídica, delimitada em forma ainda precária. A
precariedade do constituinte em definir o que era segurança jurídica não lhe é
falta, ao contrário, é mérito. Ainda que dizendo menos do que desejava, as
constituições brasileiras buscaram como lhes foi possível assegurar a
estabilidade.
25
No direito comparado, os doutrinadores são unânimes ao afirmar que
houve desejo e tentativas de assegurar o direito à segurança, mas não se
chegou a uma menção expressa à segurança jurídica. Entendemos que uma
referência expressa à segurança jurídica seria de grande valor, mas ao menos
proteções esparsas, como a brasileira, ou o direito à segurança, em sentido
amplo, já são um norte indicado. Na Argentina,por exemplo, há manifestações
claras de segurança jurídica explicitando sua dimensão objetiva, ainda que a
assim não a nomeie:
[...] Ultimamente la sociedad argentina está manejando el concepto
de seguridad juridica, con respecto a lo precedible de las autoridades
estatales, en cuanto aquella seguridad demanda que los actos de
esos órganos se conformen, en procedimiento y contenido, a la
Constitución [...]
Desde esta perspectiva, hay seguridad juridica en los siguientes
casos.
a) Cuando el habitante sabe que las decisiones de los poderes
publicos se adoptarán, según el esquema constitucional de
asignación de competencias; es decir, que se respetará el subprincípio de corrección funcional [...] a): un órgano no asumirá
funciones de otro [...] b): El derecho a la seguridad juridica exige
igualmente que se respete el contenido de la Constitución y, en
particular, los derechos personales que reconoce ella: libertad,
21
igualdad, propriedad, etcétera. [...]
O constituinte vislumbrou que mudanças na Lei, que entendemos no
sentido mais amplo, como legislação latu sensu, afetariam a segurança que os
administrados tinham no ordenamento anterior à modificação. Entender a
lucidez de tão simples constatação é tarefa importante, já que mesmo aqueles
que redigiram o documento que originou o Estado perceberam que suas ações
nem sempre poderiam ser impostas aos cidadãos.
21
“[...] Ultimamente a sociedade argentina está manejando o conceito de segurança jurídica, a respeito do
procedimento das autoridades estatais, na medida em que aquela segurança exige que os atos desses
órgãos se adéqüem, em procedimento e conteúdo, à Constituição[...]
Desta perspectiva, há segurança jurídica nos seguintes casos.
a) Quando o cidadão sabe que as decisões dos poderes públicos serão aodtadas, segundo o esquema
constitucional de repartição de competências; é dizer, que se respeitará o sub-princípio de correção
funcional [...] a): um órgão não assumirá funções de outro [...] b): El direito à segurança jurídica exige
igualmente que se respeite o conteúdo da Constituição y, em particular, os direitos pessoais que ela
reconhece: liberdade, igualdade, propriedade, etcétera. [...]” (Tradução livre do autor).
SAGÜÉS, Nestor Pedro. Elementos de derecho constitucional. Tomo 2. Buenos Aires: Editorial Ástrea
de Alfredo y Ricardo Depalma. 1993. pp. 66 - 67.
26
Compreender que nem sempre o Estado age em prol do interesse
coletivo parece contraditório mas não é. Num contexto ideal, o Estado seria o
substituto dos cidadãos para a função pacificadora, levando a todos o interesse
coletivo e tornando a humanidade coesa. Na realidade, as relações humanas
são de tal forma complexas e turbulentas que os conflitos de interesses são
quase que permanentes, tornando preciso, pois, que o ente coletivo aja no
sentido de identificar quais interesses são mais benéficos, ou menos maléficos,
à coletividade, na intenção aproximar a sociedade do melhor nível possível.
Entretanto, a função estatal de eleger os interesses que melhor atendem
à população não vão agradar à totalidade dessa, havendo os que serão
prejudicados ou contrariados pela escolha. Aqui está a segurança jurídica, e
sua dimensão objetiva.
Se o ordenamento jurídico contempla princípio da segurança jurídica, ele
enfeixa, entre outros aspectos, sua dimensão objetiva, de modo que o Estado,
ao eleger os valores, princípios, normas, políticas e atos em geral que regerão
a coletividade, o faça primeiramente na forma que atenda aos interesses da
maioria, isso é o primeiro passo para consecução do objetivo estatal. O
segundo passo vem com o transcurso do tempo e das mudanças sociais:
Transformando-se a realidade e modificando-se os interesses, deve o Estado
agir, adaptando-se aos novos paradigmas e modernizando a si e aos meios de
sua atuação (valores, princípios, normas, políticas e atos em geral), contudo,
sem que o ato de modernizar represente a ruptura das situações pacificadas
sob a ordem que vigorava anteriormente.
Assim, as mudanças ao longo do tempo não podem desconstituir o que
foi pacificado dentro da legalidade, situações e fatos (como direitos adquiridos,
atos jurídicos perfeitos e coisa julgada) regularmente assegurados e garantidos
se incorporaram ao patrimônio jurídico e mesmo ás expectativas dos cidadãos,
que tiveram segurança de que o Estado regularia tais situações e fatos da
forma já pacificada. Logo, concluindo o raciocínio, a Lei, ou qualquer ato, não
pode ferir o que já foi regularmente assegurado; o Estado se encontra limitado
27
a assegurar o que ele próprio já contribuiu para solidificar, descabendo, pois,
iniciativas do Estado no sentido de violar a segurança que ele próprio proveu,
enquanto ente coletivo, aos indivíduos.
Com efeito, se já há algo agregado ao patrimônio jurídico dos cidadãos,
não se pode conceber que lhes sobrevenha mudança que, de forma infundada
ou indiscriminada, viola o que legitimamente auferiram, principalmente se vinda
a mudança do Estado, tal fato seria o Estado impor sua força abusivamente, o
que vai de encontro ao seu objetivo de evitar tal situação, garantindo
segurança, inclusive jurídica.
1.2.1 Direito adquirido
O direito adquirido, em termos simples, é o já assegurado legalmente, o
que já se incorporou ao patrimônio jurídico do seu titular.
O ordenamento jurídico brasileiro é marcado por uma sucessão de
constituições, as quais foram redigidas conforme os interesses do chefe de
governo da época, logo, nossas instituições são tradicionalmente fracas,
marcadas pela instabilidade e reformabilidade. O conceito legal de direito
adquirido vem da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657, de 4
de setembro de 1942), no parágrafo 2º do artigo 6º, com redação dada pela Lei
nº 3.238, de 1º.8.1957):
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato
jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
[...}
§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou
alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do
exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida
inalterável, a arbítrio de outrem.
Como é característico da codificação civil que remonta 1916, há uma
preocupação significativa com conceitos, pretendendo ocupar espaços que a
28
legislação em geral poderia abranger. Sobre o debate da pertinência ou não de
conceituar a matéria legalmente, Gilmar Ferreira Mendes dá bom termo à
discussão:
A conveniência ou não de dispor sobre matéria tão sensível e
controvertido no âmbito da legislação ordinária é suscitada não raras
vezes, tendo em vista o risco de deslocamento da controvérsia do
plano constitucional para o plano legal [...]. Todavia, trata-se de
debate estéril, uma vez que a opção por essa conceitualização legal
antecede até à própria positivação constitucional da matéria, ocorrida
apenas em 1934.
Evidentemente, a opção pela fórmula de conceituação no plano do
direito ordinário envolve sérios riscos no que concerne à legalização
da interpretação dos institutos constitucionais (interpretação da
Constituição segundo a lei) e, até mesmo,como já se verificou, no
que se refere à tentativa de conversão de controvérsia estritamente
constitucional em controvérsia de índole ordinária, com sérias
repercussões no campo da competência do Supremo Tribunal
22
Federal e de outros órgãos jurisdicionais.
Da
forma
exposta
acima,
que
acompanhamos,
o
tema
é
indubitavelmente constitucional, ainda que tenha, por questão circunstancial,
conceituação presente em lei infraconstitucional. Não basta tal ponto, ainda
que tenhamos uma Constituição prolixa, para modificar a natureza de um
instituto. Para aclarar o tema, enriquecendo o estudo, é importante citar o
conceito cunhado por Caio Mário da Silva Pereira:
São direitos que o seu titular ou alguém que por ele possa exercer,
como aqueles cujo começo de exercício tenha termo prefixado ou
condição preestabelecida; inalterável ao arbítrio de outrem. São os
direitos definitivamente incorporados ao patrimônio de seu titular,
sejam os já realizados, sejam os que simplesmente dependem de
um prazo para seu exercício, sejam ainda os subordinados a uma
23
condição inalterável ao arbítrio de outrem [...]
Observando o direito adquirido, o situamos dentro da natureza objetiva
da segurança jurídica, já que ele se espraia a todos, e, mesmo que em porções
variáveis, todo cidadão tem seu patrimônio jurídico, inclusive os que não são
conferidos individualmente, e os direitos que a ele agreguem podem ser
22
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 461.
23
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. I. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2000. n. 32. p. 105.
29
opostos indistintamente, logo, dizem mais respeito à esfera coletiva que
especificamente à individual.
Giovani Bigolin, tratando da preservação dos atos administrativos, faz
importante ressalva, deixando claro que preservar o direito adquirido não é
imutabilidade, mas igualmente não é o esquecimento de outros princípios que
devem estar presentes e serem referência para a atuação do Poder Público:
[...] o princípio da preservação dos atos administrativos, como
elemento a ressalvar a confiança dos cidadãos, é um dos freios e
contrapesos que visa a dominar, ao menos um pouco, a
mutabilidade generalizada da regulamentação, reduzindo-se os
conflitos intertemporais nefastos e geradores de insegurança.
Por outro lado, não se deduz da preservação dos atos
administrativos que se esteja a sustentar a existência de um respeito
absoluto aos direitos adquiridos do cidadão ou à manutenção de
qualquer regulamentação, outorgando-se à segurança jurídica uma
amplitude excessiva e prejudicial, a suplantar até mesmo com a
24
erradicação da pobreza e à dignidade da pessoa humana [...]”
Conforme os ensinamentos acima, a mutabilidade da legislação em
geral causa insegurança e tem efeitos diretos sobre o cidadão, que usualmente
tem seus direitos relativizados ou mesmo suprimidos. Assegurando proteção
aos direitos adquiridos, a Constituição Federal presta enorme serviço aos
cidadãos, na medida em que os protege contra o legislador infraconstitucional e
mesmo contra o administrador público, que pode agir em detrimento de direitos
assegurados em nome das mais diversas razões diversas.
Proteger o direito adquirido em um estado frágil como o brasileiro é
tutelar não apenas questões pontuais, como exemplificado acima, mas também
os direitos mais básicos, que ainda buscamos assegurar, haja vista o
desamparo em que vive a maior parte da população. Não se trata de discurso
ou de proteção apenas de normas já postas, mas de abrangência maior, pondo
sob a proteção do manto constitucional até os princípios como o da dignidade
da pessoa humana, que não podem ser suprimidos, por pertencerem ao
24
BIGOLIN, Giovani. Segurança jurídica ... p. 86.
30
patrimônio jurídico de cada cidadão, o que em muito suplanta a mera vontade
do legislador.
1.2.2 Ato jurídico perfeito
Entendendo o ato jurídico no conceito legal, contido no artigo 6º,
parágrafo primeiro da Lei de Introdução ao Código Civil, o Decreto-Lei nº
4.657/42, “Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente
ao tempo em que se efetuou”. O conceito, por simples que é, se entende de
maneira imediata, entretanto, seus desdobramentos são mais complexos.
Ato jurídico é pacificamente entendido como o capaz de criar ou
modificar direitos, logo, para sua validade é necessário que ele se dê formal e
materialmente em consonância com o ordenamento jurídico. Qualquer ato
regularmente realizado encontra fundamento na legalidade e, em última
análise, na Constituição Federal, assim, os direitos que ele produz ou modifica
também se constituíram sobre os mesmo fundamentos.
Não se pode conceber que os atos já findos, que regularmente geraram
efeitos e direitos, sejam simplesmente afetados por legislação posterior; tal
idéia viola a própria noção de segurança jurídica. Logo, o princípio da
segurança jurídica, tutelado constitucionalmente, não poderia deixar uma de
suas manifestações fora da proteção, notadamente a que tutela a proteção aos
atos realizados dentro da legalidade contra mudanças posteriores.
A idéia do Estado se baseia na harmonia, na pacificação social. Em toda
ordem jurídica existem valores superiores e diretrizes fundamentais que unem
suas diferentes partes, dos seus caracteres mais básicos até os mais
complexos.
31
Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas básicas de
uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o
ponto de partida e os caminhos a serem percorridos. Assim, os atos jurídicos,
os quais se incorporam ao sistema jurídico, gozam de proteção contra as
intempéries posteriores, visto que se realizaram dentro da legalidade à sua
época e, uma vez aperfeiçoados, cristalizaram-se. Entender que atos jurídicos,
em última análise direitos, após constituídos, fossem desconstituídos
meramente por uma nova regulamentação levaria à inevitável conclusão que
não haveria direito assegurado ao patrimônio jurídico do cidadão.
As cláusulas pétreas na Constituição Federal são uma forma de
assegurar matérias de especial interesse para o Constituinte, questões que não
estão ao alcance do constituinte reformador, menos ainda do legislador
infraconstitucional. Não se está a dizer que os direitos adquiridos sejam
cláusulas pétreas, mas sim que tem proteção decorrente do princípio da
segurança
jurídica,
tratam-se
de
diferentes
institutos
com
objetivos
semelhantes, ainda que em esferas diferenciadas. Como tudo o que abrangido
pela segurança jurídica, não é aqui defendida a imutabilidade, mas sim a
rigidez contra modificações posteriores.
1.2.3 Coisa julgada
A coisa julgada é um fenômeno eminentemente jurídico. Sua
materialização, se dá por meio de uma ficção jurídica.
Por contraditória que pareça ser a idéia acima especificada, ele é
compreensível: coisa julgada não depende meramente de um fato concreto ou
de uma condição preexistente, ela decorre de um comando legal, só existe por
força do ordenamento jurídico. Da mesma forma que as situações soa
apresentadas ao Judiciário no desejo de uma solução, elas devem ter um final,
o Judiciário pacifica a sociedade por meio de suas decisões.
32
As decisões judiciais, por sua vez, necessitam para cumprir seu objetivo
pacificador, de um caráter de permanência, senão sofrerão oscilações ao sabor
das mudanças que afetarem seus fundamentos, sejam os fundamentos fáticos
ou jurídicos.
Na forma do artigo 468 do Código de Processo Civil: “A sentença, que
julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das
questões decididas”. A fim de conferir o caráter de permanência às decisões
judiciais, a legislação, novamente entendida em sentido amplo, desde a
Constituição Federal até os diplomas mais inferiores, torna real o instituto da
coisa julgada.
A coisa julgada cristaliza o pronunciamento judicial, torna a decisão
definitiva, obsta a rediscussão da matéria decidida, assim, a decisão pode,
efetivamente, “fazer lei entre as partes”. Coisa julgada, conforme o Código de
Processo Civil, tem a ver com a eficácia da decisão, sendo conceituada pelo
artigo 467 da Lei Adjetiva Civil:
Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna
imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso
ordinário ou extraordinário.
Importante esclarecer que a coisa julgada que firma a decisão, dá
certeza ao pronunciamento, diz respeito ao pronunciamento que decide o
mérito da causa, a coisa julgada material, sendo que a formal apenas põe
termo à ação, sem abordar a causa de pedir integralmente.
A sentença, entendida como decisão judicial (sem diferença entre
sentença e acórdão), define o direito aplicável ao caso concreto, o que se dá
nas condições de seu tempo, não mais devendo ser atingível por direito que
surja de forma superveniente, o que desestabilizaria o pronunciamento judicial.
Nas palavras de José Afonso da Silva: “Uma importante condição de
33
segurança jurídica está na relativa certeza de que os indivíduos têm de que as
relações sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma
seja substituída”25.
Sergio Bermudês explica a origem e a finalidade da coisa julgada:
[...] Dispensam-se construções postiças para a justificação da coisa
julgada. Ela não decorre, por exemplo, de uma presunção da
verdade, ou da verdade ficta, como já se sustentou ao longo do
processo de consolidação do instituto (ainda em curso, acrescentese). A coisa julgada material decorre da vontade estatal, traduzida
nas normas imperativas que a regulam. A partir de certo ponto, a
necessidade de solução de conflitos, perturbadores da ordem social,
leva a lei a dar por composto o conflito. [...] a coisa julgada constitui
um instituto da segurança jurídica. Essa a função que explica o
26
instituto e justifica a subsistência [...]
A proteção constitucional conferida à segurança jurídica abrange a coisa
julgada, conforme o já conhecido texto do inciso XXVI do artigo 5º, da
Constituição Federal. Registramos que aqui entendemos ser a proteção à coisa
julgada manifestação da dimensão objetiva da segurança jurídica, uma vez que
a manifestação aqui se dá do Estado para o cidadão.
O comando constitucional independe de iniciativa do indivíduo, o qual
unicamente recebe a proteção que envolve a sentença. A norma constitucional
é auto-aplicável, assim, é dirigida a todos independentemente de qualquer
solicitação ou posicionamento. A proteção à coisa julgada, novamente segundo
José Afonso da Silva, se incorpora ao patrimônio jurídico do cidadão, podendo
ser entendida como um “ato jurídico perfeito”, mas com especial tratamento
legal:
Tutela-se a estabilidade dos casos julgados, para que o titular do
direito aí reconhecido tenha a certeza jurídica de que ele ingressou
definitivamente em seu patrimônio. A coisa julgada é, em certo
25
SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 134.
BERMUDES, Sérgio. Coisa julgada ilegal e segurança jurídica. In: ROCHA, Carmem Lúcia
Antunes (Org.). Constituição e segurança... p. 168.
26
34
sentido, um ato jurídico perfeito, mas o constituinte a destacou como
27
um instituto de enorme relevância na teoria da segurança jurídica.
A sentença não deixa de ser um ato jurídico, mais, o é por excelência,
mas tem tamanha importância e características especiais para os fins do
Estado de Direito, que tem tratamento diferenciado. A opção do constituinte
brasileiro, com viés histórico, é uma questão de opção, a qual entendemos de
bom alvitre, dada a fragilidade mesmo das garantias mais cercadas de
proteção no ordenamento brasileiro.
1.3 Dimensão subjetiva da segurança jurídica
Entendemos, acompanhando a grande maioria dos que abordaram o
tema, que a segurança jurídica tem, além da dimensão objetiva, também uma
dimensão subjetiva. Consideramos, pois, que o princípio em estudo não se
dirige apenas ao Estado, ao legislador ou mesmo ao ente público, entendido no
sentido mais amplo, mas também ao indivíduo, ao cidadão, à célula da
sociedade.
Ingo Wolfgang Sarlet esclarece bem a questão de compreender direitos
fundamentais como direitos subjetivos, para, em seguida, aderir à lição de
Vieira de Andrade28:
[...] de modo geral, quando nos referimos aos direitos fundamentais
como direitos subjetivos, temos em mente que a noção de que ao
titular de um direito fundamental é aberta a possibilidade de impor
judicialmente seus interesses juridicamente tutelados perante o
destinatário (obrigado). Desde logo, transparece a idéia e que o
direito subjetivo consagrado por uma norma de direito fundamental
se manifesta por meio de uma relação trilateral, formada entre o
titular, o objeto e o destinatário do direito. Neste sentido, o
reconhecimento de um direito subjetivo, de acordo com Vieira de
Andrade, está atrelado „à proteção de uma determinada esfera e
auto-regulamentação ou de um espaço de decisão individual: tal
27
SILVA, José Afonso da. Constituição e segurança jurídica. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes.
Constituição e segurança... p. 22.
28
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais. Coimbra: Almedina. p. 163.
35
como é associado a um certo poder de exigir ou pretender
29
comportamentos ou de produzir autonomamente efeitos jurídicos‟.
A segurança jurídica é primeiramente um princípio objetivo, direcionado
à ação estatal no intuito de proteger o cidadão, já que não se pode olvidar que
do cidadão veio o Estado, e o fez em busca de segurança, dotando o ente
coletivo da capacidade de limitar e tutelar os próprios indivíduos, que optaram
por perder parte de sua liberdade em nome dos benefícios do Estado.
Entretanto, também é a segurança jurídica um direito a ser exercido
subjetivamente, tendo o cidadão direito e proteger seu patrimônio jurídico
contra ameaças, inclusive das que venha do próprio Estado. Logo, não é o
direito à segurança limitado à esfera objetiva, mas sim estendido a todo o
ordenamento jurídico. Pontuando a manifestação da segurança jurídica no
âmbito dos direitos subjetivos, voltamos à lição de Nestor Pedro Sagüés, ao
afirmar que “es posible detectar, por ende, um derecho personal a la seguridad
jurídica, como aplicación del valor constitucional de seguridad, demandable
ante los poderes públicos.”30
O contrato social, a abdicação da liberdade natural para convivência em
coletividade, sob o Estado, me nome da segurança, somente se justifica
quando o ente coletivo realiza seus objetivos, provendo a segurança a que os
cidadãos aspiram, sendo um de seus corolários a segurança jurídica, ainda no
patamar dos princípios.
29
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto alegre: Livraria do
Advogado Ed., 2009.
30
“é possível detectar, assim, um direito pessoal à segurança jurídica, como aplicação do valor
constitucional de segurança, exigível diante dos poderes públicos.” (Tradução livre do autor).
SAGÜÉS, Nestor Pedro. Elementos de derecho ... p. 67.
36
1.3.1 Proteção da confiança
Dentre as facetas da segurança jurídica, já abordamos a proteção ao
direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, todas decorrentes da
dimensão objetiva da segurança jurídica, dirigida ao Estado em defesa do
cidadão. Agora, abordamos uma outra dimensão, a qual toca o cidadão mais
intimamente, já que pode até ser oposta a outros cidadãos: a dimensão
subjetiva.
Os estudiosos consideram que na dimensão subjetiva da segurança
jurídica surge um corolário que, de tão importante, vários doutrinadores, o
consideram um outro princípio ao seu lado ou dele diretamente decorrente: a
proteção à confiança.
Deixando clara e fundamentando a diferenciação das duas dimensões
da segurança jurídica, no azo explicando-as em outras palavras, citamos
Almiro do Couto e Silva, que detalha o que chama de ramificações da
segurança jurídica, em duas partes, cada uma com sua natureza, uma objetiva
outra subjetiva:
A segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um
princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza
objetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de natureza
objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade
dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem como
atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito
adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (...) A outra, de
natureza subjetiva, concerne à proteção da confiança das pessoas
no pertinente aos atos procedimentos e condutas do Estado, nos
31
mais diferentes aspectos de sua atuação. .
31
COUTO E SILVA. Almiro do. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança no
Direito Público Brasileiro ... p.3-4.
37
O mesmo autor expõe entendimento diferente, advindo de outros países
e cita Canotilho32 para confirmar a posição:
Modernamente, no direito comparado, a doutrina prefere admitir a
existência de dois princípios distintos, apesar das estreitas
correlações existentes entre eles. Falam os autores, assim, em
princípio da segurança jurídica quando designam o que prestigia o
aspecto objetivo da estabilidade das relações jurídicas, e em
princípio da proteção à confiança, quando aludem ao que atenta
33
para o aspecto subjetivo.
Em vista da divergência, nos filiamos à corrente que considera o
princípio da segurança jurídica em suas duas dimensões, objetiva e subjetiva,
entendendo que o núcleo do princípio, como já dito, é a dimensão objetiva,
enquanto a proteção à confiança é sua dimensão subjetiva.
É difícil compreender a utilidade da divisão entre os princípios, já que é
impossível falar de um sem abordar o outro, sendo mais útil e eficaz tratá-los
como a unidade que são. Fundamentando o entendimento aqui adotado,
apresentamos um conceito de segurança jurídica, trazido por Cármem Lúcia
Antunes Rocha:
Segurança jurídica é o direito da pessoa à estabilidade em suas
relações jurídicas. Este direito articula-se com sua certeza de que as
relações jurídicas não podem ser alteradas numa imprevisibilidade
que as deixe instáveis e inseguras quanto ao seu futuro, quanto ao
34
seu presente e até mesmo quanto ao passado.
Do conceito acima transcrito, podem ser extraídas várias premissas,
mas aqui é importante destacar quando a hoje Ministra do Supremo Tribunal
Federal fala em “direito da pessoa”, denotando que o direito à segurança
jurídica tem uma esfera ligada diretamente à pessoa, ao mesmo tempo em que
fala na possibilidade de alteração das relações jurídicas, o que tem liame com
questões objetivas.
32
CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,
2000, p. 256.
33
CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito Constitucional e Teoria... pp. 4-5.
34
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O Princípio da Coisa Julgada e o Vício da Inconstitucionalidade.
In: ROCHA, Cármem Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança... p. 168.
38
Dando por superada a questão de separação ou unicidade de princípios,
e reafirmando a nossa opção pela unicidade, passamos a abordar as noções
da dimensão subjetiva da segurança jurídica, a proteção à confiança.
Podemos falar em juridicidade, segundo o que todos, inclusive o Estado,
estão sujeitos à ordem jurídica, logo, as condutas dos cidadãos e do estado
devem ser adequadas ao ordenamento jurídico. Da mesma forma podemos
presumir que o cidadão, quando se relaciona, tanto com seus pares quanto
com o Estado, sabe que resultados são possíveis entro da ordem jurídica
estabelecida.
A previsibilidade de que o cidadão dispõe não se consubstanciará se
ordem jurídica ou os pressupostos sobre os quais essa ordem se funda
mudarem a todo momento, isso afetaria a dimensão objetiva da segurança que
o cidadão deseja. Logo, o cidadão espera, e necessita, de estabilidade para se
relacionar. A estabilidade assegura ao cidadão de que os pressupostos,
paradigmas e demais elementos que constituem sua certeza previsibilidade se
sustentem, assim como as relações jurídicas e seus efeitos.
A confiança que o cidadão deposita no Estado e na sua estabilidade são
parte da segurança que deposita no próprio direito, aqui está a proteção à
confiança, corolário maior do princípio da segurança jurídica. A segurança
jurídica em sua dimensão subjetiva dá ao cidadão o direito, oponível ao Estado,
de estabilização das relações jurídicas, em nome da proteção à confiança
legitimamente depositada pelo administrado. Uma boa noção sobre a proteção
à confiança é passada por Ingo Wolfgang Sarlet:
O princípio da proteção à confiança, na condição de elemento
nuclear do Estado de Direito (além da sua íntima conexão com a
própria segurança jurídica) impõe ao Poder Público – inclusive (mas
não exclusivamente) como exigência da boa-fé nas relações com os
particulares – o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos
em relação a uma certa estabilidade e continuidade da ordem
39
jurídica como um todo e das relações jurídicas especificamente
35
consideradas;
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, quando Conselheiro do tribunal de
Contas do Distrito Federal, no processo nº Processo nº (A): 1392/1997, faz
referência à Antonio-Enrique Pérez Luño, que aqui transcrevemos:
[...] la estabilidad del Derecho es un presupuesto básico para
generar un clima de confianza en su contenido. «El hombre -nos dice
Helmut Coing- aspira siempre a crear situaciones e instituiciones
duraderas bajo cuya protección pueda vivir; el hombre quiere
sustraer su existencia a un cambio permanente, dirigirla por vías
seguras y ordenadas y librarse del asalto constante de lo nuevo.» [...]
La seguridad es el cariz que la vida entera del hombre toma cuando
se desenvuelve en un Estado de Derecho. El alcance de la
seguridad supone la realización plena de las garantías y los valores
36
del Estado de Derecho.
Almiro do Couto e Silva destaca a situação que começou a firmar o
entendimento acerca da proteção à confiança, que, como já comentado
anteriormente acerca da própria segurança jurídica, adveio da jurisprudência
alemã:
O princípio da proteção à confiança começou a firmar-se a partir de
decisão do Superior Tribunal Administrativo de Berlim, de 14 de
fevereiro 1956, logo seguida por acórdão do Tribunal Administrativo
Federal (BverwGE), de 15 de outubro de 1957, gerando uma
corrente contínua de manifestações no mesmo sentido.
Na primeira dessas decisões tratava-se de anulação de vantagem
prometida a viúva de funcionário, caso se transferisse de Berlim
Oriental para Berlim Ocidental, o que ela fez. Percebeu a vantagem
35
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: Dignidade da
pessoa humana, direitos fundamentais e proibição do retrocesso social no direitos constitucional
brasileiro. In Constituição e Segurança Jurídica: Direito Adquirido, Ato Jurídico Perfeito e Coisa Julgada
- Estudos em Homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. p. 114.
36
“[...] a estabilidade do direito é um pressuposto básico para gerar um clima de confiança em seu
conteúdo. „O homem – nos disse Helmut Coing – aspira sempre criar situações e instituições duradouras
sob cuja proteção possa viver; o homem quer subtrair de sua existência a mudança permanente, dirigir-la
por vias seguras e ordenadas, e livrar-se do ataque constante do novo‟. [...] A segurança é o curso que a
vida inteira do homem toma quando se desenvolve num Estado de Direito. O alcance da segurança supõe
a realização plena das garantias e os valores do Estado de Direito.” (Tradução livre do autor).
In. BRASIL. Tribunal de Contas do Distrito Federal. Ementa: Aposentadoria voluntária, com proventos
integrais. Instrução sugere a legalidade. MP dissente, propondo a ilegalidade. Considerações acerca do
princípio da segurança jurídica e da necessidade de harmonização dos julgados deste Tribunal de Contas.
Voto pelo registro da concessão. Processo nº (A): 1392/1997, Tribunal de Contas do Distrito Federal,
Apenso nº: 061.022.827/1993. Origem: Secretaria de Saúde. Assunto: Aposentadoria. Sessão Ordinária nº
3656 de 30/04/2002. Publicado no Diário Oficial do Distrito Federal de 13/05/2002, p. 15 a 36 Internet.
Disponível em <http://www.jacoby.pro.br/votos/psj.html>. Acesso em 15/07/2009.
40
durante um ano, ao cabo do qual o benefício lhe foi retirado, ao
argumento de que era ilegal, por vício de competência, como
efetivamente ocorria. O Tribunal, entretanto, comparando o princípio
da legalidade com o da proteção à confiança, entendeu que este
incidia com mais força ou mais peso no caso, afastando a aplicação
37
do outro.
Ainda mais perceptível é a direção tomada pela jurisprudência tedesca,
quando, conforme o mesmo autor acima citado, o Tribunal Federal
Constitucional reconheceu a proteção à confiança como princípio de valor
constitucional. Consideramos impossível pensar no homem sem segurança,
mesmo porque, em termos primitivos, segurança tem a ver sobrevivência.
Modernamente quando o cidadão toma qualquer decisão, está aí incutida a
noção de que essa é destinada à permanência, logo à estabilidade, à
segurança.
José Afonso da Silva fala em uma condição da segurança jurídica, que
aqui entendemos como sua esfera subjetiva, afirma o professor que: “Uma
importante condição de segurança jurídica está na relativa certeza de que os
indivíduos têm de que as relações sob o império de uma norma perduram
ainda quando tal norma seja substituída”38. Com efeito, o Supremo Tribunal
Federal tem posição clara, que aqui será representada pelo posicionamento do
Ministro Celso de Mello no Mandado de Segurança nº 27.962/DF:
“EMENTA: DECISÃO JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO.
INTEGRAL OPONIBILIDADE DESSE ATO ESTATAL AO RIBUNAL
DE CONTAS DA UNIÃO. CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE DE
DESCONSTITUIÇÃO, NA VI ADMINISTRATIVA, DA AUTORIDADE
DA COISA JULGADA. EXISTÊNCIA, AINA, NO CASO, DE OUTRO
FUNDAMENTO CONSTITUCIONALMENTE RELEVANTE: O
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. A BOA FÉ E A
PROTEÇÃO DA CONFIANÇA COMO PROJEÇÕES ESPECÍFICAS
DO POSTULADOS DA SEGURANÇA JURÍDICA. MAGISTÉRIO DA
DOUTRINA. SITUAÇÃO DE FATO – JÁ CONSOLIDADA NO
PASADO – QUE DEVE SER MANTIDA EM RESPEITO À BOA FÉ E
À CONFIANÇA DO ADMINISTRADO, INCLUSIVE DO SERVIDOR
PÚBLICO. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO EM TAL
CONTEXTO, DAS SITUAÇÕES CONSTITUÍDAS NO ÂMBITO DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRECEDENTES. DELIBERAÇÃO DO
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO QUE IMPLICA SUPRESSÃO
37
COUTO E SILVA. Almiro do. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança no Direito
Público Brasileiro ... p. 07.
38
SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 431.
41
DE PARCELA DOS PROVENTOS DO SERVIDOR PÚBLICO.
CARÁTER ESSENCIALMENTE ALIMENTAR DO ESTIPÊNDIO
FUNCIONAL. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
[...]
- Os postulados da segurança jurídica, da boa fé objetiva e da
proteção à confiança, enquanto expressões do Estado Democrático
de Direito, mostram-se impregnados de conteúdo ético, social e
jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de
direito público (RTJ 191/922, Rel.p/ o acórdão Min. GILMAR
MENDES), em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos
princípios sobre comportamentos de qualquer dos Poderes ou
Órgãos do Estado (os tribunais de Contas, inclusive), para que se
preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas
no passado.
39
[...]”
No caso, o Pretório excelso novamente expôs o princípio da segurança
jurídica, destacando a proteção à confiança. É importante mencionar o aresto
pelo fato dele explicitar a proteção à confiança, assim como sua aplicação à
todas as relações jurídicas e sua oponibilidade ao Poder Público, denotando
que o direito aqui é subjetivo.
1.4 Segurança jurídica e constituição
Conforme já exposto, a segurança jurídica tem caráter constitucional
ainda que não tenha menção textual direta, mas sim a garantia de diversas de
suas facetas, sem prejuízo de menções infraconstitucionais. O efeito não seria
diferente se houvesse menção da segurança jurídica no texto constitucional,
mas certamente os estudos sobre o tema seriam maiores, deixando mais frutos
ao constitucionalismo.
39
BRASIL. Supremo Tribunal Federal Mandado de Segurança nº 27.962/DF. Ementa: Decisão judicial
transitada em julgado. integral oponibilidade desse ato estatal ao tribunal de contas da união. Conseqüente
impossibilidade de desconstituição, na vi administrativa, da autoridade da coisa julgada. existência, ainda,
no caso, de outro fundamento constitucionalmente relevante: o princípio da segurança jurídica. A boa fé e
a proteção da confiança como projeções específicas dos postulados da segurança jurídica. Magistério da
doutrina. situação de fato – já consolidada no passado – que deve ser mantida em respeito à boa fé e à
confiança do administrado, inclusive do servidor público. Necessidade de preservação em tal contexto,
das situações constituídas no âmbito da administração pública. Precedentes. Deliberação do tribunal de
contas da união que implica supressão de parcela dos proventos do servidor público. Caráter
essencialmente alimentar do estipêndio funcional. Precedentes. Medida cautelar deferida. Impetrante:
Sued Teixeira Tavares (representado por Therezinha de Jesus Marilia Almeida Tavares). Impetrado:
Presidente do Tribunal de Contas da União. Relator: Min. Celso de Mello. Decisão liminar. Decisão
24/04/2009. Divulgação 29/04/2009 - DJE nº 79.
42
Em que pesem os poucos estudos focados diretamente na segurança
jurídica, com um número um pouco maior que o abordam indiretamente, como
já é visível pelas citações realizadas ao longo do presente texto, fica evidente
que o instituto pode ser exposto, mas também deve ser situado no direito
constitucional. Não se concebe que algo advenha da proteção constitucional
sem que seja situado entre as formas de proteção da Lei Maior.
Apesar de não haver uma padronização, nem mesmo sejam
classificadas as formas de proteção constitucional, sem que isso diminua a
influência das constituições, já que seria discussão meramente teórica, sem
efeito prático, visualizamos a segurança jurídica como instituto de tamanha
importância que permeia a constituição em diversos meios, já que sem
segurança não se concebe tutela estatal, ela deve estar presente sempre e em
todas as normas.
Assim, considerando perspectivas filosóficas, jurídicas, e sociais, e
aplicando-as ao instituto da segurança jurídica, o situamos dentre as normas
constitucionais, sob o ponto de vista da aplicabilidade, a fim de conferir ao
presente estudo o caráter mais prático possível, como garantia, como direito
fundamental e como princípio.
1.4.1 Segurança como garantia.
É importante deixar claro que a segurança não se consubstancia em um
direito como os outros, mas em uma garantia que se presta a ser base para o
exercício de direitos. Não estamos dizendo que o patrimônio jurídico do
cidadão parte da segurança, mas sim que sem ela nenhum patrimônio se
sustenta, já que estaria exposto ao arbítrio de quem detivesse o poder, sujeito,
pois, à violações e mesmo ao esbulho ou perda a qualquer tempo e modo.
Mesmo a moderna noção de Estado já engloba a segurança entre seus
43
caracteres, inserida nas idéias de soberania, legalidade, entre outras, podendo
isso ser afirmado com base nas idéias de Jorge Miranda:
A moderna idéia de estado tem o seu expoente na idéia de
soberania [...] A soberania implica ainda imediatividade ou ligação
directa entre o Estado e o indivíduo, ao contrário do que sucedia no
sistema feudal [...] Para isso o poder – por definição não apenas
concentrado no Rei mas também centralizado – dota-se dos
necessários órgãos e serviços [...] é uma administração burocrática
em sentido moderno (profissionalizada e hierarquizada) que
progressivamente se substitui à administração feudal (entregue a
titulares por direito próprio); e são novas funções que ela vai propor
40
[...]
Interpretamos a lição do mestre lusitano, sob o prisma da segurança,
como demonstração de que a noção de soberania e a organização estatal
moderna do poder se destinaram a trazer mais estabilidade e previsibilidade ao
Estado conferem maior segurança a todos. Desde o absolutismo, houve um
refinamento no exercício do poder, que evoluiu no sentido dos interesses de
seus novos detentores ao longo do tempo, chegando ao Estado de Direito, que,
novamente segundo Jorge Miranda, pode ser conceituado como:
Estado de Direito é o estado em que, para garantia dos direitos dos
cidadãos, se estabelece juridicamente a divisão do poder em que o
respeito pela legalidade (seja mera legalidade formal, seja – mais
tarde – a conformidade com valores materiais) se eleva a critério de
41
ação dos governantes.
A segurança tem que permear todo o sistema jurídico de maneira a
permitir que todas as relações, proporcionalmente, contemplem a razoável
expectativa das partes em que o resultado de suas ações gerem
conseqüências previsíveis, à partir da regulamentação existente.
São cada vez menos aceitáveis teorias autocráticas ou isolacionistas,
em que a legislação muda ao sabor dos fatos, hoje se buscam regimes
políticos estáveis, que ofereçam estabilidade e previsibilidade em troca de
40
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo I. 6. ed. Coimbra: Coimbra, 1997. pp. 6971.
41
MIRANDA, Jorge. Manual de direito ... p. 86.
44
investimentos e desenvolvimento. A segurança oferecida pelo Estado, portanto,
compreende toda a função estatal, inclusive, por óbvio, a relação com os
administrados, materializando-se aqui o direito à segurança jurídica.
Para fins de localização da segurança jurídica como garantia
contemplada, ainda que indiretamente, pela Constituição Federal, cumpre
situar, dentro da mais aceita das teorias, como direito fundamental de terceira
geração, o que denota seus caracteres garantista e coletivo. Fundamentando o
entendimento exposto, ainda que não faça menção à segurança jurídica, a ela
se aplicam os argumentos de Ingo Wolfgang Sarlet:
[...] quando nos deparamos com os direitos fundamentais de terceira
dimensão (direitos de solidariedade ou fraternidade), os quais
tiveram sua titularidade, ao menos em princípio, entregue à
coletividade (ou entes coletivos), e não à pessoa individual, como
demonstram os exemplos do direito à paz, ao desenvolvimento, à
autodeterminação dos povos e ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, sendo justamente esta titularidade coletiva que costuma
ser utilizada como critério básico para estabelecer a distinção entre
42
estes direitos e os das duas dimensões anteriores [...]
Aqui se reforça a opção do presente trabalho em considerar o direito à
segurança jurídica em suas dimensões objetiva e subjetiva, e não como dois
direitos separados (segurança jurídica e proteção da confiança), já que o bem
jurídico tutelado é o mesmo e a titularidade do direito é coletiva, sem prejuízo
do exercício na esfera individual, não há motivo para a cisão. Mesmo que não
haja referência expressa, a característica de titularidade coletiva, assim como a
limitação ao poder estatal sobre o cidadão, sem dúvida, situam a o direito à
segurança jurídica na chamada “terceira dimensão” dos direitos.
Numa perspectiva filosófica, identificamos a idéia de segurança como
garantia, com arrimo na origem do Estado como decorrente de um “contrato
social”, à qual já fizemos referência, sendo tal garantia fornecida pelo direito,
conforme lição de Gustav Radbruch, quando trata das três concepções de
direito:
42
SARLET. Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica... p.171.
45
Para a concepção individualista os valores culturais e os colectivos
acham-se, portanto, ao serviço de valores da personalidade [...] O
Estado e o direito não passam de instituições para a segurança e
promoção do bem estar dos indivíduos. [...] a doutrina individualista
serve-se de preferência, para materializar a sua concepção, da idéia
de contrato [...] o estado ideal não pode deixar de ser pensado como
um contrato entre os seus membros. A idéia de contrato não exprime
de modo algum um «facto», mas apenas uma «idéia racional» que
deve ter unicamente esta finalidade prática: obrigar todos os
legisladores a fazerem suas leis como se estas resultassem da
vontade geral e colectiva do povo e como se todos os súbditos, na
qualidade de cidadãos, pudessem considerar-se participantes na
43
formação dessa vontade. [...]
Vê-se que os legisladores, para cumprir adequadamente sua função,
devem considerar a vontade dos cidadãos para redigir as leis, o que parece um
pressuposto básico vem sendo diuturnamente ignorado, o que viola a
segurança do próprio Estado. Com efeito, na democracia representativa, os
partidos políticos se apresentam como defensores de certos valores, atraindo
para si os cidadãos, e seus votos, simpatizantes daquelas idéias e princípios.
Logo, a representatividade, e democracia, por conseqüência, se baseiam na
confiança depositada nos representantes eleitos, conforme explica o próprio
Radbruch:
A materialização destas concepções só nos aparece, porém, nos
partidos políticos. É, com efeito, na política que todas estas
concepções, à exceção da transpersonalista, encontram a sua
expressão última. O pensamento duma cultura objectiva não se
exprime, em política, num programa determinado, mas constitui um
sentimento vital, como é porventura aquele que se manifesta na
palavra «comunidade» [...] O instinto de conservação de todos os
povos que querem viver, leva-os a exigirem que o estado sirva seus
44
interesses, tanto os individuais como os colectivos [...]
Fica patente a lição de que o Estado que não atende aos interesses dos
indivíduos compromete sua própria segurança, corroendo as bases sobre as
quais se construiu a estrutura estatal. Na organização atual, se evidencia a
contradição de um Estado que existe principalmente para prover segurança e
não consegue sequer manter os responsáveis pelos seus cargos de comando
43
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de L.Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra:
Armênio Amado. 1979. pp. 130-132.
44
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. ... pp. 136-137.
46
fiéis aos princípios básicos do próprio Estado, causando diversos abalos que
fragilizam a democracia, as instituições e própria organização estatal. Cabral
de Moncada, ao prefaciar a 1ª edição da citada obra de Radbruch, sintetiza os
ensinamentos acima, que reproduzimos à título de conclusão do presente
raciocínio:
[...] a idéia de direito, segundo ele [Radbruch], é constituída por três
elementos distintos e heterogêneos: a idéia de justiça, a do fim
último para que ele é meio, e a de segurança ou paz social de que
ele é intrumento. A primeira corresponde ao momento mais formal e,
portanto, mais universal do direito; a segunda, ao seu momento
material ou de conteúdo ético e político; a terceira, enfim, ao seu
momento positivo, como direito estável e certo [...] Fiel à sua doutrina
agnóstica dos valores, tudo o que faz é registrar essas contradições
e exortar-nos a que as solucionemos, tomando uma decisão
45
consentânea com nossa própria crença [...]
Dessa forma, segurança é garantia, tanto de pacificação social, quanto
de longevidade da organização vigente, a estabilidade oferecida pela
segurança, tanto a jurídica quanto em de outras searas, requer reforços
constantes, a fim de que seja atendida a finalidade do estado, que na teoria
contratualista é a busca de segurança em troca de liberdade.
A simples existência de um Estado de Direito representa a consagração
da segurança jurídica, garantia por natureza, sem a qual não se pode falar em
considerá-la princípio da referida espécie de Estado. A linha aqui seguida é
também comentada por Arthur Kaufmann que no azo faz a defesa das idéias
de Radbruch contra os que o acusam de ter modificado seu pensamento em
conseqüência do regime nacional-socialista alemão:
Na literatura sobre Radbruch, deflagrou uma intensa discussão sobre
se na sua vida e, sobretudo, na sua filosofia do direito houve uma
«inversão», porventura até uma «experiência de Damasco», ou se
as indubitáveis transformações que nele se operaram, e que ele aliás
nunca negou, foram expressões de uma evolução contínua. Indo
directamente ao assunto: O outrora «positivista» Radbruch,
impressionado com o Estado de não direito nazi, ter-se-á tornado um
«jusnaturalista»?
Há pontos na obra e Radbruch que poderiam servir de fundamento a
uma tal inversão. Mas também não é difícil encontrar citações que
45
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. ... pp. 29-30.
47
atestam o contrário. Já em 1919, Radbruch apostrofara o positivismo
de «idolatria do poder» [...] Em contrapartida, a impressão causada
pelo Estado de não direito nacional-socialista levou Radbruch a
desligar-se totalmente do positivismo; ele nunca sacrificou a
segurança jurídica como elemento da idéia de direito a um vago
conceito da idéia de direito natural. [...] aquilo que considera e
reconhece com direito natural são [...] certos direitos subjectivos do
homem, que se impõem à legislação estadual como direitos
indisponíveis, não obstante serem também historicamente
referenciados. No fundo, trata-se daquilo a que nós chamamos
46
direitos fundamentais ou direitos humanos.
Paulo Bonavides trata de princípios como elementos sobre os quais se
alicerçam os ordenamentos jurídicos. Vislumbramos na lição elementos para
considerar que a segurança jurídica, entendida enquanto garantia, tem ligação
com a noção de princípio:
[...] As novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia
axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o
qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas
constitucionais.
Assinala Bobbio que uma nova fase – que se nos afirma
neopositivista e precede o positivismo contemporâneo – sobre a
natureza, a validade e o conteúdo desses princípios se instaura a
partir da ocasião em que o art. 38 do estatuto da Corte Permanente
de Justiça Internacional declarou, em 1920, „os princípios gerais do
Direito, reconhecidos pelas nações civilizadas‟, como aptos ou
idôneos a solverem controvérsias, ao lado dos tratados e dos
costumes internacionais; fórmula essa consagrada em incorporada
literalmente 1945 pelo art. 38, 1 , “c”, do estatuto da Corte
Internacional de Justiça e, a seguir, com ligeiras variações, pelo art.
215, 2, do tratado que instituiu em 1957 a Comunidade Econômica
47
Européia. [...]
A lição acima deixa clara a idéia, que hoje ainda vigora, de que os
princípios têm valor sobre o ordenamento jurídico positivo, logo, o mesmo
acontece com o princípio da segurança jurídica, de modo a que a garantia da
segurança jurídica oferecida pelo princípio está inserida no ordenamento e,
portanto, é necessária e presente.
46
KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried; HESPANHA, António Manuel. Introdução à filosofia
do direito e à teoria do direito contemporâneo. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. pp. 136-137.
A “experiência de Damasco” é uma alusão à passagem bíblica que descreve a experiência de S. Paulo à
caminho de Damasco, quando lhe aparece Jesus ressuscitado e abre caminho para uma mudança radical
na vida do então Saulo, indicando-o sua vocação. Atos dos Apóstolos, capítulo 9, versículos 1-19. Nota
do autor.
47
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. pp. 264265.
48
Destacamos que a garantia deve ser observada tanto pelos cidadãos
quanto pelo Estado, logo, a segurança jurídica, em suas dimensões objetiva e
subjetiva, se impõe a todas as atividades desenvolvidas dentro do Estado de
Direito, seja pelo caráter de garantia, seja pela interpretação de seu caráter
principiológico.
No direito constitucional positivo brasileiro, os princípios têm presença
marcante, notadamente no tocante aos direitos e garantias fundamentais, ainda
que tenhamos a tendência de buscar regras para basear nossas demandas, os
princípios são de cabal importância. Virgílio Afonso da Silva, tratando de
princípios e normas, se filia à corrente também defendida por Robert Alexy
entre outros, ao compreender os princípios como “mandamentos de
otimização”, segundo os quais “princípios são normas que exigem que algo
seja realizado na maior medida possível diante das possibilidades fáticas e
jurídicas existentes”.48
Com o conceito reproduzido acima, fica patente a compreensão da
segurança jurídica enquanto princípio e, sobretudo, como garantia, a ser
realizada “na maior medida possível” em favor de toda a ordem jurídica, seja na
esfera dos princípios, dos direitos fundamentais, das obrigações do Estado,
dos direitos dos cidadãos, da estabilidade e segurança social.
1.4.2 Segurança como princípio
Analisando a efetividade do direito, a força das decisões judiciais, e
mesmo a força do direito em si, simbolizada pela espada da deusa Themis,
símbolo da justiça, cumpre entender que se constitui o direito num dos meios
capazes de assegurar a segurança aos cidadãos. Não nos cabe abordar a
segurança política ou a segurança social, mas nos propusemos a expor alguns
48
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São
Paulo: Malheiros, 2009. pp. 46.
49
pontos relevantes pertinentes à segurança jurídica, dentre os quais a
segurança trazida pelo direito, o que passamos a fazer:
De início, relembramos o conceito de princípio, agora citando Juarez
Freitas, que fala em “princípios fundamentais”, conceituando-os como:
[...] os critérios ou as diretrizes basilares do sistema jurídico, que se
traduzem como disposição hierarquicamente superiores, do ponto de
vista axiológico, às normas estritas (regras) e aos próprios valores
(mais genéricos e indeterminados), sendo linhas mestras de acordo
com as quais guiar-se-á o intérprete quando se defrontar com as
49
antinomias jurídicas[...]
Ainda tratando dos princípios, o mesmo autor os situa no ordenamento
jurídico, como “norteadores das relações de administração pública”:
[...] encontram-se, afortunadamente, no mais das vezes,
agasalhados de modo expresso, embora alguns se mostrem
desvendáveis somente por inferência ou por desenvolvimento
interpretativo. Expressos ou implícitos, não importa, merecem ser
reconhecidos como os máximos vetores teleológicos para aplicação
adequada e todas as normas, aqui tomadas em sentido largo
50
(englobando regras e princípios) [...]
Apesar da lição acima reproduzida tratar da segurança jurídica e seus
efeitos na seara administrativa, entendemos não haver nenhum problema em
ampliá-la ao direito como um todo, reafirmando a importância dos princípios
para a efetividade de todo o sistema jurídico, que foi construído à sua [dos
princípios] luz.
Nesse
diapasão,
ainda
citando
Juarez
Freitas,
trazemos
sua
diferenciação entre princípios e normas, na qual as normas ou regras estritas
são preceitos mais restritos e axiologicamente inferiores aos princípios. As
normas são hábeis a harmonizar e conferir concretude aos princípios
fundamentais, não debilitando-os ou lhes subtraindo eficácia direta e imediata,
49
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 4. ed. rev. e ampl., São Paulo: Malheiros,
2004. p. 56
50
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3. ed., São
Paulo: Malheiros, 2004. p. 24.
50
devendo, em verdade, serem aplicadas as normas em conformidade com os
princípios que lhes nortearam a elaboração.51
Na relação entre direito e segurança, podemos destacar a obediência à
ordem jurídica, legalidade e a ação estatal, no que é flagrante a necessidade
do Estado de em todas as suas condutas observar a legalidade, isso é
segurança por meio do direito, é a legalidade ditando os rumos do Estado,
estabelecendo o meio pelo qual os cidadãos podem conhecer os rumos da
atividade estatal, estabelecendo uma relação previsível e segura com o Poder
Público e na regulamentação das relações privadas.
Havendo estabilidade, esta fundada na legalidade, é indubitável que os
cidadãos tenham segurança de que os rumos que tomarem devem estar em
conformidade com o que permite ou proíbe o direito, sendo a estabilidade um
dos fatores que podem levar à sensação de segurança e à efetividade de tal
sentimento, necessários à consecução dos objetivos estatais e um dos grandes
anseios da sociedade.
Também podemos afirmar que o sistema jurídico vigente impõe a
possibilidade de controle jurisdicional das atividades estatais, assim como de
qualquer ato que ameace ou lese direitos52, novamente o direito limita o arbítrio
do Estado e torna possível que o cidadão eventualmente prejudicado busque a
tutela judicial.
Estabelecer que quaisquer atos devam observar a legalidade e, ainda
assim, submetê-los à possibilidade de apreciação judicial não deixa dúvidas
quanto à intenção de prevenir a violação à legislação, assim como efeitos
reflexos indesejados aos cidadãos.
51
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 4. ed. rev. e ampl., São Paulo: Malheiros,
2004. p. 58.
52
Artigo 5º, inciso XXXV, Constituição Federal.
51
O cidadão tem no direito, nos princípios e normas jurídicas, a garantia de
que a ação estatal não deverá lhe causar danos, evidente que não é possível
atender à todos, haverão beneficiados e prejudicados, mas isso não poderá
violar os demais princípios constitucionais, como o da razoabilidade,
moralidade, impessoalidade, etc.
Dessa forma, os administrados dispõem da segurança de, ainda que
possam haver mudanças, elas não poderão ser conduzidas de maneira a
prejudicar os administrados deliberadamente, sofrendo os controles estatuídos
para o processo legislativo, assim como na seara administrativa e ainda tendo
o controle jurisdicional.
A separação dos poderes, princípio através do qual o Estado se
organiza e expõe a divisão de atribuições, tornando visível aos cidadãos a
quem se deve recorrer para cada assunto, deixando o cidadão seguro quanto à
competência para agir, prevenindo a subversão da legalidade e a contradição
dos atos em todas as esferas.
Cumpre deixar claro que a separação dos poderes decorre do Estado de
Direito, o qual também enseja, e até pressupõe, a efetivação dos direitos e
garantias fundamentais, dentre os quais a segurança jurídica.
No mesmo sentido ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, que
considera a segurança jurídica um princípio decorrente do próprio Estado de
Direito:
[...] a ordem jurídica corresponde a uma quadro normativo proposto
precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo,
pois, de antemão, o que devem ou o que podem fazer, tendo em
vista as ulteriores conseqüências imputáveis a seus atos. O Direito
propõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza
na regência da vida social, Daí o chamado princípio da „segurança
jurídica‟, o qual, bem por isto, se não o mais importante dentre todos
52
os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais
53
importantes entre eles.
Na lição transcrita acima, a segurança jurídica é própria do Estado de
Direito, logo, a segurança é tida pelo mestre citado como uma garantia que
vem diretamente do direito.
Entendemos que o direito entrega à sociedade uma forma de segurança,
a segurança dos princípios que decorrem diretamente o Estado de Direito, sem
o que teríamos meramente a arbitrariedade, princípios que indicam a
elaboração de normas no sentido de assegurar a segurança almejada pelos
cidadãos.
Sobre a segurança, enfatizando a seara administrativa, ensina Frederico
Castillo Branco:
[...] em fin, nuestros tribunales de justicia proclaman com igual celo,
según venimos exponiendo, el principio de protección de confianza
legítima y el de buena fe. Conjunta o separadamente, ambos son
recogidos para, al fin y la posdre, proteger situaciones jurídicas
legítimas en que la actuación de la Administración no ha respondido
a lo que de ella se esperaria, donde ésta se ha contradicho en su
relación con los cuidadanos o infrigindo la confianza que en ella se
había depositado. Sin embargo, hay que reiterar que dicha aplicación
se ha realizado, en la mayoría de las ocasiones, com sumo
desconcierto, con una aplicaciónsimultánea de mbos conceptos a
situaciones fácticas idénticas y sin deslindar suficientemente el
54
campo de acción de cada uno de ellos [...]
A segurança de que falamos não é apenas a segurança física, mas
principalmente a segurança de que o ordenamento jurídico tomará um rumo
previsível, de maneira a que os cidadãos tenham a possibilidade de que as
diretrizes de ação do Estado não mudem inadvertidamente, ou conforme o
mandatário à frente do Poder Executivo, além da normatividade concretizando
a sociedade eivada dos valores manifestos nos princípios.
53
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21. ed., São Paulo: Malheiros,
2006, p. 119.
54
CASTILLO BLANCO, Frederico. apud MAFFINI, Rafael. Princípio da proteção substancial da
confiança no direito administrativo brasileiro. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. p. 58.
53
1.4.3 Segurança como direito fundamental.
Além de garantia e princípio, a segurança jurídica se reveste do caráter
de norma, a qual tem status inferior a um princípio do ponto de vista da
abrangência, tendo, por outro lado, por ser positivada, eficácia mais imediata
que o princípio. Importante deixar claro que as teorias de Alexy e Dworkin são
as duas mais discutidas em matéria de diferenciação entre princípios e normas,
ainda que a doutrina não seja pacífica, é possível notar que Alexy tem sido
melhor aceito pelos constitucionalistas modernos, representando também a
corrente a que nos filiamos para fins do presente estudo. O mestre alemão
traça a distinção entre princípios e regras da seguinte forma:
El punto decisivo para La distinción entre reglas y principios es que
los principios son normas que ordenam que algo sea realizado en la
mayor medida posibile, dentro de las posibilidades jurídicas y reales
existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización,
que se caracterizan porque pueden cumplirse en diferente grado y
que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las
posibilidades jurídicas se determina por los principios e reglas
opuestos.
En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o
no. Si una regla es válida, entonces debe hacerse exactamente lo
que ellla exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas, contienen
determinaciones en el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible.
Esto significa que la diferencia entre reglas y principios es cualitativa
55
y no de grado.
Novamente destacamos que não se está a fazer a apologia da
segurança jurídica como algo imutável ou prevalente sobre os demais
princípios, mas sim compreendemos que é necessário um sopesamento dos
55
“O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que
ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais
existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que se caracterizam porque podem
cumprir-se em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das
possibilidades jurídicas se determina pelos princípios e regras opostos.
Por outro lado, as regras que apenas podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então deve-se
fazer exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras, contem determinações no
âmbito do fática e juridicamente possível. Isso se significa que a diferença entre regras e princípios é
qualitativa e não de grau.” (Tradução livre do autor).
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Carlos Bernal Pulido. 2. ed. Madrid:
Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2008.
54
princípios, considerando a segurança jurídica como um deles, nas palavras de
Robert Alexy:
Para juzgar acerca de la cuestión de si es pérdida mínima de
seguridad jurídica es aceptable, hay que tomar en cuenta que la
seguridad jurídica es un valor importante pero no el único. El valor de
la seguridad jurídica tiene que ser sopesado con el da justicia
material. La fórmula radbruchiana adopta una evaluación que
básicamente confiere prioridad a la seguridad jurídica y sólo en
casos extremos invierte es jerarquía. A esto puede oponerse sólo
quien considere que la seguridad jurídica es un princípio absoluto
algo que como toda la adhesión a un princípio absoluto, contiene una
56
dosis de fanatismo.
A segurança jurídica tem lugar no ordenamento jurídico juntamente com
os demais princípios, pregando a hermenêutica que princípios não se excluem,
mas sim se harmonizam, buscando o equilíbrio e a máxima efetividade da
Constituição.
Entendendo os princípios como mandamentos mais abstratos, aplicamos
a mesma premissa para a segurança, que é pouco tutelada em matéria de
normas, mais específicas e direcionadas, entretanto, nada disso dissocia a
segurança jurídica do caráter de direito, posto entre os direitos e garantias
fundamentais.57
Não se trata o princípio da segurança jurídica, conforme já exposto, de
inovação legal, ao contrário, é correto que a Constituição, como norma máxima
que deve regular todos os aspectos do Estado, aborde os temas de forma
menos detalhada, detalhamento esse que cabe à lei. Reconhecemos que a
legislação brasileira é construída de maneira pouco metódica ou mesmo
ilógica, não tendo referenciais tão claros e bem delimitados quanto desejável, o
56
“Para julgar sobre a questão de se é aceitável uma perda mínima de segurança jurídica, é preciso levar
em conta que a segurança jurídica é um valor importante mas não o único. O valor da segurança jurídica
tem que se sopesado com o da justiça material. A fórmula radbruchiana adota uma avaliação que
basicamente confere prioridade à segurança jurídica só em casos extremos se inverte a hierarquia. A isso
se opõe somente quem considere que a segurança jurídica é um princípio absoluto, algo que como toda
adesão a um princípio absoluto, contém uma dose de fanatismo.” (Tradução livre do autor).
ALEXY. Robert. El concepto y la validez del derecho. Trad. Jorge M. Seña. Barcelona: Editorial
Gedisa, 1994. p.58.
57
Art. 5º, inciso XXXVI, CF.
55
que se torna um problema ainda maior num texto constitucional prolixo,
altamente regulamentador e seguidamente ferido por emendas nem sempre
condizentes ou comprometidas com a aplicação técnica da Constituição.
Juarez Freitas manifesta a preocupação de quem estuda o ordenamento
jurídico e a história do Brasil, em que as ameaças à segurança jurídica e à
democracia se apresentam com uma freqüência preocupante, provada pela
quantidade de golpes e ditaduras vividas pelo Estado brasileiro, além da
modificação de regimes jurídicos e fragilização de direitos conquistados ao
longo do tempo:
Em nosso contexto só recentemente começou a se emprestar a
devida tenção ao sentido altamente positivo da confiabilidade
jurídico-administrativa como requisito de estabilidade institucional e
de obtenção do chamado „grau de investimento‟. Bem por isso, os
controladores, em sinergia, precisam atuar como avalistas dessa
confiança legítima na voz do Estado-Administração, vigiando para
que a hobbesiana desconfiança generalizada – que redunda na
guerra de todos contra todos – arrefeça e ceda lugar à cultura da
credibilidade, na qual as promessas são cumpridas, ou seja, a
racionalidade dialógica prepondera sobre o risco de colapso
sistêmico. Com efeito, sem a poderosa entronização do princípio da
confiança legítima nas relações da administração,até a estabilidade
constitucional corre risco. Lastimavelmente, o constante ataque à Lei
Maior, banalizando o processo e reforma, em nada contribui para o
enraizamento cultural do princípio em comento, eis que, não raro, é
modalidade de vilipêndio das energias constitucionais, enquanto
58
tardam as reformas relevantes.
J. J. Gomes Canotilho expõe subprincípios da segurança jurídica, que
expomos para ilustrar a necessidade de aplicação do princípio maior nas
relações, com a segurança permeando todas as relações:
A idéia de segurança jurídica reconduz-se a dois princípios materiais
concretizadores do princípio geral de segurança: princípio da
determinabilidade de leis expresso na exigência de leis claras e
densas e o principio da proteção da confiança, traduzido na
exigência de leis essencialmente estáveis, ou, pelo menos, não
lesivas da previsibilidade e calculabilidade dos cidadãos
59
relativamente aos seus efeitos jurídicos.
58
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed.
Refundida e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 96.
59
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. pp. 371-372.
56
A Constituição protegeu a segurança jurídica, elencando várias de suas
garantias entre os direitos e garantias fundamentais, ainda que não usando a
expressão literal, mas claramente protegendo o núcleo do instituto, o que
simplesmente ficou expresso na legislação infraconstitucional, logo, coube à
Lei pormenorizar o que já existia na Constituição, cumprindo seu papel.
O reconhecimento legislativo da segurança jurídica, ainda pequeno em
comparação à sua necessidade, tende a crescer juntamente com a legislação,
pelo simples fato de que quanto mais situações sejam reguladas, maiores são
as possibilidades de violação da segurança e da confiança que os cidadãos
depositem nos institutos como estão, e não como venham a ficar após a
legislação superveniente. Ademais, com a estabilidade econômica que a
sociedade experimenta desde meados da década de 1990, os cidadãos
brasileiros começam a pensar em prazos maiores, necessitando de mais
segurança, já que se tornam vulneráveis às mudanças e ataques à seus
direitos e expectativas por períodos maiores.
Os doutrinadores entendem indubitavelmente a segurança jurídica como
direito fundamental, compreendê-la como o mínimo de previsibilidade
necessária que o Estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de
quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas
quais pode travar relações jurídicas válidas, eficazes e duradouras.
A mera positivação da proteção ao direito adquirido, ato jurídico perfeito
e à coisa julgada seria capaz de levar o operador do direito à concluir pelo
caráter de direito fundamental da segurança jurídica, entretanto, não é somente
isso que força a conclusão. A natureza principiológica da segurança jurídica,
que abarca as relações jurídicas em geral, confere ainda maior ênfase ao
direito que o próprio princípio faz surgir: o de ter o cidadão a segurança nas
suas relações amparadas no direito.
57
Interessante a idéia trazida por Bermejo Vera60, que pondera ter sido a
segurança jurídica temperada ao longo do tempo, precisando que o Direito
tivesse se convertido em fonte de insegurança para que a segurança jurídica
tivesse sua importância mais pronunciada.
No mesmo sentido, Ricardo Lobo Torres61 indica que a segurança
jurídica, um valor abstrato na atual sociedade de riscos dos dias atuais, sai da
seara dos direitos individuais, assegurados por normas legisladas, portanto
uma segurança “legislada”, para ser uma segurança social e dos direitos
difusos, flexibilizando todo o instituto. Também reproduzimos o entendimento
de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que quase toma ares de conclusão ao
tratar da mutação da segurança jurídica:
O modelo aberto, diversamente, admitindo-se como uma
conformação mista de princípios e preceitos, tal como é o brasileiro,
embora perca em termos e segurança, reduzindo o dogmatismo,
compensa-se por ser mais flexível, mais ágil, por permitir uma
participação jurisprudencial mais ativa e, por isso, ser politicamente
62
mais duradouro [...]
Logo, entendemos que o direito à segurança jurídica decorre não
simplesmente da norma positivada, mas sim tem origem no próprio princípio. A
segurança jurídica é um princípio, como tal precede a norma, logo, o direito à
segurança jurídica já existia antes da norma que o positivou. Podemos afirmar,
como já ventilado anteriormente, que o Estado traz na própria gênese a
essência da segurança jurídica. Cabe, portanto, indicar a segurança jurídica
como um valor, um pressuposto para o exercício dos demais direitos, como
ensina Néstor Pedro Sagüés:
El valor seguridad, como el de orden, es uno de los más apreciados
por el constitucionalismo de la primera etapa, de tipo individualista
liberal [...] Por lo demás, el concepto constitucional de seguidad há
60
BERMEJO VERA, José. El declive de La seguridad jurídica em el ordenamento plural. Madrid:
Dijusa, 2005. p. 89.
61
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Vol. 1. Rio de
Janeiro: Renovar, 2009. p. 89.
62
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 3.ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. p. 82.
58
sido desarrollado (y ampliado) modernamente con nuevas
perspectivas sobre su contenido [...] cabe distinguirse, por tanto,
estas variables.
a) SEGURIDAD DEL ESTADO. Ésta engendra competencias específicas
para aquél (declaración de guerra, estado de sitio, etcétera).
b) SEGURIDAD DE LAS PERSONAS. Ello, a su vez, genera en nuestra
Constitución los seguientes derechos: a realizar lo no prohibido; a no
hacer lo permitido; a contar con segurdad juridica y a que se les
brinde seguridad pública.
Puede sostenerse que el valor seguridad opera en el plexo de los
derechos constitucionales como derecho fundante, en el sentido que
si el sitema político no brinda seguridad interna y externa, y si los
particulares no cuentan con reglas delimitatorias entre lo lícito y lo
ilícito, ni tienen seguridad jurídica y seguridad pública, es
practicamente impossible la realización de los demás derechos
constitucionales. La seguridad, entonces, funciona a menudo como
63
pressupuesto de la práctica de los otros derechos.
A conclusão de que o direito precede sim a norma positivada é
pertinente, já que a Constituição e o ordenamento que a ela se submete são
materializações que buscam concretizar o ideal do direito, os princípios, então,
intentam materializar direitos contemplados pelos princípios, dando-lhes
dimensão mais concreta e aplicável aos casos concretos. A compreensão de
que a norma confere positividade aos direitos preexistentes é útil na medida em
que o direito a segurança jurídica acompanhou ordenamentos jurídicos ao
longo dos séculos, ainda que de maneira mais ou menos clara, mas sempre
como uma garantia dos cidadãos, violada em certos períodos, mas em geral
sendo observada.
63
“O valor segurança, como o de ordem, é uno dos mais apreciados pelo constitucionalismo da primeira
etapa, de tipo individualista liberal [...] Ademais, o conceito constitucional de segurança foi desenvolvido
(e ampliado) modernamente com novas perspectivas sobre seu conteúdo [...] cabe distinguirem-se, por
tanto, estas variáveis.
a) SEGURANÇA DO ESTADO. Esta da origem a competências específicas para aquele (declaração de guerra,
estado de sítio, etcétera).
b) SEGURANÇA DAS PESSOAS. Ele, por sua vez, gera na nossa Constituição os seguintes direitos: a realizar
o não proibido; a não fazer o permitido; a contar com segurança jurídica y a que lês seja provida
segurança pública.
Pode-se sustentar que o valor segurança opera no sistema dos direitos constitucionais como direito
fundamental, no sentido de que se o sistema político não oferece segurança interna e externa, e os
particulares não contam com regras delimitadoras entre o lícito e o ilícito, não têm segurança jurídica e
segurança pública, é praticamente impossível a realização dos demais direitos constitucionais. A
segurança, então, funciona ao menos como pressuposto da prática dos outros direitos”. (tradução livre do
autor).
SAGÜÉS, Nestor Pedro. Elementos de derecho... pp. 63-64.
59
A garantia oferecida pelo Estado aos cidadãos, a segurança, está
presente em todas as relações, deve ser base da atuação estatal, assim como
ser contemplada na conduta dos cidadãos, oponível a todos, assim, a
segurança jurídica assume ares de um direito geral, que assiste a todos os
administrados, assim como se impõe à administração. A generalidade e
importância da segurança jurídica, permeando as relações e sendo essencial à
vida em comunidade a alçam ao patamar de direito fundamental, inafastável do
ordenamento jurídico, razão pela qual é, conforme a organização da
Constituição de 1988, um direito fundamental e mais, uma cláusula pétrea.
60
2. Aspectos da ausência de segurança jurídica
A segurança jurídica, como já demonstrado, tem sua importância no
plano constitucional na medida em que se trata de um princípio que permeia
toda a atividade estatal, além de ser inafastável pela sua natureza de
componente do Estado de Direito, o é por ser positivado entre as cláusulas
pétreas. Conquanto pouco estudado, o princípio se apresenta como basilar
para a consecução dos objetivos estatais desejados pelos cidadãos.
Em muitos casos, a segurança jurídica sofre violações ou é fragilizada,
não sendo observada em nome de interesses pessoais, de determinada classe
ou mesmo da oposição entre os interesses dos cidadãos e os do Estado.
Ocorre que a organização estatal, especialmente no Brasil, está em constante
processo de mudança, com a acomodação das estruturas de poder e das
instituições, o que, no caso brasileiro, redunda num desequilíbrio institucional,
que é fato histórico. O dito desequilíbrio das instituições gera fragilidades e
contradições que acabam por trazer diversos fatos, atitudes, ou mesmo
normas, entre outros subprodutos, cujo efeito é uma ação estatal no sentido da
insegurança.
É fragilizada a segurança jurídica em ambas as suas dimensões, sendo
expostos diversos aspectos que evidenciam a insegurança trazida pela atuação
estatal em desconformidade com os objetivos decorrentes do contrato social,
segundo o qual os cidadãos trocaram parte de sua liberdade pela segurança
ofertada pelo ente coletivo. O momento social é de convulsão, o que torna
ainda mais necessária a interferência estatal no sentido da segurança, o que
nem sempre acontece.
61
2.1 Emendas constitucionais e legislação casuística
Iniciando a discussão sobre as ameaças e danos causados à segurança
jurídica, posto que já estabelecidos os limites básicos do que seja tal princípio,
é salutar falar sobre o processo que atua diretamente abaixo do poder
constituinte originário, que modifica sua obra, sendo último resquício da
constituinte: o poder constituinte derivado, ou reformador.
Delimitando o poder constituinte em si, podemos estabelecer que é
poder que delimita o Estado e o organiza. Tem-se que o poder constituinte, por
natureza, é originário e ilimitado, ele gera o Estado como passará a ser
conhecido e organizado, existe em razão da necessidade de formar um estado
de direito, seja por que forma, institutos, premissas ou princípios forem.
Esclarecemos que nem sempre se pensou dessa forma, podemos afirmar que
o poder constituinte sempre existiu, de fora mais ou menos rudimentar ao longo
do tempo, se sofisticando ao longo da história, mas sua teorização ganhou
corpo na França pós-revolucionária, com Sieyès.
Adaptando a teoria do poder constituinte ao regime representativo, como
ensina Paulo Bonavides64, Sieyès tratou de moldar sua teoria com uma fórmula
que impregnou os estudos posteriores; o exercício por representantes
especiais (a Convenção), vedada a atuação em outras tarefas do encargo dos
poderes constituídos.
Contudo, não existe apenas o poder constituinte originário, o qual,
cumprida sua função, deixa de ser necessário, contudo, não é possível que o
Estado permaneça inerte diante das mudanças sociais, inexorável que é
processo evolutivo. Diante dessa premissa, o poder constituinte originário deixa
aberta a possibilidade de modificar o fruto de seu trabalho, a Constituição, a
64
BONAVIDES, Paulo. Curso... p. 145.
62
parcela de poder ativa que resta ao futuro é o poder constituinte derivado, ou
reformador, o qual tem a tarefa de modificar a Constituição, onde for permitido
pelo poder originário, conforme a necessidade. Esse poder derivado não tem
as mesmas prerrogativas do poder originário, sendo limitado e somente
existindo porque o originário assim determinou, sendo um caso em que a
criatura não irá suplantar o criador. Podemos, em outras e mais abalizadas
palavras, repetir a lição de Paulo Bonavides acerca da diferenciação entre os
dois poderes citados acima:
Costuma-se distinguir o poder constituinte originário do poder
constituinte constituído ou derivado.
O primeiro faz a Constituição e não se prende a limites formais: é
essencialmente político ou, se quiserem, extrajurídico.
O segundo se insere na Constituição, é órgão constitucional,
conhece limitações tácitas e expressas, e se define como poder
principalmente jurídico, que tem por objetivo a reforma do texto
constitucional. Deriva da necessidade de conciliar o sistema
representativo com as manifestações diretas de uma vontade
soberana, competente para alterar os fundamentos institucionais da
65
ordem estabelecidas.
A teoria do poder constituinte leva a concluir que o poder constituinte
derivado tem o objetivo de atuar juridicamente, visto que ele foi criado por uma
norma jurídica, com o objetivo de agir moldando e criando institutos jurídicos,
mesmo que permeado pela política, o que é natural no regime representativo,
ainda guarda obediência ao direito. Na experiência brasileira, o processo de
modificação do texto constitucional é marcado pelo excesso, pela inclusão de
institutos perfeitamente reguláveis infraconstitucionalmente, mas incluídos no
texto constitucional pela fraqueza das instituições, além de adaptação da Carta
Política aos interesses e objetivos dos detentores do poder no momento.
Ademais, o estado de letargia da sociedade diante da classe política
propicia
a
violação
diuturna
dos
princípios,
garantias
e
direitos
constitucionalmente assegurados, o que, novamente mencionando Paulo
65
BONAVIDES, Paulo. Curso... p. 146.
63
Bonavides,
é
“A
derrubada
da
Constituição
pelo
golpe
de
Estado
institucional”.66
Indo além, o exercício do poder constituinte no Brasil deu origem a
distorções que culminaram com institutos únicos, verdadeiras violações à teoria
constitucional, como o Poder Moderador na Constituição de 1824 e a Emenda
Constitucional nº 1/69, que em grande parte reescreveu a Constituição de
1967.
Apesar de atualmente passar o Brasil pelo maior período de estabilidade
democrática de sua história, a segurança jurídica é pouco assegurada, ao
contrário, enfrenta seguidas ameaças, sobremaneira de forma velada, por via
de emendas constitucionais, as quais são formalmente regulares, contudo,
materialmente, dão forma ao movimento paulatino e contínuo de relativizar ou
eliminar direitos, flexibilizar institutos e liberalizar o Estado.
Por óbvio que a constituição carecerá de reformas ao longo do tempo,
salvo no sistema de Commom Law, onde a legislação infraconstitucional e o
costume regulam a quase totalidade dos institutos, não se pode deixar o texto
constitucional cair no anacronismo. Óbvio também é que as mudanças na
Constituição não podem servir de meio para a piora das condições oferecidas
aos cidadãos, o que seria ferir de morte o pacto gerador do próprio Estado,
que, nesse cenário, estaria retirando direitos e parte da segurança que se
propôs à oferecer aos administrados em troca de parcela da liberdade desses.
A pena para emendas constitucionais que tenham o escopo de ferir
direitos e garantias fundamentais é a pecha da inconstitucionalidade, logo,
sequer deveria sobreviver ao processo legislativo, e caso chegassem à
vigência, devem ser fulminadas pelo controle de constitucionalidade. Como
exemplo de situação em que o controle de constitucionalidade verifica ofensa à
segurança jurídica pela via de emenda constitucional, citamos o julgamento da
66
BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da Constituição e a
recolonização pelo golpe de Estado institucional. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
64
ADI nº 939-7, que julgou a Emenda Constitucional nº 3/93, especialmente o
voto do Ministro Carlos Velloso, que afirmou:
[...] É certo que é respeitável o argumento, mais metajurídico do que
jurídico, propriamente, no sentido de que o raciocínio abrangente da
matéria – a matéria dos direitos e garantias individuais – sem
distinguir direitos e garantias de primeira classe e direitos e garantias
de 2ª classe, poderia impedir uma reforma constitucional. O
argumento, entretanto, não deve impressionar. O que acontece é
que o constituinte originário quis proteger sua obra, a sua criatura,
que é a Constituição. As reformas constitucionais precipitadas, ao
sabor de conveniências políticas, não levam a nada, geram a
insegurança jurídica e a insegurança jurídica traz a infelicidade para
o povo. É natural portanto, que o constituinte originário, desejando
preservar sua obra, crie dificuldades para a alteração da
Constituição. A constituição norte-americana de 1787, tem mais de
duzentos ano e apenas vinte e seis emendas. Os Estados Unidos,
por isso mesmo, ostentam pujança econômica, política e jurídica, o
67
seu povo é feliz [...]
No mesmo julgamento, o Ministro Marco Aurélio Mello proferiu voto
ainda mais contundente, ainda que vencido, onde ressaltou que o objetivo do
Judiciário é preservar a ordem jurídica, não carecendo de troca de favores ou
amabilidades com os demais poderes:
[...] Ao Judiciário não compete como que colaborar, objetivando
acerto de caixa a ser feito no âmbito do Executivo; ao Judiciário
cabe, acima de tudo, sem recear críticas, até mesmo exacerbadas, a
preservação da ordem jurídica. Sob a minha óptica, com o devido
respeito aos meus pares, esta ficará seriamente comprometida, caso
se conclua pela inconstitucionalidade apenas parcial da Emenda nº
03/93 e, também, da Lei Complementar nº 77, que acabou por
68
disciplinar o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira [...]
Como se depreende das manifestações dos ministros citados, a
preocupação com a segurança jurídica também está presente na análise das
emendas constitucionais. Na doutrina, citamos ainda Vital Moreira, que
tratando da possibilidade de revisão do texto constitucional, delimita dois
pressupostos a serem observados por quem quer seja hábil a modificar o texto
constitucional:
67
ADI 939, Relator(a): Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/1993, DJ 18-03-1994.
pp. 05165.
68
ADI 939, Relator(a): Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/1993, DJ 18-03-1994.
pp. 05165.
65
[...] a) uma Constituição não é uma lei qualquer, um mero conjunto de
preceitos reguladores do processo político, mas sim a lei fundamental
da sociedade política e do Estado, que não pode ser alterada nos seus
aspectos essenciais sob pena de subversão da própria colectividade
política; b) o poder de revisão constitucional é um poder derivado do
poder constituinte e a ele submetido, sendo sua função não a de
renovar o poder constituinte, alterando livremente a Constituição, mas
sim a de defender e preservar a Constituição, mantendo sua
identidade originária e introduzindo as alterações e os ajustamentos
que se revelem necessários para reforçar a vitalidade da Constituição
69
[...]
Questões suscitadas por emendas constitucionais se apresentaram
como ameaças à segurança jurídica, deixando de atender aos fins a que o
Estado se propôs, ainda que sob argumentação de que trariam benefícios de
uma forma ou de outra. Com efeito, vem se configurando um efetivo abuso no
exercício do Poder Legislativo, tornando cada vez mais necessária a atuação
do Supremo Tribunal Federal no sentido de assegurar a integridade
constitucional.
Apesar de compreendermos que as emendas constitucionais passam a
fazer parte da Constituição, de forma indistinta do texto originário, devemos ter
em mente que o poder reformador não pode grosseiramente reescrever o texto
constitucional, ao contrário, sua atuação deve obediência aos princípios
norteadores da própria Constituição. Fica, pois, patente que o poder
constituinte derivado deve obediência ao poder constituinte originário. Em
termos simples, o Poder Legislativo, além de ter a função precípua de elaborar
leis, tem outras tarefas, como a fiscalização, no que é auxiliado pelos tribunais
de contas, contudo, é visível que em diversas oportunidades a atividade
legislativa deixa de atender ao interesse coletivo para atender aos interesses
do estado ou mesmo de interesses de grupos detentores de poder.
69
MOREIRA, Vital. Constituição e revisão constitucional. Lisboa: Editorial Caminho. 1990. pp.10102.
66
Segundo José dos Santos Carvalho Filho, “A utilização do poder,
portanto, deve guardar conformidade com o que a lei dispuser” 70. No presente
caso a lei é a própria Constituição, que faz a tripartição dos poderes. Ainda
conforme o mesmo autor71, enquadramos o exercício de poder para fins
diversos dos que a lei faculta, como desvio de poder, ou desvio de finalidade,
espécie do gênero abuso de poder, que consiste em atuar o agente em
descompasso com o interesse público, praticando, pois, conduta ilegítima.
Para deixar claro a situação de abuso do Poder Legislativo, com
evidente desvio de poder, é indispensável abordar a doutrina de Otto Bachof, o
primeiro estudioso a tratar de emendas constitucionais inconstitucionais.
Ensina o mestre alemão que a Constituição deve ser protegida contra
modificações que violem sua original intenção, especialmente devendo ser
oposta tal proteção contra o reformador:
A permanência de uma constituição depende em primeira linha da
medida em que ela for adequada à missão integradora que lhe cabe
face à comunidade que ela mesma constitui. [...] E num Estado com
divisão de poderes – mas apenas neste – é de todo conseqüente
que tal protecção também seja concedida, e até em especial medida,
face ao legislativo. O facto de haver sido justamente um acto do
legislativo – a chamada lei de autorização – que desarticulou [...]
definitivamente, e sob uma aparência de preservação da legalidade,
a Constituição da República de Weimar pode ter contribuído para
dotar o Tribunal Constitucional Federal, como guarda da
Constituição, de poderes extraordinariamente amplos precisamente
72
face ao legislador.
Ainda citando o professor da Universidade de Tübingen, é importante
destacar o conflito entre princípios e normas constitucionais, que é passível de
ocorrência especialmente quando da edição de emendas constitucionais, e sua
solução:
[...] a verdade é que decisiva para a interpretação da Constituição,
como de qualquer outra lei, é em primeira linha a chamada «vontade
70
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. rev. ampl. e atual.
Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2008. p.40.
71
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual... p. 40.
72
BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Silva.
Reimp. Lisboa: Almedina. 1994. pp. 11-12.
67
objectivada do legislador», isto é, a vontade que para um observador
expedito se depreende da própria lei: ora, no caso de contradição
aparente entre um princípio constitucional e uma norma singular da
Constituição, tal vontade só pode em princípio ser entendida, ou no
sentido de que o legislador constituinte quis admitir essa norma
singular como excepção à regra, ou no que negou, pura e
simplesmente, a existência de semelhante contradição. Concederse-á, todavia, que em casos de contradição insolúvel, de uma
contradição que também não seja susceptível de interpretar-se
através da relação regra-excepção, assim como, por último, em caso
73
de manifesto equívoco, possa haver lugar para outro juízo.
O abuso do Poder Legislativo, configurado mais visivelmente com a
edição de emendas constitucionais materialmente inconstitucionais, as quais
deveriam ter sido fulminadas logo no processo legislativo, o que não ocorreu,
por exemplo,
quando
do
julgamento
do
Pretório
Excelso já
citado
anteriormente, opera a serviço de interesses da administração que não
condizem com o interesse púbico ou mesmo agem em consentâneo com a
vontade de particulares. Independentemente do juízo de valor sobre boas ou
más intenções, é fato que interesses e poderes influenciam toda a atividade
política, inclusive a atividade legislativa e a reformadora da constituição. Paulo
Bonavides estabelece a importância de salvaguardar a Constituição contra
manifestações ilegítimas que atentam contra a democracia:
salvaguardar a Constituição figura,ao meu ver, como o primeiro dos
deveres do cidadão e do governante. Se os códigos foram, outrora, a
expressão da legalidade, as Constituições são, agora, a essência da
legitimidade. Sem legitimidade não há democracia, e sem democracia
não prevalece o Estado de Direito. altando uma e outra, falta tudo a um
povo para ser livre e digno. Todas as crises de legitimidade são crises
constituintes.
O Brasil, desde a emenda materialmente inconstitucional da reeleição
do Presidente da República, se acha imerso e submerso numa dessas
crises.
Ontem as diretas-já nos tiraram de uma autocracia; hoje as Medidas
Provisórias, as miniconstituntes e os plebiscitos inconstitucionais, se o
povo não for às ruas,poderão, em breve, nos levar de volta ao
subterrâneo da ditadura.
Desgraçadamente, é o que há de resultar do delírio continuista e da
cegueira política que ameaçam mexicanizar o País, instalando e
perpetuando no poder as piões oligarquias de todas as idades
74
republicanas de nossa História.
73
74
BACHOF, Otto. Normas constitucionais ... pp. 11-12.
BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao .... p. 59.
68
Uma boa explanação sobre influências exercidas no processo de
mutação constitucional é a de Uadi Lammêgo Bulos:
Na realidade, não podemos enumerar, com a pretensão de esgotar a
matéria, o rol de todas as hipóteses em que os dispositivos de uma
Carta Suprema sofrem mutações no seu sentido, significado e
alcance, sem mudar a norma prescrita pela manifestação constituinte
originária.
Isto porque, ao serem editadas, as constituições não têm a perfeição
de refletir todas as crenças e todos os interesses em pugna. Elas
derivam de um paralelogramo de forças políticas, econômicas,
sociais, culturais, etc., atuantes naquele determinado momento
histórico.
Daí englobarem compromissos antagônicos, vontades e
suscetibilidades de variadíssima gama, o que não permite ao
legislador prever todas as possíveis combinações de casos
concretos, que a experiência cotidiana possa proporcionar.
Isto enseja a utilização de determinados métodos, muitos deles
espontâneos, naturais – sem qualquer previsibilidade de quando irão
ser acionados -, com o intuito de extraírem o sentido, o significado e
o alcance das normas constitucionais.
Esses métodos, que podem provocar mudanças difusas no Texto
Máximo, são ilimitados, porque variam de acordo com as
transformações sociais, as quais repercutem sobre todo o
ordenamento constitucional.
Não há como negar que a ordenação constitucional, mesmo no que
atina aos aspectos sociais, políticos e econômicos, funda-se em
fatos, nem se pode ignorar a celeridade e a concomitância espaçotemporal das mudanças na realidade.
Desse modo, podem ocasionar mutações constitucionais: a
interpretação, a construção judicial, os usos e costumes, as
complementações legislativas, as práticas governamentais,
legislativas e judiciárias e, até mesmo, a influência dos grupos de
pressão.
Os últimos aí apontados – os grupos de pressão em certos
momentos da vida constitucional dos Estados – influem no processo
de mudança informal das constituições. Nas sociedades hodiernas,
devido ao fato de refletirem a estrutura econômica, social, política,
religiosa, cultural, são retratos fiéis de granes paixões, provenientes
de aspirações corporativas, que se desdobram em núcleos de
configuração e finalidades inconfundíveis: associações, sindicatos,
entidades de classe, partidos políticos, grupos artísticos, religiosos,
filosóficos, organizações civis, militares, dentre outros.
[...]
Os grupos de pressão, portanto, que têm sido objeto de numerosos
estudos e investigações, em todas as suas modalidades e técnicas
de ação, afirmam-se como uma realidade inegável em nossos dias,
independentemente de convicções e idiossincrasias. Basta ver o
exemplo dos Estados Unidos, onde os lobbies funcionam como
verdadeiras empresas especializadas, dotadas de imponentes
69
escritórios, com organização e influência marcantes, e cuja atividade
é regulamentada em lei.
[...]
No Brasil, embora não esteja previsto na legislação, é manifesta a
atividade de grupos de pressão, não raro sob o impulso de partidos
políticos, das categorias profissionais, de trabalhadores ou
servidores públicos, das organizações econômicas, privadas e
públicas, das instituições de classes liberais, militantes de defesa do
meio ambiente, enfim, dos patronos de diferentes interesses, que
agem, fortemente, em favor de teses e reivindicações.
[...]
Embora o seu texto permaneça inalterado, as disposições
constitucionais vão lenta e insensivelmente modificando-se, sem
mudar uma vírgula sequer, mas assumindo significados novos, sob o
75
influxo de exigências da evolução social.
Com efeito, se tem abusado do Poder Legislativo, desvirtuando sua
atividade, por exemplo, com a edição de emendas que não apenas deixam de
observar os princípios constitucionais, mas chegam a violá-los. Tem-se
maculado a constituição em seu próprio seio, adicionando dispositivos até
mesmo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que deveria ter
vida breve, dentro da normalidade, afetando o equilíbrio institucional e a boa
condução dos destinos do país. Não estamos a realizar nenhum tipo de
discurso contra o Legislativo ou contra a atividade legislativa, mas sim
demonstrando ser necessário um resgate da efetiva repartição dos poderes,
restaurando aos legisladores sua atividade.
Chegou a tal ponto a hipertrofia do Executivo sobre o Legislativo que,
conforme noticia Francisco Gerson Marques de Lima76, ao longo do mês de
junho de 1999 foram emitidas 178 (cento e setenta e oito) medidas provisórias,
perfazendo uma média de 5,93 por dia. O exemplo apresentado ilustra a
situação, mas somente adentraremos o tema das medidas provisórias mais
adiante.
Importante pontuar o fato de que o Legislativo vem tendo seu papel
diminuído, se pondo à sombra do Executivo, comprometendo a função
75
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva. 1997. pp. 65-69.
LIMA, Francisco Gérson Marques de. O Supremo Tribunal Federal na crise institucional brasileira
– Estudos de casos: abordagem interdisciplinar de sociologia constitucional. São Paulo: Saraiva,
2009. p. 404.
76
70
fiscalizatória que lhe cumpre e reduzindo a discussão de matérias importantes
ao mero “referendo dos legisladores”, tanto que pouco se fala das ideologias
dos partidos políticos, e muito mais em “base aliada”, “bloco governista”, “a
oposição”, tudo intimamente ligado a interesses específicos. Não se pode
deixar de relacionar uma inflexão do Poder Legislativo com a insegurança
jurídica, qualquer desequilíbrio na tripartição dos poderes fragiliza as
instituições e garantias que a sociedade espera.
Um dos fatores que influem para a segurança é a estabilidade, o mau
funcionamento das instituições conduz inexoravelmente a um desequilíbrio, o
qual redunda numa ruptura, ainda que parcial, do Estado.
No caso do mau funcionamento do Legislativo, pode-se falar em ruptura
no sentido de que a representatividade, uma das características da democracia
moderna, já que dificilmente seria viável a democracia direta, é de tal forma
desnaturada que deixa de caracterizar o sistema político aplicado.
Uma falha que desnature a democracia não pode, em condição de
normalidade institucional, conviver com o Estado democrático de direito, seria a
real negação do sistema, incongruência inaceitável, pois. Comenta-se que
existe uma hipertrofia do Poder Executivo, que tem constantemente ocupado
espaço dos outros poderes, especialmente do Legislativo, tornando-se um
“controlador” do Estado, tomando uma posição de iniciativa não apenas na
administração e execução das políticas estatais, mas desenvolvendo ele
próprio as iniciativas que deseja implementar.
Como se vê, criar políticas e normas é função do Legislativo,
manifestações da vontade popular, manifestas por meio dos representantes do
povo eleitos diretamente, o que em sendo usurpado, mesmo que se considere
como parcialmente, pelo Executivo. Mesmo que se considere que o titular do
Poder Executivo é eleito diretamente, o que lhe confere o caráter da
legitimidade, o foi para outras funções, logo, conforme já comentado linhas
71
acima, configura desvio de poder, por conseguinte é incompatível com o
princípio da segurança jurídica.
Ter uma contradição de tal monta existindo no seio do Estado torna de
difícil compreensão o problema de demonstrar como isso é um aspecto de
insegurança jurídica, já que, apesar da situação ser flagrante, o Brasil tem
vivido, como também já pontuado, o maior período de estabilidade democrática
de sua história. Contudo, a contradição tem seguido nessa relação autofágica
para com o Estado porque nossa democracia é jovem, imatura e ainda em
formação, posto que, considerando esses caracteres, nesse ambiente,
institutos esdrúxulos podem florescer e formar um conflito oculto, que aparente
normalidade mas traga nas profundezas a impossibilidade de perpetuação de
ambos.
Não sendo possível que o Estado conviva com a submissão de um dos
poderes que guarnece o sistema de freios e contrapesos, ou a normalidade
institucional retorna, ou Estado chega ao ponto de ruptura ou o sistema se
adaptará na forma de um pseudoestado, o qual não oferecerá as garantias que
deveria, mas sobrevive sustentado pela subserviência a um ou mais poderes,
que asseguram a continuidade do status quo.
Um estado que não seja capaz de sustentar a própria organização de
maneira adequada evidentemente também não tem a habilidade de prover a
segurança a que se propôs, nem mesmo a segurança jurídica, negando a
principal razão de sua existência, o que tem o condão de ocasionar uma
ruptura, levando a um novo contrato social e uma nova organização estatal, por
conta da necessidade dos cidadãos de obter segurança.
Os princípios consagrados constitucionalmente não são produtos diretos
das mentes dos constituintes, mas são principalmente resultado da evolução
social, evolução essa que segue ainda que não seja acompanhada pelo
Estado. Considerando que a organização estatal subsiste dentro de uma ordem
72
social, quando ele não mais se adequar a ela, conforme Rousseau, a
conseqüência, independentemente do motivo é a ruptura do contrato social:
De dois modos sobrevém a dissolução do Estado; primeiro, quando
o príncipe cessa de o administrar segundo as leis, e usurpa o poder
soberano; sucede então notável transtorno, e não o governo, mas o
Estado se constringe; quero dizer que o grande Estado se dissolve e
que se forma outro naquele, só composto dos membros do governo,
e que só é para o resto do povo seu dono e seu tirano; de sorte que
no instante em que o governo usurpa a soberania, o direito na sua
liberdade natural e, apesar de forçados, não têm obrigação de
obedecer.
Sucede o mesmo quando os membros do governo separadamente
usurpam o poder, que só em corpo devem exercer; grandíssima
infração das leis, que produz a maior desordem! Então há, por assim
dizer, tantos príncipes quantos magistrados, e o Estado não menos
77
dividido que o governo perece ou muda de forma [...]
O abuso do Poder Legislativo, usando as premissas de Rousseau,
conduz o governo no rumo de violar, por exemplo, os princípios constitucionais,
ou deformá-los de maneira formalmente correta, mas materialmente duvidosa,
deixando de ser o Estado Democrático para ser uma oligarquia, o que não é
sustentável diante da maioria alijada do poder e da representatividade real. Um
Legislativo subserviente ou que realiza mal suas funções não permite uma
adequada repartição dos poderes, de maneira a danificar a máquina estatal,
conduzindo-se no rumo da já mencionada ruptura, isso vem ocorrendo no
Brasil, não se podendo afirmar até quando.
A ruptura estatal por problemas relativos à separação dos poderes não
seria fato inédito na história, pontilhada de revoluções contra Estados que não
mais atendiam à sociedade, a qual deixou de sustentá-los. O mais célebre
exemplo foi a Revolução Francesa, na qual a estrutura social não mais
sustentou a monarquia, que defendia o interesse da nobreza, não o da
coletividade, e, mediante sublevação, o movimento revolucionário modificou a
estrutura do Estado em busca de uma nova organização, numa época de
sofrimento popular que coincidiu com um movimento hábil a romper com
77
ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. São Paulo: Martin
Claret. 2003. p. 86
73
estrutura estatal em nome de uma nova ordem. Nas palavras de Sandro
Chignola:
Essa tensão entre um movimento constituinte e a organização dos
poderes constituídos perpassa toda a Revolução Francesa. A rápida
desagregação do edifício da velha monarquia e da sociedade das
corporações e dos estamentos já é um fato consumado quando, em
agosto de 1778, são convocados os Estados Gerais, interrompendo
o longo interregno de gestão absolutista do poder. O compromisso
procurado pela monarquia, para aliviar os efeito de uma crise fiscal
insustentável, é o compromisso entre a oferta de uma série de
reformas, que conseguiriam alinhar a seu favor as amplas camadas
das ordens e dos estamentos, e o desejo obstinado de conservação
das configurações políticas e constitucionais do Antigo Regime. Já
em 1778, portanto, a contestação política das elites sociais, cuja
integração nos aparatos da monarquia parece cada vê mais
maquinosa e cada vez mais impedida pelas dificuldades interpostas
pela constituição estamental, começa a reivindicar o peso político
real adquirido pelo Terceiro Estado diante das ordens da Nobreza e
do Clero, e a invocar a necessidade de uma medida, o voto por
cabeça e não por ordem, que sancionasse a proeminência do
indivíduo sobre as organizações estamentais. A duplicação da
representação do Terceiro Estado, além disso, garantiria uma maior
eqüidade com relação às ordens privilegiadas e ao pequeno número
de franceses por elas representado.
Quando essa proposta, retomada por Sieyès, se tronará realmente
operativa (entre os dias 17 e 19 de junho de 1789), ela representará
também o afastamento definitivo da Revolução de qualquer
envolvimento com as lógicas constitucionais do Antigo Regime. [...]
O Terceiro Estado, organizado em Assembléia Nacional, recusa-se a
reformar o quadro constitucional herdado do passado, e busca
78
imaginar, para fundá-lo, o Estado do futuro [...]
Voltando à realidade pátria, reafirmando os argumentos já expostos,
novamente citamos Paulo Bonavides, que segue defende o republicanismo ao
expor sem meias palavras a crise e o abuso do Poder Legislativo, que aqui
tentamos trazer ao debate:
Do Poder Legislativo, amesquinhado e menosprezado com tanta
baixeza e insensibilidade pelo Poder Executivo, poder-se-á dizer que
ontem lhe subtraíram a eficácia de legislador ordinário, hoje lhe
despem a dignidade de legislador constituinte de segundo grau,
ficando nu perante o País na desmoralização ignóbil de suas
prerrogativas constitucionais enquanto órgão geratriz da vontade
79
geral.
78
CHIGNOLA, Sandro. In DUSO, Giuseppe (org.). O poder: história da filosofia política moderna.
Tradução de Andrea Ciacchi, Líssia da Cruz e Silva e Giuseppe Tosi. Petrópolis: Vozes, 2005. pp. 201202.
79
BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional... pp. 64-65.
74
Nas palavras acima fica indelével a marca de que o Poder Legislativo,
via de conseqüência, o Estado, vive uma crise, que apenas se aprofunda, não
se sabe até que ponto perdurará, mas claramente é um fator de insegurança a
todos, que pode ver uma ordem coroada pela chamada “Constituição Cidadã”
encontrar o destino da Constituição de Weimar, vitimada pelas falsas tentativas
de protegê-la.
A insegurança trazida pelo desequilíbrio dos poderes não passa
despercebida, mas tem sido pouco combatida, de maneira que a hipertrofia do
Poder Executivo vem encontrando terreno fértil, mas é visível que o conflito
entre o desequilíbrio e a tripartição dos poderes existe, apenas não é flagrante.
Como já dito, um Estado que não é capaz de manter sua própria estrutura
menos capaz é de prover segurança aos administrados, o que é a principal
função do Estado, enfim, é uma relação autofágica, na qual inexiste
coexistência a longo prazo.
Compreendida a crise do Poder Legislativo, com sua submissão pelo
Executivo, especialmente, adentramos uma faceta da atividade legislativa que
surge a cada fato provocado de comoção pública. Após muitos fatos que
chocam a população, ou são amplamente noticiados pela mídia, ficando em
evidência por um período considerável, os legisladores se apresam em
produzir uma norma que sirva como resposta ou uma prova de que são
capazes de reagir à “voz das ruas”, sendo verdadeira legislação do casuísmo,
uma forma de adequar a legislação a anseios do povo, legítimos ou não.
Usualmente a legislação produzida nesses momentos representa
tratamento mais rígido com relação a alguma conduta, ignorando princípios e
garantias constitucionais, representando, via de conseqüência, uma mostra de
insegurança jurídica, já que os debates acerca de novas normas se dão num
momento de comoção e não observa critérios amplos e legítimos com a
amplitude necessária à produção de forma mais republicana.
75
Não podemos considerar adequado ao comportamento republicano a
mera resposta à um clamor popular movido pelo desejo de uma firme resposta
estatal, ou mesmo um latente desejo de vingança, contra fatos reprováveis,
sem debate amplo, sem considerações de medida adequada à eventuais
mudança ou mesmo de sua pertinência. Normas elaboradas nesse ambiente
não têm legitimidade, representando mero populismo, simples sofismas
normativos.
Aqui não trataremos de todos os casos em que a atividade legislativa
serviu para dar uma resposta a anseios sociais advindos de fatos, uma
legislação casuísta. Trataremos de dois casos que exemplificam a situação, a
Lei nº 8.985, de 07 de fevereiro de 1995, que claramente representou uma
anistia concedida a um parlamentar, e o histórico de mudanças na Lei nº
8.072/90, que tratou dos chamados crimes hediondos, que vem sendo
modificada como meio de resposta à comoção popular decorrente de crimes
violentos e mesmo de decisão judicial que concluiu pela inconstitucionalidade
de certo dispositivo. No tocante à Lei nº 8.985/95, temos que considerar certos
pontos preliminarmente, de modo a evitar o discurso passional, atécnico ou
panfletário sobre o tema.
Ressaltamos que o presente estudo, obviamente, busca o caráter
técnico e não tem qualquer conotação de política partidária ou direcionamento
que não seja o da análise científica, ainda que tome posições aparentemente
críticas ou favoráveis em certos pontos.
Anistia, do grego “amnestía”, é a opção por cessar a persecução dos
responsáveis por determinados fatos, de modo a normalizar a situação jurídica
de pessoas que, de outra forma, estariam sujeitas à jurisdição. Numa
perspectiva histórica, fazemos uso das palavras de Ruti G. Teitel:
Comumente definida como o ato pelo qual se extinguem as
conseqüências de um fato punível e, em resultado, qualquer
processo sobre ele, em sentido político e inspirada em razões de
Estado a anistia é ordinariamente adotada para a “pacificação dos
76
espíritos” após motins e revoluções ou para pôr fim a guerras civis e
insurreições. Não se confundindo com indultos, que se destinam a
crimes comuns, é sempre coletiva e se estende não somente às
penas, mas também aos fatos que as determinaram, como se o
anistiado jamais tivesse sido condenado. Derivado do substantivo
grego „amnestía‟, o conceito de anistia traz implícitas as idéias de
esquecimento e redenção e tem sido adotado desde tempos
remotos, fazendo parte da tradição política. Seu primeiro registro
data do ano 403 a.C., em Atenas. Lá, depois que os Trinta Tiranos
foram depostos do poder, que ocupavam desde o fim da guerra do
Peloponeso, e a democracia restaurada, houve uma reforma
legislativa e a concessão de anistia. Votada pelo povo em praça
pública, a medida necessitava do apoio de seis mil cidadãos para
vigorar. Foi aprovada com a maioria dos votos dos atenienses e
80
atingiu todos os envolvidos na guerra civil, à exceção dos tiranos.
Por mais que se compreenda que a anistia dificilmente será concedida
de forma total e irrestrita, já que é medida por natureza excepcional, em que o
Estado deixa de cumprir sua missão de pacificador social, considerando
situações excepcionais. Ainda que seja instituto dedicado à aplicação pontual,
não se pode considerar que a anistia seja direcionada especificamente a uma
pessoa ou a um grupo extremamente restrito, o que violaria os princípios
constitucionais da impessoalidade, da moralidade e da razoabilidade. Deve,
assim, em havendo anistia, ser direcionada a um grupo relevante ou a casos
genericamente, com um mínimo de alcance para justificar sua finalidade social.
A restrição se justifica pelo caso a ser abordado, o qual representa mais
um caso de desvirtuamento de um instituto, com sua aplicação “à brasileira”,
deixando a natureza de lado e sendo implementada com improviso. Tratamos
do chamado “caso Humberto Lucena”, em que o então senador foi acusado e
processado por uso da gráfica do Senado Federal para impressão de material
utilizado em sua campanha à reeleição.
O fato foi amplamente coberto pela imprensa, acompanhado pela
conseqüente indignação popular, na qual voltou o debate sobre punição
exemplar e combate à corrupção e os discursos inflamados pela moralidade
pública. Quando do julgamento, o Tribunal Superior Eleitoral foi desfavorável
ao reclamado, cassando o registro de sua candidatura e concluindo pela
80
TEITEL, Ruti G. Transitional justice. New York: Oxford University Press, 2000. p. 52.
77
suspensão de seus direitos políticos por três anos. O caso parecia tomar
contornos até corriqueiros, com a punição adequada diante das evidências, já
que os fatos levavam à uma conclusão até obvia pela condenação, assim
acontecendo nos seguintes termos:
RECURSO - PRAZO - ACÓRDÃO - ASSINATURA - MINISTÉRIO
PÚBLICO - EFEITO.
Na dicção da ilustrada maioria, em relação a qual guardo reservas, a
assinatura do acórdão pelo órgão do Ministério Público não implica a
respectiva intimação, começando a correr o prazo recursal somente
da publicação no Diário da Justiça.
ABUSO DE AUTORIDADE - PARLAMENTAR - SERVIÇO GRÁFICO
DO SENADO FEDERAL.
Consubstancia abuso de autoridade a utilização do serviço gráfico do
Senado Federal em confecção de calendários, contendo a imagem
do parlamentar, e que tenham sido enviados aos cidadãos do Estado
no qual possui o domicílio eleitoral, ocorrendo a remessa em pleno
81
ano destinado às eleições.
Manejando os recursos cabíveis, buscou o então Senador, tutela do
Supremo Tribunal Federal, que, em sede de Recurso Extraordinário, decidiu
pelo seu não conhecimento:
RECURSO
EXTRAORDINÁRIO.
MATÉRIA
ELEITORAL.
CANDIDATO AO SENADO FEDERAL. REGISTRO. CASSAÇÃO.
INELEGIBILIDADE. PROPAGANDA ELEITORAL. ABUSO DO
PODER DE AUTORIDADE. LEI COMPLEMENTAR N. 64/1990,
ART. 22, XIV. 2. DECISÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
QUE AFASTOU ALEGAÇÃO DO ORA RECORRENTE DE
INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO ORDINÁRIO INTERPOSTO
PELO MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL CONTRA ACÓRDÃO DE
TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL, AO JULGAR IMPROCEDENTE
A REPRESENTAÇÃO. INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
FORMA. LEI ORGÂNICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO (LEI Nº 8625,
DE 12.02.1993), ART. 41, IV. INTIMAÇÃO PESSOAL.
INOCORRENCIA DA INTIMAÇÃO, PARA OS EFEITOS LEGAIS,
COM A MERA ASSINATURA DO ÓRGÃO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO APOSTA NO ACÓRDÃO. MATÉRIA DECIDIDA PELO
TRIBUNAL
SUPERIOR
ELEITORAL,
COM
BASE
NA
INTERPRETAÇÃO
DADA
A
LEGISLAÇÃO
INFRACONSTITUCIONAL E A VISTA DOS FATOS. NÃO CABE
REAPRECIAR ESSE PONTO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO,
POR NÃO SE CONFIGURAR QUESTÃO CONSTITUCIONAL.
CONSTITUIÇÃO, ART. 102, INCISO III. SÚMULA 279. ALEGAÇÃO
DE OFENSA A COISA JULGADA QUE NÃO E, DESSE MODO,
SUSCETIVEL DE ACOLHIDA. A OFENSA A CONSTITUIÇÃO,
PARA SERVIR DE BASE AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, HÁ
81
STF. RO nº 12.244, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 13/09/1994, RJTSE vol. 7, nº 1, p. 251.
78
DE SER DIRETA E FRONTAL, E NÃO VERIFICAVEL POR VIA
OBLIQUA. PRECEDENTES DO STF. 3. CALENDARIOS DE 1994,
COM FOTOGRAFIA DO CANDIDATO, IMPRESSOS NA GRAFICA
DO SENADO FEDERAL, EM GRANDE VOLUME, E DISTRIBUIDOS
AO ELEITORADO DO ESTADO ONDE O PARLAMENTAR E
CANDIDATO A VAGA DE SENADOR. DECISÃO DO TRIBUNAL
SUPERIOR ELEITORAL QUE AFIRMOU CONFIGURAR-SE, NO
CASO CONCRETO, ABUSO DE PODER DE AUTORIDADE E USO
INDEVIDO DE RECURSOS PUBLICOS, CRIANDO-SE, TAMBÉM,
SITUAÇÃO DE DESIGUALDADE COM OS DEMAIS CANDIDATOS.
PROPAGANDA ELEITORAL VEDADA. NÃO CABE, EM RECURSO
EXTRAORDINÁRIO, REEXAMINAR OS FATOS E AS PROVAS
CONSIDERADOS NAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS ELEITO RAIS.
DISCUSSÃO EM TORNO DA CARACTERIZAÇÃO DO ABUSO DE
AUTORIDADE E DE PROPAGANDA ELEITORAL ILICITA, QUE SE
REALIZOU NAS INSTANCIAS ORDINARIAS, A VISTA DOS
FATOS, PROVAS E DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL.
INVIABILIDADE DE REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA EM RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUIÇÃO, ART. 102, III, E SÚMULA
279. 4. ALEGAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA
INSUSCETIVEL DE ACOLHIMENTO. 5. NÃO SE CARACTERIZA,
NA HIPÓTESE, A ALEGADA INTERFERENCIA INDEVIDA DO
PODER JUDICIARIO EM MATÉRIA 'INTERNA CORPORIS' DO
PODER LEGISLATIVO. O ACÓRDÃO NÃO ANULA SEQUER ATO
ALGUM DO SENADO FEDERAL REFERENTE A ORGANIZAÇÃO E
FUNCIONAMENTO
DA
GRAFICA,
NEM
QUANTO
AS
DENOMINADAS
QUOTAS
ANUAIS
UTILIZAVEIS
PELOS
PARLAMENTARES, DE ACORDO COM NORMAS INTERNAS DA
CASA LEGISLATIVA. NO CASO, O TRIBUNAL SUPERIOR
ELEITORAL JULGOU A AÇÃO DO RECORRENTE, AO
DISTRIBUIR
AO
ELEITORADO
CALENDARIOS
COM
FOTOGRAFIAS, IMPRESSOS NA GRAFICA DO SENADO
FEDERAL, CONCLUINDO QUE OCORREU ABUSO DO PODER DE
AUTORIDADE E PROPAGANDA VEDADA, TENDO COMO
APLICAVEL A HIPÓTESE O ART. 22, XIV, DA LEI
COMPLEMENTAR N. 64/1990. A JUSTIÇA ELEITORAL, NO
EXERCÍCIO DE SUA COMPETÊNCIA, RECONHECEU, DIANTE
DOS FATOS, QUE O RECORRENTE DESCUMPRIU A LEI
ESPECIFICA. DIREITOS POLITICOS, LEGISLAÇÃO ELEITORAL.
NORMALIDADE
E
LEGITIMIDADE
DAS
ELEIÇÕES.
CONSTITUIÇÃO, ART. 14, PAR. 9. NÃO CABE, NA ESPÉCIE, A
ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 2., DA CONSTITUIÇÃO. 6.
82
RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO.
Nesses
termos,
prevaleceu
a
condenação
imposta
pelo
TSE,
considerando que houve abuso de autoridade na conduta do então Senador.
Consolidada a decisão judicial pela ausência de recursos possíveis, deveriam
ser aplicadas suas tenazes, representando fato histórico de prevalência do
espírito público. Porém, o Congresso Nacional agiu, editando a Lei nº 8.985, de
07 de fevereiro de 1995, da qual destacamos, de início a ementa: “Concede, na
forma do inciso VIII do art. 48 da Constituição Federal, anistia aos candidatos
82
STF. RE 186088, Relator(a): Min. Néri da Silveira, Tribunal Pleno, julgado em 30/11/1994, DJ 24-021995 PP-03696 EMENT VOL-01776-06. pp. 01149.
79
às eleições de 1994, processados ou condenados com fundamento na
legislação eleitoral em vigor, nos casos que especifica”.
Até aqui, afora a matéria a que se destina a anistia, há um aparência de
normalidade ao ato, parecendo uma anistia concedida sem maiores destaques,
apesar da importância do instituto, aplicável em casos raros. Contudo, ao
passar para as disposições da referida Lei, sobressai o caráter individual da
anistia concedida, ficando claro que se destinava, até por se assemelhar a uma
“engenharia reversa” do caso Humberto Lucena, descrevendo caracteres do
caso a fim de que lhe caísse tal uma luva.
Em seus quatro artigos, a referida Lei estabelece os critérios a serem
cumpridos para a concessão da anistia, exclui outros casos de modo a evitar a
interpretação extensiva:
Art. 1° É concedida anistia especial aos candidatos às eleições
gerais de 1994, processados ou condenados ou com registro
cassado e conseqüente declaração de inelegibilidade ou cassação
do diploma, pela prática de ilícitos eleitorais previstos na legislação
em vigor, que tenham relação com a utilização dos serviços gráficos
do Senado Federal, na conformidade de regulamentação interna,
arquivando-se os respectivos processos e restabelecendo-se os
direitos por eles alcançados.
Parágrafo único. Nenhuma outra condenação pela Justiça Eleitoral
ou quaisquer outros atos de candidatos considerados infratores da
legislação em vigor serão abrangidos por esta lei.
Art. 2° Somente poderão beneficiar-se do preceituado no caput do
artigo precedente os membros do Congresso Nacional que
efetuarem o ressarcimento dos serviços individualmente prestados,
na conformidade de tabela de preços para reposição de custos
aprovada pela Mesa do Senado Federal, excluídas quaisquer cotas
de gratuidade ou descontos.
Art. 3° Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, aplicandose a quaisquer processos decorrentes dos fatos e hipóteses
previstos no art. 1° desta lei.
Art. 4° Revogam-se as disposições em contrário.
[...]
Dentre todos os casos em que foram apurados e processados crimes
eleitorais, apenas um deles envolveu o uso de serviços gráficos do Senado
80
Federal, aí já reside o direcionamento da anistia, ainda mais quando são
aplicados os demais requisitos legais, envolver membro do Congresso
Nacional e que tenham efetuado o ressarcimento dos custos do uso da gráfica,
o que deve ter sido feito conforme a tabela de preços para reposição de custos
aprovada pela Mesa do Senado, excluindo cotas de gratuidade ou descontos.
Sequer pode ser considerada a anistia como algo impessoal, tamanha a
restrição aos casos em que ela se aplicaria, não se está a proteger uma
coletividade, mas sim se está estabelecendo critérios que,nem sendo
necessária a reunião completa, individualiza o destinatário. Tendo em vista que
a atividade legislativa, como todo mister público, deve ter o interesse coletivo
como seu alvo, chama a atenção que o Congresso Nacional tenha agido
abertamente em nome de interesses corporativistas, tentando livrar um de seus
membros da condenação, deixando o perigoso precedente aberto para outras
situações semelhantes. Nas palavras de Francisco Gérson Marques de Lima:
A Lei 8.985/1995 ofendeu e rompeu o princípio da separação dos
poderes, eis que implicou, diretamente , no desfazimento de uma
decisão judiciária transitada em julgado, em benefício de „pessoas
específicas‟ [que o autor comenta ser favorável, rigorosamente, a
uma pessoa específica]. Na verdade, ao conteúdo da lei só faltou
83
nominar a quem ela amparava [...]
Necessário abordar que não nos cumpre buscar iniciativas ou atribuir a
quem quer que seja pela iniciativa da Lei 8.985/95, cabe ao presente estudo
indicar o fato histórico que gerou uma contramedida por parte do Congresso
Nacional, ainda que diante de decisão judicial transitada em julgado. O caso do
Senador Humberto Lucena serviu tanto de alerta contra o corporativismo que
ofendeu diversos princípios constitucionais, representando um exemplo de má
atuação dos legisladores, que, utilizando da legislação como resposta direta a
um caso específico, num antinatural “casuísmo legislativo”.
Não se pode considerar que uma ilicitude, seja em que esfera for, seja
objeto de processo e manifestação judicial, transitada em julgado, seja também
83
LIMA, Francisco Gérson Marques de. O Supremo Tribunal Federal na crise ... p. 513.
81
centro
de
uma
iniciativa
legislativa
direcionada
unicamente
à
sua
desconstituição com a única finalidade de beneficiar um indivíduo em espécie.
A anistia que se intentou foi um atentando à segurança jurídica no sentido em
que se buscou desconstituir com a legislação um fato consumado, a decisão
judicial transitada em julgado, tudo em conformidade com o sistema
constitucional, enxertando no sistema uma lei cujo único objetivo era
desconstituí-lo.
Segurança jurídica, como anteriormente já comentado, tem a ver com
estabilidade, com a noção de que os cidadãos desejam e têm o direito de
conhecer que regras nortearão a atividade tanto do Estado como dos
particulares. No momento em que o próprio Estado, cuja função é prover
segurança, atenta contra essa segurança, deixa o mesmo de atender à sua
função principal, afronta a Constituição, fragilizando a confiança dos cidadãos e
deixando aberta a possibilidade, ainda que remota no caso em espécie, de que
os cidadãos rompam o contrato social.
A questão central apresentada é a de que, inequivocamente, existem
fatos que acabam por ensejar situações em que a legislação deixa de ser um
veículo de consecução da vontade social para ser uma ferramenta de resposta
a situações concretas.
Atividade legislativa é uma manifestação democrática, um dos
instrumentos da representatividade popular, se prestando a regular relações de
modo a materializar a vontade dos cidadãos, vontade essa que não é
respeitada quando o viés plural é abandonado para atender a especificidades,
ainda mais no sentido de modificar regras gerais em benefícios de um cidadão
específico.
Quanto à Lei nº 8.985/95, que representou uma mostra inversa da
situação apresentada linhas acima, onde a atividade legislativa atuou contra o
interesse popular em favor do corporativismo do Congresso Nacional, aqui a
82
legislação serviu para atender a um anseio manifesto num momento de
comoção pública, em grande porte incentivada pela mídia, que demandou uma
reação à violência que ainda campeia nas ruas.
A Constituição já previa o tratamento diferenciado à determinados
crimes, entendidos como de maior reprovabilidade ou mais agressivos aos
valores defendidos pelo Estado brasileiro, carecendo de regulamentação legal:
A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou
anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles
respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá84
los, se omitirem
A Lei nº 8.072, de 25 de junho de 1990, regulamentou o tratamento aos
chamados crimes hediondos, estabelecendo o elenco dos crimes abrangidos
pelo diploma legal, assim como uma séria de tratamentos mais rígidos para o
processamento dos casos e execução penal. Ainda que se considere ser a Lei
nº 8.072/90 necessária, não se poderia imaginar que a mesma seria alvo de
tamanha atenção em decorrência de situações pontuais, as quais ensejaram
mudanças em nome deu deseja crescente da população por respostas mais
duras diante de atos de violência que geraram comoção pública.
Não se está a dizer que o desejo popular não tenha razão alguma, mas
sim que nem tudo o que é popular é legítimo, caso fosse, viveríamos uma
“ditadura da maioria”, onde a legitimidade seria mascarada pela vontade, nem
sempre possível, das massas. O momento histórico que influenciou a
Assembléia Constituinte a incluir no texto constitucional a previsão de
tratamento diferenciado aos crimes hediondos é claramente explicado por
Antonio Lopes Monteiro:
O tema dos crimes hediondos foi daqueles que geraram acirradas
discussões na Constituinte, e a permanência da expressão „crimes
hediondos‟, no texto constitucional, deveu-se a acordo de lideranças
84
CF, Art. 5º, XLIII.
83
em barganha por aprovação de outros pontos problemáticos. [...]
devemos entender o momento de pânico que atingia alguns setores
da sociedade brasileira, sobretudo por causa de seqüestros no Rio
de Janeiro, culminando com o do empresário Roberto Medina, irmão
do Deputado Federal pelo Estado do Rio de Janeiro, Rubens
Medina, considerado a gota d‟água para a edição da lei.
O clima emocional para o surgimento de dispositivos duros que
combatessem os chamados crimes hediondos estava assim criado.
A sociedade exigia uma providência drástica para pôr fim ao
ambiente de insegurança vivido pelo País. O governo precisava dar
85
ao povo a sensação de segurança.
Fica evidente que a incluir o tratamento aos crimes hediondos na
Constituição adveio de fatos sociais, aos quais o Estado necessitou reagir de
maneira a satisfazer anseios dos administrados, contudo, a violência segue sua
escalada, testando os limites do choque a que a população é capaz de suportar
antes de aceitar as situações e passar da revolta ao torpor.
Originalmente a Lei nº 8.072/90 considerava como hediondos os crimes
de latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante seqüestro e
na forma qualificada, estupro, atentado violento ao pudor, epidemia com
resultado morte, envenenamento de água potável ou de substância alimentícia
ou medicinal, qualificado pela morte, e de genocídio, tentados ou consumados.
Considerados equiparados aos crimes acima indicados, o artigo 2ª da referida
Lei indica os crimes equiparados aos hediondos: prática de tortura, tráfico ilícito
de entorpecentes e drogas afins, e o terrorismo.
O rol de crimes hediondos já era elástico, mas ainda não bastou para
satisfazer a população, seguidos casos de crimes violentos tornaram a chocar
os cidadãos e novamente foi oferecida a resposta com o enrijecimento da lei
penal.
O homicídio qualificado que vitimou a atriz Daniela Perez, ocorrido na
cidade do Rio de Janeiro/RJ, em 1992, novamente chocou a população, ainda
85
MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: comentários e aspectos polêmicos. São Paulo:
Saraiva, 1991. pp. 3-4.
84
mais com a massiva cobertura dos meios de imprensa, que novamente ensejou
uma resposta dos legisladores.
A resposta oferecida foi a Lei nº 8.930, cuja vigência iniciou 07 de
outubro de 1994, modificando a redação do artigo 1º da Lei nº 8.072/90, de
maneira a incluir o “homicídio praticado em atividade típica de grupo de
extermínio, ainda que cometido por um só agente e homicídio qualificado e, por
outro lado, excluiu o envenenamento de água potável ou de substância
alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte”.
Houve ainda outra alteração, trazida pela Lei nº 9.695/98, que deu a
atual forma aos crimes hediondos.86
Delineada a disciplina legal, deve ficar claro que todo o tratamento dado
aos crimes hediondos se deve ao anseio social por segurança, a qual não é
oferecida aos cidadãos, mas sim lhes é entregue uma falsa impressão de que o
Estado reage por meio da legislação.
Que legislar é um meio de ação estatal não há dúvida, porém sem que
hajam ações coordenadas, envolvendo leis, infra-estrutura, pessoal qualificado
e planejamento adequado, de nada adianta a dura e fria letra legal.
Muito do arcabouço legal que regula os crimes hediondos tem
seriedade, contudo, outros pontos apenas servem para reafirmar a comentada
86
Atualmente são os seguintes os incisos do artigo 1º da Lei nº 8.072/90:
“Art. 1º. [...]
I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido
por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV e V);
II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine); III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o);
IV - extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo, 2o e 3o);
V - estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);
VI - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);
VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o).
VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou
medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho
de 1998).
Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei
nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado.”
85
falsa impressão de existe uma reação do Estado contra a violência. Citamos
Antonio Lopes Monteiro, que já em 1991 indicava que o tratamento quanto as
penas para os crimes hediondos e equiparados era dado sem que houvesse
medida adequada:
[...] isso mostra a ferocidade do legislador em cominar penas e
regulamentar o cumprimento delas, quando se trata dos crimes
previstos nesta lei. [Lei nº 8.072/90]. Essa avidez explica as aparentes
e as não tão aparentes contradições que contém o diploma legal. [...]
Este dispositivo [artigo 2º da Lei nº 8.072/90], embora seja lógico e
decorra da filosofia da deste diploma legal, merece severas críticas,
pois não leva em conta toda um apolítica penitenciária. Esquece a
psicologia forense e as peculiaridades de cada sentenciado, sobretudo
a adaptação a uma nova realidade social através do trabalho e da
convivência, proporcionadas na progressão dos regimes. Olvida-se o
legislador de que condenado nesta situação nada tem a perder, e o
passo seguinte é o fomento das rebeliões, a fuga com reféns e a
criação de verdadeiras quadrilhas, planejando e comandando
empreitadas criminosas de dentro dos muros das casas de detenção e
penitenciárias. Enfim, o que deveria ser uma etapa de regeneração
transforma-se numa escola de aprimoramento da delinqüência
87
organizada.
A legislação acerca do tema em tela é mais um exemplo de casuísmo
legislativo, não sendo parte de plano concreto para combate à violência, mas
apenas uma amostra de que as massas podem encontrar legisladores
sensíveis a seus anseios, ainda que de forma irrefletida e sem objetividade ou
resultados adequados. O raciocínio descrito acima não é único, conforme se
infere das palavras de Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini:
De todas as possíveis formas de instrumentalização do Direito penal,
duas, desde logo, merecem destaque: a política e a levada a cabo
pelos meios de comunicação (instrumentalização „midiática‟). As leis
penais existem para preservar a convivência social, recaindo sua
eficácia de forma igualitária sobre todos. Esse é o discurso oficial do
sistema. Esse discurso, entretanto, é irreal e falacioso porque as leis
penais, na prática, acabam muitas vezes cumprindo a função de
fortalecimento dos valores e das normas impostas pelos dominadores
(políticos, econômicos, religiosos, etc.), com a pretensão de preservar
vantagens e privilégios. [...]
O uso perverso do direito penal, na era informacional e globalizada,
vem se acentuando. A mídia retrata a violência como um „produto‟ de
mercado. A criminalidade (e a persecução penal), assim, não somente
possui valor para uso político (e, especialmente, para uso „do‟ político),
senão que é também objeto de autênticos melodramas cotidianos que
87
MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: texto, comentários e aspectos polêmicos. São
Paulo: Saraiva, 1991. pp. 113-115.
86
são comercializados com textos e ilustrações nos meios de
comunicação. [...] Grande parcela da responsabilidade pela
banalização da violência e do Direito penal se deve aos políticos e as
meios de comunicação.
A constatação irrefutável é esta: definitivamente o Direito penal, na era
da globalização, transformou-se em produto (valioso) de mercado. Os
políticos e os meios de comunicação „vendem-no‟ como se fosse uma
mercadoria. E para isso adotam todas as técnicas de mercado:
pesquisa do medo da população, pesquisa dos anseios populares,
marketing, intensa oferta do produto, especulação com o pânico e o
terror, aproveitamento dos momentos de histeria coletiva contra a
insegurança pública, promessa d resolução imediata dos problemas,
88
etc.
Entender a função estatal em qualquer de seus aspectos como um meio
de responde a situações unitárias, a casos específicos, é reduzir o estado a um
mero emissor de respostas a demandas de cada cidadão, o que não tem
qualquer ligação com as finalidades estatais, gerando sérios fatores de
insegurança jurídica.
O Estado está a serviço dos cidadãos, não a serviço de cada cidadão, a
atuação estatal se dá coletivamente, cumprindo os princípios e normas
constitucionais e realizando as legítimas expectativas dos cidadãos. O dever
estatal é para com a esfera coletiva, assim como o dever individual dos
cidadãos, porém, os últimos gozam da prerrogativa de esperar que suas
expectativas individuais, desde que legítimas, sejam satisfeitas.
O que foi dito linhas acima pode ser sintetizado, em termos já utilizados
no presente estudo, nas dimensões objetiva e subjetiva da segurança jurídica,
sendo a primeira dimensão cabível a ambas as partes, Estado e cidadão, e a
última apenas ao cidadão, por ter a ver com o sujeito, que somente pode ser
uma pessoa. Quando a atividade legislativa sai de seus propósitos e da
normalidade, passando a ser uma resposta casuística, não cumpre mais os
objetivos, assim como pode trazer inconstitucionalidade ou ilegalidades em seu
conteúdo ou forma.
88
GOMES, Luiz Flávio. BIANCHINI, Alice. O direito penal na era da globalização: hipertrofia
irracional (caos normativo), instrumentalização distorcionante.... São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. pp. 74-76.
87
No exemplo pertinente aos crimes hediondos, podemos citar que trouxe
inconstitucionalidades, excessos cometidos em nome de um alegado
enrijecimento da lei contra a violência. Citamos aqui, à guisa e prova do
raciocínio exposto, que, a questão da progressão de regime em caso de
cometimento de crimes hediondos, especificamente a questão do parágrafo 1º
do artigo 2º da Lei nº 8.072/90, que afirmava ser integralmente fechado o
regime de cumprimento da pena imposta aos crimes indicados no caput, ou
seja os hediondos e equiparados.
De início, destacamos o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça
sobre o tema, a qual era pela constitucionalidade do instituto, fundamentando
sua opção por entender que o constituinte originário deixou tal faculdade ao
legislador ordinário.89
Com a devida vênia ao STJ, apesar de parecer bem fundado o
raciocínio, temos que nos filiar ao entendido posteriormente pelo Pretório
Excelso, ao qual pertence a última palavra em sede de questão constitucional.
Verdade que o texto constitucional previu tratamento diferenciado aos
processados e condenados por crimes hediondos, mas daí a entender que tal
liberdade é absoluta não encontra apoio no restante do sistema jurídico.
89
Exemplificamos o entendimento do STJ com o seguinte aresto:
"RECURSO ESPECIAL. CRIMINAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CRIME HEDIONDO.
REGIME PRISIONAL INICIALMENTE FECHADO. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGO 2º,
PARÁGRAFO 1º, DA LEI 8.072/90.
1. O Plenário do Excelso Supremo Tribunal Federal decidiu já pela constitucionalidade da Lei dos Crimes
Hediondos (Lei 8.072/90), eis que, para além de ser a edição do direito penal matéria própria da dimensão
infraconstitucional (Constituição Federal, artigo 22, inciso I), a norma inserta no inciso XLVI do artigo 5º
da Constituição da República defere, também à lei, a disciplina da individualização da pena, que pode
assim estabelecer especialmente o regime fechado como integral das penas dos crimes hediondos (cf. HC
nº 69.603-1-SP, de 18/12/1992 - un. - Rel. Min. Paulo Brossard - DJU de 23/4/1993, p. 6922, in Revista
Trimestral de Jurisprudência 146/2, pg. 611). 2. Tratando-se de condenação por tráfico de entorpecentes,
delito equiparado a hediondo na forma do artigo 2º, caput, da Lei 8.072/90, deve a pena ser cumprida
integralmente em regime fechado (artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/90). 3. Recurso conhecido e
provido."
STJ - Recurso Especial: REsp 265321/GO 2000/0064721-7. Relator(a): Ministro Hamilton Carvalhido.
Julgamento: 23/10/2000. Órgão Julgador: Sexta Turma. Publicação: DJ 12.02.2001, p. 149.
No mesmo sentido: STJ- HC12768/RS, DJU 23.10.2000, p. 152; STJ - RE90171/SP, Sexta Turma, DJU
12.08.1997, p. 36287 e RT Vol. 00745, p. 00528. STJ- RE91852/MG, DJU 05.05.1997, p. 17139; RT
Vol. 00742, p. 00591. STJ-RE92640/ES, DJU 03.03.1997, p. 4719 e LEXSTJ Vol. 00095 Julho/1997, P.
00342. STJ-RO em HC 5115/RN, DJU 20.05.1996, p. 16742. STJ - RE 59288/SP, DJ 23/10/1995, p.
35720 e RSTJ VOL. 00076, p. 00268.
88
Ademais, a disciplina constitucional, no artigo 5º, inciso XLIII, afirma que
os crimes hediondos e equiparados, serão “inafiançáveis e insuscetíveis de
graça ou indulto”, nada disciplinando acerca do regime de cumprimento da
pena. A própria Constituição, em seu artigo 5º, inciso II, determina que
“ninguém será submetido a [...] ou tratamento desumano ou degradante”; no
inciso XLVI, preceitua que “a lei regulará a individualização da pena...”; estatui,
ainda no parágrafo 2º do mesmo artigo estabelece a possibilidade de
incidência e aplicabilidade de outras garantias decorrentes de princípios ou
tratados internacionais.
Diante das exposições acima, é evidente que em momento algum a
Constituição estabeleceu a impossibilidade da progressão de regime aos
apenados por crimes hediondos, mas sim estabeleceu uma série de garantias,
que, por menos ou mais adequadas, se aplicam a todos indistintamente.
Apesar de desejado por considerável parcela da população, vedar a
progressão de regime aos condenados por crimes hediondos ofende a
Constituição, assim como nega a própria natureza do sistema carcerário, que
busca reabilitar o condenado para devolvê-lo à vida em sociedade.
O Supremo Tribunal Federal, que chegou a ter jurisprudência formada
no sentido de que não havia inconstitucionalidade no dispositivo90, contudo,
reviu sua posição quando do julgamento do o Habeas Corpus nº 82.959/SP,
concluiu pela inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90,
90
Nesse sentido os seguintes julgados: STF - HC69657/SP; STF - HC 76479, DJU 08.05.98, p. 4; STF HC 78124, DJU 18.12.98, p. 51; STF - HC 71031, DJU 10.06.94, p. 14789; STF - HC 71206, DJU
24.06.94, p. 16636; STF - HC 71182, DJU 26.08.94, p. 21891; STF - HC 71653, DJU 10.03.95, p. 04881;
STF - HC 71994, DJU 09.06.95, p. 17231; STF - RE 187567, DJU 06.10.95, p. 33146; STF - HC 72567,
DJU 23.02.96, p. 03624; STF - HC 72363, DJU 31.10.96, p. 42014; STF - HC 74566, DJU 07.03.97, p.
05403; STF - HC 70616, DJU 04.04.97, p. 10519; STF - HC 74697, DJU 27.06.97, p. 30229; STF - HC
76217, DJU 06.03.98, p. 04; STF - HC 76949, DJU 14.08.98, p. 06; STF - HC 76608, DJU 09.10.98, p.
02; STF - HC 77076, DJU 20.11.98, p. 03; STF - HC 77132, DJU 27.11.98, p. 08; STF - HC 77828, DJU
27.11.98, p. 10; STF - HC 78166, DJU 16.04.99, p. 06; STF - HC 78247, DJU 21.05.99, p. 04; STF - HC
78417, DJU 21.05.99, p. 11.
89
declarando que a adoção do regime integral fechado e a impossibilidade de
progressão violavam a Carta Magna:
PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - RAZÃO DE
SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies
fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a
ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao
convívio social. PENA - CRIMES HEDIONDOS - REGIME DE
CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - ÓBICE - ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI
Nº
8.072/90
INCONSTITUCIONALIDADE
EVOLUÇÃO
JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da
pena - artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal - a imposição,
mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente
fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena,
em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do
91
artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.
Como se vê, até pelo ano da decisão do Pretório Excelso, levou muito
tempo até a decisão pela inconstitucionalidade sobreviesse, dependendo da
mudança e composição da corte ao longo do tempo, contudo, o fato é que a
inconstitucionalidade já se apresentava desde o surgimento do diploma legal
impugnado. Contudo, a decisão do STF trouxe um desequilíbrio, fatalmente
desproporcional e que, em seu turno, desnatura o tratamento diferenciado aos
crimes hediondos.
Se os autores de crimes de menor ou médio potencial ofensivo tinham
direito à progressão após o cumprimento de um sexto da pena aplicada, na
forma do artigo 112 da Lei de Execuções Penais, com a decisão do STF, os
condenados por crimes hediondos passaram a ter o mesmo tratamento. Assim,
um crime hediondo ou equiparado passou a ter o mesmo regramento, quando
da execução da pena, dos demais crimes.
O novo posicionamento do STF causou certa divergência nos
responsáveis pela execução penal, porém, novamente o legislador respondeu
ao caso concreto, agora a situação criada pela mais alta corte do país. Diante
dos crimes hediondos tendo o mesmo tratamento dos crimes comuns, o
91
STF. HC 82959, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2006, DJ 01-092006, p. 00018. Ementário: Vol. 02245-03, p. 00510. RTJ Vol. 00200-02, p. 00795.
90
sistema de execução penal quedou visivelmente desequilibrado, diante de tal
quadro, foi editada a Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, a qual
regulamentou novamente a progressão de regime de cumprimento penal de
crimes hediondos e equiparados.
Desta feita, foi admitida no texto legal a progressão de regime, com
regime inicialmente fechado, agora determinando o benefício, com regras
específicas. Como se vê, não existe uma política de execução penal definida,
mas sim movimentos a esmo, conforme as circunstâncias. Tendo sido
inicialmente, no afã de um alegado atendimento aos anseios sociais, instituído
tratamento inconstitucional aos apenados, constatada a inconstitucionalidade, a
decisão quedou, pela impossibilidade do STF agir como legislador positivo,
acabou por expurgar a irregularidade do tratamento.
Agora, buscando corrigir o desequilíbrio originado pelo próprio legislador
infraconstitucional, constatado e materializado pelo STF, o legislador
novamente agiu casuisticamente, não moldando novamente a execução penal,
mas pontualmente adequando o texto legal à decisão do Pretório Excelso. É
patente que legislar sem que haja medida da adequação ao sistema
constitucional, modificando a disciplina legal para atender à manifestações
decorrentes de crimes violentos, atendendo à momentos de convulsão social,
não é compatível com a segurança jurídica.
Legislar como de fato foi feito, no intuito de manter o tratamento mais
duro aos condenados, serviu para reagir à demanda popular, contudo, a
inconstitucionalidade poderia ser brecada ainda em sede do controle preventivo
de constitucionalidade, o que não aconteceu. Dessa forma, foi elaborada
legislação, no mínimo, previsivelmente inconstitucional, o que gerou dano à
segurança
jurídica
na
medida
em
que
foi
preciso
que
houvesse
pronunciamento judicial para restabelecer a integridade do sistema jurídico.
91
A ofensa à segurança jurídica ocorreu e gerou prejuízo a muitos
condenados até que o STF trouxesse o sistema de volta à uma relativa
normalidade, e se deu a ofensa no intuito de atender ao anseio popular no
sentido de reação contra a escalada da violência. Porém, a decisão do STF
extirpou do ordenamento jurídico uma flagrante inconstitucionalidade, contudo,
o resultado violou os princípios atinentes à questão, dessa forma, a correção
de um erro gerou uma inconsistência, que foi, novamente numa Lei elaborada
casuisticamente, corrigida pelo Congresso Nacional.
Em discussão relativa ao tratamento dispensado aos crimes hediondos,
a segurança jurídica foi violada, na medida em que representou, desde seus
nascedouro no texto constitucional, como resposta ao clamor popular, sem que
houvesse planejamento ou uma política definida sobre o tema. Não estamos a
afirmar que há algo de errado com o atendimento ao povo, ao contrário, a
legitimidade é parte da democracia, mas o papel do Estado não é atender a
todos os desejos dos administrados, mas sim buscar o equilíbrio entre o
desejado e o possível, no intuito de preservar a organização social e a
segurança, em todos os aspectos, desejada pelos cidadãos.
A
anistia
concedida
de
forma
direcionada
a
uma
pessoa
especificamente, ainda com sentido de afastar uma decisão judicial transitada
em julgada em julgado, não apenas viola a segurança jurídica, também ofende
a separação dos poderes, e ofende grosseiramente o desejo social. Como
vemos, a segurança jurídica pode ser violada tanto para violar quanto para
atender aos anseios dos cidadãos, bastando inaptidão, desejo, ou mesmo uma
vontade dos legisladores em agir menos conforme a técnica e mais conforme o
corporativismo, relações com a mídia ou outros desígnios.
92
2.2. A desarmonia dos poderes
É fato que a separação, ou tripartição, dos poderes tem lugar de
destaque na organização estatal brasileira, sendo uma das bases do Estado
como o conhecemos, remontando a França revolucionária à época de
Montesquieu.
Separados os poderes, eles passaram a ser parte do “sistema de freios
e contrapesos”, no qual os poderes têm suas funções precípuas separadas,
mas também a função de fiscalizar uns aos outras e algumas intersecções,
pontos em que as funções de um poder são exercidas por outros poderes.
No caso do Poder Legislativo, não lhe cabe a exclusividade para legislar,
mas essa é sua principal função, existindo matérias às quais as competências
são pertinentes a outros poderes, isso sem que o Legislativo seja diminuído ou
esvaziado, da mesma forma ocorre com os demais poderes.
O que existe, em condições normais, é uma divisão de competências
hábil a manter o equilíbrio e a harmonia entre os poderes. Contudo, o que se
apresenta no Brasil é um desequilíbrio no qual ao Legislativo tem sido relegado
um papel de apenas chancelar a iniciativa legislativa que advém do Poder
Executivo.
Nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari, é possível explicar a separação
dos poderes da seguinte forma: “[...] o poder do Estado é uno e indivisível. É
normal e necessário que haja muitos órgãos exercendo o poder soberano do
Estado, mas a unidade do poder não se quebra por tal circunstância [...]”.92
92
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 23.ed. São Paulo; Saraiva. 2002.
pp. 215-216.
93
Pelas palavras acima, temos claro que o Estado se manifesta de forma
uniforme, agindo com a unicidade que lhe é própria, porém, funciona com
competências divididas, já que não dividir as competências, especializando
setores do Estado, seria a concentração do poder, redundando no antigo
regime, de viés absolutista, incompatível com a democracia. A lição de Gilmar
Ferreira Mendes traz a reflexão teórica e já indica que no Brasil o estudo deve
considerar as particularidades pátrias:
Na Constituição do Brasil, esse princípio, que está estampado no
seu art. 2º, onde se declara que são Poderes da União –
independentes e harmônicos – o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário, é de tamanha importância que possui o status de cláusula
pétrea, imune, portanto, a emendas, reformas ou revisões que
tentem aboli-lo da Lei Fundamental.
Inicialmente formulado no sentido forte – até porque assim o exigiam
as circunstâncias históricas – o princípio da separação dos poderes,
nos dias atuais, para ser compreendido de modo constitucionalmente
adequado, exige temperamentos e ajustes à luz das diferentes
realidades constitucionais, num círculo hermenêutico em que a teoria
da constituição e a experiência constitucional mutuamente se
completam, se esclarecem e se fecundam.
Nesse contesto de „modernização‟, esse velho dogma da sabedoria
política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de
ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como
as nossas medidas provisórias – que são editas com força de lei –
bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável criatividade
de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é
freqüente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas
sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em sede de
93
controle de constitucionalidade.
Explicando a teoria dos freios e contrapesos, decorrente da separação
dos poderes e que temos como essencial a uma boa função estatal e respeito
aos valores democráticos, novamente citamos Dallari:
O sistema de separação dos poderes, consagrado nas Constituições
de quase todo o mundo, foi associado à idéia de Estado Democrático
e deu origem a uma engenhosa construção doutrinária, conhecida
como sistema de freios e contrapesos. Segundo essa teoria os atos
que o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerai
ou são atos especiais. Os atos gerais, que só podem ser praticados
pelo poder legislativo, constituem-se na emissão de regras gerais e
abstratas, não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem
elas irão atingir. Dessa forma, o poder legislativo, que só pratica atos
gerais, não atua concretamente na vida social, não tendo meios para
93
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 156.
94
cometer abusos de poder nem para beneficiar ou prejudicar a uma
pessoa ou a um grupo em particular. Só de pois de emitida a norma
geral é que se abre a possibilidade de atuação do poder executivo,
por meio das normas especiais. O executivo dispõe de meios
concretos para agir, mas está igualmente impossibilitado de atuar
discricionariamente, porque todos os seus atos estão limitados pelos
atos gerais praticados pelo legislativo. E se houver exorbitância de
qualquer dos poderes surge a ação fiscalizadora do poder judiciário,
obrigando a cada um de permanecer nos limites de sua respectiva
94
esfera de competências.
Nas palavras de Paulo Bonavides, ao tratar da teoria dos freios e
contrapesos, é destacada a interdependência dos poderes nos seguintes
termos:
Consideraremos a seguir na prática constitucional do Estado moderno
as mais conhecidas formas de equilíbrio e interferência, resultantes da
teoria de freios e contrapesos.
Dessa técnica resulta a presença do executivo na órbita legislativa por
via do veto e da mensagem, e excepcionalmente, segundo alguns, da
delegação de poderes, que o princípio a rigor interdita, por decorrência
da própria lógica da separação.
Com o veto dispõe o executivo de uma possibilidade de impedir
resoluções legislativas e com a mensagem recomenda, propõe
eventualmente inicia a lei, mormente naqueles sistemas constitucionais
que conferem a esse poder – o executivo – toda a iniciativa em
questões orçamentárias e de ordem financeira em geral.
Já a participação do executivo na esfera do judiciário se exprime
mediante o indulto, faculdade com que ele modifica efeitos de ato
proveniente de outro poder. Igual participação se dá através da
atribuição reconhecida ao executivo de nomear membros do poder
judiciário.
Do legislativo, por sua vez, partem laços vinculando o executivo e o
judiciário à dependência das câmaras. São pontos de controle
parlamentar sobre a ação executiva: a rejeição do veto, o processo de
impeachment contra a autoridade executiva, a aprovação de tratado e
a apreciação de indicações oriundas do poder executivo para o
desempenho de altos cargos da pública administração.
Com respeito ao judiciário, a competência legislativa de controle
possui, em distintos sistemas constitucionais, entre outros poderes
eventuais os variáveis, ou de determinar o número de membros do
judiciário, limitar-lhe a jurisdição, fixar a despesa dos tribunais, majorar
vencimentos, organizar o poder judiciário e proceder o julgamento
político ( de ordinário pela chamada „câmara alta‟), tomando assim o
lugar dos tribunais no desempenho de funções de caráter estritamente
95
judiciário.
94
95
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria... pp. 219-220.
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. 8ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 141.
95
A função essencial do Poder Legislativo é a elaboração de leis e demais
atos normativos, contudo, tal tarefa, não lhe é exclusiva, em alguns casos
cabendo a outros poderes a iniciativa legiferante. De outra forma não poderia
ser, já que uma hipotética exclusividade da atividade legislativa tornaria sem
efeito a teoria dos freios e contrapesos, deixando os demais poderes reféns do
Legislativo, o que absolutamente não é o caso.
No Brasil, as competências legislativas conferidas ao Legislativo são de
caráter geral, com o artigo 48 da Constituição Federal96 estabelecendo as
principais, e o artigo 4997 estabelecendo as competências exclusivas.
96
“Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para
o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União,
especialmente sobre:
I - sistema tributário, arrecadação e distribuição de rendas;
II - plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, operações de crédito, dívida pública e
emissões de curso forçado;
III - fixação e modificação do efetivo das Forças Armadas;
IV - planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento;
V - limites do território nacional, espaço aéreo e marítimo e bens do domínio da União;
VI - incorporação, subdivisão ou desmembramento de áreas de Territórios ou Estados, ouvidas as
respectivas Assembléias Legislativas;
VII - transferência temporária da sede do Governo Federal;
VIII - concessão de anistia;
IX - organização administrativa, judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública da União e dos
Territórios e organização judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Distrito Federal;
X – criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas, observado o que
estabelece o art. 84, VI, b;
XI – criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública;
XII - telecomunicações e radiodifusão;
XIII - matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações;
XIV - moeda, seus limites de emissão, e montante da dívida mobiliária federal.
XV - fixação do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, observado o que dispõem os arts.
39, § 4º; 150, II; 153, III; e 153, § 2º, I.”
97
“Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou
compromissos gravosos ao patrimônio nacional;
II - autorizar o Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, a permitir que forças
estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, ressalvados os casos
previstos em lei complementar;
III - autorizar o Presidente e o Vice-Presidente da República a se ausentarem do País, quando a ausência
exceder a quinze dias;
IV - aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer
uma dessas medidas;
V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de
delegação legislativa;
VI - mudar temporariamente sua sede;
VII - fixar idêntico subsídio para os Deputados Federais e os Senadores, observado o que dispõem os arts.
37, XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I;
VIII - fixar os subsídios do Presidente e do Vice-Presidente da República e dos Ministros de Estado,
observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I;
96
Excepcionalmente, o Executivo legisla, como nos casos previstos no
artigo 61, §1º, I e II, da Constituição Federal, que elenca matérias de iniciativa
privativa do Presidente da República. No exemplo acima, somente ao
Presidente da República cabe a iniciativa de deflagrar o processo legislativo,
logo, toda a atividade posterior depende de sua ação. Assim o Poder Executivo
legisla, na medida em que toma a iniciativa concreta de legislar, carecendo da
aprovação dos representantes do povo, ocupantes das cadeiras do Poder
Legislativo, para implementação.
Da mesma forma acontece no Judiciário, como nos casos do artigo 96, I,
“d”, e II, da Constituição Federal, e mesmo com o Ministério Público, que não é
sequer poder, caso do artigo 127, § 2º, também da Constituição.
Como já ficou claro, não se trata de uma divisão absoluta dos poderes,
mas sim de uma partição clara e competências, na qual um poder não aja
dentro da esfera de outro, ao contrário: ainda que, por exemplo, o Poder
Executivo deseje determinado direcionamento a uma matéria, permitirá o
debate e buscará fazer prevalecer sua posição através de critérios legítimos.
Não há, de fato, uma divisão ideal de competências, na verdade, o Legislativo
atua, mas em muitas oportunidades, o Executivo formula, faz aprovar e executa
seus desígnios. E aqui está a celeuma. O próprio Poder Legislativo é capaz de
atestar que o papel do Executivo é exacerbado diante das duas casas daquele
poder.
IX - julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a
execução dos planos de governo;
X - fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo,
incluídos os da administração indireta;”
XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros
Poderes;
XII - apreciar os atos de concessão e renovação de concessão de emissoras de rádio e televisão;
XIII - escolher dois terços dos membros do Tribunal de Contas da União;
XIV - aprovar iniciativas do Poder Executivo referentes a atividades nucleares;
XV - autorizar referendo e convocar plebiscito;
XVI - autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e
lavra de riquezas minerais;
XVII - aprovar, previamente, a alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e
quinhentos hectares.”
97
O Anuário Estatístico do Processo Legislativo de 2005, editado e
publicado pela Câmara dos Deputados, traz dados que, mesmo em primeira
análise chamam atenção pela hipertrofia do Executivo nas iniciativas de
apresentação de proposições. Considerando a proposição de todas as
atividades legislativas, o Presidente da República em 2005 totalizou 93
(noventa e três) iniciativas; no mesmo período, o Senado Federal tomou 119
(cento e dezenove) iniciativas, e a Câmara dos Deputados, considerando suas
comissões e os deputados, 3.565 (três mil quinhentas e sessenta e cinco)
iniciativas.98
O que se apresenta é uma desproporção, mascarada pelo número de
iniciativas da Câmara dos Deputados, mas analisando os números de modo
um pouco mais detido, é visível que o Executivo, sozinho, foi responsável por
2% (dois por cento) das proposições, enquanto o Senado Federal, cuja função
principal é legislar, teve 3% (três por cento), e a Câmara dos Deputados,
considerando o mesmo critério dos números absolutos acima, 92% (noventa e
dois por cento).99
O fenômeno não é isolado ou restrito, no ano de 2006, também
conforme o Anuário de Estatístico do Processo Legislativo referente àquele
ano, o Presidente da República totalizou 104 (cento e quatro) iniciativas
legislativas, ao passo que o Senado Federal 131 (cento e trinta e uma) e
Câmara dos Deputados, consideradas as comissões e os deputados, 1.790
(hum mil setecentas e noventa) iniciativas.100
Novamente pondo os números em percentuais, que facilitam a
visualização da proximidade em comento, temos que o Presidente da
República teve 5% (cinco por cento) das iniciativas legislativas no ano de 2006,
98
Anuário estatístico do processo legislativo. Ano 1 (2005). Brasília: Câmara dos Deputados,
Coordenação de Publicações, 2006. v. (Série estatística legislativa). p. 56.
99
Anuário estatístico do processo legislativo. Ano 1 (2005)... p. 57.
100
Anuário estatístico do processo legislativo. -- Ano 1 (2005)... p. 54.
98
ao passo que o Senado Federal teve 6% (seis por cento), e a Câmara dos
Deputados, somando comissões e deputados, 88% (oitenta e oito por cento).
Constam ainda dados relativos ao ano de 2007, em que novamente se
apresentam dados semelhantes, com o Executivo (Presidência da República)
totalizando 115 (cento e quinze) iniciativas legislativas, o Senado Federal 158
(cento e cinqüenta e oito) e a Câmara dos Deputados, nos mesmos moldes
acima, 3.569 (três mil quinhentos e sessenta e nove iniciativas.
Novamente em percentuais, temos, nos mesmo moldes anteriores, a
Presidência da república exercitando 3% (três por cento), o Senado Federal 4%
(quatro por cento) e a Câmara dos Deputados 93% (noventa e três por cento)
das iniciativas legislativas.
Numa análise superficial, pode ser sugerida a conclusão de que há um
movimento de decrescente participação do Executivo na atividade legislativa, o
que não é correto, apesar dos números absolutos representarem uma premissa
válida.
Ainda que haja variação nos números, é a proximidade entre a
Presidência da República, o poder Executivo, e o Senado Federal, o cerne da
questão: Não é aceitável, sob um olhar republicano, que as iniciativas de uma
casa legislativa e um poder cuja função legislativa deveria ser pontual sejam
quase que equivalentes, não o sendo por uma diferença que chega a ser
desprezível diante do total.
Considerando que a função legislativa é da essência do Legislativo, a
esse cabe, também pela amplitude de suas competências constitucionalmente
definidas, a predominância do exercício de tal mister. Não é cabível que a
principal função de um poder seja quase que igualada por outro que até exerce
a atividade semelhante, mas o faz em caráter excepcional. A situação que
99
surge é de desvio de função, em que o Executivo legisla quase tanto quanto o
Senado Federal, quando a diferença deveria ser enorme.
Não é algo simples de se combater, visto que o regime presidencialista
propicia que o Poder Executivo tenha uma abrangência maior que em outros
sistemas, como o parlamentarismo, mas uma real separação dos poderes não
permite que haja um poder suplantado por outro. Quem imagine ser apenas
uma questão circunstancial deve atentar para as citações doutrinárias acima,
que deixam claro a importância da interdependência entre os poderes, em que
um serve de limitador aos demais, de modo a manter um desejado equilíbrio
das instituições.
O equilíbrio institucional é desejado não apenas e simplesmente por ser
a forma como o sistema político democrático foi idealizado, mas também
porque assim é evitável o corporativismo dentro de um poder, que, sendo o que
se sobreponha aos outros, passa a ter controle sobre o Estado. No Brasil se
experimenta uma situação dessa natureza: o partido político do mandatário do
Poder Executivo usualmente tem uma grande representação no Legislativo, ou,
no mínimo, uma extensa rede de alianças que assegura ampla maioria no
parlamento. O cenário descrito mostra que, em geral, o ocupante do Poder
Executivo tem, em termos simples, uma real ascendência fática sobre o
Legislativo, logo, o debate político e a conseqüente busca do melhor interesse
da coletividade ficam ofuscados pelas composições, acordos e objetivos de um
grupo político. Materializa-se, dessa forma o entendimento de que nem sempre
o interesse da administração corresponde ao interesse público.
Tal cenário se agrava com a implantação de institutos para os quais
nossa estrutura política não foi preparada, como a reeleição para os cargos do
Poder Executivo: em que um ocupante desse poder tem o primeiro mandato
para assegurar os meios de buscar a reeleição, sem que haja uma igualdade
de condições entre candidatos, enquanto no segundo mandato apenas trabalha
para manter seus apoios, de modo que há uma acomodação danosa ao
100
interesse público, há tempo para a construção de uma estrutura não em torno
dos cidadãos, mas sim de interesses político-partidários.
Como os partidos políticos formam coligações para disputa das eleições,
ou decidem por acordos para apoiar candidatos eleitos, há uma inconveniente
relação entre quem exerce os poderes Legislativo e Executivo, com
predominância desse, que acaba por dificultar a viabilização do sistema de
freios e contrapesos como idealizado.
2.3. Medidas provisórias
É sabido que nos anos posteriores à Constituição de 1988 desenvolveuse no Brasil um hábito do Poder Executivo, especificamente no nível Federal,
de utilizar em profusão o instituto da Medida Provisória. Na Constituição de
1988 as medidas provisórias são reguladas no artigo 62101, o qual foi
101
“Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas
provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
I – relativa a:
a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral;
b) direito penal, processual penal e processual civil;
c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros;
d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares,
ressalvado o previsto no art. 167, § 3º;
II – que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro;
III – reservada a lei complementar;
IV – já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do
Presidente da República.
§ 2º Medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts.
153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida
em lei até o último dia daquele em que foi editada.
§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se
não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por
igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas
delas decorrentes.
§ 4º O prazo a que se refere o § 3º contar-se-á da publicação da medida provisória, suspendendo-se
durante os períodos de recesso do Congresso Nacional.
§ 5º A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias
dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais.
§ 6º Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação,
entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional,
ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que
estiver tramitando.
101
modificado pela emenda Constitucional nº 32, já no intuito de restringir a edição
e reedição de medidas provisórias, o que obteve algum resultado, ainda que
menor que o desejado. Gilmar Ferreira Mendes102, comentando a natureza
jurídica das medidas provisórias, as entende, na esteira da lição de Pontes de
Miranda, como sendo “lei sob condição resolutiva”103, para, em seguida,
apresentar seu conceito de Medida Provisória:
[...] as medidas provisórias são atos normativos primários, sob
condição resolutiva, de caráter excepcional no quadro dos Poderes, e,
no âmbito federal, apenas o Presidente da República conta o poder de
editá-las. Ostenta nítida feição cautelar. Embora produzam efeito de
concitar o Congresso a deliberar sobre a necessidade de converter em
norma certo trecho da realidade social, não se confundem com meros
projetos de lei, uma vez que desde quando editadas já produzem
104
efeitos de norma vinculante.
Dessa forma, fica patente que, ao editar uma Medida Provisória, o
executivo atua positivamente na atividade legislativa, atividade excepcional em
relação à função administrativa que lhe cabe, logo, por natureza deveria o
instituto ser utilizado com parcimônia e cautela. Contudo, o que acontece é que
os presidentes da república aproveitam a eficácia imediata e a facilidade de
edição das medidas provisórias para aplicar seus projetos, muitos que
duvidosamente atendam aos requisitos de relevância e urgência para edição
de uma Medida Provisória.
§ 7º Prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de medida provisória que, no prazo de
sessenta dias, contado de sua publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso
Nacional.
§ 8º As medidas provisórias terão sua votação iniciada na Câmara dos Deputados.
§ 9º Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas
emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do
Congresso Nacional.
§ 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou
que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.
§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de
eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante
sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.
§ 12. Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manterse-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto.”
102
MENDES, Gilmar Ferreira [et.al.]. Curso de direito... p. 884.
103
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1967, t. 3, p. 138.
104
MENDES, Gilmar Ferreira [et.al.]. Curso de direito... p. 884.
102
Cada medida provisória insta o Poder Legislativo a manifestar-se acerca
de um tema que não foi objeto de regulamentação, de modo que a Medida
Provisória convertida em lei faz com que essa não apresente formal ou
materialmente nenhuma distinção das demais leis. Assim, o Executivo age
provisoriamente, o que é aceito, com ou sem emendas, ou rejeitado, sendo o
produto decorrência do processo legislativo, cujo resultado se desvincula da
origem: a lei não precisa fazer remissão ao documento que a originou.
Contudo, o presente estudo não cuida de analisar o final do processo, a
lei decorrente das medidas provisórias, mas sim o inicio desse, a edição das
medidas provisórias pelo executivo e alguns aspectos que denotam problemas
institucionais, desequilíbrio entre os poderes e desvirtuamento do instituto da
Medida Provisória. Fernando Basto Ferraz indica a pedra de toque da questão:
o mau uso das medidas provisórias, cuja conseqüência direta é o desequilíbrio
entre os poderes:
Questiona-se se os poderes da União são, de fato, independentes e
harmônicos entre si, em função da hipertrofia do Poder Executivo
que abusa na edição de medidas provisórias, sob o frágil argumento
105
de relevância e urgência (CF/88, artigo 62).
Como já abordado, o Executivo tem atuado como legislador em mais
oportunidades do que o republicanamente aconselhável, ofuscando o
legislativo, e as medidas provisórias foram o grande meio usado pelo executivo
para legislar.
Um instituto que tem eficácia imediata, com o mesmo valor de uma lei
ordinária, sem necessitar da discussão imposta pelo processo legislativo, a
qual ocorre posteriormente, dependendo apenas da vontade do Poder
Executivo é uma facilidade muito aproveitada pelo executivo, que tem pressa
para implementar seus desígnios.
105
FERRAZ, Fernando Basto. A agonia de um modelo de estado. In BARBOSA, Edmilson (Org.).
Democracia e constituição: estudos em homenagem ao professor Dimas Macedo. Fortaleza: Edições
UFC. 2008. p. 11.
103
Independentemente de qualquer juízo de valor sobre as políticas
implantadas por meio de medidas provisórias, entre as quais por vários anos o
valor do salário mínimo, o instituto foi desvirtuado, com um critério elástico de
“relevância e urgência” e a falta de resistência dos legisladores diante da
invasão de sua seara.
Evidentemente que um instituto ser usado de maneira imprópria, de
modo a deixar de ser uma excepcionalidade para passar a ser uma corriqueira
ferramenta legislativa do Poder Executivo, alterando políticas e instituições a
qualquer momento é um fator de insegurança.
As medidas provisórias, ao inovar no ordenamento jurídico sem que haja
discussão acerca do tema, o que fica para o momento seguinte, acabam por
permear o sistema de forma a manter a possibilidade de, a qualquer tempo,
sobrevir mudança na legislação sem que os cidadãos, por meio de seus
representantes no Poder Legislativo, sejam ouvidos. O problema não é do
instituto da Medida Provisória em si, que tem sua utilidade, observados os
critérios para sua edição, mas sim com sua vulgarização, de maneira tamanha
que não causam mais nenhuma estranheza as notícias de que a pauta de
votação nas casas do Congresso Nacional estejam
“trancadas” por
necessidade de apreciação de uma ou mais medidas provisórias cujo prazo de
trâmite já superou o normal. Tal fenômeno denota que a atividade legislativa do
Poder Executivo sobrecarrega o Poder Legislativo, que não consegue sequer
dar vazão ao que vem daquele poder, quiçá legislar por sua própria iniciativa.
É compreensível que a separação dos poderes não seja rígida como
originalmente
pensada,
já
que
a
agilidade
necessária
ao
mundo
contemporâneo não permite a rigidez de outros tempos, mas não é compatível
com o ordenamento jurídico que os poderes, que funcionam como um sistema,
sejam submetidos por um deles. A situação é que as medidas provisórias que
surgem em profusão, apesar de serem consideradas como cumpridoras dos
requisitos para edição, em que pese a ampla maioria dos congressistas
104
oferecerem suporte ao governo, elas há muito abandonaram, na prática, a
restrição aos casos de relevância e urgência.
Não se pode falar em urgência de situações como o aumento de salário
mínimo, disciplinado, por exemplo, na Medida Provisória nº 456, de 30 de
janeiro de 2009. O caso é que o valor foi decidido pelo Poder Executivo,
quando deveria ser objeto de discussão pelos legisladores, considerando a
realidade sócio-econômicas do país, as condições reais de necessidade dos
cidadãos e a possibilidade do empresariado e do próprio governo. O que surgiu
foi uma Medida Provisória, que, caso rejeitada, redundaria num mal maior, a
volta ao valor anterior do salário mínimo, e cuja modificação ou aferição de
novo valor demandaria uma longa e complexa discussão, incompatível com o
reduzido prazo para análise da medida. Logo, a Medida Provisória é
formalmente adequada, atendeu facilmente aos requisitos para sua edição,
haja vista a relevância evidente da matéria e a urgência em atender de
qualquer incremento nas condições de vida da população.
Os legisladores se acham impossibilitados de discutir seriamente a
matéria, embora a vontade política para tanto possa ser questionável, não
houve a possibilidade, já que o aumento trazido pelo ato do executivo era fato
consumado, dada a publicação da Medida Provisória, e não haveria tempo
hábil para debater a matéria. É fato que tal situação vem se repetindo ano após
ano, inclusive na atualidade, com a Medida Provisória 474, de 23 de dezembro
de 2009, e várias outras anteriores. Diante de tais premissas, pode-se ver que
o Legislativo há muito foi alijado da condição de porta-voz do povo, sendo
apenas um instrumento de uma espécie de referendo, onde suas decisões
apenas confirmam o implementado pelo Poder Executivo.
Nesse diapasão, a insegurança jurídica é patente, visto que muitas
matérias, aqui tratadas mediante um exemplo, deixam de ser objeto de
manifestação do Poder Legislativo para serem decididas pelo Poder Executivo,
que não existe para realizar tal mister. Logo, está-se diante de uma república
em que os poderes constituídos não funcionam dentro de suas competências,
105
mas quedam submetidos por um hipertrofiado Poder Executivo, que já assumiu
boa parte da função legislativa, não tendo adentrado nas questões judiciárias.
Dessa forma, o desequilíbrio institucional, aliado a uma subserviência dos
legisladores, que permitem a usurpação de sua atividade, geram uma situação
em que o ocupante do Poder Executivo é eleito para uma função, mas além
dela, exerce outra, para a qual não necessariamente tem legitimidade.
Importante destacar que a análise de que existe um desequilíbrio na
separação dos poderes no Estado brasileiro não é inovadora, contudo se
agrava ao longo dos anos, com mais hipertrofia do Poder Executivo. Aqui
citamos a análise de Dalmo de Abreu Dallari, quando fala em “transferência
constitucional de competências”, seja por meio de reforma ou mesmo de novas
constituições:
Outra ocorrência mais ou menos freqüente é a transferência
constitucional de competências, por meio da reforma constitucional
ou até da promulgação de novas Constituições. Por esse meio,
obedecendo rigorosamente o processo de emenda à Constituição ou
pelo uso de um processo autêntico de elaboração de novas
Constituições. Por esse meio, obedecendo rigorosamente o
processo de emenda à Constituição ou pelo uso de um processo
autêntico de elaboração constitucional , tem surgido novas
constituições que não se apegam rigidamente á teoria dos reios e
contrapesos, embora mantenham a aparência de separação dos
poderes. Isso tem ocorrido, nos últimos tempos, visando aumentar
as competências do poder executivo, dando como resultado a
manutenção de órgãos do poder executivo que conservam sua
estrutura mas mantém um mínimo de participação na formação da
vontade do Estado.
Como fica evidente, e a experiência tem comprovado, tais soluções
são artificiais, pois mantêm uma organização sem manterem o
funcionamento que determinou sua criação. Na verdade as próprias
exigências de efetiva garantia da liberdade para todos e atuação
democrática do Estado requerem desde maior dinamismo e a
presença constante na vida social, o que é incompatível com a
tradicional separação dos poderes. É necessário que se reconheça
que o dogma da separação formal está superado, reorganizando-se
completamente o estado, de modo a conciliar a necessidade de
106
eficiência com os princípios democráticos.
De pronto fica claro que o fenômeno de hipertrofia do Poder Executivo
não é particularidade do Brasil, seja por meio de reforma constitucional ou por
106
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria... pp. 221-222.
106
novas cartas. O próprio do Brasil é que, além da ascendência do executivo, há
o uso das medidas provisórias, que dão ao titular do Poder Executivo acesso
direto à função legislativa sem necessidade de reforma ou nova Constituição.
Isso posto, no Brasil há mais de um caminho para uma repartição de
competências, um formal, conforme as regras constitucionais, e outro
transverso, com o uso excessivo de medida provisórias ao nível de usurpar a
função legislativa e desequilibrar os poderes.
Independentemente da via é necessário à democracia e à república que
haja uma efetiva e real separação dos poderes, com um sistema de freios e
contrapesos que somente funciona com independência e contribui para a
otimização do Estado e de suas instituições.
Considerando a lição acima transcrita, fica claro que o mestre paulista
considera a separação absoluta dos poderes como um dogma superado, o que
não significa que assim seja para com a separação em si. A interpretação que
fazemos é que não é mais adequada uma separação absoluta, mas uma
integração dos poderes, de forma a preservar suas competências e
independência, mas incentivando uma ação integrada, otimizando o Estado.
Como não se sabe das reais atitudes após a eleição de quem que quer
seja, com a profusão de medidas provisórias, os cidadãos perdem a pluralidade
de sua representação, ficando a mercê das medidas provisórias, que, em
última análise, tem contribuído mais para o desequilíbrio entre os poderes que
para a governabilidade do país.
2.4 A interferência judicial na função legislativa e a segurança jurídica
Modernamente vem sendo comentada nos meio jurídicos a chamada
“judicialização do Estado”, ou “Estado Judicial”, ambas as expressões buscam
destacar a crescente demanda por pronunciamentos judiciais quanto a fatos
107
específicos.
O
controle
de
constitucionalidade
é
parte
do
processo
democrático, já que não se pode presumir que os legisladores, representantes
do povo, escolhidos pelo critério da legitimidade ou da opção política, não
necessariamente tenham conhecimentos profundos de legislação.
Posto que os legisladores, por mais ou menos bem intencionados que
sejam, são falíveis, podendo editar textos incompatíveis com o sistema legal,
mormente contrários à constituição, e existindo o sistema de freios e
contrapesos, em que um poder é limitado e fiscalizado por outros, cabe ao
Poder Judiciário zelar pela preservação da legalidade. A função julgadora é até
mais sensível que a própria elaboração da norma, considerando que quando
da feitura da norma não existia regulamentação ou a então existente, em tese,
já não atendia às necessidades, a nova norma tende a ser mais adequada à
evolução social; a interpretação porém, não é realizada por aqueles que
redigiram a norma, o que é positivo, mas traz a chance de erro na interpretação
da vontade do legislador, de desvirtuamento da norma, entre outros.
Mesmo em sua concepção positivista, dando o máximo valor à norma
em si, Kelsen mantinha a interpretação como um fator-chave para o sistema
jurídico, considerando as normas como uma “moldura dentro da qual há várias
possibilidades de aplicação”107. Cabe ao magistrado, o intérprete da norma em
última análise, analisá-la e, dentro do que ela permite, aplicá-la ao caso
concreto, eis é o cerne da função judicante. Contudo, queda o magistrado não
apenas solucionando conflitos pela simples e direta aplicação de normas aos
casos concretos, já que não pode o mesmo se furtar de dar resposta concreta
às
situações
que
lhe
são
apresentadas,
conforme
o
princípio
da
inafastabilidade do Judiciário, materializado no inciso XXXV da Constituição108.
Muitos dos casos que são apresentados ao Poder Judiciário envolvem
necessidade de um trabalho maior do julgador, tendo ele que ir além da busca
107
KELSEN, Hans. Teoria Pura... p. 466.
“Art. 5º [...]
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
[...]”
108
108
de uma lei plenamente aplicável ao caso, mas de ir às demais fontes do direito,
inclusive a eqüidade, para solucionar a querela. Nesses casos, o julgador
considera todo o sistema jurídico para tomar sua decisão, não criando normas,
mas chegando a aplicar os conceitos mais abstratos do direito em casos
concretos. Em situações como a de decidir com base na equidade, ou nos
princípios gerais do direito, por exemplo, o magistrado é levado a aplicar uma
regulamentação geral, abstrata, ao um alto nível de concretude, unindo
diretamente as duas extremidades da legislação, sendo ela pensada como uma
linha.
Pode-se pensar que os princípios não se destinariam a aplicação direta
a casos, mas sim a orientar a formação do ordenamento jurídico, orientando e
inspirando outras normas. Porém, na falta das normas, no nível acima estão os
princípios, esses podendo indicar o caminho daquelas, logo, com mais razão
podem ser aplicados para pacificar as relações in concreto. E cada vez mais
casos vem sendo submetidos à apreciação do Poder Judiciário, levando a
atividade judicante a estender suas fronteiras.
Um dos meios de maior destaque na atuação do judiciário é o controle
de constitucionalidade, que põe o Supremo Tribunal Federal com freqüência
sob o foco da mídia, além de conduzir as decisões menos no rumo das normas
e mais no dos princípios. Originariamente a Constituição de 1988 trouxe a Ação
Direta de Inconstitucionalidade e a Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental como formas de controle de constitucionalidade por parte do
judiciário. O processo legislativo em si já é um meio de controle preventivo de
constitucionalidade, destinado a impedir a edição de normas inconstitucionais.
O momento em que o Poder Judiciário foi, além da função repressiva, de
guardião do ordenamento jurídico contra a inconstitucionalidade, posto numa
condição de garantidor das normas editadas ocorreu com a criação da Ação
Declaratória de Constitucionalidade, introduzida pela Emenda Constitucional nº
109
3, que alterou o artigo 102109. Com esse instituto, criado durante o mandato de
Fernando Collor de Mello, sabidamente um período convulso da história, logo
posterior à redemocratização, de sérios problemas econômicos, culminando
com impeachment do presidente, se buscou um meio de blindar normas contra
questionamentos sobre sua constitucionalidade.
Ao primeiro olhar, e isso é correto em vários casos, o instituto tem
grande valor na medida em que traz certeza quanto à constitucionalidade,
brecando a possibilidade de diversas iniciativas no sentido de expurgar
determinada norma do ordenamento jurídico, ou ainda de estabelecer um ou
outro entendimento, com eventual modulação dos efeitos numa decisão em
sede de controle de constitucionalidade.
Na outra mão está a declaração de constitucionalidade como um meio
de proteger normas e institutos criados à partir de uma relação desequilibrada
dos poderes Executivo e Legislativo, em que a hipertrofia do primeiro submete
o segundo, logo, o produto de tal relação não guarda a necessária fidelidade ao
princípio republicano, apesar da perfeição formal. Tanto é correto que a Ação
Declaratória de constitucionalidade se destina a fazer cessar o debate acerca
do controle de constitucionalidade, que Gilmar Ferreira Mendes, um dos
mentores da ação, a defende nos seguintes termos:
[...] se a jurisdição ordinária, através de diferentes órgãos, passar a
afirmar a inconstitucionalidade de determinada lei, poderão os
órgãos legitimados, se estiverem convencidos de sua
inconstitucionalidade, provocar o STF para que ponha termo à
controvérsia instalada.
Da mesma forma, pronunciamentos contraditórios de órgãos
jurisdicionais diversos sobre a legitimidade de norma poderão criar o
109
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendolhe:
I - processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória
de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;
[...]
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de
inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e
efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e
indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.”
110
estado de incerteza imprescindível para a instauração da ação
110
declaratória de constitucionalidade.
Na transcrição acima, fica claro que a Ação Declaratória de
Constitucionalidade se presta a sanar um “estado de incerteza”, evidente
situação de insegurança jurídica, exemplificado pelas decisões judiciais
contraditórias.
Outra
situação
é
contínuo
pronunciamento
de
inconstitucionalidade de uma norma, meio que faria chegar ao Pretório Excelso
argumentos no sentido de extirpar uma norma do ordenamento, que podem ser
calados, com um ação diretamente intentado no Supremo Tribunal Federal,
tirando a voz das instâncias inferiores, em nome de uma alegada declaração
de constitucionalidade.
Apesar do procedimento declaratório de constitucionalidade comportar
argumentos favoráveis e contrários, não se iguala ao processo legislativo, nem
ao controle difuso de constitucionalidade, sendo um freio ao debate. Dessa
forma, fica evidente a interferência do Poder Judiciário sobre a atividade
legislativa, seja quando, cada vez mais, sai da concretude para decidir com
base em princípios e abstrações, seja quando são criados institutos que
possibilitam uma manifestação do Supremo Tribunal Federal no sentido de que
sejam
brecadas
manifestações
contrárias
à
normas.
Reafirmando
o
entendimento, podemos tratar de recente situação, na qual foi aprovada a
exigência da chamada “ficha limpa”.
Originário de iniciativa popular, o projeto de tronar inelegíveis candidatos
condenados tramitou e chegou ao seu texto final (Lei Complementar nº 135, de
04 de junho de 2010), alterando o artigo 2º da Lei Complementar nº 64/1990,
atingindo os políticos condenados por um colegiado nos casos indicados,
impedindo suas candidaturas111. É inquestionável a legitimidade da idéia,
110
MEIRELLES, Hely Lopes. WALD, Arnoldo. MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e
ações constitucionais. 32.ed. São Paulo: Malheiros. 2009. p. 415.
111
Excerto da Lei Complementar nº 135/2010:
“Art. 1º Esta Lei Complementar altera a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece,
de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e
determina outras providências.
111
Art. 2o A Lei Complementar no 64, de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 1º[...]
I – .[...]
c) o Governador e o Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal e o Prefeito e o Vice-Prefeito
que perderem seus cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição Estadual, da Lei
Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante
o período remanescente e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término do mandato para o qual tenham sido
eleitos;
d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em
decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do
poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como
para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial
colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena,
pelos crimes:
1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;
2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que
regula a falência;
3. contra o meio ambiente e a saúde pública;
4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;
5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação
para o exercício de função pública;
6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;
7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;
8. de redução à condição análoga à de escravo;
9. contra a vida e a dignidade sexual; e
10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;
f) os que forem declarados indignos do oficialato, ou com ele incompatíveis, pelo prazo de 8 (oito)
anos;
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por
irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão
irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário,
para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão,
aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa,
sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;
h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem
a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão
transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou
tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;
..........................................................................................................................
j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da
Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos
ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais
que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;
k) o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros
do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais,
que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a
abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da
Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem
durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao
término da legislatura;
l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou
proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao
patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso
do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena;
112
contudo as emendas reduziram a abrangência do projeto original, ainda assim
permanece representando os anseios dos cidadãos.
O Tribunal Superior Eleitoral manifestou que a referida lei é
imediatamente aplicável, posto que se trata de condição de elegibilidade, e não
mitigou efeitos ou mencionou transições. Levadas as primeiras insurreições ao
Supremo Tribunal Federal, há manifestação no sentido de que:
Como obter dictum, aponto que a própria adequação da Lei
Complementar nº 135/2010 com o texto constitucional é matéria que
exige reflexão, porquanto essa norma apresenta elementos jurídicos
passíveis de questionamentos absolutamente relevantes no plano
hierárquico e axiológico.
Ante o exposto, recebo a petição como medida cautelar, impondo-se
as anotações de estilo, e defiro a liminar para que se dê eficácia
suspensiva ao recurso extraordinário destrancado por força do AgRg
112
709.634.
m) os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional
competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato
houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário;
n) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial
colegiado, em razão de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para
evitar caracterização de inelegibilidade, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão que reconhecer a
fraude;
o) os que forem demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial,
pelo prazo de 8 (oito) anos, contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo
Poder Judiciário;
p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por
ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo
de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previsto no art. 22;
q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente
por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou
aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos;
...........................................................................................................................................
§ 4o A inelegibilidade prevista na alínea e do inciso I deste artigo não se aplica aos crimes culposos
e àqueles definidos em lei como de menor potencial ofensivo, nem aos crimes de ação penal privada.
§ 5o A renúncia para atender à desincompatibilização com vistas a candidatura a cargo eletivo ou
para assunção de mandato não gerará a inelegibilidade prevista na alínea k, a menos que a Justiça
Eleitoral reconheça fraude ao disposto nesta Lei Complementar.” (NR)
“Art. 15. Transitada em julgado ou publicada a decisão proferida por órgão colegiado que declarar a
inelegibilidade do candidato, ser-lhe-á negado registro, ou cancelado, se já tiver sido feito, ou declarado
nulo o diploma, se já expedido.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput, independentemente da apresentação de recurso,
deverá ser comunicada, de imediato, ao Ministério Público Eleitoral e ao órgão da Justiça Eleitoral
competente para o registro de candidatura e expedição de diploma do réu.” (NR)
[...]”
112
STF. Agravo de Instrumento 709.634 GOIÁS. Relator: Min. Menezes Direito. Decisão liminar do
Ministro
Dias
Toffoli.
Data:
30
de
junho
de
2010.
Disponível
em:
<http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.js
f?seqobjetoincidente=12361>. Acesso em 13 de julho de 2010. Também disponível em “Notícias STF:
Ficha Limpa: ministro Dias Toffoli suspende efeitos de condenação para deputada estadual de Goiás”.
113
Fica patente que o Pretório Excelso tenciona adequar o texto legal em
relação à constituição, o que está dentro das suas funções, mas daí a adentrar
tão profundamente no mérito quando fala que “a própria adequação da Lei
Complementar nº 135/2010 com o texto constitucional é matéria que exige
reflexão”,
e
segue
sinalizando
a
existência
de
fragilidades
na
constitucionalidade da norma quando afirma que a mesma “apresenta
elementos jurídicos passíveis de questionamentos absolutamente relevantes
no plano hierárquico e axiológico”, é sair da imobilidade do julgador e incentivar
as investidas dos que sejam eventualmente prejudicados pela norma em
comento. Da mesma forma, o STF anteriormente já havia suspendido os
efeitos da Lei Complementar nº 135/2010, usando a alegação de que haveria
demora em julgamento de Recurso Extraordinário interposto contra decisão do
Tribunal Regional Eleitoral do Piauí, o qual já contava com voto favorável, mas
suspenso por pedido de vista:
Estão presentes os pressupostos para a concessão do efeito
suspensivo ao recurso extraordinário.
A plausibilidade jurídica do pedido pode ser atestada em voto por
mim proferido quando do início do julgamento na Segunda Turma
desta Corte, ocasião em que me manifestei pelo provimento do
recurso.
A urgência da pretensão cautelar parece evidente, ante a
proximidade do término do prazo para o registro das candidaturas, a
ocorrer no próximo dia 5 de julho de 2010, data antes da qual não
será possível a continuidade do julgamento deste recurso perante a
Segunda Turma do Tribunal, devido ao fato de a última Sessão da
Turma neste semestre ter ocorrido no último dia 29 de junho de
2010, e tendo em vista que o período de férias forenses se inicia no
próximo dia 2 de julho de 2010.
Ante o exposto, defiro o pedido e determino que o presente recurso
seja imediatamente processado com efeito suspensivo, ficando
sobrestados os efeitos do acórdão recorrido. Após o término do
período de férias forenses, encaminhem-se os autos para referendo
do órgão colegiado, nos termos do art. 21, V, do RISTF e do art. 26113
C da Lei Complementar n° 135/2010.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=155491>. Acesso
em 13 de julho de 2010.
113
STF. Recurso Extraordinário 281.012 Piauí. Relator: Min. Gilmar Mendes. Data: 30 de junho de 2010.
114
Dessa maneira, um dos Ministro do Supremo Tribunal Federal, levantou
dúvidas quanto à constitucionalidade de uma norma, quase ao mesmo tempo
em que outro utilizava uma questão de ordem interna da corte para suspender
os efeitos da mesma norma. A conclusão aqui se apresenta de forma clara:
Existe, e opera, interferência judicial na função legislativa. E não há que se
falar em livre convencimento ou motivação dos julgadores, que poderiam, cada
um a seu turno, ter se restringido ao caso concreto e optado por dar celeridade
ao julgamento diante da situação pontual, mas optaram por brecar uma das
normas de maior legitimidade da história recente brasileira por questões
menores se considerada a importância da matéria regulada pela Lei
Complementar nº 135/2010.
Quando qualquer dos poderes excede suas atribuições, ainda que de
forma aparentemente conforme a legalidade, mas na essência desequilibrando
o sistema de freios e contrapesos, interferindo nas atribuições uns dos outros,
agindo fora e suas competências constitucionalmente determinadas, há
insegurança jurídica, há ilegitimidade na produção legislativa, na atuação
executiva e nas decisões judiciais. Defendendo a idéia da necessidade de um
tribunal constitucional, a fim de que não haja atividade estatal desequilibrada,
sem a uniformidade necessária e sem que qualquer dos poderes assuma
sozinho o controle das atividades estatais, citamos Carl Scmitt:
Se [...] os órgãos e instâncias constitucionalmente previstos
ainda não forem capazes de uma vontade política uniforme,
torna-se, assim, inevitável que a substância política emigre
para alguns dos pontos do sistema social e político. Outros
poderes, sejam eles legais ou apócrifos, assumem voluntaria
ou forçosamente, consciente ou semiconscientemente, o papel
do estado e governam, a bem dizer, sub-repticiamente. Isso
porque a “astúcia da idéia”, por força da qual deve se dar
justamente no parlamento a unidade volitiva e todo o povo,
não depende de modo algum dos partidos coligados e dos
bureaux dos grupos parlamentares, o parlamento não tem
nenhum monopólio de ser o único cenário da astúcia da idéia e
esta pode mudar facilmente seu campo. Por isso, também
fazer necessariamente parte de uma visão total da realidade
de nossa atual situação estatal, os diversos remedos e forças
contrárias. Enquanto estiverem unidos por uma oposição
comum à situação do presente e instável Estado de coalizão
partidário, podem ser qualificados em sua totalidade como
tentativa e um Estado politicamente neutro. Nesse aspecto, é
naturalmente concebível que a palavra “neutro”, em si
115
ambígua e, como todo conceito político, determinada por seu
antagonismo concreto, significa, nesse contexto, nada mais
que a oposição às forças e métodos do instável estado de
coalização partidário, cujo poder é suficientemente grande e
central para reunir uma maioria de forças contrárias, diferentes
114
entre si, mediante uma oposição comum.
A lição do mestre alemão deixa claro que, mesmo em tempos idos, já
havia instabilidade política de maneira que o equilíbrio entre os poderes fosse
comprometido, deixando que outros poderes surgissem no vácuo do Estado,
sendo tal Estado neutralizado, com a acomodação das forças políticas dentro
de um contexto de situação e oposição consentidos, sistema esse que pode-se
facilmente identificar no bipartidarismo estabelecido durante os governos
militares posteriores ao golpe de estado ocorrido em 1964 no Brasil. Mesmo
hoje não se pode falar em grandes correntes oposicionistas, já que os acordos
celebrados em nome da “governabilidade” enfeixam as mais diversas correntes
políticas, ainda que propaguem em seus discursos as idéias mais antagônicas.
Ao menos como registro da idéia, Loius Favoreu defende a existência de
um tribunal constitucional, como um outro poder, de modo a ter, por si, a
capacidade impor ao legislador a observância à constituição, o que somente
poderia ser imposto por um igual, não por um órgão, uma fração, de outro
poder:
[...] después de La Segunda Guerra Mundial, la casi totalidad de las
nuevas constituciones que crean tribunales coonstitucionales les
dedicam un «título» destinto de aquél reservado al poder judicial.
[...]
El Tribunal Constitucional, pues, no forma parte de ninguno de los
tres poderes clásicos, y, además, es tratado en igualdad respecto a
estos tre poderes en el Texto Fundamental.
[...]
El Tribunal Constitucional hace respetar las normas constitucionales
por los tres poderes –ejecutivo, legislativo e judicial- no solamente
con respecto a individuos sino tambíem a cada uno de ellos. La
separación de poderes adquiera todo su relieve y su significado
cuando existe un Tribunal Constitucional que se encarga de que
cada uno de ellos observe los límites e sus competencias. Incluso se
puede decir que en Francia el poder judicial (o más exactamente
jurisidiccional) sólo apareció y se afirmó como tal a partir del
momento en que el Consejo Constitucional desarrolló una
114
SCHIMITT, Carl. O guardião da constituição. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey.
2007. p. 147.
116
jurisprudencia que establecía las garantías constitucionales
reconocidas a las jurisdiciones administrativas e judiciales.
[...]
En el orden político, primero, estas instituciones desenpeñan un
papel fundamental de regulación del juego político al asegurar un
equilibrio no sólo entre los diversos poderes sino tambiém, en la
mayor parte de los sistemas, entre la mayoría e la oposición.
Especialmente en período de alternancia, contribuem muy
eficazmente [...] a atenuar y autentificar las reformas com el fin de
facilitar y permitir los cambios de mayoría. Sin que eso cambie su
naturalea e jurisdicción , los tribunales constitucionales son de ahora
en delante uno de los elementos del sistema político y dificilmente se
concibe hoy en día que éste pueda funcionar sin ellos.
[...]
Tambíen a ellos les incumbe la tarea de que evolucione el Texto
Fundamental, con el objecto de adaptarlo a los cambios ocurridos en
la sociedad, o de provocar revisiones necessarias, cuando las
lagunas de la Constitución no puedem ser colmadas por una
interpretación constructiva.
[...]
Solo un Tribunal Constitucional está en condiciones de oponerse al
legislador nacional y obligarle a respetar la Constitución. El
«legislador negativo» al menos debe estar a la altura del «legislador
115
positivo».
115
“[...] depois da Segunda Guerra Mundial, a quase totalidade das novas constituições que criam
tribunais constitucionais lhes dedicam um „título‟ distinto daquele reservado ao poder judiciário [...].
O Tribunal Constitucional, pois, não faz parte de nenhum dos três poderes clássicos, e, ademais, é tratado
em igualdade com relação a esses três poderes no Texto Fundamental.
[...]
O Tribunal Constitucional faz os três poderes respeitarem as normas constitucionais –executivo,
legislativo e judiciário– não somente para com os indivíduos, mas também a cada um deles. A separação
dos poderes adquire todo seu relevo e significado quando existe um tribunal Constitucional que se
encarrega de que cada um deles observe os limites e suas competências. Inclusive se pode dizer que na
França o poder judicial (ou mais exatamente jurisdicional) só apareceu e se afirmou como tal a partir do
momento em que o Conselho Constitucional desenvolveu uma jurisprudência que estabelecia as garantias
constitucionais reconhecidas às jurisdições administrativas e judiciais.
[...]
Na ordem política , primeiro, estas instituições desempenham um papel fundamental na regulamentação
do jogo político ao assegurar um equilíbrio não só entre os diversos poderes,mas também, na maioria dos
sistemas, entre a maioria e a oposição. Especialmente em período de alternância, contribuem muito
eficazmente [...] para atenuar e legitimar as reformas com o fim de facilitar e permitir as mudanças de
maioria. Sem que isso mude sua natureza e jurisdição, os tribunais constitucionais são de agora em diante
um dos elementos fundamentais do sistema político e dificilmente se concebe hoje em dia que esse possa
funcionar sem eles.
[...]
Também a eles incumbe a tarefa de que seja evoluído o Texto Fundamental, com o objetivo de adaptá-lo
ás mudanças ocorridas na sociedade, ou de provocar revisões necessárias, quando as lacunas da
Constituição não podem ser preenchidas por uma interpretação construtiva.
[...]
Só um Tribunal Constitucional está em condições de se opor ao legislador nacional e obrigá-lo a respeitar
a Constituição. O „legislador negativo‟ ao menos deve estar à altura do „legislador positivo‟.” (Tradução
livre do autor).
FAVOREU, Louis. Los tribunales constitucionales. Trad. José Julio Fernández Rodríguez. In: GARCIA
BELAUNDE, D. e FERNANDEZ SEGADO, F. La jurisdicción constitucional em iberoamerica. Madrid:
Editorial Dykinson. 1997. pp. 106-107.
117
A segurança jurídica permeia a lição transcrita, ainda que não
mencionada textualmente, sobretudo quando s fala da importância de que haja
proteção do ordenamento jurídico quando das reformas em mudanças de
maioria, de cuidar da efetiva separação dos poderes e ainda protegendo a
estabilidade institucional. Também é patente a interferência judicial na função
legislativa quando se fala numa atualização constitucional e mesmo numa
revisão da Lei Fundamental por iniciativa do Tribunal Constitucional, ainda que
se reconheça neste um poder apartado do Poder Judiciário, o que não o priva
de uma natureza judicial, logo, cabível o comentário.
No contexto atual, o qual já decorre do histórico político brasileiro, a
fragilização institucional somente se agrava com o desequilíbrio entre os
poderes, nos exemplos acima indicados, é patente que houve um fomento das
iniciativas no sentido de buscar o Judiciário para se ver livre de restrições
impostas por determinada norma, assim como o uso da ineficiência do Poder
Judiciário como motivação para suspender a eficácia de uma norma. Dessa
forma, a insegurança jurídica materializa-se já que o estado, em suas diversas
esferas de ação, se contradiz, frustrando a legítima expectativa dos cidadãos,
assim como desatendendo a confiança depositada na estabilidade e
uniformidade da atuação Estatal.
Assim, a fragilidade da segurança jurídica, em suas dimensões objetiva
e subjetiva, se faz presente na atuação do Judiciário dentro da esfera
legislativa, por mais que essa se dê de maneira formalmente correta, a
elasticidade de seus limites apenas torna mais frágil a separação dos poderes,
contribuindo para a fragilidade institucional que corrói as bases da democracia
e do sistema republicano.
118
2.5 A relativização da coisa julgada
A proteção conferida à coisa julgada, já apresentada anteriormente, vem
sendo rediscutida, tomando por base a idéia de que, em certos casos, o manto
da coisa julgada agasalha inconstitucionalidades, ilegalidade ou mesmo não
verdadeiros, logo sua proteção absoluta teria também o condão de proteger
situações que, em última análise, são contrárias ao direito.
A coisa julgada, ou seja, “a decisão judicial de que não caiba recurso”116,
assim, sem adentrar maiores discussões ou comentários acerca do conceito,
compreende-se como coisa julgada o fenômeno, via ficção jurídica, que se dá
em relação ao conteúdo de decisão judicial contra a qual não é mais possível o
manejo de recurso.
Tanto que já foi dito ao longo do presente estudo sobre a necessidade
de segurança dos cidadãos e do dever do Estado de provê-la, que não e
possível ignorar que um dos institutos mencionados na parca menção no texto
constitucional à segurança jurídica, tenha sua eficácia discutida sem que aqui
seja abordado. É necessário que seja vista a relativização da coisa julgada sob
o prisma da segurança jurídica, já que aquele é corolário dessa,
necessariamente. Considerar a coisa julgada sem visualizar a segurança seria
contrário ao princípio da máxima efetividade da Constituição, o que sequer é
considerado entre os operadores do Direito.
Em primeira análise, deixamos claro que, como já pontuado, a coisa
julgada é uma ficção jurídica, é algo criado pelo direito, dessa premissa tem-se
que a decisão abrangida pela coisa julgada é a expressão do melhor direito
aplicável ao caso concreto, conforme o ordenamento jurídico vigente à época.
116
Conforme Art. 6º do Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de introdução ao Código
Civil brasileiro.
119
A rediscussão não é vedada, já que nosso sistema processual é pródigo em
recursos, e a ação rescisória ainda permite uma última irresignação, mesmo
após o julgamento final de uma lide. Da mesma forma, há ficção jurídica
quando se fala na expressão da verdade, já que o julgador está vinculado aos
autos, é a verdade dos argumentos, das provas produzidas a que fundamenta
a decisão do magistrado, logo, é uma verdade formal.
Apenas na seara do direito penal, até pela sua natureza de ultima ratio,
há busca efetiva da verdade real, a verdade dos fatos, que pode, o que é
desejado, seja correspondente à verdade formal, mas nem sempre ocorre.
Assim, penalmente, fatos ou provas novos são hábeis a ensejar nova análise
de casos, ou mesmo uma legislação posterior benéfica ao réu tem
aplicabilidade. Assim é para proteger o cidadão, conferindo a ele, ainda que
condenado, o melhor tratamento possível, atendendo à Justiça e mesmo à sua
dignidade enquanto ser humano.
Nas demais áreas do direito é diferente, a verdade é a formal, e a
situação, salvo poucas exceções, se cristaliza com a coisa julgada. A idéia é
que não podem as situações serem tuteladas pelo Poder Judiciário,
responsável pela análise de “lesão ou ameaça à direito”117, serem decidias de
modo que não represente a pacificação do conflito, a solução da controvérsia,
que não pairem dúvidas acerca do que seja a manifestação judicial que ponha
termo à discussão.
Consoante as idéias acima mencionadas, a proteção da coisa julgada
confere segurança às decisões emanadas do Poder Judiciário, contribuindo, ao
final, para a pacificação social, o que é parte do objetivo estatal, enquanto
provedor de segurança. Nesse diapasão, o princípio contemplado é o da
segurança jurídica.
117
Art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal.
120
Entretanto, a coisa jurídica entendida em sentido absoluto pode, com
efeito, gerar distorções, para tanto se fala em sua flexibilização, a fim de que
não seja o instituto direcionado a fins indesejados, ou incompatíveis com o
ordenamento jurídico. O que há não é uma fragilização deliberada da
segurança jurídica, mas sim uma flexibilização em nome da melhor aplicação
de todos os princípios e normas constitucionalmente tutelados.
Como já repisado, não se está a fazer a apologia da imutabilidade, mas
sim a reafirmação da necessidade de um instituto acatado pela doutrina, mas
cujo uso em excesso feriria de morte a ordem constitucional, atingindo o cerne
da função estatal: a segurança. Iniciando pelos estudiosos portugueses,
Canotilho demonstra o liame existente em Portugal entre o chamado “caso
julgado” e a efetividade da segurança jurídica no contexto constitucional:
quando a Constituição (art. 282º /3) estabelece a ressalva dos casos
julgados isso significa a imperturbabilidade das sentenças proferidas
com fundamento na lei inconstitucional. Deste modo, pode dizer-se
que elas não são nulas nem reversíveis em conseqüência da
declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Mais: a declaração de inconstitucionalidade não impede sequer, por
via de princípio, que as sentenças adquiram força de caso julgado.
Daqui se pode concluir também que a declaração de
inconstitucionalidade não tem efeito constitutivo da intangibilidade do
caso julgado [...] Em sede do Estado de direito, o princípio da
intangibilidade do caso julgado é ele próprio um princípio
densificador dos princípios da garantia da confiança e da segurança
118
inerentes ao Estado de Direito.
Ainda no direito lusitano, Jorge Miranda afirma que, “no plano objectivo,
o principio da tutela jurisdicional envolve [...] – O respeito pelo caso julgado (art.
282.º, n.º 3)”.119
Contudo, há casos em que é possível a impugnação, sobretudo nos
casos em que a coisa julgada era baseada em norma inconstitucional.
118
119
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria ... p. 1004.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito... tomo IV... p. 259.
121
Voltando-nos aos fundamentos utilizados para defesa da relativização da
coisa julgada, não há consenso, nem mesmo pela possibilidade de aplicação,
como se demonstra pelo antagonismo de idéias entre José Augusto Delgado e
Luis Guilherme Marinoni:
nunca terão força de coisa julgada e poderão, a qualquer tempo, ser
desconstituídas no seu âmago mais consistente que é a garantia da
moralidade, da legalidade, do respeito à Constituição e da entrega
120
da justiça .
a „tese da relativização‟ contrapõe a coisa julgada material ao valor
justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por „justiça‟
e sequer busca amparo em uma das modernas contribuições da
121
filosofia do direito sobre o tema.
Há de ser reconhecido que as decisões podem ser baseadas em
eventuais
inconstitucionalidades,
reconhecidas
posteriormente,
trazer
conteúdos de execução impossível, ou afrontar o ordenamento jurídico em
qualquer momento. Contudo, também deve ser lembrado que não é possível
antecipar resultados, sendo que nem tudo o que venha a ser relativizado seja
corretamente utilizado, além de não haver um conceito objetivo de justiça, que,
normalmente, será um para o vencedor e outro para o vencido. Também é
importante pontuar que o direito, em todas as suas esferas, deve buscar,
considerando o valor democrático, o que for melhor para coletividade, o que
nem sempre é tido como justo.
O tema é abrangente e controverso, não é o presente estudo destinado
à ampla discussão acerca da coisa julgada e das idéias de sua relativização,
mas sim de discussão do tema à luz da segurança jurídica.
Assim, de pronto temos que a segurança jurídica deve ser contemplada
em todas as funções estatais, o que se depreende de sua dimensão objetiva,
120
DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In:
NASCIMENTO, Carlos Valder do. (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América
Jurídica, 2002. p. 103.
121
MARINONI, Luis Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais: a questão da
relativização da coisa julgada material. In: DIDIER JR. Freddie (Coord.). relativização da coisa
julgada: enfoque crítico. Salvador: JusPODIVM, 2004. p.182.
122
não podendo escapar de tal verdade a função jurisdicional. Igualmente não nos
pode escapar que, como já pontuado, a idéia de justiça é fluida, inexistindo
uma conceituação objetiva. Considerando, ainda, a máxima efetividade da
constituição, não podemos nos conformar com qualquer decisão judicial,
independentemente do seu teor, sobretudo caso tenha seus fundamentos tidos
como inconstitucionais. Por fim, reafirmamos que os cidadãos pactuaram a
criação do Estado no sentido de provedor de segurança, em troca de parte de
sua liberdade, isso implica que o ente coletivo tem como sua principal função a
garantia de segurança, inclusive jurídica, aqui representada pela pacificação de
conflitos, decididos pelo Poder Judiciário e abrangidos, ao fim, pela coisa
julgada.
A necessária presença da segurança jurídica como norteador de todas
as atividades estatais já foi diversas vezes comentada, sobretudo quando se
falou na sua relação com o texto constitucional. Não se pode falar em Estado
sem que seja necessariamente associada a ele a idéia de segurança, já que
essa é o fim daquele, em troca do que os cidadãos perderam parte de sua
liberdade. Destacamos que a exigência de segurança dos cidadãos perante o
Estado é parte, sobretudo, da dimensão objetiva da segurança jurídica.
O conceito de justiça não tem um enunciado claro, sendo que os
defensores da relativização da coisa julgada utilizam diversos exemplos de
alegadas injustiças amparadas pela coisa julgada, mas não trazendo
objetividade à discussão.
Para Cândido Rangel Dinamarco, é um “valor inerente à ordem
constitucional-processual”122, sendo necessária uma ponderação, em busca de
um resultado justo, levando em conta os princípios da moralidade
administrativa, do justo valor das indenizações em desapropriação, zelo pela
cidadania e direitos do homem, a fraude e o erro grosseiro que contaminam o
resultado do processo, a garantia do meio ambiente ecologicamente
122
DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In: Revista Síntese de Direito
Civil e Processual Civil, Ano IV, nº 19. Porto Alegre: Síntese, set/out, 2002, p.6.
123
equilibrado, a garantia do acesso à ordem jurídica justa e, por fim, o caráter
excepcional da disposição de flexibilizar a coisa julgada.123
Alexandre Freitas Câmara, igualmente fala em “ponderação de
interesses”, considerando que a relativização da coisa julgada até se impõe,
exemplificando com o disposto no artigo 6º da Lei de Introdução ao Código
Civil, combinado com a Constituição Federal, também abordando questões de
segurança jurídica:
O texto da Lei de Introdução do Código Civil conduz, à toda
evidência, uma norma destinada a assegurar o princípio da
irretroatividade das leis. A Constituição da República, contudo, vai
muito além disso, e estabelece que o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada estão protegidas contra leis que se
destinem a prejudicá-los. Ora, nada há que permita considerar que a
irretroatividade seja a única forma de se prejudicar tais institutos. É
claro que a lei retroativa será inconstitucional sempre que prejudicar
o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Será,
porém, inconstitucional, qualquer lei que prejudique aqueles
institutos jurídicos, ainda que sem retroagir. Basta pensar, por
exemplo, na Lei 9494/97, que estabeleceu limites territoriais para a
coisa julgada formada em processo de „ação civil pública‟,
enfraquecendo o alcance da autoridade da coisa julgada. Tal lei, por
prejudicar a coisa julgada, é inconstitucional, ainda que não tenha
124
efeitos retroativos
Apesar do posicionamento acima transcrito, o autor defende que a
relativização da coisa julgada deve ser uma exceção, sob pena de destruição
do conceito de coisa julgada125.
Ambos os autores citados tratam da questão de justiça, mas não a
abordam diretamente, apesar da indiscutível importância da justiça para os
cidadãos, é tão importante quanto ele a necessidade de uma resposta às suas
demandas, em caso de injustiça ou insatisfação, há, em regra, recursos
cabíveis, logo a situação é reversível. Contudo, uma questão que não se finda
é um eterno senão na vida do cidadão, o que não interesse nem a ele nem ao
Estado, quedando ambos desatendidos, violando, também, o princípio da
123
DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada ... pp. 16-17.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da coisa julgada material. Disponível em
<http://www.cacofnd.org.br/artigos/art_juridicos.asp>. p. 16. Acesso em 19 de julho de 2010.
125
CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da coisa julgada ... pp. 16-17
124
124
razoável duração do processo, constitucionalmente materializado no artigo 5º,
parágrafo 3º da Constituição.
Nesse sentido, não podemos concordar com a relativização da coisa
julgada alegando unicamente questão de justiça ou injustiça, salvo o que já se
faz em matéria criminal. O caso que entendemos merecer posicionamento
diverso é o da decisão não criminal calcada em inconstitucionalidade, essa
reconhecida posteriormente à coisa julgada. No caso em comento, a
declaração de inconstitucionalidade de norma posteriormente declarada
inconstitucional torna a própria decisão nela baseada contrária incompatível
com o ordenamento jurídico. Deve, portanto, ser verificado se a decisão de
inconstitucionalidade tem efeitos ex tunc, que é a regra, sendo o caso, deve ser
manejada, dentro dos seus requisitos, ação rescisória, com fundamento no
artigo 485, inciso V, do Código de Processo Civil, para desconstituir o julgado;
não sendo mais possível por qualquer motivo a ação rescisória, consideramos
impossível atacar a coisa julgada. Sobre a proteção à coisa julgada, mesmo em
caso de declaração de inconstitucionalidade, podemos citar a lição de
Leonardo Greco, que traz levantamento de direito comparado:
No Estados Unidos, a Corte Suprema, a partir do caso Likletter,
julgado em 1965, passou a modular essa retroação, para não vulnerar
situações definitivamente pacificadas por sentenças passadas em
julgado.
Na Itália,a jurisprudência ordinária, interpretando declarações de
inconstitucionalidade da Corte Constitucional, começou a impor limites
à retroação que passaram a ser adotados pela própria Corte
Constitucional, preservando os efeitos das relações exauridas e as
situações já atingidas pela prescrição.
Na Alemanha, preservam-se os efeitos das decisões judiciais
anteriores à declaração de inconstitucionalidade, salvo condenatórias
criminais, e proíbe-se qualquer ação fundada em enriquecimento sem
causa decorrente de situação gerada pela lei invalidada [...]
Em Portugal, o art. 282 da Constituição também ressalva os casos
julgados da eficácia retroativa da declaração de inconstitucionalidade
126
com força obrigatória geral.
126
GRECO, Leonardo. Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou
inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. In: DIDIER JR. Freddie (Coord.).
Relativização da coisa julgada: enfoque... pp. 154-155.
125
O entendimento esposado acima se reafirma com a noção de que a lei
não poderá retroagir para prejudicar a coisa julgada, logo, a decisão judicial,
seja em que nível for, igualmente não poderá. Entre os magistrados não há
hierarquia, há diferentes competências, então não se pode considerar que uma
decisão judicial é mais forte que outra, apenas são diferentes, não tendo uma,
por decisão de um mérito, o condão de desconstituir outra, que discute outro
mérito diferente. A reforma de sentença ou acórdão se dá por recursos ou ação
rescisória, não pelo manejo de outra ação qualquer.
Dessa forma, reiteramos a necessidade de proteção da coisa julgada,
sem a qual a segurança jurídica não seria realidade, já que a eterna
possibilidade de declaração de inconstitucionalidade ou mudança de normas
seria hábil a desconstituir as decisões definitivas. A ação rescisória se destina
a modificar a coisa julgada, dentro de prazos razoáveis e requisitos objetivos,
em respeito ao princípio do devido processo legal e em conformidade com o
ordenamento jurídico, sendo o meio adequado a tal fim. Outras disposições,
apesar de existentes, ou consideramos carentes de fundamentos concretos ou
mesmo inconstitucionais, o que, por óbvio, não é adequado nem à Constituição
nem ao princípio da segurança jurídica.
126
3 A importância da efetividade da segurança jurídica
Na parte inicial do presente estudo, foram abordadas as noções iniciais
de segurança jurídica, dando o panorama do instituto, suas dimensões e
relacionamento com a Constituição. Na segunda parte foram expostos
aspectos que fragilizam a segurança jurídica, hábeis a trazer a insegurança aos
cidadãos, pontuado questões graves de desequilíbrio institucional, além de
expedientes que não condizem com a noção republicana de administração
estatal. Agora, cumpre reafirmar a necessidade e importância da segurança
jurídica, estabelecendo aspectos importantes para contribuir com um
crescimento necessário da noção de segurança jurídica dentro do ordenamento
jurídico, deixando uma contribuição para uma maior aplicação do instituto nas
suas dimensões objetiva e subjetiva.
Como garantia, princípio constitucional e cláusula pétrea estabelecida no
texto constitucional, a segurança jurídica, ainda que não estudada com a
devida importância, é vital para a consecução dos objetivos dos cidadãos,
dentre os quais a efetividade das ações estatais.
3.1 A proibição do retrocesso
A idéia fundamental trazida pelo princípio da proibição do retrocesso é a
de que os cidadãos, assim como o Estado, conquistaram determinado nível de
evolução social, logo, as mudanças que venham a ocorrer posteriormente não
podem desconstituir os progressos obtidos. Deve ficar claro que o princípio
abrange toda a evolução social, especialmente aqueles abrangidos pelo
princípio da segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa
julgada.
127
É salutar lembrar que houve acalorado debate acerca da existência ou
não de direito adquirido em face de emenda constitucional, que o Supremo
Tribunal Federal decidiu pela negativa127, considerando que o direito adquirido
surge com o completo cumprimento das condições para seu exercício, não
bastando a mera existência do regime jurídico. Independentemente da
discussão do assunto pontuado, nem todos os direitos dependem de tempo ou
atos complexos para sua concretização, bastando, em grade parte, atos
instantâneos, que logo se cristalizam.
Não se pode considerar que podemos voltar às jornadas de trabalho do
período da revolução industrial, ou ao voto censitário do período imperial, nem
aos atos institucionais do passado recente; a superação desses e de vários
outros estágios nos conduziu ao ordenamento atual, logo, o caminho desejado
pelos cidadãos ao longo do tempo nos distancia das práticas indesejáveis do
passado, ao mesmo tempo em que pode preservar outras ou atualizá-las,
nesse diapasão, não existe motivo para que as modificação sirvam para
reavivar o passado. A fim de balizar o debate, conceituando o chamado
retrocesso social, citamos Felipe Derbli:
É que o princípio em questão [proibição do retrocesso] veda ao
legislador subtrair da norma constitucional definidora de direitos
sociais o grau de concretização já alcançado, prejudicando a sua
exeqüibilidade. Vale dizer, haverá retrocesso social quando o
legislador, comissiva e arbitrariamente, retornar a um estado
correlato a uma primitiva omissão inconstitucional ou reduzir o grau e
128
concretização definidora de direito social [...]
Jorge Miranda, quando trata das normas constitucionais programáticas
estabelece seu alcance, para, logo depois, indicar a proibição do retrocesso
como uma decorrência de tais normas:
127
Nesse sentido, os seguintes arestos do STF: ADI 3104/DF (DJ 09.11.2007); ADI 3105/DF e ADI
3128/DF (DJU de 18.2.2005); RE 269407 AgR/RS (DJU de 2.8.2002); RE 258570/RS (DJU
de19.4.2002); RE 382631 AgR/RS (DJU de 11.11.2005).
128
DERBLI, Felipe. O princípio da proibição do retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de
Janeiro; Renovar, 2007. p. 240.
128
I –Há, pois, aspectos comuns a reter na força jurídica das normas
programáticas e das normas não exeqüíveis por si mesmas (ou seja,
na prática, das normas preceptivas não exeqüíveis por si mesmas):
a) Umas e outras, desde logo, só por constarem da Constituição,
devem – tal como as normas não exeqüíveis por si mesmas – ser
tidas em conta na interpretação das resultantes normas, as quais,
sem elas, poderiam ter alcance diverso;
[...]
c) Conquanto o seu sentido primário seja sempre prescritivo, e não
proibitivo, elas adquirem, complementarmente, um duplo sentido
proibitivo ou negativo – proíbem a emissão de normas legais
contrárias e proíbem a prática de comportamentos que tendam a
impedir a produção de actos por ela impostos; donde
inconstitucionalidade material em caso de violação;
d) Elas fixam critérios ou directivas para o legislador nos domínios
que versam – donde inconstitucionalidade material – por desvio de
poder – quando haja afastamento desses critérios;
e) Uma vez concretizadas através de normas legais, não podem ser,
pura e simplesmente, revogadas, retornando-se à situação anterior
(embora aquelas normas legais possam e, claro está, devam ser
declaradas inconstitucionais, quando desconformes com a
Constituição); o legislador tem, certamente, a faculdade (por
imperativo da democracia pluralista) de modificar qualquer regime
jurídico, o que não tem é a faculdade de subtrair supervenientemente
a uma norma constitucional e exeqüibilidade que esta tenha,
129
entretanto, adquirido.
Na lição transcrita, podem ser identificados diversos pontos indicados no
presente estudo como relacionados à segurança jurídica, como as normas
programáticas e seu alcance na interpretação, logo, na máxima efetividade da
Constituição; do desvio de poder, e a conseqüente inconstitucionalidade, em
caso de afastamento delas; a noção de direito adquirido, ainda mais quando há
norma sobre o assunto. Conforme se depreende das palavras do mestre
português, a democracia exige que seja assegurado, no mínimo o que a
constituição já consagra, não podendo a norma constitucional ser afetada
negativamente por outra posterior. Nesse sentido, a proibição do retrocesso é
parte da segurança jurídica, na medida em que assegura ao texto
constitucional a garantia de sua exeqüibilidade.
Combinando as transcrições já feitas, é possível compreender a
necessidade de conferir exeqüibilidade e efetividade a todo o teor da
constituição, independentemente do eventual tipo de norma. Devem ser
129
MIRANDA, Jorge. Manual de direito... Tomo II. 3. ed... pp. 250-251.
129
concretizados os direitos sociais, de modo a assegurar os direitos
constitucionalmente previstos, enfeixando todos os pontos para ser parte do
princípio maior da segurança jurídica, como é a proibição do retrocesso social.
Deve ficar claro que a gênese do instituto se deu na Alemanha, onde a
evolução social historicamente se mostra adiantada em relação à maioria dos
países, mas ainda assim seus caracteres não mudam, as discussões, os bens
jurídicos ora buscados em algumas sociedades diferem, naturalmente, das
buscas em outras. Sendo considerada a evolução social do ponto de vista de
cada sociedade, já que a diferença entre as mais e as menos evoluídas é
abissal, mesmo em relação aos países periféricos um pouco mais
desenvolvidos, como o Brasil, sendo que naquelas [as sociedades mais
avançadas] os direitos fundamentais são uma realidade consolidada, enquanto
nessas [as sociedades periféricas] ainda temos grandes dificuldades em tornar
reais mesmo os direitos mais básicos. Sobre as diferenças sociais e as
dificuldades de transpor institutos, citamos a lição de Andreas Krell:
Não se pode transportar um instituto jurídico de uma sociedade para
outra sem levar-se em conta os condicionamentos sócio-culturais e
econômico-políticos a que estão sujeitos todos os modelos jurídicos.
Ordens jurídicas concretas não representam apenas variantes
distintas da realização dos mesmos direitos e princípios; nelas
refletem-se diferentes paradigmas jurídicos.
As possibilidades de um “transplante” de teorias de Direito
Constitucional de um país para o outro vão necessariamente diminuir
com as diferenças no sistema político e, sobretudo, nas condições
econômico-sociais das respectivas sociedades. Devemo-nos lembrar
sempre que os mesmos textos e procedimentos jurídicos são
capazes de causar efeitos completamente diferentes, quando
utilizados em sociedades desenvolvidas (centrais) como a alemã, ou
130
numa periférica como a brasileira.”
Fazendo advertência semelhante, ressaltando que cada sociedade deve
considerar suas especificidades, citamos Ingo Wolfgang Sarlet:
130
KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: Os
(Des)Caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 2002, p. 42.
130
Convém relembrar o leitor de que, a discussão em torno da redução
(e até mesmo do desmonte completo) do estado social de Direito e
dos direito sociais que lhe são inerentes apresenta proporções
mundiais, não há como desconsiderar que a dimensões da crise e as
respostas reclamadas em cada estado individualmente considerado
são inexoravelmente diversas, ainda que se posam constatar pontos
comuns. Diferenciadas são, por outro lado, as soluções encontradas
por cada ordem jurídica para enfrentar o problema, diferenças que
não se limitam à esfera da natureza dos instrumentos, mas que
abrangem, de modo especial, a intensidade da proteção outorgada
por estes aos sistemas de seguridade social, o que, à evidência, não
poderá deixar de ser considerado nas linhas que se seguem, de tal
sorte que também a temática da proibição do retrocesso reclama um
131
tratamento constitucionalmente adequado.
Ambos os professores, especialmente o segundo, deixam clara a
importância da segurança e da proteção do ordenamento jurídico, conquanto a
necessidade de proteção social seja presente em todos os ordenamentos
jurídicos, as soluções devem ser adequadas a cada sociedade. No caso
brasileiro, ainda lutamos para efetivar o direito à vida, saúde, educação básica,
e mesmo a dignidade da pessoa humana e todos os seus corolários, logo,
nossas soluções devem ser dirigidas inicialmente aos direitos mais básicos e
ainda não assegurados.
No contexto da segurança jurídica, fragilizada, como já indicado em
tantos aspectos comentados ao longo do presente estudo, a proibição do
retrocesso assume uma importância ainda maior, já que a ligação entre a
segurança e a garantia dos avanços sociais é umbilical. Há uma relação
importante entre a necessidade de estabilidade e a proteção à confiança no
contexto dos direitos fundamentais, onde os cidadãos fundam as suas mais
básicas e caras expectativas, isso posto, a fragilização de direitos,ou mesmo o
retrocesso a patamares anteriores, menos garantistas, representa dano aos
administrados, assim como ao próprio Estado, que deixa de atender à sua
função mais básica.
São os direitos fundamentais entendidos como o patrimônio jurídico
mínimo necessário à vida sob o regime Estatal, representando, no contexto do
contrato social, um consenso entre os cidadãos e o Estado, logo,
131
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos... pp.438-439.
131
incontroversos são os direitos fundamentais, assim como os princípios que os
orientam. Dessa forma, é contraditório o Estado, em qualquer de suas esferas
de atuação, agir no sentido de retirar ou reduzir qualquer dos direitos
fundamentais ou princípios, retrocedendo na ordem jurídica a níveis inferiores
aos alcançados atualmente, ignorando a evolução social, os anseios e
necessidades dos cidadãos, e ainda o próprio ordenamento jurídico, todo
construído em torno da segurança a ser prestada pelo Estado aos seus
cidadãos.
Sendo os princípios e normas orientadas ao bem estar dos cidadãos, e
mais quando assumem uma proporção a serem considerados direitos
fundamentais, cláusulas pétreas, ou mesmo normas que assumiram o condão
de concretizar valores caros aos cidadãos, elas se tornam fatores de
segurança jurídica, oponíveis ao Estado em favor dos cidadãos, no sentido de
preservar o rumo tomado e assegurar a evolução da ordem jurídica de maneira
a maximizar a segurança já obtida atualmente. Um exemplo simples de norma
que indica a imposição de evolução, e, a contrario senso, proíbe o retrocesso,
é o artigo 7º da Constituição Federal, que indica os direitos dos trabalhadores,
mas ressalta que eles existem, sem prejuízo de outros que sejam positivados
posteriormente, sendo os “outros que visem à melhoria de sua condição
social”132.
É indubitável que, assim como a segurança jurídica, a proibição do
retrocesso social é princípio presente na Constituição de 1988, contudo o são
sem serem textualmente mencionados. Quando o texto constitucional
estabelece determinado comando, ainda que programático ou carente de
regulamentação, não se pode negar que a ele o legislador, ordinário ou
reformador, está inexoravelmente vinculado, devendo agir no sentido de que o
comando constitucional seja efetivado ao máximo, omitir-se ou restringir a
abrangência são opções inconstitucionais, ainda que não o sejam formalmente,
132
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social:
[...]”
132
são materialmente, nesse sentido, reforçamos a argumentação com as idéias
de Luís Roberto Barroso:
por este princípio [proibição do retrocesso], que não é expresso, mas
decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma
lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir
determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da
133
cidadania e não pode ser absolutamente suprimido.
Ainda sobre o tema, Ingo Wolfgang Sarlet afirma textualmente a
existência do princípio da proibição do retrocesso, o apresentando como um
direito subjetivo negativo, portanto oponível contra o Estado, conforme já
abordado:
Com efeito, é como princípio implícito que a proibição do retrocesso
foi consagrada no direito constitucional comparado e brasileiro. Em
linhas gerais, o que se percebe é que a noção de proibição de
retrocesso tem sido reconduzida à noção que José Afonso da Silva
apresenta como sendo de um direito subjetivo negativo, no sentido
de que é possível impugnar judicialmente toda e qualquer medida
que se encontre em conflito com o teor da Constituição (inclusive
com os objetivos estabelecidos nas normas de cunho programático)
bem como rechaçar medidas legislativas que venham, pura e
simplesmente, subtrair supervenientemente a uma norma
constitucional o grau de concretização anterior que lhe for outorgado
pelo legislador.
[...]
No âmbito do direito constitucional brasileiro, o princípio da proibição
de retrocesso [...] decorre [...] designadamente dos seguintes
princípios e argumentos de matriz jurídico-constitucional:
[...]
e) O princípio da proteção à confiança, na condição de elemento
nuclear do Estado de Direito (além de sua intima conexão com a
própria segurança jurídica) impõe ao poder público – inclusive (mas
não exclusivamente) como exigência da boa-fé nas relações entre
particulares – o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos
em relação a uma certa estabilidade e continuidade da ordem
jurídica como um todo e das relações jurídicas especificamente
consideradas;
134
[...]
Dessa forma, reafirmamos a existência no sistema constitucional
brasileiro do princípio da proibição do retrocesso, compreendendo que os
princípios e normas constitucionais, ainda que programáticas, têm uma
133
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 5. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001. p. 158.
134
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos... p.445-446.
133
natureza impositiva, na medida em que ao legislador e ao constituinte
reformador, se impõem os ditames da Constituição e não lhes é dada a
capacidade de subverter a ordem constitucional, sobretudo diante do princípio,
ou sobreprincípio, da máxima efetividade da constituição. Ademais, deixar de
observar o estágio presente da evolução social e retroceder à patamares
anteriores seria perigoso precedente para que outros direitos sejam
fragilizados, reduzidos ou mesmo suprimidos em nome do poder de reforma, o
que seria contrário ao direito e mesmo às noções de democracia, república ou
constitucionalidade.
Inegável é que os direitos vêm evoluindo com o tempo, tendo as
chamadas gerações dos direitos fundamentais, o sentido de ampliar as
garantias, desde a primeira, garantindo “liberdade, igualdade e fraternidade”135,
até o que Paulo Bonavides defende ser a quinta geração, o direito à paz136. O
passo dos direitos ao longo das gerações sempre tem sido no sentido da
ampliação, desde os direitos individuais, passando pelos direitos sociais, direito
ao desenvolvimento, direito à democracia, de caráter mais coletivo. Dessa
forma, os direitos e garantias são ampliados, não subsistindo qualquer razão
ou argumento para retroceder, retirando qualquer os direitos já assegurados, o
que reputamos até ser incompatível com o direito, impossível, pois.
Nesse sentido, a proibição do retrocesso é princípio que, ao lado da
segurança jurídica, assegura que os cidadãos tenham asseguradas as
conquistas e avanços sociais, protegendo, especialmente em sua dimensão
objetiva, contra o Estado, o patrimônio jurídico já garantido contra eventuais
medidas que, mesmo não sendo retroativas no tempo, o que já é protegido
pelo princípio da segurança jurídica, sejam hábeis a restringir ou eliminar
direitos assegurados pela Constituição.
135
136
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito... p. 562.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito... pp. 579-593.
134
3.2 Efetivação do princípio da segurança jurídica
A importância da efetivação do princípio da segurança jurídica, conforme
já
exposto,
passa
por
todas
as
nuances
da
atividade
estatal,
independentemente da esfera,o que impõe a todos os poderes o cumprimento
do princípio, assim como, conforme já visto, expõe todos os poderes ao risco
de agir em descompasso com ele, gerando, na verdade, insegurança. O
objetivo do princípio da segurança jurídica, em seu caráter geral, ao mencionar
simplesmente “o direito”, Wilson Koressawa expõe que “se o Direito não pode
garanir que todos os indivíduos se sintam seguros, deve, pelo menos,
implementar as condições objetivas para que a segurança seja a maior
possível”137.
Com igual razão, Flávia Piovesan e Daniela Ikawa situam a segurança
jurídica juntamente com princípios eminentemente coletivos, estabelecendo
que a segurança decorre de um “discurso de direitos” e não de “restrição de
direitos”, e que o princípio da segurança jurídica se ramifica em outros dois: o
da dignidade da pessoa humana e o da proporcionalidade 138. Estando a
segurança jurídica de tal maneira incrustada entre os princípios norteadores de
toda a atividade estatal, sua observância deve ser irrestrita. Podemos, ainda,
reafirmar que a segurança jurídica é diretamente relacionada ao Estado
Democrático de Direito, de forma inerente e essencial a esse, sendo um de
seus sutentáculos, como já pontuado ao longo do presente estudo.
Desta feita, urge ressaltar que o Princípio da Segurança Jurídica possui
conexão direta com os direitos fundamentais e ligação com determinados
princípios que dão funcionalidade ao ordenamento jurídico brasileiro, tais como,
137
KORESSAWA, Wilson. O princípio da segurança jurídica: implicações na ocupação familiar de
lotes públicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 2010. p. 118.
138
PIOVESAN, Flávia. IKAWA, Daniela. Constituição e segurança jurídica. In: ROCHA, Cármem
Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança... p. 47 e ss.
135
a irretroatividade da lei, o devido processo legal, o direito adquirido, a dignidade
da pessoa humana, entre outros, cabendo, pois, afirmar sua importância nos
três poderes.
3.2.1 Importância da segurança jurídica no âmbito judicial
Tendo em vista que ao Poder Judiciário cabe a pacificação dos conflitos
sociais, a interpretação da legislação, inclusive da Constituição, a segurança
jurídica é um dos bens a serem protegidos pela sua ação. O cuidado na
interpretação da legislação deve considerar todos os princípios e normas,
sobretudo a máxima efetividade da Constituição, qualquer manifestação que
ignore tais premissas fere o ordenamento jurídico como um todo, quedando na
seara da inconstitucionalidade, o que, por óbvio, é especialmente indesejável
de quem tem a função de zelar pela observância da ordem jurídica.
A decisão judicial é, sem dúvida, a manifestação da vontade estatal, a
qual é vinculada aos objetivos e princípios do estado democrático de direito, a
vontade estatal, pois, é a de que haja pacificação social com a aplicação do
direito aos casos concretos de modo a alcançar o resultado mais justo possível,
ou, nas palavras de Sergio Bermudes, “a coisa julgada material decorre da
vontade estatal, traduzida nas normas imperativas que a regulam”139.
A questão das decisões judiciais tem também identificação com o
princípio da moralidade, já que os magistrados se utilizam de diversos
princípios e meios para integração do ordenamento jurídico. Dessa forma,
quando os magistrados interpretam a legislação de modo a buscar a justiça, o
fazem à luz dos mandamentos constitucionais, à qual todo o ordenamento
jurídico deve observância e na qual busca validade, sendo, então, a
Constituição Federal a maior fonte de justiça para os cidadãos, norteando a
legalidade a fim de que sejam realizados os princípios que organizam o Estado,
139
BERMUDES, Sergio. Coisa julgada ilegal e segurança jurídica. In: ROCHA, Cármem Lúcia
Antunes (Org.). Constituição e segurança... p. 131.
136
dentre os quais a segurança jurídica. Sobre a relação da Constituição com a
justiça, interessante trazer a lição de Oscar Vilhena Vieira:
A idéia de que o intérprete constitucional deve sempre buscar a
resposta moralmente mais correta para preencher o conteúdo aberto
das normas constitucionais ou para solucionar um conflito entre
princípios decorre da percepção de que as Constituições não podem
ter sua legitimidade limitada à sua positividade legal, a uma questão
de fato. As constituições, se pretendem ser válidas, devem ser
intrinsecamente boas, funcionando como “reserva de justiça” para os
140
sistemas políticos e jurídicos que organizam .
Da lição transcrita, podemos inferir que a Constituição objetiva uma
resposta moralmente correta, atendendo à justiça e à todos os princípios que
suportam o ordenamento jurídico, isso em maior grau que ao texto positivado,
deixando claro que a máxima efetividade da Constituição passa pelas decisões
dos magistrados. Como um dos grandes princípios que decorrem diretamente
do Estado Democrático de Direito, logo está entre os mais importantes do
Direito Constitucional, ele deve, mandatoriamente, ser considerado pelos
julgadores.
A “reserva de justiça” da Constituição tem como componentes todos os
princípios constitucionais, considerando os pressupostos já comentados, a
segurança jurídica é uma das matérias-primas da justiça, e sem os princípios,
que baseiam as normas, nas quais se fundamentam as decisões, não há a
consecução dos objetivos estatais, não há justiça. Relembramos que quando o
Estado não consegue seus objetivos, não subsistem os motivos para que os
cidadãos sustentem o ente coletivo, o que enseja a ruptura do contrato social,
com a dissolução do Estado. Evidentemente que o fim descrito é uma situaçãolimite, mas está formal e materialmente correta, que já se repetiu no passado,
sucedida por movimentos revolucionários.
Sendo o Poder Judiciário responsável pela garantia de que o direito será
corretamente aplicado a todos os cidadãos, a justiça é seu produto. No
140
VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites
materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 201.
137
momento em que o Estado, através de um de seus poderes, no caso o
Judiciário, não entrega aos cidadãos o que se propôs, cabe aos cidadãos exigir
uma melhor prestação estatal.
Especialmente nos países onde há Corte Constitucional, é evidente que
as decisões judiciais carregam um sentido de conformação de seu teor dentro
do Estado, logo, contendo um importante aspecto de concretização dos
princípios, como expõe Eduardo García de Enterría:
Se destaca de uma manera convencional la «independencia» de los
órganos constitucionales superiores sua ausencia e submissión
respecto de otros órganos, la libertad de su organización y aun de su
procedimiento [...] pero no parece que la conclusión pueda llegar
más allá e insertarse en la temática propria de la división de los
poderes, que obedece a razones completamente diferentes. Nuestra
Constitución [a Constituição Espanhola] –y estimamos que
justificadamente- ha creído oportuno singularizar orgánicamente al
Tribunal Constitucional del Poder Judicial en sentido estricto y
ordinario, separándose con ello de los precedentes americano e
alemán (aunque ha de notarse que en estos sistemas la singularidad
de funcionamiento y de organización de Tribunal Constitucional es
completa) para seguir aquí el modelo austríaco y hoy italiano. No
puede haber duda, sin embargo, de que su designación como
«Tribunal», así como su regulación específica expresan la voluntad
constituyente de reducir su papel a una función vinculada a la
interpretación y aplicación de una norma previa, la Constitución
141
misma
O mestre espanhol, ao final de sua lição, deixa caro que à Corte
Constitucional cabe a “interpretação e aplicação” da Constituição. Não pode ser
a atividade interpretativa e de aplicação dissociada da segurança jurídica, sem
a qual a Constituição não teria sua efetividade garantida, com o que, por óbvio,
nem o ordenamento jurídico nem os cidadãos concordam.
141
“Destaca-se de uma maneira Se destaca de uma maneira pacífica a «independência» dos órgãos
constitucionais superiores sua ausência e submissão com referência a outros órgãos, a liberdade de sua
organização e ainda de seu procedimento [...] mas não parece que a conclusão possa chegar mais além e
se inserir na temática própria da divisão dos poderes, que obedece a razões completamente diferentes.
Nossa Constituição [a Constituição espanhola] –e estimamos que justificadamente- creu ser oportuno
separar organicamente o Tribunal Constitucional do Poder Judiciário em sentido estrito e ordinário,
separando-se dele dos precedentes americano e alemão (ainda que haja que se notar que nestes sistemas a
independência de funcionamento e de organização de Tribunal Constitucional é completa) para seguir
aqui o modelo austríaco y hoje italiano. Não pode haver dúvida, sem embargo, de que sua designação
como «Tribunal», assim como sua regulamentação específica expressam a vontade constituinte de reduzir
seu papel a uma função vinculada à interpretação e aplicação de uma norma prévia, a Constituição
mesma”. (Tradução livre do autor).
ENTERRÍA, Eduardo García. La constitución como norma... p. 200.
138
Cármem Lúcia Antunes Rocha reafirma a relação da atividade estatal
com a soberania, logo, com a segurança dos atos jurídicos e com a certeza de
que as relações seguirão pelos caminhos corretos:
a autoridade dos atos do Estado baseia-se na autoridade
constitucional que os fundamenta. Faltante a autoritas
constitucionalis carente de fundamento é o provimento estatal, que
pode aparentar formas regulares de exercício do poder, mas que não
se dota do conteúdo que segura no mundo dos atos jurídicos válidos.
Sentença (ou acórdão) é ato estatal. Logo, o ato judicial terminativo,
ou não, da ação há que se ater aos fundamentos e aos limites
constitucionalmente definidos. A obrigação judicial e ater-se aos
comandos constitucionais não pode ser excepcionada sob qualquer
argumento, incluído o tão comumente apresentado como é o da
soberania dos atos do juiz, menos, ainda, por um pensar judicante
que depois se demonstra não ser coerente, compatível adequado
constitucionalmente.
Soberania não está na caneta do juiz, mas na tinta constitucional
com que ela se aperfeiçoa e que a dota de força de poder estatal
aderente e obrigante.
[...]
O homem, ser de si incerto e que vive na incerteza de tudo o que é
inerente à sua vida e à sua morte, busca o certo nas coisas e nos
atos que o cercam. Incerto quanto aos seus sentimentos, busca-se
fazer certo dos atos que lhe são externos.
Para confortar-se no sentido de que pelo menos o que lhe vai no
entorno é estável, o homem constitui em direito a segurança do seu
patrimônio de bens jurídicos, o que fundamenta os sistemas
142
normativos desde a Antigüidade.
Como exposto ao longo do presente estudo, a segurança jurídica está
presente em tudo que o Estado realiza, inclusive na interpretação
constitucional, a qual está vinculada aos princípios que suportam o sistema
constitucional, inclusive o da segurança jurídica, que confere ao cidadão a
necessária estabilidade para que desenvolva suas atividades adequadamente.
Isso posto, é indelével a marca da segurança jurídica na atividade judicial, que
tem o dever de aplicar o direito a todos, e deve fazê-lo com as garantias de que
serão alcançadas a justiça e a segurança que os cidadãos desejam do Estado.
Assim, quando o Estado consegue seus objetivos, o resultado é a evolução,
142
ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. O princípio da coisa julgada e o vício de inconstitucionalidade.
In: ROCHA, Cármem Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança... p. 165-168.
139
mas a falha redunda na ruptura, o que reafirma o quanto é vital para a
coletividade que os princípios constitucionais, inclusive a segurança jurídica,
informem os posicionamentos judiciais.
3.2.2 Importância da segurança jurídica no âmbito legislativo
A garantia de proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico e à coisa
julgada representa o maior grau de concretização do princípio da segurança
jurídica no texto constitucional, mas não a única faceta de efetivação do dito
princípio. No primeiro momento, devemos pontuar que a produção legislativa,
sob o prisma da segurança jurídica, deve ser clara, objetiva e representar
aplicação direta dos princípios e normas constitucionais, sempre em nome do
interesse público. Assim é para que não restem dúvidas sobre o fundamento de
validade da norma infraconstitucional, sendo possível a previsibilidade do que
seja tutelado pelas normas, protegendo, por esse lado, a legítima confiança
dos cidadãos no Estado. Independentemente da noção que se tenha de
Estado, enquanto exercendo a função legislativa existe o compromisso com os
direitos fundamentais, conforme a lição de J. J. Gomes Canotilho:
Como já foi sugerido, o problema da eficácia dos direitos, liberdades
e garantias na ordem jurídica privada significa, em primeiro lugar,
que o legislador deve «mediar» essa eficácia (eficácia imediata)
garantindo a sua observância e respeito através da «legislação civil».
[...] No sistema constitucional de tendencial separação de órgãos de
soberania, cabe, em primeira linha ao legislador assegurar a
observância dos direitos, liberdades e garantias da ordem jurídica
privada. Noutra formulação, mais recente, ancorada na idéia
funcional de exigência de protecção pelo Estado ínsita nos direitos
fundamentais: é dever do legislador ter em conta a necessidade de
protecção dos direitos, liberdades e garantias nas relações jurídicoprivadas. Qualquer que seja o fundamento dogmático deste dever de
protecção do Estado-legislador – eficácia dos direitos, liberdades e
garantias fundamentais, ou como princípios jurídicos estruturantes,
ou como valores impregnadores de toda a ordem jurídica – não
existem quaisquer dúvidas quanto à função dos direitos, liberdades e
garantias como regras jurídicas vinculantes da ordem jurídica
143
privada.
143
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra
Editora. 2008. pp. 91-92.
140
Tendo em mente que o poder pertence ao povo, e em seu nome é
exercido por seus representantes diretamente eleitos, a produção legislativa
deve espelhar a vontade popular, a qual é, primariamente, o desejo de
segurança e efetividade de seus direitos, não sendo materialmente compatíveis
com o ordenamento jurídico que disponham em contrário, especialmente pelo
vício da falta e legitimidade. Nesse sentido ensina Amanda Becke Machado
Freitas:
A lei não é, portanto, um instrumento de uma política, mas sim regra
de direito. Por esse motivo a lei é feita para prescrever, proibir e
sancionar.
[...]
Ou seja, a produção normativa passa, pelo prisma da segurança
jurídica, a tornar-se um assunto que diz respeito diretamente ao
exercício dos direitos e garantias fundamentais, deixando de ser,
portanto, uma questão relacionada exclusivamente com a de divisão
de poderes.
[...]
Portanto, não há como admitir que o povo, titular do poder, tenha
restritos seus direitos e liberdades por meio de leis dúbias e
imprecisas, ou que normas sem conteúdo normativo sejam editadas
para atender meras finalidades políticas, sem emanar qualquer efeito
jurídico, e que contribuem para a morosidade do processo
144
legislativo.
O Poder Legislativo possui a atividade legislativa como sua atribuição
principal, exercendo-a mediante procedimento constitucionalmente previsto, o
processo legislativo, cuja observância estrita propicia a produção de normas
formal
e
materialmente
constitucionais,
como
adequado
ao
sistema
republicano. A segurança desejada pelos cidadãos tem sua parcela advinda
dos legisladores, cuja responsabilidade é maior do que vem atualmente sendo
praticada, visto que a apatia do Poder Legislativo e sua sobreposição pelo
Poder Executivo já é matéria exposta ao longo do presente estudo.
O compromisso do legislador deve ser com a Constituição, efetivando-a,
e com o cidadão, cuja vontade ele representa, e as expectativas deve atender;
dentro dessas balizas, agirá o legislador conforme sua missão institucional.
144
FREITAS, Amanda Becke Machado. Breve ensaio sobre a qualidade da lei e o princípio da
segurança jurídica no Direito Francês. Disponível em <http://www.iuspedia.com.br>. Acesso em 21 de
julho de 2010. pp. 3-6.
141
Ademais, a segurança jurídica mais cara ao cidadão é a estabelecida entre o
Estado e ele, com o condão de garantir ao cidadão o amparo que ele necessita
para poder estabelecer a relação de confiança que, teoricamente, deveria ter
na administração, que conduz seus interesses. É a dimensão objetiva da
segurança jurídica.
Todo o funcionamento do Poder Legislativo viabiliza a análise e o debate
das matérias, na intenção de que as eventuais inconstitucionalidades sejam
expurgadas na feitura da norma (controle preventivo), contudo, ainda há,
dentro do sistema e freios e contrapesos, a possibilidade de controle judicial
(ou repressivo) após a edição da norma, já que da norma sobrevive o
ordenamento jurídico, com aquelas materializando esse.
Do
compromisso
com
a
Constituição
advém
a
obrigação
de
constitucionalidade, e do compromisso com o cidadão vem a previsibilidade,
que contempla sua relação de confiança de que não acontecerão mudanças
bruscas, afetando a legítima expectativa e o rumo indicado pela Constituição
para a condução dos assuntos do ente coletivo para com os cidadãos. Nas
palavras de Adhemar Ferreira Maciel:
[...] se depenemos da lei, a norma jurídica deve, no mínimo, ser
previsível. Deve oferecer aquele múnus de “calculabilidade”. Toda
pessoa que se inter-relaciona deve poder saber, de antemão, como
o alter se comportará em relação a ela. Sem isso não há sociedade
ou mesmo comunidade. Pode haver ajuntamento de gente. O direito
dispositivo pede certeza. Muitas vezes essa certeza jurídica se
coloca em posição antagônica à própria justiça, que então assume
contorno adiáforo.
[...]
A própria positivação da norma já oferece a primeira base da
145
seguridade jurídica.
Mesmo o instituto da medida provisória não deveria ser obstáculo à ação
dos legisladores, posto que, num cenário ideal, seu uso seria pontual, mas a
realidade é oposta, como já abordado. Apesar do desequilíbrio institucional
145
MACIEL, Adhemar Ferreira. Medida provisória e segurança jurídica. In: ROCHA, Carmem Lúcia
Antunes. Constituição e segurança... p. 261.
142
existente no Brasil, é inafastável o princípio da segurança jurídica, logo, ele
deve informar todas as ações estatais, como expõe Cármem Lúcia Antunes
Rocha:
As expressões “segurança jurídica‟ e “direito fundamental a
segurança” são reiteradas nos textos constitucionais com sentido
diferenciado conforme a topografia constitucional, na qual se incluem
e projetam-se em institutos, como direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada, igualmente elencados, no direito
constitucional brasileiro, como direitos inexpugnáveis pela ação do
146
Poder Público.
Ainda sobre o mesmo assunto, Jorge Miranda reafirma que a
Constituição vincula todo o Estado:
A Constituição rege os comportamentos dos órgãos do poder que se
movam no âmbito do Direito interno e, por conseguinte, todos os
seus actos, quanto a todos os seus pressupostos, elementos e
147
requisitos, têm de ser conformes com ela .
Quanto à positivação do princípio da segurança jurídica, papel que cabe,
por excelência, aos legisladores, a conseqüência é a vinculação do Estado e
dos cidadãos pelo dever de cumprir a legislação vigente, mas também pelo
desejo de progresso e maior efetivação da Constituição. Nesse diapasão, o
princípio da segurança jurídica tem contornos amplos, deixando o papel do
legislador evidenciado pela necessidade de sua ação no correto sentido de
assegurar as garantias constitucionais. Ao constituinte coube estabelecer o
princípio, mas ao legislador ordinário cabe o compromisso de efetivá-lo através
de seu trabalho. Nesse sentido, reproduzimos a lição de Ingo Wolfgang Sarlet:
No caso da ordem jurídica brasileira, a Constituição Federal de 1988,
após mencionar a segurança como valor fundamental no seu
Preâmbulo, incluiu a segurança no seleto elenco dos direitos
„invioláveis” arrolados no caput do art. 5º, ao lado dos direitos à vida,
liberdade e propriedade [...] assim, bastariam estas breves
considerações, para demonstrar o quanto a segurança jurídica(aqui
tomada num sentido propositalmente amplo) assumiu um lugar de
destaque na atual ordem jurídico-constitucional brasileira, ao lado da
segurança social [...] Importa relembrar, neste contexto, que a
146
147
ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Constituição e segurança... p. 9.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito... t. II... p. 314.
143
segurança jurídica (para além das manifestações específicas
expressamente constantes do texto constitucional) integra, na
condição de subprincípio, também os elementos nucleares da noção
de Estado de Direito plasmada na Constituição de 1988, desta sendo
indissociável. Ademais, nem o princípio fundamental da segurança
jurídica e nem mesmo o complexo de direitos fundamentais
específicos já referidos e agasalhados pelo nosso Constituinte
esgotam o elenco de possibilidades quando se cuida de delimitar o
âmbito de proteção de um direito à segurança jurídica, à luz dos
sistema constitucional brasileiro. Dentre essas outras manifestações,
destacam-se duas que, pela sua relevância para a presente
abordagem, já que aqui não poderiam deixar de ser mencionadas,
quais sejam a idéia de proteção da confiança e da proibição do
148
retrocesso.
Ainda citando o mesmo autor, reproduzimos sua lição quando trata da
proteção à confiança, sua relação com a necessidade de estabilidade e a
produção legislativa:
Como concretização do princípio da segurança jurídica, o princípio
da proteção da confiança serve como fundamento para limitação de
leis retroativas que agridem situações já consolidadas (retroatividade
própria), ou que atingem situações fáticas atuais, acabando,
contudo, por restringir posições jurídicas geradas no passado
(retroatividade imprópria), já que a idéia de segurança jurídica
pressupõe a confiança na estabilidade de uma situação legal atual.
Com base no princípio da proteção da confiança, eventual
intervenção restritiva no âmbito das posições jurídicas sociais exige,
portanto, uma ponderação (hierarquização) entre a agressão (dano)
provocada pela ei restritiva à confiança individual e a importância do
149
objetivo almejado pelo legislador para o bem da coletividade.
Não se pode deixar de compreender que existem lacunas legislativas, o
que representa mais responsabilidade ao legislador, de cuja atividade
dependem os cidadãos. Explicitando a possibilidade de lacunas, o que faz
parte da atividade legislativa, citamos William Couto Gonçalves:
A rigor, sabe-se que transcende os limites da capacidade do homemlegislador prever e elaborar todas as normas genéricas possíveis de
regulação das condutas dos integrantes de dado grupo social, por
isso compreende-se a limitação legislativa, que sobressai como
omissão, que transparece como conseqüência natural da limitação
humana. A par da omissão, agora tendo-se em conta a falibilidade
humana no sentido mais genérico,não se ignora a existência de leis
148
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: Dignidade da
pessoa humana, direitos fundamentais... pp. 91-92.
149
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: Dignidade da
pessoa humana, direitos fundamentais... p. 125.
144
minguadas de clareza e fartas de termos considerados vagos, além
de que, por impossível que possa parecer, distantes da ordem
150
política e social do grupo a que se destinam.
Infere-se da transcrição acima que há uma evidente e importante
interface entre os poderes Legislativo e Judiciário, de forma não oficial, mas
sim de funções complementares, onde as normas editadas pelo legislador,
ainda que falhas, são utilizadas pelos julgadores, que utilizam de diversos
meios de integração para aplicá-las devidamente. Mais uma vez fica evidente
que o princípio da segurança jurídica permeia todo o Estado de Direito, em
todos os seus poderes.
Consideramos, assim, que ficou clara a necessidade de vinculação da
atividade legislativa à Constituição, sendo essa de grande importância e rumo a
ser tomado pelos que ocupem postos no Poder Legislativo, sendo corolários
dessa atividade a legitimidade das normas editadas, representando a
soberania popular. Deve ser lembrado que a segurança jurídica, em sua
dimensão objetiva, é uma limitação imposta ao Estado, que deve oferecer a
segurança aos cidadãos, assegurando a estabilidade necessária às instituições
e pessoas, contribuindo para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
3.2.3 Importância da segurança jurídica no âmbito executivo
A segurança jurídica deve ser, além de princípio basilar, um objetivo
para a atuação do Poder Executivo, cuja função é executar as leis, o que
sempre deve ser feito à luz dos princípios, dentre os quais a segurança jurídica.
É fato que existe uma hipertrofia do Poder Executivo, em que pese ser o mais
visível no regime presidencialista, há uma identificação dos ocupantes desse
poder como sendo a personificação do Estado, tomando nas mãos, dessa
forma, a responsabilidade de ser o provedor da segurança jurídica aos
cidadãos. A constituição serve de fundamento de validade para todas as
150
GONÇALVES, William Couto. Garantismo, finalismo e segurança jurídica no processo judicial
de solução de conflitos. Rio de Janeiro; Lúmen Juris, 2004. p. 72.
145
normas, cuja aplicação é a maior faceta da responsabilidade de quem exerce a
função executiva. Sobre a orientação do Estado à sociedade, papel que
começa com a Constituição e é implementado pelo Poder Executivo, citamos
Jane Reis Gonçalves Pereira:
A concepção da Constituição como estatuto axiológico da sociedade
é produto do constitucionalismo germânico, tendo sido desenvolvida
e estruturada na jurisprudência da Corte Constitucional a partir a da
vigência da Lei fundamental de Bonn. A idéia central inerente a essa
visão é a de que, por meio da Constituição, a comunidade
estabelece um arsenal de valores que hão de orientar e conformar
não apenas a ordem jurídica estatal, mas a vida social
genericamente considerada. Nessa perspectiva, as escolhas
valorativas postas na Constituição – e que são exprimidas no rol de
direitos fundamentais – devem orientar a ação do Estado e de todos
151
os setores da sociedade.
A segurança jurídica, especialmente em sua dimensão objetiva, se
constitui um limitador à atividade do Poder Executivo, que tem o dever de agir
em observância à legalidade, também tendo o cuidado de não agir em nome
apenas do interesse da administração, que nem sempre corresponde ao
interesse dos cidadãos. É vedado ao Executivo, como aos outros poderes, agir
em prejuízo da segurança jurídica, contudo, dentro da divisão de competências
da tripartição dos poderes, sua responsabilidade parece não ser tão direta, por
não criar ou interpretar a legislação, mas a verdade é que o aplicador é tão
importante quanto os outros atores, já que ele materializa a vontade coletiva.
As instituições estatais dotadas de poder são igualmente responsáveis
pelo respeito aos direitos e garantias dos administrados, sujeitas ao princípio
da legalidade, da segurança e da proteção à confiança nos atos do Poder
Público, que todos os cidadãos podem apor ao ente público. O Estado deve
reger-se pela boa-fé, razoabilidade, e estabilidade das relações jurídicas, que
se configura na durabilidade das normas, na proteção ao direito adquirido, ao
ato jurídico perfeito e á coisa julgada, para citar o enunciado mais conhecido,
além da previsibilidade dos comportamentos.
151
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos... p. 457.
146
Os cidadãos, conhecedores da Constituição e da legislação que os
regem, devem ser capazes de prever minimamente as providências estatais,
que devem observar a isonomia, usufruindo da segurança como valor, como
garantia, como direito fundamental,posto que tudo isso é principiologicamente
assegurado, com o objetivo de que o Estado seja o provedor do bem estar
social, expomos a vinculação do Poder Executivo com as palavras de José
Joaquim Gomes Canotilho:
o principio da legalidade da administração, sobre o qual insistiu
sempre a teoria do Estado de direito e a doutrina da separação dos
poderes e que acabou por ser considerado mesmo como o seu
cerne essencial, postulava, por sua vez, dois princípios
fundamentais: o principio da supremacia ou prevalência da lei e o
principio da reserva da lei. Estes princípios permanecem validos,
pois num Estado democrático-constitucional a lei parlamentar é,
ainda, a expressão privilegiada do principio democrático e o
instrumento mais apropriado e seguro para definir os regimes de
certas matérias, e daí a reserva de lei. De uma forma genérica, o
principio da supremacia da lei e o principio da reserva de lei apontam
152
para a vinculação jurídico-constitucional do poder executivo
Um dos fatores que obriga o Poder Executivo a observar a segurança
jurídica é a reserva legal, decorrente, assim como a segurança jurídica, do
princípio do Estado de Direito, segundo o qual o Estado somente pode fazer o
que é legalmente autorizado, sendo-lhe vedado agir fora dos limites legalmente
impostos, são as dimensões positiva e negativa, obrigações de fazer e de não
fazer, expostas por José Joaquim Gomes Canotilho:
a reserva e lei comporta duas dimensões: uma negativa e outra
positiva. Nas matérias reservadas à lei está proibida a intervenção
de outra fonte de direito diferente da lei (a não ser que se trata de
normas meramente executivas da administração). Além disso,
nessas mesmas matérias a lei deve estabelecer ela mesmo o regime
153
jurídico [...]
Como é visível, qualquer agente estatal deve ater-se à legalidade, o que
para o cidadão representa que a conduta do ente coletivo será previsível e
152
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria... 3. ed. Coimbra: Almedina.
1999. p. 375.
153
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. ver. Coimbra: Almedina. 1993. p.
791.
147
constitucionalmente adequada, remetendo, por óbvio, aos bens jurídicos
tutelados objetivamente pelo princípio da segurança jurídica, assim como à
necessidade de proteção do próprio patrimônio jurídico dos cidadãos,
amplamente considerado, seus direitos já assegurados e a legítima expectativa
da ação do Estado.
Sendo o Poder Executivo o responsável pelas ações que mais direta e
freqüentemente impactam o cidadão, não se pode compreender sua
responsabilidade para com a concretização da segurança jurídica de forma
reducionista, nos atendo à mera literalidade. Ao contrário, toda a atuação para
com os cidadãos vinda do Estado deve ser amplamente comprometida com a
sua [do cidadão] segurança, e calcada numa aplicação do princípio no sentido
de que não predomine o arbítrio do Estado, mas o respeito à dignidade do
administrado, que, em última análise, é quem suporta o Estado.
O Executivo, apesar da legitimidade que tem pela via da eleição direta,
tem seus poderes ditados pelo povo, que estabelece a atuação executiva por
meio das leis advindas do Poder Legislativo, contudo, o já exposto
desequilíbrio institucional que ocorre no Brasil, associado ao uso excessivo das
medidas provisórias, enseja uma falha na organização estatal, criando uma
concentração de poderes que somente contribui para a insegurança,
fragilizando o Estado. Deve haver uma busca constante de justiça social,
consoante a lição de Lenio Luiz Streck:
a nova maneira de compreender o Direito corresponde a uma
ferramenta metateórica e transmetodológica a ser aplicada no
processo de desconstrução do universo conceitual e procedimental
do edifício jurídico, nascido no paradigma metafísico, que o impediu
de submetê-lo às mudanças que há muito tempo novas posições
154
teóricas – não mais metafísicas – nos põem à disposição.
154
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do direito. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2003.
148
A relação de confiança entre os cidadãos e a administração é bem
exposta por Jesús González Pérez e também por Egon Bockmann Moreira,
quando afirmam:
[...] em efecto, la presencia de los valores de lealtad, honestidad y
moralitad que su aplicación conlleva es especialmente necesaria en
el mundo de las relaciones entre las Administraciones públicas y
155
entre las Administraciones públicas y los administrados
os particulares não podem ver frustradas as suas expectativas e
investimentos pela “mudança de humores” da administração, pela
eleição do próximo governo ou devido a uma compreensão instável
156
dos vínculos contratuais.
A presença da segurança jurídica na ação do Estado é evidente, assim
também sendo na ação do Poder Executivo, a quem toca compreender e
atender, dentro dos limites que o ordenamento jurídico impõe, as ações de
concretização dos direitos e expectativas dos cidadãos, atraindo para esse
poder a obrigação de observar a segurança jurídica em cada ação estatal.
Tudo isso reafirma a importância de que o Estado funcione adequadamente,
preservando os interesses republicanos, o contrato social, e os interesses dos
cidadãos, de modo a atender às dimensões objetiva e subjetiva do princípio da
segurança jurídica.
155
“[...] com efeito, a presença dos valores de lealdade, honestidade e moralidade que sua aplicação leva é
especialmente necessária no mundo das relações entre as Administrações públicas e entre as
Administrações públicas e os administrados” (Tradução livre do autor).
PÉREZ, Jesús González. El princípio general da la buena fé en el derecho administrativo. Madrid:
Civitas. 2004. p. 53.
156
MOREIRA, Egon Bockmann. A lei de licitações, o princípio da boa-fé objetiva e o abuso de
direito. In: MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. (Coord.). O abuso do poder do Estado. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2005. p. 73.
149
CONCLUSÃO
O Estado Democrático de Direito, modelo em que o Brasil se enquadra,
tem entre suas características a observância da legalidade nas suas relações,
tal legalidade encontra fundamento no maior dos diplomas legais, a
Constituição Federal. A seu turno, a Constituição, produto da vontade popular
por meio do regime democrático representativo, trouxe para seu seio diversos
princípios, que são conceitos gerais que, explícitos ou implícitos, informam todo
o ordenamento jurídico. Dentre os princípios albergados na Constituição
Federal está o da segurança jurídica.
Por segurança jurídica compreendemos a obrigação do Estado de
prover segurança e estabilidade nas relações jurídicas, tanto as que envolvam
os cidadãos e o Estado, quanto as que envolvam os cidadãos entre si,
considerando que os fatos e negócios jurídicos se dão dentro do que permite
ou não proíbe o ordenamento jurídico vigente. A segurança tem sua
importância na proteção conferida aos cidadãos de que as ações estatais
ocorrerão conforme as regras vigentes e, em caso de mudança, não
representarão uma ruptura, não serão mudanças drásticas que afetem o
patrimônio jurídico consolidado, ou a legítima confiança depositada pelo
cidadão no sentido de que o Estado não mudará bruscamente a legislação
sobre a qual age o administrado.
A partir da premissa de que o Estado foi criado por opção dos cidadãos,
que trocaram parte de sua liberdade pela segurança a ser oferecida pelo ente
coletivo, viabilizando a vida em comunidade organizada, a segurança constituise como o mais básico dos deveres estatais, representando o mínimo que os
cidadãos esperam e sem o que não subsiste razão para manter a ordem
vigente. Considerando ainda, que o texto constitucional positivou a segurança
150
jurídica entre os direitos e garantias fundamentais, no inciso XXXVI do artigo
5º, sendo, então, garantida a segurança jurídica aos cidadãos por força da dita
norma. Dessa forma, podemos seguramente compreender a segurança jurídica
como princípio decorrente do Estado de Direito, sendo parte indissociável
desse,
representando
um
bem
jurídico
considerado
garantia
constitucionalmente posta como direito fundamental de todos os cidadãos,
indistintamente considerados.
Analisando detidamente o princípio da segurança jurídica, constatamos
que o mesmo se apresenta em duas dimensões: objetiva e subjetiva. Podemos
diferenciar as duas pela aplicabilidade de cada uma.
Na dimensão objetiva o princípio é prioritariamente dirigido à proteção do
cidadão oponível ao Estado, segundo a qual as ações desse não podem ser
hábeis a comprometer o patrimônio jurídico daquele, da mesma forma são
vedadas sob o ponto de vista da segurança jurídica normas que representem
mudança abrupta dos rumos das políticas públicas, ou que afetem a legítima
expectativa dos cidadãos na continuidade de determinado rumo ou atividade
pública, cujo fundamento de validade seja norma anterior.
Quanto à dimensão subjetiva, a tutela se dá diretamente com foco no
cidadão, protegendo a confiança desses de que os fatos e atos jurídicos
realizados à luz de determinada regulamentação não serão afetados por outra
superveniente,
assim
como
não
será
surpreendido
por
alterações
regulamentares que afetem atos que demandem tempo, o que comprometeria
as relações entre particulares, podendo também atingir as relações com o
próprio Estado. Registramos que vários autores tratam a dimensão subjetiva
como sinônimo do princípio da “proteção da confiança”, outros põem essa
como
corolário
daquela,
o
que
entendemos
ser
mais
pertinente,
compreendendo a confiança como um corolário da estabilidade e da segurança
desejadas do Estado.
151
Num cenário ideal, a segurança jurídica seria implementada com
amplitude e sem celeumas, contudo assim não é. O princípio em comento é
subaproveitado, mas ainda pior que isso é ver que ocorrem diversos
movimentos contrários, até no seio do próprio Estado, para fragilizá-lo,
conduzindo tanto os cidadãos quanto o ente coletivo nos rumos da ausência de
segurança, o que é incompatível tanto com a Constituição quanto com os
objetivos do próprio Estado.
As emendas constitucionais são fatos normais dentro do processo
legislativo. Porém, o que acontece no Brasil é que, além das emendas
necessárias, outras são editadas no sentido de ajustar a Constituição aos
desígnios dos que ocupem o governo. O que percebemos e podemos afirmar é
que as políticas públicas não têm continuidade, sendo modificadas a cada
mudança no Poder Executivo, o que a seu turno, cria um desequilíbrio com sua
hipertrofia sobre o Poder Legislativo e ensejando insegurança na medida em
que o texto constitucional sofre mutação constante, causando instabilidade.
Igualmente a legislação toma caminhos de insegurança, sendo, em diversos
casos, destinada a atender a casos pontuais, deixando de lado seu caráter
geral, dessa forma ensejando insegurança aos administrados, que estão
sujeitos à fragilidade de um ordenamento jurídico sujeito a mudanças
destinadas a atender a interesses não republicanos.
Como já pontuado linhas acima, existe no Brasil uma desequilíbrio
institucional, com a hipertrofia do Poder Executivo, e que não se confunde com
a importância natural desse poder no regime presidencialista. Em verdade, age
o Executivo no sentido de tornar o Legislativo um mero aprovador de seus
desígnios, tomando, por meio também do instituto da Medida Provisória, com
requisitos fluidos e de cumprimento discutível. A quantidade de iniciativas
legislativas do Poder Executivo se aproxima da quantidade do Senado Federal,
o que evidencia a situação do Executivo, cuja função legislativa é excepcional,
age quase nos mesmo níveis de uma das casas do parlamento, o que, por
óbvio, não é compatível com o sistema de freios e contrapesos sobre o qual
funciona o sistema republicano.
152
As decisões judiciais, cuja função principal é pacificar a sociedade,
dessa forma assegurando a segurança provida pelo Estado aos cidadãos,
podem concorrer, na verdade, para a insegurança. Já que cada vez mais se
busca a tutela judicial, o Poder Judiciário é levado a pronunciar-se sobre mais
situações, decidindo, por vezes, sem que disponha de embasamento em
normas, tendo uma atuação mais politizada, destoando da tecnicidade
necessária aos aplicadores da Lei. Ademais, institutos como a Ação
Declaratória de Constitucionalidade, tornam o Judiciário uma espécie de
“fiador” da norma instituída, evitando a ampla discussão sobre determinadas
normas, o que tira dos cidadãos a chance de combater o que entendam violar
seus direitos, ou mesmo o princípio segurança jurídica, em nome do que pode
nem sempre ser o interesse público, mas sim o interesse da Administração.
A relativização da coisa julgada é objeto de viva discussão, a qual trata
abstratamente de justiça das decisões, contudo, sem estabelecer um conceito
claro de justiça, argumentando que as decisões abrangidas pelo manto da
coisa julgada nem sempre refletem os fatos, o que seria incompatível com o
ordenamento jurídico. Respeitando os argumentos em contrário, entendemos
eu mais danoso ao ordenamento jurídico é manter as decisões judiciais sempre
sob a ameaça de desconstituição, sendo que já existem institutos como a ação
rescisória para rediscutir os pronunciamentos dos magistrados. Relativizar a
coisa julgada, deixando de vincular os julgamentos cíveis à verdade formal,
seria institucionalizar a insegurança, fazendo pairar sobre os julgamentos a
eterna possibilidade de revisão, visto que usualmente haverá nos litígios uma
parte satisfeita, alegando ter sido feita justiça e outra entendendo em contrário,
tentando expor alegadas injustiças.
Não pode o operador do direito afastar-se da noção de que a segurança
é essencial ao Estado de Direito, sem ela o contrato social não traz o primeiro
benefício a que se destina, logo, todo o ordenamento sócio-jurídico embasado
nesses pressupostos cai por terra, o que, dados os avanços da sociedade
dentro de uma estrutura estatal, não é desejado, logo, a segurança jurídica tem
153
ligação direta com o princípio da proibição do retrocesso social, segundo o qual
a ordem jurídica não pode abandonar os avanços obtidos até agora em nome
de um retorno à situação anterior. Isso posto, a segurança é princípio que deve
informar todos os aos e políticas do ente coletivo, logo, deve permear os
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
A proibição do retrocesso social, vedando a abolição de conquistas
sociais, tem óbvio liame com a segurança jurídica, já que o ordenamento
jurídico como se encontra não pode, segundo aquele princípio, voltar a estágio
anterior de evolução, com o que são protegidos aos atos jurídicos, aos direitos
adquiridos e a confiança depositada nas instituições. Mesmo em caso de
normas programáticas é o caso de se falar em proibição do retrocesso e
segurança jurídica, já que não é necessário que haja um comando concreto,
bastando a indicação do rumo que deve ser dado ao ordenamento jurídico para
que tal seja exigível, em maior ou menor grau, pelos cidadãos.
No Poder Judiciário, a segurança jurídica é considerada e protegida nas
decisões, que devem buscar a posição mais próxima da justiça, considerando a
máxima efetividade da Constituição, sendo tais manifestações parte da
segurança provida pelo Estado aos cidadãos, sem o que não se justifica a
manutenção do status quo. É também papel do Judiciário a atividade
interpretativa e de aplicação da Constituição, a qual é intimamente ligada a à
segurança jurídica, que conjuga a soberania do Estado com as garantias
atinentes aos cidadãos, de maneira que essas devem sempre ser
contempladas.
No tocante ao Poder Legislativo, a segurança jurídica, especialmente em
sua dimensão objetiva, é essencial para a atuação legislativa, na medida em
que a produção de normas jurídicas é sua principal tarefa e ela somente é
correta quando acontece no sentido da máxima efetividade da Constituição e
da observância de todos os princípios que a permeiam, inclusive o da
segurança jurídica. De forma alguma é tolerável o vício da inconstitucionalidade
de qualquer norma, logo, qualquer falha na produção legislativa, mesmo que
154
em nível infralegal, atenta contra a segurança jurídica, sem a qual o Poder
Legislativo não tem sentido.
O Poder Executivo, enquanto aplicador da legislação, inclusive da
Constituição, estando, assim, vinculado á segurança jurídica pela sua missão
de bem realizar os comandos impostos pelo ordenamento jurídico. Deve quem
exerça a função executiva deve zelar pelo patrimônio jurídico dos cidadãos,
assim como considerando o interesse da coletividade, não da administração.
Mesmo no manejo, que deveria ser mais parcimonioso, das medidas
provisórias, que, por si, tem certo caráter impositivo, quem ocupe o Poder
Executivo deve ter especial cuidado para que sua aplicabilidade imediata não
venha a prejudicar os cidadãos, causando danos e prejudicando a segurança
desejada pelos cidadãos.
Diante da presente dissertação, não se pode deixar de concluir pela
imprescindibilidade da segurança jurídica para os cidadãos, reafirmando seu
caráter de parte indissociável do Estado de Direito, sem a qual não se
justificaria a existência do Estado, já que deixaria de oferecer segurança em
troca de liberdade. Considerando que a vida em sociedade é repleta e conflitos,
a pacificação provida pelo Estado é a amálgama que une os grupos sociais em
torno dele, a segurança jurídica confere aos administrados a certeza de que
serão protegidos contra quaisquer atos a eles lesivos, de seus pares ou,
principalmente, do Estado.
A confiança depositada na Constituição se justifica pela sua força
normativa, tal força não existiria se as emendas, a legislação infraconstitucional
ou as decisões judiciais fossem totalmente livres. Grande parte das limitações
no ordenamento jurídico vêm da segurança jurídica, a qual representa o último
argumento dos cidadãos em defesa e seus direitos e garantias, sem o que o
Estado estaria completamente entregue ao arbítrio dos detentores do poder.
155
REFERÊNCIAS
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Barcelona: Editorial Gedisa, 1994.
_____________ Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Carlos Bernal
Pulido. 2. ed. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2008.
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais. Coimbra:
Almedina.
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