UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO ASPECTOS DE SEGURANÇA JURÍDICA NO BRASIL JOSÉ DAVI CAVALCANTE MOREIRA Fortaleza - Ceará 2010 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO ASPECTOS DE SEGURANÇA JURÍDICA NO BRASIL Dissertação apresentada como pré-requisito parcial a obtenção do grau de Mestre em Direito junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, tendo como orientador o Professor Doutor Francisco Régis Frota Araújo. José Davi Cavalcante Moreira Fortaleza Agosto/2010 3 “Olhe profundamente no coração dos homens e veja o que deleita e o que desgosta o homem sábio.” Marco Aurélio. 4 A meus pais, José Filho e Socorro, pelo amor e incentivo de sempre. A Alice Oliveira de Souza, pelas ótimas idéias, por não me deixar esmorecer e pelo amor. Ao Professor Francisco Régis Frota Araújo, pela orientação, acessibilidade e toda a ajuda ao longo dessa jornada. Aos Professores Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça e Regnoberto Marques de Melo Jr., por me honrarem tomando assento na banca examinadora. Aos docentes da UFC, a quem agradeço na pessoa do Professor Francisco Gérson Marques de Lima, minha gratidão. A Lígia Maria Silva de Melo de Casimiro, Cristiane Xavier de Souza, Andrine Oliveira Nunes, Marilene Diogo Silva Arrais e Maria Lírida Calou de Araújo e Mendonça sem cujas contribuições, cada uma a seu modo, esse trabalho jamais teria o mesmo valor. Aos amigos da Petrobras, meus pares e superiores, que compreenderam a necessidade de concluir essa missão e ofereceram o suporte necessário. A todos que me incentivaram, muito obrigado. 5 RESUMO O presente estudo tem como principal objetivo chamar atenção para a falta de pesquisas focadas no princípio da segurança jurídica, o qual não deixa ter sua importância no Estado de Direito, mas é muito pouco discutido e poderia ter uma amplitude ainda maior com o desenvolvimento oferecido pelo debate acadêmico e sua implementação com maior intensidade pelos aplicadores do direito. Igualmente importante é expor a situação de desequilíbrio institucional que há muito mina o desenvolvimento do Brasil, fragilizando as instituições e nos mantendo no caminho do subdesenvolvimento. Vistos tais aspectos, fica patente a importância da segurança jurídica em toda a atuação do Estado. A partir do entendimento de que a segurança jurídica é princípio constitucional, buscamos situá-lo no contexto das constituições brasileiras desde a e 1824 até a de 1988, encontrando, salvo uma exceção, menção à segurança jurídica em todas elas. Percebida a importância do princípio, já que vem sendo perene no ordenamento jurídico brasileiro, com o objetivo de estabelecer o princípio no ordenamento jurídico, compreendendo-o como garantia, princípio e direito fundamental. Superada a apresentação da segurança jurídica, seu histórico constitucional e sua condição jurídico-filosófica, passamos a abordar diversos aspectos que fragilizam a segurança jurídica, expondo as implicações do mesmo, quais instituições são atingidas e em que medida é causada a insegurança por cada um deles, evidenciando o desequilíbrio institucional já indicado. Evidenciados os fatores de insegurança que nos afligem, abordamos, sempre com base em sólida doutrina, a importância da segurança jurídica nos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, a fim de que fique claro que o Estado Democrático de Direito não coexiste com a insegurança, que impede o objetivo básico do Estado: prover segurança aos cidadãos. Palavras-chave: Estado Democrático de Direito; Direito; Segurança jurídica; Princípio; Constituição; Histórico; Ameaças; Importância. 6 ABSTRACT This study has as it‟s main objective to draw attention to the lack of researches focused on the legal security principle, that still is important to the Rule of Law, but is very little discussed and could have a very wider reach with development form academic discussion and it‟s more intense implementation by the legal workers. Is also important to show the institutional unbalance that since a long time ago jeopards the Brazilian development. Seen these aspects, is patent the legal security‟s importance for the state‟s actions. Starting from the comprehension of the legal security as a constitutional principle, we searched to put it on the history of the Brazilian Constitutions since 1924 to 1988, finding, with Just one exception, mentions of legal security in all of them. Seen the importance of the principle, that is being permanent on the Brazilian law system, with the objective of to establish the principle on the Brazilian juridical order, understanding it as a warranty, principle and fundamental right. Overcome the presentation of the legal security, it‟s historical facts and juridical and philosophical history, are approach many aspects that weaken the legal security, showing it‟s implications, wich institutions are affected and the measure of the insecurity caused for each of them, putting in evidence the institutional unbalance already mentioned. Shown the aspects of insecurity that worry us, we approach, firmly based on the juridical lessons, the importance of the legal security to the Judicial, Legislative and Executive powers, in order to sustain that the Rule of Law does not coexist with the insecurity, that bock the basic state‟s objective: to provide security to the citizens. Keywords: Rule of Law; Law; Legal security; Principle; Constitution; History; Menaces; Importance. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.....................................................................................................8 CAPÍTULO 1 SEGURANÇA JURÍDICA..................................................................................11 1.1 Histórico.......................................................................................................12 1.2 Dimensão subjetiva da segurança jurídica..................................................18 1.2.1 Direito adquirido........................................................................................26 1.2.2 Ato jurídico perfeito...................................................................................29 1.2.3 Coisa julgada............................................................................................30 1.3 Dimensão subjetiva da segurança jurídica..................................................33 1.3.1 Proteção da confiança..............................................................................35 1.4 Segurança jurídica e constituição................................................................40 1.4.1 Segurança como garantia.........................................................................41 1.4.2 Segurança como princípio........................................................................47 1.4.3 Segurança como direito fundamental.......................................................52 CAPÍTULO 2 ASPECTOS DA AUSÊNCIA DE SEGURANÇA JURÍDICA.............................59 2.1 Emendas constitucionais e legislação casuística........................................60 2.2 A desarmonia dos poderes..........................................................................91 2.3 Medidas provisórias.....................................................................................99 2.4 A interferência judicial na função legislativa e a segurança jurídica..........105 2.5 A relativização da coisa julgada.................................................................117 CAPÍTULO 3 A IMPORTÃNCIA DA EFETIVIDADE DA SEGURANÇA JURÍDICA.............125 3.1 A proibição do retrocesso..........................................................................125 3.2 Efetivação do princípio da segurança jurídica...........................................133 3.2.1 Importância da segurança jurídica no âmbito judicial.............................134 8 3.2.2 Importância da segurança jurídica no âmbito legislativo........................138 3.2.3 Importância da segurança jurídica no âmbito executivo.........................143 CONCLUSÃO..................................................................................................148 REFERÊNCIAS...............................................................................................154 9 INTRODUÇÃO A segurança jurídica, princípio consagrado no ordenamento jurídico brasileiro, com seu enunciado estabelecido no artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal, representa uma das mais importantes e sólidas garantias que o ordenamento jurídico oferece aos cidadãos. Tendo em mente que o Estado, segundo a teoria contratualista, cujo grande expoente é Rousseau, representou o pacto dos cidadãos que trocaram parte de sua liberdade pela segurança a ser provida pelo Estado, logo, o citado princípio é a mais básica das obrigações do ente coletivo. Apesar da importância da segurança jurídica, são escassos os estudos específicos, com outros indicando sua existência ou fazendo correlações, o que não contribui para a efetivação do princípio, nem para sua adequada compreensão, o que, em última análise, dificulta a máxima efetividade da Constituição, posto que um de seus mais básicos princípios é debatido num plano inferior à sua devida importância. O presente estudo, calcado em pesquisa bibliográfica, em especial abordando a doutrina jurídica, mas também considerando questões filosóficas e sociais, tem o objetivo principal de fomentar a discussão acerca a segurança jurídica. Temos como objetivos específicos demonstrar a relação do princípio da segurança jurídica com o constitucionalismo, expor suas fragilidades e a importância de sua efetivação, também indicar situações que afetam negativamente a segurança jurídica em todos os poderes, ilustrando com exemplos e analisando as relações institucionais, de maneira a aferir sua presença em todas as esferas da ação estatal, por último, demonstrar a importância da segurança jurídica como parte fundamental da atuação dos três poderes. 10 Quanto à filiação à área de concentração do Programa de Pós Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, todo o trabalho é focado na ordem jurídica constitucional, assim como ao eixo temático dos direitos fundamentais, dada a condição da segurança jurídica como princípio, garantia e direito fundamental, consagrado na Constituição Federal entre os direitos e garantias fundamentais, sendo, com efeito, cláusula pétrea, não admitindo iniciativa no sentido de sua abolição. Tendo em vista o objetivo principal de fomentar o debate sobre a segurança jurídica a fim de contribuir para sua efetivação e ampliar sua aplicabilidade, assim como os demais objetivos, é clara a filiação à linha de pesquisa “a implementação dos direitos fundamentais e as políticas públicas”, sobretudo considerando o interesse de implementação da segurança jurídica, aprofundando a linha de pesquisa, a situamos como ligada à linha de “políticas públicas e direitos fundamentais”. Dessa forma, entendemos completamente atendidos os focos de pesquisa e vinculação ao programa de que fazemos parte. Por evidente que fica, a tese é a existência e importância da segurança no ordenamento encimado pela Constituição Federal, exposto logo de início; a antítese é a fragilização do princípio, apesar das garantias que o cercam; e a síntese/tese é a importância do princípio para o Estado Democrático de Direito, permeando os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, atingindo, inevitavelmente, todo o Estado e todos os cidadãos. De início, no primeiro capítulo analisaremos a relação entre a segurança jurídica e a Constituição, expondo suas dimensões objetiva e subjetiva, relacionando-as aos papéis do cidadão e do Estado, diferenciando-as, além de expor a segurança jurídica dentro do contexto de princípio constitucional, situando-o enquanto garantia, valor e direito fundamental. Os esforços se destinam a expor ao leitor um panorama da segurança jurídica, com a finalidade de propiciar o entendimento acerca do alcance do princípio, necessária para o progresso desejado. 11 Seguindo os estudos, no segundo capítulo, considerando que a efetivação dos princípios constitucionais em geral não se dá de maneira apropriada do ponto de vista republicano, focamos nos fatores que decorrem da ausência da segurança jurídica, sempre com relação aos três poderes. A análise dos aspectos de insegurança tem importância na medida em que sua compreensão permitirá o combate aos mesmos, no interesse da máxima efetividade da Constituição, cuidado que surge com a abordagem da relação entre todas as esferas do Estado republicano, assim como as conseqüências disso para o Estado Democrático de Direito. Empós, vistas as questões segurança jurídica e sua relação com a constituição no primeiro capítulo, outras de insegurança, no segundo, serão debatidos no terceiro e último capítulo, aspectos de importância da segurança jurídica para os podres Judiciário, Legislativo e Executivo, a fim de estabelecer, enfim, a noção de que o Estado somente solidifica sua existência com ações capazes de suprir as necessidades dos cidadãos, cumprindo sua parte no contrato social: a oferta de segurança. O tema é da maior importância, mas a comunidade jurídica, salvo algumas exceções pontuais na seara tributária, ainda não atentou para o nível de importância da segurança jurídica para o Estado Democrático de Direito, e mesmo para a continuidade da organização estatal, propiciando aos cidadãos a garantia de preservação de seu patrimônio jurídico, a proteção da confiança legítima depositada nas instituições e negócios jurídicos, o que tem influência direta na pacificação e normalidade das relações sociais. Esperamos trazer mais atenção à necessidade premente de mais estabilidade e segurança aos cidadãos, dada a fragilidade das instituições brasileiras, valendo-nos da presente dissertação para oferecer um contributo à Academia, ao Direito e, principalmente, aos cidadãos. 12 1. SEGURANÇA JURÍDICA A segurança jurídica tem lugar entre os princípios do direito, elencado na Constituição Federal no inciso XXXVI do artigo 5º, o qual determina que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, aqui já se evidenciam dois pontos importantes: a) segurança jurídica é princípio constitucional, mesmo que não direta e textualmente explícito, mas com seus caracteres postos entre os direitos e garantias fundamentais; b) a impossibilidade de exclusão do princípio da segurança jurídica, visto que o artigo 5º da CF é cláusula pétrea, na forma do parágrafo 4º do artigo 60 da Lei Maior: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais". Nesse diapasão, cumpre esclarecer que a compreensão da segurança jurídica como princípio impõe que ela seja considerada como uma das balizas para tudo o que tenha ligação com o direito. Tanto a ação estatal quanto as relações desse com os cidadãos e dos cidadãos entre si devem observar o direito à segurança jurídica, dessa forma ficam protegidos tanto o patrimônio jurídico como um todo quanto as dimensões da própria segurança jurídica. Especificando as dimensões da segurança jurídica, são duas: objetiva e subjetiva. Na dimensão objetiva, a proteção é oposta pelo cidadão ao Estado, sendo o cidadão protegido contra as mudanças na política estatal hábeis a prejudicar ou fragilizar seu direito à estabilidade, à previsibilidade que lhe permite planejar seus passos sem que sofra mudanças buscas, sendo, em 13 temos simples, uma parcela do direito à segurança, nesse caso, segurança político-instittucional. Na dimensão subjetiva, a proteção é oposta pelo cidadão aos seus pares, sendo a proteção da confiança depositada nos negócios jurídicos e direitos em geral de que não serão, por exemplo, os contratos, ou qualquer outra relação, alterados de modo a afetar o patrimônio jurídico já consolidado. Aqui o princípio da segurança jurídica suporta os particulares, assegurando aos atos praticados sob certa regulamentação não serão afetados por outra que advenha, seria possível falar num direito à estabilidade conferido aos cidadãos. Partindo das premissas acima expostas, abordaremos a gênese do princípio da segurança jurídica no ordenamento brasileiro, assim como suas dimensões, na forma atual, fundamentando os posicionamentos adotados. 1.1 Histórico Vislumbramos os primeiros traços de segurança jurídica ainda com o Digesto, acompanhado do posicionamento de Ulpiano, conforme informa Almiro do Couto e Silva: O exemplo mais antigo e talvez mais célebre do que acabamos de afirmar está no fragmento de Ulpiano, constante do Digesto, sob o título «de ordo praetorum» (D1.14.1), no qual o grande jurista clássico narra o caso do escravo Barbarius Philippus que foi nomeado pretor em Roma. Indaga Ulpiano: «Que diremos do escravo que, conquanto ocultando essa condição, exerceu a dignidade pretória? O que editou, o que decretou, terá sido talvez nulo? Ou será válido por utilidade daqueles que demandaram perante ele, em virtude de lei ou de outro direito?». E responde pela 1 afirmativa. 1 COUTO E SILVA. Almiro do. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº. 2, abril/maio/junho, 2005. Disponível na Internet:<www.direitodoestado.com.br>. Acesso em 07 de julho de 2009. p. 05. 14 Posteriormente, na Constituição inglesa de 1215, na qual foi estatuída a proteção à propriedade privada, decorrendo do devido processo legal: (39) No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his rights or possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his standing in any other way, nor will we proceed with force against him, or send others to do so, except by the lawful judgement of his equals or by the law of the land. […] (60) All these customs and liberties that we have granted shall be observed in our kingdom in so far as concerns our own relations with our subjects. Let all men of our kingdom, whether clergy or laymen, 2 observe them similarly in their relations with their own men. Contudo, o presente estudo apenas registrará esse estágio inicial e avançará direto às constituições brasileiras, demonstrando a evolução do instituto no direito pátrio. Nas Constituições brasileiras a noção de segurança jurídica, ainda que sem essa denominação já se fazia presente desde 1824, no artigo 179, inciso XXVIII: Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. [...] .III. A sua disposição não terá effeito retroactivo. [...] 2 “(39) Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou despido de seus direitos ou posses, ou considerado fora-da-lei ou exilado, ou privado de sua posição em nenhum sentido, não usaremos a força contra ele, ou mandaremos ninguém para fazê-lo, exceto pelo julgamento legal de seus iguais ou pela lei da terra. […] (60) Todos esses costumes e liberdades que nós temos garantido deverão ser observados em nosso reino nos assuntos de nossas relações com outros sujeitos. Que todos os homens de nosso reino, sejam clérigos ou leigos, os observe similarmente em suas relações com seus próprios homens.” (Tradução livre do autor) Fonte: MAGNA CARTA. The British Library. Desenvolvido pela Biblioteca Britânica. Internet. Disponível em: http://www.bl.uk/treasures/magnacarta/translation/mc_trans.html. Acesso em 23 de julho de 2009. Seções 39 e 60. 15 XXVIII. Ficam garantidas as recompensas conferidas pelos serviços feitos ao Estado, quer Civis, quer Militares; assim como o direito 3 adquirido a ellas na fórma das Leis.[...] Aqui se percebe que mesmo na Constituição de 1824, outorgada, com resquícios do absolutismo e escrita sem nenhuma participação popular, contemplou textualmente a sua própria irretroatividade e a proteção ao direito adquirido, demonstrando que tal noção já era tida em alta conta mesmo no nascente império brasileiro, assim como a vinculação dessa à legalidade. Entendemos que a proteção às “recompensas conferidas pelos serviços feitos ao Estado” tem ligação com direitos adquiridos, visto que são incorporação ao patrimônio jurídico de cidadãos e são assim referidas logo em seguida pelo próprio texto. Na Carta de 1891 a proteção se fez presente através da vedação à leis retroativas: Art 11 - É vedado aos Estados, como à União: [...] 3 º ) prescrever leis retroativas. 4 [...] A proteção aqui se fez contra a retroatividade das Leis, que indubitavelmente remete à idéia de segurança jurídica, até por impedir que novos regramentos alcancem situações que se aperfeiçoaram sob a égide de outras regulamentações. Em 1934 surge o texto na feição que se tornou célebre e permanece atual, figurando no artigo 113, “3”: Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à 3 BRASIL. Constituição (1824). Constituicão Politica do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro. Internet. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em 04 de julho de 2009. 4 BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro. Internet. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em 04 de julho de 2009. Acesso em 04 de julho de 2009. 16 liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] 3) A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. 5 [...] A redação contempla as três grandes formas de proteção da segurança jurídica abordadas no ordenamento brasileiro, é a mesma redação utilizada na Constituição de 1988. A proteção foi ampliada se comparada com os textos anteriores, preservando a proteção decorrente da legalidade, no tocante ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, e quanto às decisões judiciais, com a proteção à coisa julgada. Na Constituição de 19376 há o único hiato acerca da segurança jurídica nas constituições brasileiras, compreensível, mas jamais justificável, historicamente por conta do período ditatorial de Getúlio Vargas, o “Estado Novo”, que tinha bastante identificação com os regimes totalitários europeus da época, onde valores democráticos e garantistas não eram bem quistos. 1946 representou a volta da garantia de segurança jurídica em nível constitucional, ressaltamos novamente, sem esse nome e de forma limitada, mas representa um progresso em relação à ausência comentada acima: Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 3º - A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e 7 a coisa julgada. 5 BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro. Internet. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em 04 de julho de 2009. 6 BRASIL. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro. Internet. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>. Acesso em 04 de julho de 2009. 7 BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro. Internet. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em 04 de julho de 2009. 17 A redação da Constituição de 19678 repetiu, em seu artigo 150, § 3º, a da carta de 1946, assim também se deu com a Emenda Constitucional nº 1, de 19699, apenas mudando a localização, que passou ao artigo 153, § 3º. A “Constituição cidadã”, promulgada em 1988, elencou entre os direitos e garantias fundamentais a proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à cosa julgada, sendo a forma atual de proteção em nível constitucional da segurança jurídica: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; 10 [...] A proteção constitucional à segurança jurídica se dá em nível menor que o desejável, contudo, como nos demais princípios e garantias, não há óbice ao aumento da proteção conferida. Apenas três leis federais fazem expressa menção à segurança jurídica no ordenamento brasileiro, são as leis n.ºs: 9.784, de 29 de janeiro de 1.999, a qual “Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal”; 9.868, de 11 de novembro de 1.999, que “Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal...”; 9.882, de 03 de dezembro de 1.999, que “Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1o do art. 102 da Constituição Federal...”. 8 BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Internet. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm>. Acesso em 04 de julho de 2009. 9 BRASIL. Constituição (1967). Emenda constitucional n. 1. Dá nova redação a diversos dispositivos, alterando e inserindo textos. Brasília, DF. Internet. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em 04 de julho de 2009. 10 BRASIL. Constituição (1988). Constituição de República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Internet. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 04 de julho de 2009. 18 A primeira lei apontada, 9.784/99, além do pioneirismo, traz a noção de segurança jurídica permeando especialmente três dispositivos, deixando claro o caráter de regulamentar a proteção que foi difusamente exposta pela Constituição; seu artigo 2º dispõe: Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. [...] A segunda e a terceira leis mencionadas trazem disposições semelhantes, com sutil diferença de redação, tratando da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, estatuindo, em seus artigos 27 e 11, respectivamente o comando de que: Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo [...] e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Aqui está textual e claramente a segurança jurídica como princípio da administração pública, assim como de razão forte o bastante para afastar a regra de eficácia ex tunc para as decisões do Pretório Excelso, adotando, pois, de forma mais direta e moderna o que se apresenta de maneira abstrata e antiga na Constituição Federal. Importante que fique registrada a existência de apenas os precedentes acima citados, na legislação federal, fazendo menção à segurança jurídica, denotando que ainda é árido o terreno em nosso ordenamento jurídico. 19 1.2 Dimensão objetiva da segurança jurídica A segurança jurídica é compreendida em duas dimensões, a objetiva e a subjetiva, aqui diferenciadas pela esfera que cada uma abrange: a primeira trata de fatores externos que afetam o cidadão, ao passo que a segunda primeiramente protege o sujeito e, via de conseqüência, afeta os fatores externos na intenção de assegurar a dita proteção. Mesmo não sendo um princípio expresso na Constituição Federal, não se duvida de que é real o principio da segurança jurídica, assim, seu estudo se reveste de especial importância pela necessidade de estabelecer seus caracteres sem ter tantas referências no texto constitucional. Importante destacar que a segurança jurídica, na forma que entendemos atualmente, mais sistematizada que a vaga disposição constitucional que temos no Brasil, foi talhada pela jurisprudência alemã, que se espalhou para o direito comunitário europeu e então vem se irradiando para outros ordenamentos. Gilmar Ferreira Mendes11 expõe a origem germânica da definição, também destaca que o princípio do Estado de Direito contém igualmente a segurança jurídica e a legalidade, situando-as no mesmo nível. Princípios implícitos não são novidade na Constituição brasileira, tanto é assim que José Afonso da Silva há muito cunhou sua definição de que existem na Constituição normas que não necessariamente se apresentam de forma clara insculpidas no texto, estando implícitas, mas trazem carga constitucional, chamando-as de normas-princípio ou normas fundamentais. Expondo as normas-princípio, José Afonso da Silva ensina que “as normas fundamentais de que derivam logicamente (e em que, portanto, já se manifestam, implicitamente) as normas particulares regulando imediatamente relações e situações específicas da vida social”.12 11 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 261 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 65. 12 20 O entendimento do mestre gaúcho não é isolado, na Espanha, Eduardo García de Enterría expõe que não se pode distinguir entre os preceitos constitucionais, ao contrário, todos estão no mesmo patamar: [...] Importa ahora precisar que tanto el Tribunal Constitucional al enjuicionar las Leyes (como ele ejercicio del resto de sus competencias), como los jueces y Tribunales ordinarios, como todos los sujetos publicos o privados, en cuanto vinculados por la Constituición y llamados a su aplicación directa y otros meramente programáticos, que carecerían de valor normativo [...] no todos los artículos de la Constituición tienem un mismo alcance y significación normativas, pero todos, rotundamente, enunciam efectivas normas jurídicas [...] sea cual sea su possible imprecisión o indeterminación 13 [...] Voltando aos doutrinadores pátrios, Luís Roberto Barroso reafirma a imperatividade das normas programáticas: As normas constitucionais programáticas, dirigidas que são aos órgãos estatais, hão de informar, desde o seu surgimento, a atuação do Legislativo, ao editar leis, bem como da Administração e do Judiciário ao aplicá-las, de ofício ou contenciosamente. Desviandose os atos quaisquer dos Poderes da diretriz lançada pelo comando normativo superior, viciam-se por inconstitucionalidade, pronunciável 14 pela instância superior competente. Quanto à segurança jurídica, princípio que é, se aplica o mesmo entendimento exposto acima, notadamente na sua dimensão objetiva, em que os comando são dirigidos diretamente ao Estado. Importante ressaltar o conceito de segurança jurídica trazido por Cármem Lúcia Antunes Rocha, útil para compreender a segurança jurídica A segurança jurídica consiste na garantia da estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidas em determinada relação jurídica, 13 “[...] Importa agora precisar que tanto o Tribunal Constitucional ao levar a juízo as Leies (como o exercício do resto de suas competências), como os juízes t Tribunais ordinários, como todos os sujeitos públicos ou privados, enquanto vinculados pela Constituição e chamados a sua aplicação direta e outros meramente programáticos, que careceriam de valor normativo [...] não todos os artigos da Constituição tem o mesmo alcance y significação normativas, mas todos, teimosamente, enunciam efetivas normas jurídicas [...] seja qual for sua possível imprecisão ou indeterminação [...]” (Tradução livre do autor). ENTERRÍA, Eduardo García de. La constitución como norma y el tribunal constitucional. 3. ed. Madrid: Editorial Civitas, 1983, p. 68. 14 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e efetividade das suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 117. 21 esta se mantém estável, mesmo se modificar a base legal sob a qual 15 se estabeleceu [...] O conceito acima se volta bastante para o cidadão, mas não encobre totalmente a dimensão objetiva também se faz presente, já que a estabilidade se espera nas relações privadas, ela é necessária nas relações que dependam de alguma forma do Poder Público. Em sua dimensão objetiva, a segurança jurídica trata de limitar a ação estatal que possa vir a ser prejudicial ao cidadão, não se aceitando que haja retroatividade pura e simples dos atos administrativos e mesmo da legislação, resguardando o direito adquirido. Aqui fica patente que se protege o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada contra interferências estatais. A proteção se volta especialmente contra a retroatividade, já que, salvo má fé ou outro tipo de fraude, os direitos já incorporados ao patrimônio jurídico, os atos jurídicos já concluídos e as decisões transitadas em julgado se constituíram dentro da ordem jurídica então estabelecida. De forma posterior, superveniente, modificar o ordenamento de maneira a atingir o patrimônio jurídico de que quer que seja não poderia ser aceito pelo cidadão, já que uma situação jurídica constituída e estabilizada não pode ser modificável a qualquer tempo, ferindo a segurança que o Estado se propõe a fornecer. Não se está aqui a fazer a apologia da imutabilidade, é possível que situações sejam modificadas, o que não se pode é fazer isso sem motivo de grande relevância para a coletividade, gerando prejuízos na esfera individual a alguns. 15 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O Princípio da Coisa Julgada e o Vício da Inconstitucionalidade. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes (Org). Constituição e Segurança Jurídica: Direito Adquirido, Ato Jurídico Perfeito e Coisa Julgada - Estudos em Homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 168. 22 J. J. Gomes Canotilho explica o princípio da segurança jurídica, tratando como sinônimo a proteção à confiança, da seguinte forma: [...] o cidadão poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas e relações, praticados ou tomadas de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas normas. Estes princípios apontam basicamente para: (1) a proibição de leis retroactivas; (2) a inalterabilidade do caso julgado; (3) a tendencial irrevogabilidade de 16 actos administrativos constitutivos de direitos [...]” Ainda o professor português ensina que a segurança jurídica é inerente ao Estado de Direito, assim como a dimensão objetiva daquele princípio se liga “à durabilidade e permanência da própria ordem jurídica, da paz jurídico-social e das situações jurídicas”.17 O Brasil confessando-se um Estado Democrático de Direito, o que se depreende de forma direta já do preâmbulo da Constituição, não pode se furtar a resguardar o que a própria Constituição já alberga, promovendo a estabilidade jurídica e, dessa forma, efetivando o princípio da segurança jurídica, com fulcro na própria noção de Estado de Direito. O princípio aqui apresenta-se como norte indicado ao Estado e deve ser por esse aplicado indistintamente a todos os cidadãos, sua natureza é objetiva. Assim, reconhecemos que uma dimensão da segurança jurídica é objetiva, sem prejuízo de ampliação das dimensões, mas impedindo a restrição. No mesmo sentido expresso acima, ensina Giovani Bigolin 18, o que pode ser complementado com a lição de Leandro Paulsen, afirmando que não se pode divorciar a segurança jurídica do Estado de Direito, sob pena de ferir o império da legalidade que essa organização estatal pressupõe: Na medida em que o Estado de Direito se apresenta assim, como um modelo de supremacia do Direito a exigir a realização de certos 16 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1995. p. 373. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional ... p. 374. 18 BIGOLIN, Giovani. Segurança jurídica: a estabilização do ato administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. 17 23 valores, como o respeito aos direitos fundamentais pelos próprios indivíduos e pelo Estado e a vedação da arbitrariedade, bem como a pressupor determinadas garantias institucionais, como a separação dos poderes e o acesso ao Judiciário, apresenta-se como subprincípio, assim entendido o princípio do qual se pode extrair outros princípios decorrentes que concorrem para a realização do valor maior naquele consubstanciado, mas que guardam, cada um, 19 sua esfera de autonomia normativa [...] Chega a segurança jurídica a um nível de importância tamanho, ainda que não explicitada diretamente no texto constitucional, que Paulo de Barros Carvalho chega a considerá-la um “sobreprincípio”, ao qual vincula o Estado imperiosamente: A segurança jurídica é, por excelência, um sobreprincípio. Não temos notícia de que algum ordenamento a contenha como regra explícita. Efetiva-se pela atuação de princípios, tais como o da legalidade, da anterioridade, da igualdade, da irretroatividade, da universalidade da jurisdição e outros mais. Isso, contudo, contudo, em termos de concepção estática, da análise das normas enquanto tais, de avaliação de um sistema normativo sem considerarmos suas projeções sobre o meio social. Se nos detivermos num direito positivo, historicamente dado, e isolarmos o conjunto de suas normas (tanto as somente válidas como também as vigentes), indagando dos teores e sua racionalidade; do nível de congruência e harmonia que as proposições apresentam; dos vínculos de coordenação e de subordinação que armam os vários patamares da ordem posta; da rede de relações sintáticas e semânticas que respondem pela tessitura do todo – então será possível emitirmos um juízo de realidade que conclusa pelo primado da segurança, justamente porque neste ordenamento empírico estão cravados aqueles valores que operam para realizá-lo. Se a esse tipo de verificação circunscrevermos nosso Interesse pelo sistema, mesmo que não identifiquemos a primazia daquela diretriz, não será fácil implantá-la. Bastaria instituir os valores que lhe servem de suportes, os princípios que, conjugados, formariam os fundamentos a partir dos quais se levanta. Vista por esse ângulo, difícil será encontrarmos uma ordem jurídico-normativa que não ostente o 20 princípio da segurança. Vê-se aqui a divergência doutrinária ao comentar a segurança jurídica, o consenso é que ela decorre do Estado de Direito. A divergência é que os constitucionalistas entendem a segurança jurídica como um subprincípio do 19 PAULSEN, Leandro. Segurança jurídica, certeza do direito e tributação: a concretização da certeza quanto à instituição de tributos através das garantias da legalidade, da irretroatividade e da anterioridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 20 LEITE, George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais – considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2004. p.260. 24 Estado de Direito, ao passo que os tributaristas a entendem como um princípio maior do qual decorrem outros, como, por exemplo, a anterioridade tributária. Não temos a pretensão de pôr fim à celeuma, a qual entendemos como diferentes pontos de vista válidos conforme o prisma que se use para visualizar o princípio: Para os constitucionalistas o Estado de Direito é ponto central, já para os que estudam os tributos a segurança é essencial para a adequação entre a necessidade arrecadatória do Estado e a proteção aos contribuintes. Conforme os ensinamentos acima transcritos, destacamos, para esse momento, a dimensão objetiva da segurança jurídica, compreendida como a garantia imposta ao Estado, a favor do cidadão, de que os princípios, normas, direitos, políticas e quaisquer meios de ação estatal se darão de maneira conforme a Constituição e não sofrerão mudanças de rumo salvo se justificado por relevante razão de interesse público. À vista do conceito acima cunhado, cumpre verificar que a segurança jurídica decorre da Constituição, da noção de Estado como provedor de segurança e da legítima expectativa dos cidadãos contra a instabilidade institucional do Estado. A mera leitura da Constituição Federal, que dirige proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, faz ver a dimensão objetiva da segurança jurídica, senão como explicar que a proteção aqui mencionada se dirige primeiramente à Lei? A preocupação do constituinte de 1824, assim como de seus antecessores, conforme já exposto, até 1988, foi, principalmente com a Lei que viesse a prejudicar a segurança jurídica, delimitada em forma ainda precária. A precariedade do constituinte em definir o que era segurança jurídica não lhe é falta, ao contrário, é mérito. Ainda que dizendo menos do que desejava, as constituições brasileiras buscaram como lhes foi possível assegurar a estabilidade. 25 No direito comparado, os doutrinadores são unânimes ao afirmar que houve desejo e tentativas de assegurar o direito à segurança, mas não se chegou a uma menção expressa à segurança jurídica. Entendemos que uma referência expressa à segurança jurídica seria de grande valor, mas ao menos proteções esparsas, como a brasileira, ou o direito à segurança, em sentido amplo, já são um norte indicado. Na Argentina,por exemplo, há manifestações claras de segurança jurídica explicitando sua dimensão objetiva, ainda que a assim não a nomeie: [...] Ultimamente la sociedad argentina está manejando el concepto de seguridad juridica, con respecto a lo precedible de las autoridades estatales, en cuanto aquella seguridad demanda que los actos de esos órganos se conformen, en procedimiento y contenido, a la Constitución [...] Desde esta perspectiva, hay seguridad juridica en los siguientes casos. a) Cuando el habitante sabe que las decisiones de los poderes publicos se adoptarán, según el esquema constitucional de asignación de competencias; es decir, que se respetará el subprincípio de corrección funcional [...] a): un órgano no asumirá funciones de otro [...] b): El derecho a la seguridad juridica exige igualmente que se respete el contenido de la Constitución y, en particular, los derechos personales que reconoce ella: libertad, 21 igualdad, propriedad, etcétera. [...] O constituinte vislumbrou que mudanças na Lei, que entendemos no sentido mais amplo, como legislação latu sensu, afetariam a segurança que os administrados tinham no ordenamento anterior à modificação. Entender a lucidez de tão simples constatação é tarefa importante, já que mesmo aqueles que redigiram o documento que originou o Estado perceberam que suas ações nem sempre poderiam ser impostas aos cidadãos. 21 “[...] Ultimamente a sociedade argentina está manejando o conceito de segurança jurídica, a respeito do procedimento das autoridades estatais, na medida em que aquela segurança exige que os atos desses órgãos se adéqüem, em procedimento e conteúdo, à Constituição[...] Desta perspectiva, há segurança jurídica nos seguintes casos. a) Quando o cidadão sabe que as decisões dos poderes públicos serão aodtadas, segundo o esquema constitucional de repartição de competências; é dizer, que se respeitará o sub-princípio de correção funcional [...] a): um órgão não assumirá funções de outro [...] b): El direito à segurança jurídica exige igualmente que se respeite o conteúdo da Constituição y, em particular, os direitos pessoais que ela reconhece: liberdade, igualdade, propriedade, etcétera. [...]” (Tradução livre do autor). SAGÜÉS, Nestor Pedro. Elementos de derecho constitucional. Tomo 2. Buenos Aires: Editorial Ástrea de Alfredo y Ricardo Depalma. 1993. pp. 66 - 67. 26 Compreender que nem sempre o Estado age em prol do interesse coletivo parece contraditório mas não é. Num contexto ideal, o Estado seria o substituto dos cidadãos para a função pacificadora, levando a todos o interesse coletivo e tornando a humanidade coesa. Na realidade, as relações humanas são de tal forma complexas e turbulentas que os conflitos de interesses são quase que permanentes, tornando preciso, pois, que o ente coletivo aja no sentido de identificar quais interesses são mais benéficos, ou menos maléficos, à coletividade, na intenção aproximar a sociedade do melhor nível possível. Entretanto, a função estatal de eleger os interesses que melhor atendem à população não vão agradar à totalidade dessa, havendo os que serão prejudicados ou contrariados pela escolha. Aqui está a segurança jurídica, e sua dimensão objetiva. Se o ordenamento jurídico contempla princípio da segurança jurídica, ele enfeixa, entre outros aspectos, sua dimensão objetiva, de modo que o Estado, ao eleger os valores, princípios, normas, políticas e atos em geral que regerão a coletividade, o faça primeiramente na forma que atenda aos interesses da maioria, isso é o primeiro passo para consecução do objetivo estatal. O segundo passo vem com o transcurso do tempo e das mudanças sociais: Transformando-se a realidade e modificando-se os interesses, deve o Estado agir, adaptando-se aos novos paradigmas e modernizando a si e aos meios de sua atuação (valores, princípios, normas, políticas e atos em geral), contudo, sem que o ato de modernizar represente a ruptura das situações pacificadas sob a ordem que vigorava anteriormente. Assim, as mudanças ao longo do tempo não podem desconstituir o que foi pacificado dentro da legalidade, situações e fatos (como direitos adquiridos, atos jurídicos perfeitos e coisa julgada) regularmente assegurados e garantidos se incorporaram ao patrimônio jurídico e mesmo ás expectativas dos cidadãos, que tiveram segurança de que o Estado regularia tais situações e fatos da forma já pacificada. Logo, concluindo o raciocínio, a Lei, ou qualquer ato, não pode ferir o que já foi regularmente assegurado; o Estado se encontra limitado 27 a assegurar o que ele próprio já contribuiu para solidificar, descabendo, pois, iniciativas do Estado no sentido de violar a segurança que ele próprio proveu, enquanto ente coletivo, aos indivíduos. Com efeito, se já há algo agregado ao patrimônio jurídico dos cidadãos, não se pode conceber que lhes sobrevenha mudança que, de forma infundada ou indiscriminada, viola o que legitimamente auferiram, principalmente se vinda a mudança do Estado, tal fato seria o Estado impor sua força abusivamente, o que vai de encontro ao seu objetivo de evitar tal situação, garantindo segurança, inclusive jurídica. 1.2.1 Direito adquirido O direito adquirido, em termos simples, é o já assegurado legalmente, o que já se incorporou ao patrimônio jurídico do seu titular. O ordenamento jurídico brasileiro é marcado por uma sucessão de constituições, as quais foram redigidas conforme os interesses do chefe de governo da época, logo, nossas instituições são tradicionalmente fracas, marcadas pela instabilidade e reformabilidade. O conceito legal de direito adquirido vem da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), no parágrafo 2º do artigo 6º, com redação dada pela Lei nº 3.238, de 1º.8.1957): Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. [...} § 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. Como é característico da codificação civil que remonta 1916, há uma preocupação significativa com conceitos, pretendendo ocupar espaços que a 28 legislação em geral poderia abranger. Sobre o debate da pertinência ou não de conceituar a matéria legalmente, Gilmar Ferreira Mendes dá bom termo à discussão: A conveniência ou não de dispor sobre matéria tão sensível e controvertido no âmbito da legislação ordinária é suscitada não raras vezes, tendo em vista o risco de deslocamento da controvérsia do plano constitucional para o plano legal [...]. Todavia, trata-se de debate estéril, uma vez que a opção por essa conceitualização legal antecede até à própria positivação constitucional da matéria, ocorrida apenas em 1934. Evidentemente, a opção pela fórmula de conceituação no plano do direito ordinário envolve sérios riscos no que concerne à legalização da interpretação dos institutos constitucionais (interpretação da Constituição segundo a lei) e, até mesmo,como já se verificou, no que se refere à tentativa de conversão de controvérsia estritamente constitucional em controvérsia de índole ordinária, com sérias repercussões no campo da competência do Supremo Tribunal 22 Federal e de outros órgãos jurisdicionais. Da forma exposta acima, que acompanhamos, o tema é indubitavelmente constitucional, ainda que tenha, por questão circunstancial, conceituação presente em lei infraconstitucional. Não basta tal ponto, ainda que tenhamos uma Constituição prolixa, para modificar a natureza de um instituto. Para aclarar o tema, enriquecendo o estudo, é importante citar o conceito cunhado por Caio Mário da Silva Pereira: São direitos que o seu titular ou alguém que por ele possa exercer, como aqueles cujo começo de exercício tenha termo prefixado ou condição preestabelecida; inalterável ao arbítrio de outrem. São os direitos definitivamente incorporados ao patrimônio de seu titular, sejam os já realizados, sejam os que simplesmente dependem de um prazo para seu exercício, sejam ainda os subordinados a uma 23 condição inalterável ao arbítrio de outrem [...] Observando o direito adquirido, o situamos dentro da natureza objetiva da segurança jurídica, já que ele se espraia a todos, e, mesmo que em porções variáveis, todo cidadão tem seu patrimônio jurídico, inclusive os que não são conferidos individualmente, e os direitos que a ele agreguem podem ser 22 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 461. 23 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. I. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. n. 32. p. 105. 29 opostos indistintamente, logo, dizem mais respeito à esfera coletiva que especificamente à individual. Giovani Bigolin, tratando da preservação dos atos administrativos, faz importante ressalva, deixando claro que preservar o direito adquirido não é imutabilidade, mas igualmente não é o esquecimento de outros princípios que devem estar presentes e serem referência para a atuação do Poder Público: [...] o princípio da preservação dos atos administrativos, como elemento a ressalvar a confiança dos cidadãos, é um dos freios e contrapesos que visa a dominar, ao menos um pouco, a mutabilidade generalizada da regulamentação, reduzindo-se os conflitos intertemporais nefastos e geradores de insegurança. Por outro lado, não se deduz da preservação dos atos administrativos que se esteja a sustentar a existência de um respeito absoluto aos direitos adquiridos do cidadão ou à manutenção de qualquer regulamentação, outorgando-se à segurança jurídica uma amplitude excessiva e prejudicial, a suplantar até mesmo com a 24 erradicação da pobreza e à dignidade da pessoa humana [...]” Conforme os ensinamentos acima, a mutabilidade da legislação em geral causa insegurança e tem efeitos diretos sobre o cidadão, que usualmente tem seus direitos relativizados ou mesmo suprimidos. Assegurando proteção aos direitos adquiridos, a Constituição Federal presta enorme serviço aos cidadãos, na medida em que os protege contra o legislador infraconstitucional e mesmo contra o administrador público, que pode agir em detrimento de direitos assegurados em nome das mais diversas razões diversas. Proteger o direito adquirido em um estado frágil como o brasileiro é tutelar não apenas questões pontuais, como exemplificado acima, mas também os direitos mais básicos, que ainda buscamos assegurar, haja vista o desamparo em que vive a maior parte da população. Não se trata de discurso ou de proteção apenas de normas já postas, mas de abrangência maior, pondo sob a proteção do manto constitucional até os princípios como o da dignidade da pessoa humana, que não podem ser suprimidos, por pertencerem ao 24 BIGOLIN, Giovani. Segurança jurídica ... p. 86. 30 patrimônio jurídico de cada cidadão, o que em muito suplanta a mera vontade do legislador. 1.2.2 Ato jurídico perfeito Entendendo o ato jurídico no conceito legal, contido no artigo 6º, parágrafo primeiro da Lei de Introdução ao Código Civil, o Decreto-Lei nº 4.657/42, “Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”. O conceito, por simples que é, se entende de maneira imediata, entretanto, seus desdobramentos são mais complexos. Ato jurídico é pacificamente entendido como o capaz de criar ou modificar direitos, logo, para sua validade é necessário que ele se dê formal e materialmente em consonância com o ordenamento jurídico. Qualquer ato regularmente realizado encontra fundamento na legalidade e, em última análise, na Constituição Federal, assim, os direitos que ele produz ou modifica também se constituíram sobre os mesmo fundamentos. Não se pode conceber que os atos já findos, que regularmente geraram efeitos e direitos, sejam simplesmente afetados por legislação posterior; tal idéia viola a própria noção de segurança jurídica. Logo, o princípio da segurança jurídica, tutelado constitucionalmente, não poderia deixar uma de suas manifestações fora da proteção, notadamente a que tutela a proteção aos atos realizados dentro da legalidade contra mudanças posteriores. A idéia do Estado se baseia na harmonia, na pacificação social. Em toda ordem jurídica existem valores superiores e diretrizes fundamentais que unem suas diferentes partes, dos seus caracteres mais básicos até os mais complexos. 31 Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos. Assim, os atos jurídicos, os quais se incorporam ao sistema jurídico, gozam de proteção contra as intempéries posteriores, visto que se realizaram dentro da legalidade à sua época e, uma vez aperfeiçoados, cristalizaram-se. Entender que atos jurídicos, em última análise direitos, após constituídos, fossem desconstituídos meramente por uma nova regulamentação levaria à inevitável conclusão que não haveria direito assegurado ao patrimônio jurídico do cidadão. As cláusulas pétreas na Constituição Federal são uma forma de assegurar matérias de especial interesse para o Constituinte, questões que não estão ao alcance do constituinte reformador, menos ainda do legislador infraconstitucional. Não se está a dizer que os direitos adquiridos sejam cláusulas pétreas, mas sim que tem proteção decorrente do princípio da segurança jurídica, tratam-se de diferentes institutos com objetivos semelhantes, ainda que em esferas diferenciadas. Como tudo o que abrangido pela segurança jurídica, não é aqui defendida a imutabilidade, mas sim a rigidez contra modificações posteriores. 1.2.3 Coisa julgada A coisa julgada é um fenômeno eminentemente jurídico. Sua materialização, se dá por meio de uma ficção jurídica. Por contraditória que pareça ser a idéia acima especificada, ele é compreensível: coisa julgada não depende meramente de um fato concreto ou de uma condição preexistente, ela decorre de um comando legal, só existe por força do ordenamento jurídico. Da mesma forma que as situações soa apresentadas ao Judiciário no desejo de uma solução, elas devem ter um final, o Judiciário pacifica a sociedade por meio de suas decisões. 32 As decisões judiciais, por sua vez, necessitam para cumprir seu objetivo pacificador, de um caráter de permanência, senão sofrerão oscilações ao sabor das mudanças que afetarem seus fundamentos, sejam os fundamentos fáticos ou jurídicos. Na forma do artigo 468 do Código de Processo Civil: “A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas”. A fim de conferir o caráter de permanência às decisões judiciais, a legislação, novamente entendida em sentido amplo, desde a Constituição Federal até os diplomas mais inferiores, torna real o instituto da coisa julgada. A coisa julgada cristaliza o pronunciamento judicial, torna a decisão definitiva, obsta a rediscussão da matéria decidida, assim, a decisão pode, efetivamente, “fazer lei entre as partes”. Coisa julgada, conforme o Código de Processo Civil, tem a ver com a eficácia da decisão, sendo conceituada pelo artigo 467 da Lei Adjetiva Civil: Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. Importante esclarecer que a coisa julgada que firma a decisão, dá certeza ao pronunciamento, diz respeito ao pronunciamento que decide o mérito da causa, a coisa julgada material, sendo que a formal apenas põe termo à ação, sem abordar a causa de pedir integralmente. A sentença, entendida como decisão judicial (sem diferença entre sentença e acórdão), define o direito aplicável ao caso concreto, o que se dá nas condições de seu tempo, não mais devendo ser atingível por direito que surja de forma superveniente, o que desestabilizaria o pronunciamento judicial. Nas palavras de José Afonso da Silva: “Uma importante condição de 33 segurança jurídica está na relativa certeza de que os indivíduos têm de que as relações sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída”25. Sergio Bermudês explica a origem e a finalidade da coisa julgada: [...] Dispensam-se construções postiças para a justificação da coisa julgada. Ela não decorre, por exemplo, de uma presunção da verdade, ou da verdade ficta, como já se sustentou ao longo do processo de consolidação do instituto (ainda em curso, acrescentese). A coisa julgada material decorre da vontade estatal, traduzida nas normas imperativas que a regulam. A partir de certo ponto, a necessidade de solução de conflitos, perturbadores da ordem social, leva a lei a dar por composto o conflito. [...] a coisa julgada constitui um instituto da segurança jurídica. Essa a função que explica o 26 instituto e justifica a subsistência [...] A proteção constitucional conferida à segurança jurídica abrange a coisa julgada, conforme o já conhecido texto do inciso XXVI do artigo 5º, da Constituição Federal. Registramos que aqui entendemos ser a proteção à coisa julgada manifestação da dimensão objetiva da segurança jurídica, uma vez que a manifestação aqui se dá do Estado para o cidadão. O comando constitucional independe de iniciativa do indivíduo, o qual unicamente recebe a proteção que envolve a sentença. A norma constitucional é auto-aplicável, assim, é dirigida a todos independentemente de qualquer solicitação ou posicionamento. A proteção à coisa julgada, novamente segundo José Afonso da Silva, se incorpora ao patrimônio jurídico do cidadão, podendo ser entendida como um “ato jurídico perfeito”, mas com especial tratamento legal: Tutela-se a estabilidade dos casos julgados, para que o titular do direito aí reconhecido tenha a certeza jurídica de que ele ingressou definitivamente em seu patrimônio. A coisa julgada é, em certo 25 SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 134. BERMUDES, Sérgio. Coisa julgada ilegal e segurança jurídica. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança... p. 168. 26 34 sentido, um ato jurídico perfeito, mas o constituinte a destacou como 27 um instituto de enorme relevância na teoria da segurança jurídica. A sentença não deixa de ser um ato jurídico, mais, o é por excelência, mas tem tamanha importância e características especiais para os fins do Estado de Direito, que tem tratamento diferenciado. A opção do constituinte brasileiro, com viés histórico, é uma questão de opção, a qual entendemos de bom alvitre, dada a fragilidade mesmo das garantias mais cercadas de proteção no ordenamento brasileiro. 1.3 Dimensão subjetiva da segurança jurídica Entendemos, acompanhando a grande maioria dos que abordaram o tema, que a segurança jurídica tem, além da dimensão objetiva, também uma dimensão subjetiva. Consideramos, pois, que o princípio em estudo não se dirige apenas ao Estado, ao legislador ou mesmo ao ente público, entendido no sentido mais amplo, mas também ao indivíduo, ao cidadão, à célula da sociedade. Ingo Wolfgang Sarlet esclarece bem a questão de compreender direitos fundamentais como direitos subjetivos, para, em seguida, aderir à lição de Vieira de Andrade28: [...] de modo geral, quando nos referimos aos direitos fundamentais como direitos subjetivos, temos em mente que a noção de que ao titular de um direito fundamental é aberta a possibilidade de impor judicialmente seus interesses juridicamente tutelados perante o destinatário (obrigado). Desde logo, transparece a idéia e que o direito subjetivo consagrado por uma norma de direito fundamental se manifesta por meio de uma relação trilateral, formada entre o titular, o objeto e o destinatário do direito. Neste sentido, o reconhecimento de um direito subjetivo, de acordo com Vieira de Andrade, está atrelado „à proteção de uma determinada esfera e auto-regulamentação ou de um espaço de decisão individual: tal 27 SILVA, José Afonso da. Constituição e segurança jurídica. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Constituição e segurança... p. 22. 28 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais. Coimbra: Almedina. p. 163. 35 como é associado a um certo poder de exigir ou pretender 29 comportamentos ou de produzir autonomamente efeitos jurídicos‟. A segurança jurídica é primeiramente um princípio objetivo, direcionado à ação estatal no intuito de proteger o cidadão, já que não se pode olvidar que do cidadão veio o Estado, e o fez em busca de segurança, dotando o ente coletivo da capacidade de limitar e tutelar os próprios indivíduos, que optaram por perder parte de sua liberdade em nome dos benefícios do Estado. Entretanto, também é a segurança jurídica um direito a ser exercido subjetivamente, tendo o cidadão direito e proteger seu patrimônio jurídico contra ameaças, inclusive das que venha do próprio Estado. Logo, não é o direito à segurança limitado à esfera objetiva, mas sim estendido a todo o ordenamento jurídico. Pontuando a manifestação da segurança jurídica no âmbito dos direitos subjetivos, voltamos à lição de Nestor Pedro Sagüés, ao afirmar que “es posible detectar, por ende, um derecho personal a la seguridad jurídica, como aplicación del valor constitucional de seguridad, demandable ante los poderes públicos.”30 O contrato social, a abdicação da liberdade natural para convivência em coletividade, sob o Estado, me nome da segurança, somente se justifica quando o ente coletivo realiza seus objetivos, provendo a segurança a que os cidadãos aspiram, sendo um de seus corolários a segurança jurídica, ainda no patamar dos princípios. 29 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto alegre: Livraria do Advogado Ed., 2009. 30 “é possível detectar, assim, um direito pessoal à segurança jurídica, como aplicação do valor constitucional de segurança, exigível diante dos poderes públicos.” (Tradução livre do autor). SAGÜÉS, Nestor Pedro. Elementos de derecho ... p. 67. 36 1.3.1 Proteção da confiança Dentre as facetas da segurança jurídica, já abordamos a proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, todas decorrentes da dimensão objetiva da segurança jurídica, dirigida ao Estado em defesa do cidadão. Agora, abordamos uma outra dimensão, a qual toca o cidadão mais intimamente, já que pode até ser oposta a outros cidadãos: a dimensão subjetiva. Os estudiosos consideram que na dimensão subjetiva da segurança jurídica surge um corolário que, de tão importante, vários doutrinadores, o consideram um outro princípio ao seu lado ou dele diretamente decorrente: a proteção à confiança. Deixando clara e fundamentando a diferenciação das duas dimensões da segurança jurídica, no azo explicando-as em outras palavras, citamos Almiro do Couto e Silva, que detalha o que chama de ramificações da segurança jurídica, em duas partes, cada uma com sua natureza, uma objetiva outra subjetiva: A segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (...) A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção da confiança das pessoas no pertinente aos atos procedimentos e condutas do Estado, nos 31 mais diferentes aspectos de sua atuação. . 31 COUTO E SILVA. Almiro do. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança no Direito Público Brasileiro ... p.3-4. 37 O mesmo autor expõe entendimento diferente, advindo de outros países e cita Canotilho32 para confirmar a posição: Modernamente, no direito comparado, a doutrina prefere admitir a existência de dois princípios distintos, apesar das estreitas correlações existentes entre eles. Falam os autores, assim, em princípio da segurança jurídica quando designam o que prestigia o aspecto objetivo da estabilidade das relações jurídicas, e em princípio da proteção à confiança, quando aludem ao que atenta 33 para o aspecto subjetivo. Em vista da divergência, nos filiamos à corrente que considera o princípio da segurança jurídica em suas duas dimensões, objetiva e subjetiva, entendendo que o núcleo do princípio, como já dito, é a dimensão objetiva, enquanto a proteção à confiança é sua dimensão subjetiva. É difícil compreender a utilidade da divisão entre os princípios, já que é impossível falar de um sem abordar o outro, sendo mais útil e eficaz tratá-los como a unidade que são. Fundamentando o entendimento aqui adotado, apresentamos um conceito de segurança jurídica, trazido por Cármem Lúcia Antunes Rocha: Segurança jurídica é o direito da pessoa à estabilidade em suas relações jurídicas. Este direito articula-se com sua certeza de que as relações jurídicas não podem ser alteradas numa imprevisibilidade que as deixe instáveis e inseguras quanto ao seu futuro, quanto ao 34 seu presente e até mesmo quanto ao passado. Do conceito acima transcrito, podem ser extraídas várias premissas, mas aqui é importante destacar quando a hoje Ministra do Supremo Tribunal Federal fala em “direito da pessoa”, denotando que o direito à segurança jurídica tem uma esfera ligada diretamente à pessoa, ao mesmo tempo em que fala na possibilidade de alteração das relações jurídicas, o que tem liame com questões objetivas. 32 CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 256. 33 CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito Constitucional e Teoria... pp. 4-5. 34 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O Princípio da Coisa Julgada e o Vício da Inconstitucionalidade. In: ROCHA, Cármem Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança... p. 168. 38 Dando por superada a questão de separação ou unicidade de princípios, e reafirmando a nossa opção pela unicidade, passamos a abordar as noções da dimensão subjetiva da segurança jurídica, a proteção à confiança. Podemos falar em juridicidade, segundo o que todos, inclusive o Estado, estão sujeitos à ordem jurídica, logo, as condutas dos cidadãos e do estado devem ser adequadas ao ordenamento jurídico. Da mesma forma podemos presumir que o cidadão, quando se relaciona, tanto com seus pares quanto com o Estado, sabe que resultados são possíveis entro da ordem jurídica estabelecida. A previsibilidade de que o cidadão dispõe não se consubstanciará se ordem jurídica ou os pressupostos sobre os quais essa ordem se funda mudarem a todo momento, isso afetaria a dimensão objetiva da segurança que o cidadão deseja. Logo, o cidadão espera, e necessita, de estabilidade para se relacionar. A estabilidade assegura ao cidadão de que os pressupostos, paradigmas e demais elementos que constituem sua certeza previsibilidade se sustentem, assim como as relações jurídicas e seus efeitos. A confiança que o cidadão deposita no Estado e na sua estabilidade são parte da segurança que deposita no próprio direito, aqui está a proteção à confiança, corolário maior do princípio da segurança jurídica. A segurança jurídica em sua dimensão subjetiva dá ao cidadão o direito, oponível ao Estado, de estabilização das relações jurídicas, em nome da proteção à confiança legitimamente depositada pelo administrado. Uma boa noção sobre a proteção à confiança é passada por Ingo Wolfgang Sarlet: O princípio da proteção à confiança, na condição de elemento nuclear do Estado de Direito (além da sua íntima conexão com a própria segurança jurídica) impõe ao Poder Público – inclusive (mas não exclusivamente) como exigência da boa-fé nas relações com os particulares – o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos em relação a uma certa estabilidade e continuidade da ordem 39 jurídica como um todo e das relações jurídicas especificamente 35 consideradas; Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, quando Conselheiro do tribunal de Contas do Distrito Federal, no processo nº Processo nº (A): 1392/1997, faz referência à Antonio-Enrique Pérez Luño, que aqui transcrevemos: [...] la estabilidad del Derecho es un presupuesto básico para generar un clima de confianza en su contenido. «El hombre -nos dice Helmut Coing- aspira siempre a crear situaciones e instituiciones duraderas bajo cuya protección pueda vivir; el hombre quiere sustraer su existencia a un cambio permanente, dirigirla por vías seguras y ordenadas y librarse del asalto constante de lo nuevo.» [...] La seguridad es el cariz que la vida entera del hombre toma cuando se desenvuelve en un Estado de Derecho. El alcance de la seguridad supone la realización plena de las garantías y los valores 36 del Estado de Derecho. Almiro do Couto e Silva destaca a situação que começou a firmar o entendimento acerca da proteção à confiança, que, como já comentado anteriormente acerca da própria segurança jurídica, adveio da jurisprudência alemã: O princípio da proteção à confiança começou a firmar-se a partir de decisão do Superior Tribunal Administrativo de Berlim, de 14 de fevereiro 1956, logo seguida por acórdão do Tribunal Administrativo Federal (BverwGE), de 15 de outubro de 1957, gerando uma corrente contínua de manifestações no mesmo sentido. Na primeira dessas decisões tratava-se de anulação de vantagem prometida a viúva de funcionário, caso se transferisse de Berlim Oriental para Berlim Ocidental, o que ela fez. Percebeu a vantagem 35 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: Dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição do retrocesso social no direitos constitucional brasileiro. In Constituição e Segurança Jurídica: Direito Adquirido, Ato Jurídico Perfeito e Coisa Julgada - Estudos em Homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. p. 114. 36 “[...] a estabilidade do direito é um pressuposto básico para gerar um clima de confiança em seu conteúdo. „O homem – nos disse Helmut Coing – aspira sempre criar situações e instituições duradouras sob cuja proteção possa viver; o homem quer subtrair de sua existência a mudança permanente, dirigir-la por vias seguras e ordenadas, e livrar-se do ataque constante do novo‟. [...] A segurança é o curso que a vida inteira do homem toma quando se desenvolve num Estado de Direito. O alcance da segurança supõe a realização plena das garantias e os valores do Estado de Direito.” (Tradução livre do autor). In. BRASIL. Tribunal de Contas do Distrito Federal. Ementa: Aposentadoria voluntária, com proventos integrais. Instrução sugere a legalidade. MP dissente, propondo a ilegalidade. Considerações acerca do princípio da segurança jurídica e da necessidade de harmonização dos julgados deste Tribunal de Contas. Voto pelo registro da concessão. Processo nº (A): 1392/1997, Tribunal de Contas do Distrito Federal, Apenso nº: 061.022.827/1993. Origem: Secretaria de Saúde. Assunto: Aposentadoria. Sessão Ordinária nº 3656 de 30/04/2002. Publicado no Diário Oficial do Distrito Federal de 13/05/2002, p. 15 a 36 Internet. Disponível em <http://www.jacoby.pro.br/votos/psj.html>. Acesso em 15/07/2009. 40 durante um ano, ao cabo do qual o benefício lhe foi retirado, ao argumento de que era ilegal, por vício de competência, como efetivamente ocorria. O Tribunal, entretanto, comparando o princípio da legalidade com o da proteção à confiança, entendeu que este incidia com mais força ou mais peso no caso, afastando a aplicação 37 do outro. Ainda mais perceptível é a direção tomada pela jurisprudência tedesca, quando, conforme o mesmo autor acima citado, o Tribunal Federal Constitucional reconheceu a proteção à confiança como princípio de valor constitucional. Consideramos impossível pensar no homem sem segurança, mesmo porque, em termos primitivos, segurança tem a ver sobrevivência. Modernamente quando o cidadão toma qualquer decisão, está aí incutida a noção de que essa é destinada à permanência, logo à estabilidade, à segurança. José Afonso da Silva fala em uma condição da segurança jurídica, que aqui entendemos como sua esfera subjetiva, afirma o professor que: “Uma importante condição de segurança jurídica está na relativa certeza de que os indivíduos têm de que as relações sob o império de uma norma perduram ainda quando tal norma seja substituída”38. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal tem posição clara, que aqui será representada pelo posicionamento do Ministro Celso de Mello no Mandado de Segurança nº 27.962/DF: “EMENTA: DECISÃO JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO. INTEGRAL OPONIBILIDADE DESSE ATO ESTATAL AO RIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE DE DESCONSTITUIÇÃO, NA VI ADMINISTRATIVA, DA AUTORIDADE DA COISA JULGADA. EXISTÊNCIA, AINA, NO CASO, DE OUTRO FUNDAMENTO CONSTITUCIONALMENTE RELEVANTE: O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. A BOA FÉ E A PROTEÇÃO DA CONFIANÇA COMO PROJEÇÕES ESPECÍFICAS DO POSTULADOS DA SEGURANÇA JURÍDICA. MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. SITUAÇÃO DE FATO – JÁ CONSOLIDADA NO PASADO – QUE DEVE SER MANTIDA EM RESPEITO À BOA FÉ E À CONFIANÇA DO ADMINISTRADO, INCLUSIVE DO SERVIDOR PÚBLICO. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO EM TAL CONTEXTO, DAS SITUAÇÕES CONSTITUÍDAS NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRECEDENTES. DELIBERAÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO QUE IMPLICA SUPRESSÃO 37 COUTO E SILVA. Almiro do. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança no Direito Público Brasileiro ... p. 07. 38 SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 431. 41 DE PARCELA DOS PROVENTOS DO SERVIDOR PÚBLICO. CARÁTER ESSENCIALMENTE ALIMENTAR DO ESTIPÊNDIO FUNCIONAL. PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. [...] - Os postulados da segurança jurídica, da boa fé objetiva e da proteção à confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público (RTJ 191/922, Rel.p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES), em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos princípios sobre comportamentos de qualquer dos Poderes ou Órgãos do Estado (os tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas no passado. 39 [...]” No caso, o Pretório excelso novamente expôs o princípio da segurança jurídica, destacando a proteção à confiança. É importante mencionar o aresto pelo fato dele explicitar a proteção à confiança, assim como sua aplicação à todas as relações jurídicas e sua oponibilidade ao Poder Público, denotando que o direito aqui é subjetivo. 1.4 Segurança jurídica e constituição Conforme já exposto, a segurança jurídica tem caráter constitucional ainda que não tenha menção textual direta, mas sim a garantia de diversas de suas facetas, sem prejuízo de menções infraconstitucionais. O efeito não seria diferente se houvesse menção da segurança jurídica no texto constitucional, mas certamente os estudos sobre o tema seriam maiores, deixando mais frutos ao constitucionalismo. 39 BRASIL. Supremo Tribunal Federal Mandado de Segurança nº 27.962/DF. Ementa: Decisão judicial transitada em julgado. integral oponibilidade desse ato estatal ao tribunal de contas da união. Conseqüente impossibilidade de desconstituição, na vi administrativa, da autoridade da coisa julgada. existência, ainda, no caso, de outro fundamento constitucionalmente relevante: o princípio da segurança jurídica. A boa fé e a proteção da confiança como projeções específicas dos postulados da segurança jurídica. Magistério da doutrina. situação de fato – já consolidada no passado – que deve ser mantida em respeito à boa fé e à confiança do administrado, inclusive do servidor público. Necessidade de preservação em tal contexto, das situações constituídas no âmbito da administração pública. Precedentes. Deliberação do tribunal de contas da união que implica supressão de parcela dos proventos do servidor público. Caráter essencialmente alimentar do estipêndio funcional. Precedentes. Medida cautelar deferida. Impetrante: Sued Teixeira Tavares (representado por Therezinha de Jesus Marilia Almeida Tavares). Impetrado: Presidente do Tribunal de Contas da União. Relator: Min. Celso de Mello. Decisão liminar. Decisão 24/04/2009. Divulgação 29/04/2009 - DJE nº 79. 42 Em que pesem os poucos estudos focados diretamente na segurança jurídica, com um número um pouco maior que o abordam indiretamente, como já é visível pelas citações realizadas ao longo do presente texto, fica evidente que o instituto pode ser exposto, mas também deve ser situado no direito constitucional. Não se concebe que algo advenha da proteção constitucional sem que seja situado entre as formas de proteção da Lei Maior. Apesar de não haver uma padronização, nem mesmo sejam classificadas as formas de proteção constitucional, sem que isso diminua a influência das constituições, já que seria discussão meramente teórica, sem efeito prático, visualizamos a segurança jurídica como instituto de tamanha importância que permeia a constituição em diversos meios, já que sem segurança não se concebe tutela estatal, ela deve estar presente sempre e em todas as normas. Assim, considerando perspectivas filosóficas, jurídicas, e sociais, e aplicando-as ao instituto da segurança jurídica, o situamos dentre as normas constitucionais, sob o ponto de vista da aplicabilidade, a fim de conferir ao presente estudo o caráter mais prático possível, como garantia, como direito fundamental e como princípio. 1.4.1 Segurança como garantia. É importante deixar claro que a segurança não se consubstancia em um direito como os outros, mas em uma garantia que se presta a ser base para o exercício de direitos. Não estamos dizendo que o patrimônio jurídico do cidadão parte da segurança, mas sim que sem ela nenhum patrimônio se sustenta, já que estaria exposto ao arbítrio de quem detivesse o poder, sujeito, pois, à violações e mesmo ao esbulho ou perda a qualquer tempo e modo. Mesmo a moderna noção de Estado já engloba a segurança entre seus 43 caracteres, inserida nas idéias de soberania, legalidade, entre outras, podendo isso ser afirmado com base nas idéias de Jorge Miranda: A moderna idéia de estado tem o seu expoente na idéia de soberania [...] A soberania implica ainda imediatividade ou ligação directa entre o Estado e o indivíduo, ao contrário do que sucedia no sistema feudal [...] Para isso o poder – por definição não apenas concentrado no Rei mas também centralizado – dota-se dos necessários órgãos e serviços [...] é uma administração burocrática em sentido moderno (profissionalizada e hierarquizada) que progressivamente se substitui à administração feudal (entregue a titulares por direito próprio); e são novas funções que ela vai propor 40 [...] Interpretamos a lição do mestre lusitano, sob o prisma da segurança, como demonstração de que a noção de soberania e a organização estatal moderna do poder se destinaram a trazer mais estabilidade e previsibilidade ao Estado conferem maior segurança a todos. Desde o absolutismo, houve um refinamento no exercício do poder, que evoluiu no sentido dos interesses de seus novos detentores ao longo do tempo, chegando ao Estado de Direito, que, novamente segundo Jorge Miranda, pode ser conceituado como: Estado de Direito é o estado em que, para garantia dos direitos dos cidadãos, se estabelece juridicamente a divisão do poder em que o respeito pela legalidade (seja mera legalidade formal, seja – mais tarde – a conformidade com valores materiais) se eleva a critério de 41 ação dos governantes. A segurança tem que permear todo o sistema jurídico de maneira a permitir que todas as relações, proporcionalmente, contemplem a razoável expectativa das partes em que o resultado de suas ações gerem conseqüências previsíveis, à partir da regulamentação existente. São cada vez menos aceitáveis teorias autocráticas ou isolacionistas, em que a legislação muda ao sabor dos fatos, hoje se buscam regimes políticos estáveis, que ofereçam estabilidade e previsibilidade em troca de 40 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo I. 6. ed. Coimbra: Coimbra, 1997. pp. 6971. 41 MIRANDA, Jorge. Manual de direito ... p. 86. 44 investimentos e desenvolvimento. A segurança oferecida pelo Estado, portanto, compreende toda a função estatal, inclusive, por óbvio, a relação com os administrados, materializando-se aqui o direito à segurança jurídica. Para fins de localização da segurança jurídica como garantia contemplada, ainda que indiretamente, pela Constituição Federal, cumpre situar, dentro da mais aceita das teorias, como direito fundamental de terceira geração, o que denota seus caracteres garantista e coletivo. Fundamentando o entendimento exposto, ainda que não faça menção à segurança jurídica, a ela se aplicam os argumentos de Ingo Wolfgang Sarlet: [...] quando nos deparamos com os direitos fundamentais de terceira dimensão (direitos de solidariedade ou fraternidade), os quais tiveram sua titularidade, ao menos em princípio, entregue à coletividade (ou entes coletivos), e não à pessoa individual, como demonstram os exemplos do direito à paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo justamente esta titularidade coletiva que costuma ser utilizada como critério básico para estabelecer a distinção entre 42 estes direitos e os das duas dimensões anteriores [...] Aqui se reforça a opção do presente trabalho em considerar o direito à segurança jurídica em suas dimensões objetiva e subjetiva, e não como dois direitos separados (segurança jurídica e proteção da confiança), já que o bem jurídico tutelado é o mesmo e a titularidade do direito é coletiva, sem prejuízo do exercício na esfera individual, não há motivo para a cisão. Mesmo que não haja referência expressa, a característica de titularidade coletiva, assim como a limitação ao poder estatal sobre o cidadão, sem dúvida, situam a o direito à segurança jurídica na chamada “terceira dimensão” dos direitos. Numa perspectiva filosófica, identificamos a idéia de segurança como garantia, com arrimo na origem do Estado como decorrente de um “contrato social”, à qual já fizemos referência, sendo tal garantia fornecida pelo direito, conforme lição de Gustav Radbruch, quando trata das três concepções de direito: 42 SARLET. Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica... p.171. 45 Para a concepção individualista os valores culturais e os colectivos acham-se, portanto, ao serviço de valores da personalidade [...] O Estado e o direito não passam de instituições para a segurança e promoção do bem estar dos indivíduos. [...] a doutrina individualista serve-se de preferência, para materializar a sua concepção, da idéia de contrato [...] o estado ideal não pode deixar de ser pensado como um contrato entre os seus membros. A idéia de contrato não exprime de modo algum um «facto», mas apenas uma «idéia racional» que deve ter unicamente esta finalidade prática: obrigar todos os legisladores a fazerem suas leis como se estas resultassem da vontade geral e colectiva do povo e como se todos os súbditos, na qualidade de cidadãos, pudessem considerar-se participantes na 43 formação dessa vontade. [...] Vê-se que os legisladores, para cumprir adequadamente sua função, devem considerar a vontade dos cidadãos para redigir as leis, o que parece um pressuposto básico vem sendo diuturnamente ignorado, o que viola a segurança do próprio Estado. Com efeito, na democracia representativa, os partidos políticos se apresentam como defensores de certos valores, atraindo para si os cidadãos, e seus votos, simpatizantes daquelas idéias e princípios. Logo, a representatividade, e democracia, por conseqüência, se baseiam na confiança depositada nos representantes eleitos, conforme explica o próprio Radbruch: A materialização destas concepções só nos aparece, porém, nos partidos políticos. É, com efeito, na política que todas estas concepções, à exceção da transpersonalista, encontram a sua expressão última. O pensamento duma cultura objectiva não se exprime, em política, num programa determinado, mas constitui um sentimento vital, como é porventura aquele que se manifesta na palavra «comunidade» [...] O instinto de conservação de todos os povos que querem viver, leva-os a exigirem que o estado sirva seus 44 interesses, tanto os individuais como os colectivos [...] Fica patente a lição de que o Estado que não atende aos interesses dos indivíduos compromete sua própria segurança, corroendo as bases sobre as quais se construiu a estrutura estatal. Na organização atual, se evidencia a contradição de um Estado que existe principalmente para prover segurança e não consegue sequer manter os responsáveis pelos seus cargos de comando 43 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de L.Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado. 1979. pp. 130-132. 44 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. ... pp. 136-137. 46 fiéis aos princípios básicos do próprio Estado, causando diversos abalos que fragilizam a democracia, as instituições e própria organização estatal. Cabral de Moncada, ao prefaciar a 1ª edição da citada obra de Radbruch, sintetiza os ensinamentos acima, que reproduzimos à título de conclusão do presente raciocínio: [...] a idéia de direito, segundo ele [Radbruch], é constituída por três elementos distintos e heterogêneos: a idéia de justiça, a do fim último para que ele é meio, e a de segurança ou paz social de que ele é intrumento. A primeira corresponde ao momento mais formal e, portanto, mais universal do direito; a segunda, ao seu momento material ou de conteúdo ético e político; a terceira, enfim, ao seu momento positivo, como direito estável e certo [...] Fiel à sua doutrina agnóstica dos valores, tudo o que faz é registrar essas contradições e exortar-nos a que as solucionemos, tomando uma decisão 45 consentânea com nossa própria crença [...] Dessa forma, segurança é garantia, tanto de pacificação social, quanto de longevidade da organização vigente, a estabilidade oferecida pela segurança, tanto a jurídica quanto em de outras searas, requer reforços constantes, a fim de que seja atendida a finalidade do estado, que na teoria contratualista é a busca de segurança em troca de liberdade. A simples existência de um Estado de Direito representa a consagração da segurança jurídica, garantia por natureza, sem a qual não se pode falar em considerá-la princípio da referida espécie de Estado. A linha aqui seguida é também comentada por Arthur Kaufmann que no azo faz a defesa das idéias de Radbruch contra os que o acusam de ter modificado seu pensamento em conseqüência do regime nacional-socialista alemão: Na literatura sobre Radbruch, deflagrou uma intensa discussão sobre se na sua vida e, sobretudo, na sua filosofia do direito houve uma «inversão», porventura até uma «experiência de Damasco», ou se as indubitáveis transformações que nele se operaram, e que ele aliás nunca negou, foram expressões de uma evolução contínua. Indo directamente ao assunto: O outrora «positivista» Radbruch, impressionado com o Estado de não direito nazi, ter-se-á tornado um «jusnaturalista»? Há pontos na obra e Radbruch que poderiam servir de fundamento a uma tal inversão. Mas também não é difícil encontrar citações que 45 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. ... pp. 29-30. 47 atestam o contrário. Já em 1919, Radbruch apostrofara o positivismo de «idolatria do poder» [...] Em contrapartida, a impressão causada pelo Estado de não direito nacional-socialista levou Radbruch a desligar-se totalmente do positivismo; ele nunca sacrificou a segurança jurídica como elemento da idéia de direito a um vago conceito da idéia de direito natural. [...] aquilo que considera e reconhece com direito natural são [...] certos direitos subjectivos do homem, que se impõem à legislação estadual como direitos indisponíveis, não obstante serem também historicamente referenciados. No fundo, trata-se daquilo a que nós chamamos 46 direitos fundamentais ou direitos humanos. Paulo Bonavides trata de princípios como elementos sobre os quais se alicerçam os ordenamentos jurídicos. Vislumbramos na lição elementos para considerar que a segurança jurídica, entendida enquanto garantia, tem ligação com a noção de princípio: [...] As novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais. Assinala Bobbio que uma nova fase – que se nos afirma neopositivista e precede o positivismo contemporâneo – sobre a natureza, a validade e o conteúdo desses princípios se instaura a partir da ocasião em que o art. 38 do estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional declarou, em 1920, „os princípios gerais do Direito, reconhecidos pelas nações civilizadas‟, como aptos ou idôneos a solverem controvérsias, ao lado dos tratados e dos costumes internacionais; fórmula essa consagrada em incorporada literalmente 1945 pelo art. 38, 1 , “c”, do estatuto da Corte Internacional de Justiça e, a seguir, com ligeiras variações, pelo art. 215, 2, do tratado que instituiu em 1957 a Comunidade Econômica 47 Européia. [...] A lição acima deixa clara a idéia, que hoje ainda vigora, de que os princípios têm valor sobre o ordenamento jurídico positivo, logo, o mesmo acontece com o princípio da segurança jurídica, de modo a que a garantia da segurança jurídica oferecida pelo princípio está inserida no ordenamento e, portanto, é necessária e presente. 46 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried; HESPANHA, António Manuel. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneo. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. pp. 136-137. A “experiência de Damasco” é uma alusão à passagem bíblica que descreve a experiência de S. Paulo à caminho de Damasco, quando lhe aparece Jesus ressuscitado e abre caminho para uma mudança radical na vida do então Saulo, indicando-o sua vocação. Atos dos Apóstolos, capítulo 9, versículos 1-19. Nota do autor. 47 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. pp. 264265. 48 Destacamos que a garantia deve ser observada tanto pelos cidadãos quanto pelo Estado, logo, a segurança jurídica, em suas dimensões objetiva e subjetiva, se impõe a todas as atividades desenvolvidas dentro do Estado de Direito, seja pelo caráter de garantia, seja pela interpretação de seu caráter principiológico. No direito constitucional positivo brasileiro, os princípios têm presença marcante, notadamente no tocante aos direitos e garantias fundamentais, ainda que tenhamos a tendência de buscar regras para basear nossas demandas, os princípios são de cabal importância. Virgílio Afonso da Silva, tratando de princípios e normas, se filia à corrente também defendida por Robert Alexy entre outros, ao compreender os princípios como “mandamentos de otimização”, segundo os quais “princípios são normas que exigem que algo seja realizado na maior medida possível diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes”.48 Com o conceito reproduzido acima, fica patente a compreensão da segurança jurídica enquanto princípio e, sobretudo, como garantia, a ser realizada “na maior medida possível” em favor de toda a ordem jurídica, seja na esfera dos princípios, dos direitos fundamentais, das obrigações do Estado, dos direitos dos cidadãos, da estabilidade e segurança social. 1.4.2 Segurança como princípio Analisando a efetividade do direito, a força das decisões judiciais, e mesmo a força do direito em si, simbolizada pela espada da deusa Themis, símbolo da justiça, cumpre entender que se constitui o direito num dos meios capazes de assegurar a segurança aos cidadãos. Não nos cabe abordar a segurança política ou a segurança social, mas nos propusemos a expor alguns 48 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. pp. 46. 49 pontos relevantes pertinentes à segurança jurídica, dentre os quais a segurança trazida pelo direito, o que passamos a fazer: De início, relembramos o conceito de princípio, agora citando Juarez Freitas, que fala em “princípios fundamentais”, conceituando-os como: [...] os critérios ou as diretrizes basilares do sistema jurídico, que se traduzem como disposição hierarquicamente superiores, do ponto de vista axiológico, às normas estritas (regras) e aos próprios valores (mais genéricos e indeterminados), sendo linhas mestras de acordo com as quais guiar-se-á o intérprete quando se defrontar com as 49 antinomias jurídicas[...] Ainda tratando dos princípios, o mesmo autor os situa no ordenamento jurídico, como “norteadores das relações de administração pública”: [...] encontram-se, afortunadamente, no mais das vezes, agasalhados de modo expresso, embora alguns se mostrem desvendáveis somente por inferência ou por desenvolvimento interpretativo. Expressos ou implícitos, não importa, merecem ser reconhecidos como os máximos vetores teleológicos para aplicação adequada e todas as normas, aqui tomadas em sentido largo 50 (englobando regras e princípios) [...] Apesar da lição acima reproduzida tratar da segurança jurídica e seus efeitos na seara administrativa, entendemos não haver nenhum problema em ampliá-la ao direito como um todo, reafirmando a importância dos princípios para a efetividade de todo o sistema jurídico, que foi construído à sua [dos princípios] luz. Nesse diapasão, ainda citando Juarez Freitas, trazemos sua diferenciação entre princípios e normas, na qual as normas ou regras estritas são preceitos mais restritos e axiologicamente inferiores aos princípios. As normas são hábeis a harmonizar e conferir concretude aos princípios fundamentais, não debilitando-os ou lhes subtraindo eficácia direta e imediata, 49 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 4. ed. rev. e ampl., São Paulo: Malheiros, 2004. p. 56 50 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2004. p. 24. 50 devendo, em verdade, serem aplicadas as normas em conformidade com os princípios que lhes nortearam a elaboração.51 Na relação entre direito e segurança, podemos destacar a obediência à ordem jurídica, legalidade e a ação estatal, no que é flagrante a necessidade do Estado de em todas as suas condutas observar a legalidade, isso é segurança por meio do direito, é a legalidade ditando os rumos do Estado, estabelecendo o meio pelo qual os cidadãos podem conhecer os rumos da atividade estatal, estabelecendo uma relação previsível e segura com o Poder Público e na regulamentação das relações privadas. Havendo estabilidade, esta fundada na legalidade, é indubitável que os cidadãos tenham segurança de que os rumos que tomarem devem estar em conformidade com o que permite ou proíbe o direito, sendo a estabilidade um dos fatores que podem levar à sensação de segurança e à efetividade de tal sentimento, necessários à consecução dos objetivos estatais e um dos grandes anseios da sociedade. Também podemos afirmar que o sistema jurídico vigente impõe a possibilidade de controle jurisdicional das atividades estatais, assim como de qualquer ato que ameace ou lese direitos52, novamente o direito limita o arbítrio do Estado e torna possível que o cidadão eventualmente prejudicado busque a tutela judicial. Estabelecer que quaisquer atos devam observar a legalidade e, ainda assim, submetê-los à possibilidade de apreciação judicial não deixa dúvidas quanto à intenção de prevenir a violação à legislação, assim como efeitos reflexos indesejados aos cidadãos. 51 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 4. ed. rev. e ampl., São Paulo: Malheiros, 2004. p. 58. 52 Artigo 5º, inciso XXXV, Constituição Federal. 51 O cidadão tem no direito, nos princípios e normas jurídicas, a garantia de que a ação estatal não deverá lhe causar danos, evidente que não é possível atender à todos, haverão beneficiados e prejudicados, mas isso não poderá violar os demais princípios constitucionais, como o da razoabilidade, moralidade, impessoalidade, etc. Dessa forma, os administrados dispõem da segurança de, ainda que possam haver mudanças, elas não poderão ser conduzidas de maneira a prejudicar os administrados deliberadamente, sofrendo os controles estatuídos para o processo legislativo, assim como na seara administrativa e ainda tendo o controle jurisdicional. A separação dos poderes, princípio através do qual o Estado se organiza e expõe a divisão de atribuições, tornando visível aos cidadãos a quem se deve recorrer para cada assunto, deixando o cidadão seguro quanto à competência para agir, prevenindo a subversão da legalidade e a contradição dos atos em todas as esferas. Cumpre deixar claro que a separação dos poderes decorre do Estado de Direito, o qual também enseja, e até pressupõe, a efetivação dos direitos e garantias fundamentais, dentre os quais a segurança jurídica. No mesmo sentido ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, que considera a segurança jurídica um princípio decorrente do próprio Estado de Direito: [...] a ordem jurídica corresponde a uma quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo, pois, de antemão, o que devem ou o que podem fazer, tendo em vista as ulteriores conseqüências imputáveis a seus atos. O Direito propõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social, Daí o chamado princípio da „segurança jurídica‟, o qual, bem por isto, se não o mais importante dentre todos 52 os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais 53 importantes entre eles. Na lição transcrita acima, a segurança jurídica é própria do Estado de Direito, logo, a segurança é tida pelo mestre citado como uma garantia que vem diretamente do direito. Entendemos que o direito entrega à sociedade uma forma de segurança, a segurança dos princípios que decorrem diretamente o Estado de Direito, sem o que teríamos meramente a arbitrariedade, princípios que indicam a elaboração de normas no sentido de assegurar a segurança almejada pelos cidadãos. Sobre a segurança, enfatizando a seara administrativa, ensina Frederico Castillo Branco: [...] em fin, nuestros tribunales de justicia proclaman com igual celo, según venimos exponiendo, el principio de protección de confianza legítima y el de buena fe. Conjunta o separadamente, ambos son recogidos para, al fin y la posdre, proteger situaciones jurídicas legítimas en que la actuación de la Administración no ha respondido a lo que de ella se esperaria, donde ésta se ha contradicho en su relación con los cuidadanos o infrigindo la confianza que en ella se había depositado. Sin embargo, hay que reiterar que dicha aplicación se ha realizado, en la mayoría de las ocasiones, com sumo desconcierto, con una aplicaciónsimultánea de mbos conceptos a situaciones fácticas idénticas y sin deslindar suficientemente el 54 campo de acción de cada uno de ellos [...] A segurança de que falamos não é apenas a segurança física, mas principalmente a segurança de que o ordenamento jurídico tomará um rumo previsível, de maneira a que os cidadãos tenham a possibilidade de que as diretrizes de ação do Estado não mudem inadvertidamente, ou conforme o mandatário à frente do Poder Executivo, além da normatividade concretizando a sociedade eivada dos valores manifestos nos princípios. 53 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21. ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 119. 54 CASTILLO BLANCO, Frederico. apud MAFFINI, Rafael. Princípio da proteção substancial da confiança no direito administrativo brasileiro. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. p. 58. 53 1.4.3 Segurança como direito fundamental. Além de garantia e princípio, a segurança jurídica se reveste do caráter de norma, a qual tem status inferior a um princípio do ponto de vista da abrangência, tendo, por outro lado, por ser positivada, eficácia mais imediata que o princípio. Importante deixar claro que as teorias de Alexy e Dworkin são as duas mais discutidas em matéria de diferenciação entre princípios e normas, ainda que a doutrina não seja pacífica, é possível notar que Alexy tem sido melhor aceito pelos constitucionalistas modernos, representando também a corrente a que nos filiamos para fins do presente estudo. O mestre alemão traça a distinção entre princípios e regras da seguinte forma: El punto decisivo para La distinción entre reglas y principios es que los principios son normas que ordenam que algo sea realizado en la mayor medida posibile, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que se caracterizan porque pueden cumplirse en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades jurídicas se determina por los principios e reglas opuestos. En cambio, las reglas son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida, entonces debe hacerse exactamente lo que ellla exige, ni más ni menos. Por lo tanto, las reglas, contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y principios es cualitativa 55 y no de grado. Novamente destacamos que não se está a fazer a apologia da segurança jurídica como algo imutável ou prevalente sobre os demais princípios, mas sim compreendemos que é necessário um sopesamento dos 55 “O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que se caracterizam porque podem cumprir-se em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades jurídicas se determina pelos princípios e regras opostos. Por outro lado, as regras que apenas podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então deve-se fazer exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras, contem determinações no âmbito do fática e juridicamente possível. Isso se significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau.” (Tradução livre do autor). ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Carlos Bernal Pulido. 2. ed. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2008. 54 princípios, considerando a segurança jurídica como um deles, nas palavras de Robert Alexy: Para juzgar acerca de la cuestión de si es pérdida mínima de seguridad jurídica es aceptable, hay que tomar en cuenta que la seguridad jurídica es un valor importante pero no el único. El valor de la seguridad jurídica tiene que ser sopesado con el da justicia material. La fórmula radbruchiana adopta una evaluación que básicamente confiere prioridad a la seguridad jurídica y sólo en casos extremos invierte es jerarquía. A esto puede oponerse sólo quien considere que la seguridad jurídica es un princípio absoluto algo que como toda la adhesión a un princípio absoluto, contiene una 56 dosis de fanatismo. A segurança jurídica tem lugar no ordenamento jurídico juntamente com os demais princípios, pregando a hermenêutica que princípios não se excluem, mas sim se harmonizam, buscando o equilíbrio e a máxima efetividade da Constituição. Entendendo os princípios como mandamentos mais abstratos, aplicamos a mesma premissa para a segurança, que é pouco tutelada em matéria de normas, mais específicas e direcionadas, entretanto, nada disso dissocia a segurança jurídica do caráter de direito, posto entre os direitos e garantias fundamentais.57 Não se trata o princípio da segurança jurídica, conforme já exposto, de inovação legal, ao contrário, é correto que a Constituição, como norma máxima que deve regular todos os aspectos do Estado, aborde os temas de forma menos detalhada, detalhamento esse que cabe à lei. Reconhecemos que a legislação brasileira é construída de maneira pouco metódica ou mesmo ilógica, não tendo referenciais tão claros e bem delimitados quanto desejável, o 56 “Para julgar sobre a questão de se é aceitável uma perda mínima de segurança jurídica, é preciso levar em conta que a segurança jurídica é um valor importante mas não o único. O valor da segurança jurídica tem que se sopesado com o da justiça material. A fórmula radbruchiana adota uma avaliação que basicamente confere prioridade à segurança jurídica só em casos extremos se inverte a hierarquia. A isso se opõe somente quem considere que a segurança jurídica é um princípio absoluto, algo que como toda adesão a um princípio absoluto, contém uma dose de fanatismo.” (Tradução livre do autor). ALEXY. Robert. El concepto y la validez del derecho. Trad. Jorge M. Seña. Barcelona: Editorial Gedisa, 1994. p.58. 57 Art. 5º, inciso XXXVI, CF. 55 que se torna um problema ainda maior num texto constitucional prolixo, altamente regulamentador e seguidamente ferido por emendas nem sempre condizentes ou comprometidas com a aplicação técnica da Constituição. Juarez Freitas manifesta a preocupação de quem estuda o ordenamento jurídico e a história do Brasil, em que as ameaças à segurança jurídica e à democracia se apresentam com uma freqüência preocupante, provada pela quantidade de golpes e ditaduras vividas pelo Estado brasileiro, além da modificação de regimes jurídicos e fragilização de direitos conquistados ao longo do tempo: Em nosso contexto só recentemente começou a se emprestar a devida tenção ao sentido altamente positivo da confiabilidade jurídico-administrativa como requisito de estabilidade institucional e de obtenção do chamado „grau de investimento‟. Bem por isso, os controladores, em sinergia, precisam atuar como avalistas dessa confiança legítima na voz do Estado-Administração, vigiando para que a hobbesiana desconfiança generalizada – que redunda na guerra de todos contra todos – arrefeça e ceda lugar à cultura da credibilidade, na qual as promessas são cumpridas, ou seja, a racionalidade dialógica prepondera sobre o risco de colapso sistêmico. Com efeito, sem a poderosa entronização do princípio da confiança legítima nas relações da administração,até a estabilidade constitucional corre risco. Lastimavelmente, o constante ataque à Lei Maior, banalizando o processo e reforma, em nada contribui para o enraizamento cultural do princípio em comento, eis que, não raro, é modalidade de vilipêndio das energias constitucionais, enquanto 58 tardam as reformas relevantes. J. J. Gomes Canotilho expõe subprincípios da segurança jurídica, que expomos para ilustrar a necessidade de aplicação do princípio maior nas relações, com a segurança permeando todas as relações: A idéia de segurança jurídica reconduz-se a dois princípios materiais concretizadores do princípio geral de segurança: princípio da determinabilidade de leis expresso na exigência de leis claras e densas e o principio da proteção da confiança, traduzido na exigência de leis essencialmente estáveis, ou, pelo menos, não lesivas da previsibilidade e calculabilidade dos cidadãos 59 relativamente aos seus efeitos jurídicos. 58 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. Refundida e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 96. 59 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. pp. 371-372. 56 A Constituição protegeu a segurança jurídica, elencando várias de suas garantias entre os direitos e garantias fundamentais, ainda que não usando a expressão literal, mas claramente protegendo o núcleo do instituto, o que simplesmente ficou expresso na legislação infraconstitucional, logo, coube à Lei pormenorizar o que já existia na Constituição, cumprindo seu papel. O reconhecimento legislativo da segurança jurídica, ainda pequeno em comparação à sua necessidade, tende a crescer juntamente com a legislação, pelo simples fato de que quanto mais situações sejam reguladas, maiores são as possibilidades de violação da segurança e da confiança que os cidadãos depositem nos institutos como estão, e não como venham a ficar após a legislação superveniente. Ademais, com a estabilidade econômica que a sociedade experimenta desde meados da década de 1990, os cidadãos brasileiros começam a pensar em prazos maiores, necessitando de mais segurança, já que se tornam vulneráveis às mudanças e ataques à seus direitos e expectativas por períodos maiores. Os doutrinadores entendem indubitavelmente a segurança jurídica como direito fundamental, compreendê-la como o mínimo de previsibilidade necessária que o Estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, a respeito de quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas quais pode travar relações jurídicas válidas, eficazes e duradouras. A mera positivação da proteção ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e à coisa julgada seria capaz de levar o operador do direito à concluir pelo caráter de direito fundamental da segurança jurídica, entretanto, não é somente isso que força a conclusão. A natureza principiológica da segurança jurídica, que abarca as relações jurídicas em geral, confere ainda maior ênfase ao direito que o próprio princípio faz surgir: o de ter o cidadão a segurança nas suas relações amparadas no direito. 57 Interessante a idéia trazida por Bermejo Vera60, que pondera ter sido a segurança jurídica temperada ao longo do tempo, precisando que o Direito tivesse se convertido em fonte de insegurança para que a segurança jurídica tivesse sua importância mais pronunciada. No mesmo sentido, Ricardo Lobo Torres61 indica que a segurança jurídica, um valor abstrato na atual sociedade de riscos dos dias atuais, sai da seara dos direitos individuais, assegurados por normas legisladas, portanto uma segurança “legislada”, para ser uma segurança social e dos direitos difusos, flexibilizando todo o instituto. Também reproduzimos o entendimento de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que quase toma ares de conclusão ao tratar da mutação da segurança jurídica: O modelo aberto, diversamente, admitindo-se como uma conformação mista de princípios e preceitos, tal como é o brasileiro, embora perca em termos e segurança, reduzindo o dogmatismo, compensa-se por ser mais flexível, mais ágil, por permitir uma participação jurisprudencial mais ativa e, por isso, ser politicamente 62 mais duradouro [...] Logo, entendemos que o direito à segurança jurídica decorre não simplesmente da norma positivada, mas sim tem origem no próprio princípio. A segurança jurídica é um princípio, como tal precede a norma, logo, o direito à segurança jurídica já existia antes da norma que o positivou. Podemos afirmar, como já ventilado anteriormente, que o Estado traz na própria gênese a essência da segurança jurídica. Cabe, portanto, indicar a segurança jurídica como um valor, um pressuposto para o exercício dos demais direitos, como ensina Néstor Pedro Sagüés: El valor seguridad, como el de orden, es uno de los más apreciados por el constitucionalismo de la primera etapa, de tipo individualista liberal [...] Por lo demás, el concepto constitucional de seguidad há 60 BERMEJO VERA, José. El declive de La seguridad jurídica em el ordenamento plural. Madrid: Dijusa, 2005. p. 89. 61 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Vol. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 89. 62 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 82. 58 sido desarrollado (y ampliado) modernamente con nuevas perspectivas sobre su contenido [...] cabe distinguirse, por tanto, estas variables. a) SEGURIDAD DEL ESTADO. Ésta engendra competencias específicas para aquél (declaración de guerra, estado de sitio, etcétera). b) SEGURIDAD DE LAS PERSONAS. Ello, a su vez, genera en nuestra Constitución los seguientes derechos: a realizar lo no prohibido; a no hacer lo permitido; a contar con segurdad juridica y a que se les brinde seguridad pública. Puede sostenerse que el valor seguridad opera en el plexo de los derechos constitucionales como derecho fundante, en el sentido que si el sitema político no brinda seguridad interna y externa, y si los particulares no cuentan con reglas delimitatorias entre lo lícito y lo ilícito, ni tienen seguridad jurídica y seguridad pública, es practicamente impossible la realización de los demás derechos constitucionales. La seguridad, entonces, funciona a menudo como 63 pressupuesto de la práctica de los otros derechos. A conclusão de que o direito precede sim a norma positivada é pertinente, já que a Constituição e o ordenamento que a ela se submete são materializações que buscam concretizar o ideal do direito, os princípios, então, intentam materializar direitos contemplados pelos princípios, dando-lhes dimensão mais concreta e aplicável aos casos concretos. A compreensão de que a norma confere positividade aos direitos preexistentes é útil na medida em que o direito a segurança jurídica acompanhou ordenamentos jurídicos ao longo dos séculos, ainda que de maneira mais ou menos clara, mas sempre como uma garantia dos cidadãos, violada em certos períodos, mas em geral sendo observada. 63 “O valor segurança, como o de ordem, é uno dos mais apreciados pelo constitucionalismo da primeira etapa, de tipo individualista liberal [...] Ademais, o conceito constitucional de segurança foi desenvolvido (e ampliado) modernamente com novas perspectivas sobre seu conteúdo [...] cabe distinguirem-se, por tanto, estas variáveis. a) SEGURANÇA DO ESTADO. Esta da origem a competências específicas para aquele (declaração de guerra, estado de sítio, etcétera). b) SEGURANÇA DAS PESSOAS. Ele, por sua vez, gera na nossa Constituição os seguintes direitos: a realizar o não proibido; a não fazer o permitido; a contar com segurança jurídica y a que lês seja provida segurança pública. Pode-se sustentar que o valor segurança opera no sistema dos direitos constitucionais como direito fundamental, no sentido de que se o sistema político não oferece segurança interna e externa, e os particulares não contam com regras delimitadoras entre o lícito e o ilícito, não têm segurança jurídica e segurança pública, é praticamente impossível a realização dos demais direitos constitucionais. A segurança, então, funciona ao menos como pressuposto da prática dos outros direitos”. (tradução livre do autor). SAGÜÉS, Nestor Pedro. Elementos de derecho... pp. 63-64. 59 A garantia oferecida pelo Estado aos cidadãos, a segurança, está presente em todas as relações, deve ser base da atuação estatal, assim como ser contemplada na conduta dos cidadãos, oponível a todos, assim, a segurança jurídica assume ares de um direito geral, que assiste a todos os administrados, assim como se impõe à administração. A generalidade e importância da segurança jurídica, permeando as relações e sendo essencial à vida em comunidade a alçam ao patamar de direito fundamental, inafastável do ordenamento jurídico, razão pela qual é, conforme a organização da Constituição de 1988, um direito fundamental e mais, uma cláusula pétrea. 60 2. Aspectos da ausência de segurança jurídica A segurança jurídica, como já demonstrado, tem sua importância no plano constitucional na medida em que se trata de um princípio que permeia toda a atividade estatal, além de ser inafastável pela sua natureza de componente do Estado de Direito, o é por ser positivado entre as cláusulas pétreas. Conquanto pouco estudado, o princípio se apresenta como basilar para a consecução dos objetivos estatais desejados pelos cidadãos. Em muitos casos, a segurança jurídica sofre violações ou é fragilizada, não sendo observada em nome de interesses pessoais, de determinada classe ou mesmo da oposição entre os interesses dos cidadãos e os do Estado. Ocorre que a organização estatal, especialmente no Brasil, está em constante processo de mudança, com a acomodação das estruturas de poder e das instituições, o que, no caso brasileiro, redunda num desequilíbrio institucional, que é fato histórico. O dito desequilíbrio das instituições gera fragilidades e contradições que acabam por trazer diversos fatos, atitudes, ou mesmo normas, entre outros subprodutos, cujo efeito é uma ação estatal no sentido da insegurança. É fragilizada a segurança jurídica em ambas as suas dimensões, sendo expostos diversos aspectos que evidenciam a insegurança trazida pela atuação estatal em desconformidade com os objetivos decorrentes do contrato social, segundo o qual os cidadãos trocaram parte de sua liberdade pela segurança ofertada pelo ente coletivo. O momento social é de convulsão, o que torna ainda mais necessária a interferência estatal no sentido da segurança, o que nem sempre acontece. 61 2.1 Emendas constitucionais e legislação casuística Iniciando a discussão sobre as ameaças e danos causados à segurança jurídica, posto que já estabelecidos os limites básicos do que seja tal princípio, é salutar falar sobre o processo que atua diretamente abaixo do poder constituinte originário, que modifica sua obra, sendo último resquício da constituinte: o poder constituinte derivado, ou reformador. Delimitando o poder constituinte em si, podemos estabelecer que é poder que delimita o Estado e o organiza. Tem-se que o poder constituinte, por natureza, é originário e ilimitado, ele gera o Estado como passará a ser conhecido e organizado, existe em razão da necessidade de formar um estado de direito, seja por que forma, institutos, premissas ou princípios forem. Esclarecemos que nem sempre se pensou dessa forma, podemos afirmar que o poder constituinte sempre existiu, de fora mais ou menos rudimentar ao longo do tempo, se sofisticando ao longo da história, mas sua teorização ganhou corpo na França pós-revolucionária, com Sieyès. Adaptando a teoria do poder constituinte ao regime representativo, como ensina Paulo Bonavides64, Sieyès tratou de moldar sua teoria com uma fórmula que impregnou os estudos posteriores; o exercício por representantes especiais (a Convenção), vedada a atuação em outras tarefas do encargo dos poderes constituídos. Contudo, não existe apenas o poder constituinte originário, o qual, cumprida sua função, deixa de ser necessário, contudo, não é possível que o Estado permaneça inerte diante das mudanças sociais, inexorável que é processo evolutivo. Diante dessa premissa, o poder constituinte originário deixa aberta a possibilidade de modificar o fruto de seu trabalho, a Constituição, a 64 BONAVIDES, Paulo. Curso... p. 145. 62 parcela de poder ativa que resta ao futuro é o poder constituinte derivado, ou reformador, o qual tem a tarefa de modificar a Constituição, onde for permitido pelo poder originário, conforme a necessidade. Esse poder derivado não tem as mesmas prerrogativas do poder originário, sendo limitado e somente existindo porque o originário assim determinou, sendo um caso em que a criatura não irá suplantar o criador. Podemos, em outras e mais abalizadas palavras, repetir a lição de Paulo Bonavides acerca da diferenciação entre os dois poderes citados acima: Costuma-se distinguir o poder constituinte originário do poder constituinte constituído ou derivado. O primeiro faz a Constituição e não se prende a limites formais: é essencialmente político ou, se quiserem, extrajurídico. O segundo se insere na Constituição, é órgão constitucional, conhece limitações tácitas e expressas, e se define como poder principalmente jurídico, que tem por objetivo a reforma do texto constitucional. Deriva da necessidade de conciliar o sistema representativo com as manifestações diretas de uma vontade soberana, competente para alterar os fundamentos institucionais da 65 ordem estabelecidas. A teoria do poder constituinte leva a concluir que o poder constituinte derivado tem o objetivo de atuar juridicamente, visto que ele foi criado por uma norma jurídica, com o objetivo de agir moldando e criando institutos jurídicos, mesmo que permeado pela política, o que é natural no regime representativo, ainda guarda obediência ao direito. Na experiência brasileira, o processo de modificação do texto constitucional é marcado pelo excesso, pela inclusão de institutos perfeitamente reguláveis infraconstitucionalmente, mas incluídos no texto constitucional pela fraqueza das instituições, além de adaptação da Carta Política aos interesses e objetivos dos detentores do poder no momento. Ademais, o estado de letargia da sociedade diante da classe política propicia a violação diuturna dos princípios, garantias e direitos constitucionalmente assegurados, o que, novamente mencionando Paulo 65 BONAVIDES, Paulo. Curso... p. 146. 63 Bonavides, é “A derrubada da Constituição pelo golpe de Estado institucional”.66 Indo além, o exercício do poder constituinte no Brasil deu origem a distorções que culminaram com institutos únicos, verdadeiras violações à teoria constitucional, como o Poder Moderador na Constituição de 1824 e a Emenda Constitucional nº 1/69, que em grande parte reescreveu a Constituição de 1967. Apesar de atualmente passar o Brasil pelo maior período de estabilidade democrática de sua história, a segurança jurídica é pouco assegurada, ao contrário, enfrenta seguidas ameaças, sobremaneira de forma velada, por via de emendas constitucionais, as quais são formalmente regulares, contudo, materialmente, dão forma ao movimento paulatino e contínuo de relativizar ou eliminar direitos, flexibilizar institutos e liberalizar o Estado. Por óbvio que a constituição carecerá de reformas ao longo do tempo, salvo no sistema de Commom Law, onde a legislação infraconstitucional e o costume regulam a quase totalidade dos institutos, não se pode deixar o texto constitucional cair no anacronismo. Óbvio também é que as mudanças na Constituição não podem servir de meio para a piora das condições oferecidas aos cidadãos, o que seria ferir de morte o pacto gerador do próprio Estado, que, nesse cenário, estaria retirando direitos e parte da segurança que se propôs à oferecer aos administrados em troca de parcela da liberdade desses. A pena para emendas constitucionais que tenham o escopo de ferir direitos e garantias fundamentais é a pecha da inconstitucionalidade, logo, sequer deveria sobreviver ao processo legislativo, e caso chegassem à vigência, devem ser fulminadas pelo controle de constitucionalidade. Como exemplo de situação em que o controle de constitucionalidade verifica ofensa à segurança jurídica pela via de emenda constitucional, citamos o julgamento da 66 BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. 64 ADI nº 939-7, que julgou a Emenda Constitucional nº 3/93, especialmente o voto do Ministro Carlos Velloso, que afirmou: [...] É certo que é respeitável o argumento, mais metajurídico do que jurídico, propriamente, no sentido de que o raciocínio abrangente da matéria – a matéria dos direitos e garantias individuais – sem distinguir direitos e garantias de primeira classe e direitos e garantias de 2ª classe, poderia impedir uma reforma constitucional. O argumento, entretanto, não deve impressionar. O que acontece é que o constituinte originário quis proteger sua obra, a sua criatura, que é a Constituição. As reformas constitucionais precipitadas, ao sabor de conveniências políticas, não levam a nada, geram a insegurança jurídica e a insegurança jurídica traz a infelicidade para o povo. É natural portanto, que o constituinte originário, desejando preservar sua obra, crie dificuldades para a alteração da Constituição. A constituição norte-americana de 1787, tem mais de duzentos ano e apenas vinte e seis emendas. Os Estados Unidos, por isso mesmo, ostentam pujança econômica, política e jurídica, o 67 seu povo é feliz [...] No mesmo julgamento, o Ministro Marco Aurélio Mello proferiu voto ainda mais contundente, ainda que vencido, onde ressaltou que o objetivo do Judiciário é preservar a ordem jurídica, não carecendo de troca de favores ou amabilidades com os demais poderes: [...] Ao Judiciário não compete como que colaborar, objetivando acerto de caixa a ser feito no âmbito do Executivo; ao Judiciário cabe, acima de tudo, sem recear críticas, até mesmo exacerbadas, a preservação da ordem jurídica. Sob a minha óptica, com o devido respeito aos meus pares, esta ficará seriamente comprometida, caso se conclua pela inconstitucionalidade apenas parcial da Emenda nº 03/93 e, também, da Lei Complementar nº 77, que acabou por 68 disciplinar o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira [...] Como se depreende das manifestações dos ministros citados, a preocupação com a segurança jurídica também está presente na análise das emendas constitucionais. Na doutrina, citamos ainda Vital Moreira, que tratando da possibilidade de revisão do texto constitucional, delimita dois pressupostos a serem observados por quem quer seja hábil a modificar o texto constitucional: 67 ADI 939, Relator(a): Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/1993, DJ 18-03-1994. pp. 05165. 68 ADI 939, Relator(a): Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 15/12/1993, DJ 18-03-1994. pp. 05165. 65 [...] a) uma Constituição não é uma lei qualquer, um mero conjunto de preceitos reguladores do processo político, mas sim a lei fundamental da sociedade política e do Estado, que não pode ser alterada nos seus aspectos essenciais sob pena de subversão da própria colectividade política; b) o poder de revisão constitucional é um poder derivado do poder constituinte e a ele submetido, sendo sua função não a de renovar o poder constituinte, alterando livremente a Constituição, mas sim a de defender e preservar a Constituição, mantendo sua identidade originária e introduzindo as alterações e os ajustamentos que se revelem necessários para reforçar a vitalidade da Constituição 69 [...] Questões suscitadas por emendas constitucionais se apresentaram como ameaças à segurança jurídica, deixando de atender aos fins a que o Estado se propôs, ainda que sob argumentação de que trariam benefícios de uma forma ou de outra. Com efeito, vem se configurando um efetivo abuso no exercício do Poder Legislativo, tornando cada vez mais necessária a atuação do Supremo Tribunal Federal no sentido de assegurar a integridade constitucional. Apesar de compreendermos que as emendas constitucionais passam a fazer parte da Constituição, de forma indistinta do texto originário, devemos ter em mente que o poder reformador não pode grosseiramente reescrever o texto constitucional, ao contrário, sua atuação deve obediência aos princípios norteadores da própria Constituição. Fica, pois, patente que o poder constituinte derivado deve obediência ao poder constituinte originário. Em termos simples, o Poder Legislativo, além de ter a função precípua de elaborar leis, tem outras tarefas, como a fiscalização, no que é auxiliado pelos tribunais de contas, contudo, é visível que em diversas oportunidades a atividade legislativa deixa de atender ao interesse coletivo para atender aos interesses do estado ou mesmo de interesses de grupos detentores de poder. 69 MOREIRA, Vital. Constituição e revisão constitucional. Lisboa: Editorial Caminho. 1990. pp.10102. 66 Segundo José dos Santos Carvalho Filho, “A utilização do poder, portanto, deve guardar conformidade com o que a lei dispuser” 70. No presente caso a lei é a própria Constituição, que faz a tripartição dos poderes. Ainda conforme o mesmo autor71, enquadramos o exercício de poder para fins diversos dos que a lei faculta, como desvio de poder, ou desvio de finalidade, espécie do gênero abuso de poder, que consiste em atuar o agente em descompasso com o interesse público, praticando, pois, conduta ilegítima. Para deixar claro a situação de abuso do Poder Legislativo, com evidente desvio de poder, é indispensável abordar a doutrina de Otto Bachof, o primeiro estudioso a tratar de emendas constitucionais inconstitucionais. Ensina o mestre alemão que a Constituição deve ser protegida contra modificações que violem sua original intenção, especialmente devendo ser oposta tal proteção contra o reformador: A permanência de uma constituição depende em primeira linha da medida em que ela for adequada à missão integradora que lhe cabe face à comunidade que ela mesma constitui. [...] E num Estado com divisão de poderes – mas apenas neste – é de todo conseqüente que tal protecção também seja concedida, e até em especial medida, face ao legislativo. O facto de haver sido justamente um acto do legislativo – a chamada lei de autorização – que desarticulou [...] definitivamente, e sob uma aparência de preservação da legalidade, a Constituição da República de Weimar pode ter contribuído para dotar o Tribunal Constitucional Federal, como guarda da Constituição, de poderes extraordinariamente amplos precisamente 72 face ao legislador. Ainda citando o professor da Universidade de Tübingen, é importante destacar o conflito entre princípios e normas constitucionais, que é passível de ocorrência especialmente quando da edição de emendas constitucionais, e sua solução: [...] a verdade é que decisiva para a interpretação da Constituição, como de qualquer outra lei, é em primeira linha a chamada «vontade 70 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2008. p.40. 71 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual... p. 40. 72 BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Silva. Reimp. Lisboa: Almedina. 1994. pp. 11-12. 67 objectivada do legislador», isto é, a vontade que para um observador expedito se depreende da própria lei: ora, no caso de contradição aparente entre um princípio constitucional e uma norma singular da Constituição, tal vontade só pode em princípio ser entendida, ou no sentido de que o legislador constituinte quis admitir essa norma singular como excepção à regra, ou no que negou, pura e simplesmente, a existência de semelhante contradição. Concederse-á, todavia, que em casos de contradição insolúvel, de uma contradição que também não seja susceptível de interpretar-se através da relação regra-excepção, assim como, por último, em caso 73 de manifesto equívoco, possa haver lugar para outro juízo. O abuso do Poder Legislativo, configurado mais visivelmente com a edição de emendas constitucionais materialmente inconstitucionais, as quais deveriam ter sido fulminadas logo no processo legislativo, o que não ocorreu, por exemplo, quando do julgamento do Pretório Excelso já citado anteriormente, opera a serviço de interesses da administração que não condizem com o interesse púbico ou mesmo agem em consentâneo com a vontade de particulares. Independentemente do juízo de valor sobre boas ou más intenções, é fato que interesses e poderes influenciam toda a atividade política, inclusive a atividade legislativa e a reformadora da constituição. Paulo Bonavides estabelece a importância de salvaguardar a Constituição contra manifestações ilegítimas que atentam contra a democracia: salvaguardar a Constituição figura,ao meu ver, como o primeiro dos deveres do cidadão e do governante. Se os códigos foram, outrora, a expressão da legalidade, as Constituições são, agora, a essência da legitimidade. Sem legitimidade não há democracia, e sem democracia não prevalece o Estado de Direito. altando uma e outra, falta tudo a um povo para ser livre e digno. Todas as crises de legitimidade são crises constituintes. O Brasil, desde a emenda materialmente inconstitucional da reeleição do Presidente da República, se acha imerso e submerso numa dessas crises. Ontem as diretas-já nos tiraram de uma autocracia; hoje as Medidas Provisórias, as miniconstituntes e os plebiscitos inconstitucionais, se o povo não for às ruas,poderão, em breve, nos levar de volta ao subterrâneo da ditadura. Desgraçadamente, é o que há de resultar do delírio continuista e da cegueira política que ameaçam mexicanizar o País, instalando e perpetuando no poder as piões oligarquias de todas as idades 74 republicanas de nossa História. 73 74 BACHOF, Otto. Normas constitucionais ... pp. 11-12. BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional ao .... p. 59. 68 Uma boa explanação sobre influências exercidas no processo de mutação constitucional é a de Uadi Lammêgo Bulos: Na realidade, não podemos enumerar, com a pretensão de esgotar a matéria, o rol de todas as hipóteses em que os dispositivos de uma Carta Suprema sofrem mutações no seu sentido, significado e alcance, sem mudar a norma prescrita pela manifestação constituinte originária. Isto porque, ao serem editadas, as constituições não têm a perfeição de refletir todas as crenças e todos os interesses em pugna. Elas derivam de um paralelogramo de forças políticas, econômicas, sociais, culturais, etc., atuantes naquele determinado momento histórico. Daí englobarem compromissos antagônicos, vontades e suscetibilidades de variadíssima gama, o que não permite ao legislador prever todas as possíveis combinações de casos concretos, que a experiência cotidiana possa proporcionar. Isto enseja a utilização de determinados métodos, muitos deles espontâneos, naturais – sem qualquer previsibilidade de quando irão ser acionados -, com o intuito de extraírem o sentido, o significado e o alcance das normas constitucionais. Esses métodos, que podem provocar mudanças difusas no Texto Máximo, são ilimitados, porque variam de acordo com as transformações sociais, as quais repercutem sobre todo o ordenamento constitucional. Não há como negar que a ordenação constitucional, mesmo no que atina aos aspectos sociais, políticos e econômicos, funda-se em fatos, nem se pode ignorar a celeridade e a concomitância espaçotemporal das mudanças na realidade. Desse modo, podem ocasionar mutações constitucionais: a interpretação, a construção judicial, os usos e costumes, as complementações legislativas, as práticas governamentais, legislativas e judiciárias e, até mesmo, a influência dos grupos de pressão. Os últimos aí apontados – os grupos de pressão em certos momentos da vida constitucional dos Estados – influem no processo de mudança informal das constituições. Nas sociedades hodiernas, devido ao fato de refletirem a estrutura econômica, social, política, religiosa, cultural, são retratos fiéis de granes paixões, provenientes de aspirações corporativas, que se desdobram em núcleos de configuração e finalidades inconfundíveis: associações, sindicatos, entidades de classe, partidos políticos, grupos artísticos, religiosos, filosóficos, organizações civis, militares, dentre outros. [...] Os grupos de pressão, portanto, que têm sido objeto de numerosos estudos e investigações, em todas as suas modalidades e técnicas de ação, afirmam-se como uma realidade inegável em nossos dias, independentemente de convicções e idiossincrasias. Basta ver o exemplo dos Estados Unidos, onde os lobbies funcionam como verdadeiras empresas especializadas, dotadas de imponentes 69 escritórios, com organização e influência marcantes, e cuja atividade é regulamentada em lei. [...] No Brasil, embora não esteja previsto na legislação, é manifesta a atividade de grupos de pressão, não raro sob o impulso de partidos políticos, das categorias profissionais, de trabalhadores ou servidores públicos, das organizações econômicas, privadas e públicas, das instituições de classes liberais, militantes de defesa do meio ambiente, enfim, dos patronos de diferentes interesses, que agem, fortemente, em favor de teses e reivindicações. [...] Embora o seu texto permaneça inalterado, as disposições constitucionais vão lenta e insensivelmente modificando-se, sem mudar uma vírgula sequer, mas assumindo significados novos, sob o 75 influxo de exigências da evolução social. Com efeito, se tem abusado do Poder Legislativo, desvirtuando sua atividade, por exemplo, com a edição de emendas que não apenas deixam de observar os princípios constitucionais, mas chegam a violá-los. Tem-se maculado a constituição em seu próprio seio, adicionando dispositivos até mesmo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que deveria ter vida breve, dentro da normalidade, afetando o equilíbrio institucional e a boa condução dos destinos do país. Não estamos a realizar nenhum tipo de discurso contra o Legislativo ou contra a atividade legislativa, mas sim demonstrando ser necessário um resgate da efetiva repartição dos poderes, restaurando aos legisladores sua atividade. Chegou a tal ponto a hipertrofia do Executivo sobre o Legislativo que, conforme noticia Francisco Gerson Marques de Lima76, ao longo do mês de junho de 1999 foram emitidas 178 (cento e setenta e oito) medidas provisórias, perfazendo uma média de 5,93 por dia. O exemplo apresentado ilustra a situação, mas somente adentraremos o tema das medidas provisórias mais adiante. Importante pontuar o fato de que o Legislativo vem tendo seu papel diminuído, se pondo à sombra do Executivo, comprometendo a função 75 BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva. 1997. pp. 65-69. LIMA, Francisco Gérson Marques de. O Supremo Tribunal Federal na crise institucional brasileira – Estudos de casos: abordagem interdisciplinar de sociologia constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 404. 76 70 fiscalizatória que lhe cumpre e reduzindo a discussão de matérias importantes ao mero “referendo dos legisladores”, tanto que pouco se fala das ideologias dos partidos políticos, e muito mais em “base aliada”, “bloco governista”, “a oposição”, tudo intimamente ligado a interesses específicos. Não se pode deixar de relacionar uma inflexão do Poder Legislativo com a insegurança jurídica, qualquer desequilíbrio na tripartição dos poderes fragiliza as instituições e garantias que a sociedade espera. Um dos fatores que influem para a segurança é a estabilidade, o mau funcionamento das instituições conduz inexoravelmente a um desequilíbrio, o qual redunda numa ruptura, ainda que parcial, do Estado. No caso do mau funcionamento do Legislativo, pode-se falar em ruptura no sentido de que a representatividade, uma das características da democracia moderna, já que dificilmente seria viável a democracia direta, é de tal forma desnaturada que deixa de caracterizar o sistema político aplicado. Uma falha que desnature a democracia não pode, em condição de normalidade institucional, conviver com o Estado democrático de direito, seria a real negação do sistema, incongruência inaceitável, pois. Comenta-se que existe uma hipertrofia do Poder Executivo, que tem constantemente ocupado espaço dos outros poderes, especialmente do Legislativo, tornando-se um “controlador” do Estado, tomando uma posição de iniciativa não apenas na administração e execução das políticas estatais, mas desenvolvendo ele próprio as iniciativas que deseja implementar. Como se vê, criar políticas e normas é função do Legislativo, manifestações da vontade popular, manifestas por meio dos representantes do povo eleitos diretamente, o que em sendo usurpado, mesmo que se considere como parcialmente, pelo Executivo. Mesmo que se considere que o titular do Poder Executivo é eleito diretamente, o que lhe confere o caráter da legitimidade, o foi para outras funções, logo, conforme já comentado linhas 71 acima, configura desvio de poder, por conseguinte é incompatível com o princípio da segurança jurídica. Ter uma contradição de tal monta existindo no seio do Estado torna de difícil compreensão o problema de demonstrar como isso é um aspecto de insegurança jurídica, já que, apesar da situação ser flagrante, o Brasil tem vivido, como também já pontuado, o maior período de estabilidade democrática de sua história. Contudo, a contradição tem seguido nessa relação autofágica para com o Estado porque nossa democracia é jovem, imatura e ainda em formação, posto que, considerando esses caracteres, nesse ambiente, institutos esdrúxulos podem florescer e formar um conflito oculto, que aparente normalidade mas traga nas profundezas a impossibilidade de perpetuação de ambos. Não sendo possível que o Estado conviva com a submissão de um dos poderes que guarnece o sistema de freios e contrapesos, ou a normalidade institucional retorna, ou Estado chega ao ponto de ruptura ou o sistema se adaptará na forma de um pseudoestado, o qual não oferecerá as garantias que deveria, mas sobrevive sustentado pela subserviência a um ou mais poderes, que asseguram a continuidade do status quo. Um estado que não seja capaz de sustentar a própria organização de maneira adequada evidentemente também não tem a habilidade de prover a segurança a que se propôs, nem mesmo a segurança jurídica, negando a principal razão de sua existência, o que tem o condão de ocasionar uma ruptura, levando a um novo contrato social e uma nova organização estatal, por conta da necessidade dos cidadãos de obter segurança. Os princípios consagrados constitucionalmente não são produtos diretos das mentes dos constituintes, mas são principalmente resultado da evolução social, evolução essa que segue ainda que não seja acompanhada pelo Estado. Considerando que a organização estatal subsiste dentro de uma ordem 72 social, quando ele não mais se adequar a ela, conforme Rousseau, a conseqüência, independentemente do motivo é a ruptura do contrato social: De dois modos sobrevém a dissolução do Estado; primeiro, quando o príncipe cessa de o administrar segundo as leis, e usurpa o poder soberano; sucede então notável transtorno, e não o governo, mas o Estado se constringe; quero dizer que o grande Estado se dissolve e que se forma outro naquele, só composto dos membros do governo, e que só é para o resto do povo seu dono e seu tirano; de sorte que no instante em que o governo usurpa a soberania, o direito na sua liberdade natural e, apesar de forçados, não têm obrigação de obedecer. Sucede o mesmo quando os membros do governo separadamente usurpam o poder, que só em corpo devem exercer; grandíssima infração das leis, que produz a maior desordem! Então há, por assim dizer, tantos príncipes quantos magistrados, e o Estado não menos 77 dividido que o governo perece ou muda de forma [...] O abuso do Poder Legislativo, usando as premissas de Rousseau, conduz o governo no rumo de violar, por exemplo, os princípios constitucionais, ou deformá-los de maneira formalmente correta, mas materialmente duvidosa, deixando de ser o Estado Democrático para ser uma oligarquia, o que não é sustentável diante da maioria alijada do poder e da representatividade real. Um Legislativo subserviente ou que realiza mal suas funções não permite uma adequada repartição dos poderes, de maneira a danificar a máquina estatal, conduzindo-se no rumo da já mencionada ruptura, isso vem ocorrendo no Brasil, não se podendo afirmar até quando. A ruptura estatal por problemas relativos à separação dos poderes não seria fato inédito na história, pontilhada de revoluções contra Estados que não mais atendiam à sociedade, a qual deixou de sustentá-los. O mais célebre exemplo foi a Revolução Francesa, na qual a estrutura social não mais sustentou a monarquia, que defendia o interesse da nobreza, não o da coletividade, e, mediante sublevação, o movimento revolucionário modificou a estrutura do Estado em busca de uma nova organização, numa época de sofrimento popular que coincidiu com um movimento hábil a romper com 77 ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. São Paulo: Martin Claret. 2003. p. 86 73 estrutura estatal em nome de uma nova ordem. Nas palavras de Sandro Chignola: Essa tensão entre um movimento constituinte e a organização dos poderes constituídos perpassa toda a Revolução Francesa. A rápida desagregação do edifício da velha monarquia e da sociedade das corporações e dos estamentos já é um fato consumado quando, em agosto de 1778, são convocados os Estados Gerais, interrompendo o longo interregno de gestão absolutista do poder. O compromisso procurado pela monarquia, para aliviar os efeito de uma crise fiscal insustentável, é o compromisso entre a oferta de uma série de reformas, que conseguiriam alinhar a seu favor as amplas camadas das ordens e dos estamentos, e o desejo obstinado de conservação das configurações políticas e constitucionais do Antigo Regime. Já em 1778, portanto, a contestação política das elites sociais, cuja integração nos aparatos da monarquia parece cada vê mais maquinosa e cada vez mais impedida pelas dificuldades interpostas pela constituição estamental, começa a reivindicar o peso político real adquirido pelo Terceiro Estado diante das ordens da Nobreza e do Clero, e a invocar a necessidade de uma medida, o voto por cabeça e não por ordem, que sancionasse a proeminência do indivíduo sobre as organizações estamentais. A duplicação da representação do Terceiro Estado, além disso, garantiria uma maior eqüidade com relação às ordens privilegiadas e ao pequeno número de franceses por elas representado. Quando essa proposta, retomada por Sieyès, se tronará realmente operativa (entre os dias 17 e 19 de junho de 1789), ela representará também o afastamento definitivo da Revolução de qualquer envolvimento com as lógicas constitucionais do Antigo Regime. [...] O Terceiro Estado, organizado em Assembléia Nacional, recusa-se a reformar o quadro constitucional herdado do passado, e busca 78 imaginar, para fundá-lo, o Estado do futuro [...] Voltando à realidade pátria, reafirmando os argumentos já expostos, novamente citamos Paulo Bonavides, que segue defende o republicanismo ao expor sem meias palavras a crise e o abuso do Poder Legislativo, que aqui tentamos trazer ao debate: Do Poder Legislativo, amesquinhado e menosprezado com tanta baixeza e insensibilidade pelo Poder Executivo, poder-se-á dizer que ontem lhe subtraíram a eficácia de legislador ordinário, hoje lhe despem a dignidade de legislador constituinte de segundo grau, ficando nu perante o País na desmoralização ignóbil de suas prerrogativas constitucionais enquanto órgão geratriz da vontade 79 geral. 78 CHIGNOLA, Sandro. In DUSO, Giuseppe (org.). O poder: história da filosofia política moderna. Tradução de Andrea Ciacchi, Líssia da Cruz e Silva e Giuseppe Tosi. Petrópolis: Vozes, 2005. pp. 201202. 79 BONAVIDES, Paulo. Do país constitucional... pp. 64-65. 74 Nas palavras acima fica indelével a marca de que o Poder Legislativo, via de conseqüência, o Estado, vive uma crise, que apenas se aprofunda, não se sabe até que ponto perdurará, mas claramente é um fator de insegurança a todos, que pode ver uma ordem coroada pela chamada “Constituição Cidadã” encontrar o destino da Constituição de Weimar, vitimada pelas falsas tentativas de protegê-la. A insegurança trazida pelo desequilíbrio dos poderes não passa despercebida, mas tem sido pouco combatida, de maneira que a hipertrofia do Poder Executivo vem encontrando terreno fértil, mas é visível que o conflito entre o desequilíbrio e a tripartição dos poderes existe, apenas não é flagrante. Como já dito, um Estado que não é capaz de manter sua própria estrutura menos capaz é de prover segurança aos administrados, o que é a principal função do Estado, enfim, é uma relação autofágica, na qual inexiste coexistência a longo prazo. Compreendida a crise do Poder Legislativo, com sua submissão pelo Executivo, especialmente, adentramos uma faceta da atividade legislativa que surge a cada fato provocado de comoção pública. Após muitos fatos que chocam a população, ou são amplamente noticiados pela mídia, ficando em evidência por um período considerável, os legisladores se apresam em produzir uma norma que sirva como resposta ou uma prova de que são capazes de reagir à “voz das ruas”, sendo verdadeira legislação do casuísmo, uma forma de adequar a legislação a anseios do povo, legítimos ou não. Usualmente a legislação produzida nesses momentos representa tratamento mais rígido com relação a alguma conduta, ignorando princípios e garantias constitucionais, representando, via de conseqüência, uma mostra de insegurança jurídica, já que os debates acerca de novas normas se dão num momento de comoção e não observa critérios amplos e legítimos com a amplitude necessária à produção de forma mais republicana. 75 Não podemos considerar adequado ao comportamento republicano a mera resposta à um clamor popular movido pelo desejo de uma firme resposta estatal, ou mesmo um latente desejo de vingança, contra fatos reprováveis, sem debate amplo, sem considerações de medida adequada à eventuais mudança ou mesmo de sua pertinência. Normas elaboradas nesse ambiente não têm legitimidade, representando mero populismo, simples sofismas normativos. Aqui não trataremos de todos os casos em que a atividade legislativa serviu para dar uma resposta a anseios sociais advindos de fatos, uma legislação casuísta. Trataremos de dois casos que exemplificam a situação, a Lei nº 8.985, de 07 de fevereiro de 1995, que claramente representou uma anistia concedida a um parlamentar, e o histórico de mudanças na Lei nº 8.072/90, que tratou dos chamados crimes hediondos, que vem sendo modificada como meio de resposta à comoção popular decorrente de crimes violentos e mesmo de decisão judicial que concluiu pela inconstitucionalidade de certo dispositivo. No tocante à Lei nº 8.985/95, temos que considerar certos pontos preliminarmente, de modo a evitar o discurso passional, atécnico ou panfletário sobre o tema. Ressaltamos que o presente estudo, obviamente, busca o caráter técnico e não tem qualquer conotação de política partidária ou direcionamento que não seja o da análise científica, ainda que tome posições aparentemente críticas ou favoráveis em certos pontos. Anistia, do grego “amnestía”, é a opção por cessar a persecução dos responsáveis por determinados fatos, de modo a normalizar a situação jurídica de pessoas que, de outra forma, estariam sujeitas à jurisdição. Numa perspectiva histórica, fazemos uso das palavras de Ruti G. Teitel: Comumente definida como o ato pelo qual se extinguem as conseqüências de um fato punível e, em resultado, qualquer processo sobre ele, em sentido político e inspirada em razões de Estado a anistia é ordinariamente adotada para a “pacificação dos 76 espíritos” após motins e revoluções ou para pôr fim a guerras civis e insurreições. Não se confundindo com indultos, que se destinam a crimes comuns, é sempre coletiva e se estende não somente às penas, mas também aos fatos que as determinaram, como se o anistiado jamais tivesse sido condenado. Derivado do substantivo grego „amnestía‟, o conceito de anistia traz implícitas as idéias de esquecimento e redenção e tem sido adotado desde tempos remotos, fazendo parte da tradição política. Seu primeiro registro data do ano 403 a.C., em Atenas. Lá, depois que os Trinta Tiranos foram depostos do poder, que ocupavam desde o fim da guerra do Peloponeso, e a democracia restaurada, houve uma reforma legislativa e a concessão de anistia. Votada pelo povo em praça pública, a medida necessitava do apoio de seis mil cidadãos para vigorar. Foi aprovada com a maioria dos votos dos atenienses e 80 atingiu todos os envolvidos na guerra civil, à exceção dos tiranos. Por mais que se compreenda que a anistia dificilmente será concedida de forma total e irrestrita, já que é medida por natureza excepcional, em que o Estado deixa de cumprir sua missão de pacificador social, considerando situações excepcionais. Ainda que seja instituto dedicado à aplicação pontual, não se pode considerar que a anistia seja direcionada especificamente a uma pessoa ou a um grupo extremamente restrito, o que violaria os princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e da razoabilidade. Deve, assim, em havendo anistia, ser direcionada a um grupo relevante ou a casos genericamente, com um mínimo de alcance para justificar sua finalidade social. A restrição se justifica pelo caso a ser abordado, o qual representa mais um caso de desvirtuamento de um instituto, com sua aplicação “à brasileira”, deixando a natureza de lado e sendo implementada com improviso. Tratamos do chamado “caso Humberto Lucena”, em que o então senador foi acusado e processado por uso da gráfica do Senado Federal para impressão de material utilizado em sua campanha à reeleição. O fato foi amplamente coberto pela imprensa, acompanhado pela conseqüente indignação popular, na qual voltou o debate sobre punição exemplar e combate à corrupção e os discursos inflamados pela moralidade pública. Quando do julgamento, o Tribunal Superior Eleitoral foi desfavorável ao reclamado, cassando o registro de sua candidatura e concluindo pela 80 TEITEL, Ruti G. Transitional justice. New York: Oxford University Press, 2000. p. 52. 77 suspensão de seus direitos políticos por três anos. O caso parecia tomar contornos até corriqueiros, com a punição adequada diante das evidências, já que os fatos levavam à uma conclusão até obvia pela condenação, assim acontecendo nos seguintes termos: RECURSO - PRAZO - ACÓRDÃO - ASSINATURA - MINISTÉRIO PÚBLICO - EFEITO. Na dicção da ilustrada maioria, em relação a qual guardo reservas, a assinatura do acórdão pelo órgão do Ministério Público não implica a respectiva intimação, começando a correr o prazo recursal somente da publicação no Diário da Justiça. ABUSO DE AUTORIDADE - PARLAMENTAR - SERVIÇO GRÁFICO DO SENADO FEDERAL. Consubstancia abuso de autoridade a utilização do serviço gráfico do Senado Federal em confecção de calendários, contendo a imagem do parlamentar, e que tenham sido enviados aos cidadãos do Estado no qual possui o domicílio eleitoral, ocorrendo a remessa em pleno 81 ano destinado às eleições. Manejando os recursos cabíveis, buscou o então Senador, tutela do Supremo Tribunal Federal, que, em sede de Recurso Extraordinário, decidiu pelo seu não conhecimento: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MATÉRIA ELEITORAL. CANDIDATO AO SENADO FEDERAL. REGISTRO. CASSAÇÃO. INELEGIBILIDADE. PROPAGANDA ELEITORAL. ABUSO DO PODER DE AUTORIDADE. LEI COMPLEMENTAR N. 64/1990, ART. 22, XIV. 2. DECISÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL QUE AFASTOU ALEGAÇÃO DO ORA RECORRENTE DE INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO ORDINÁRIO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL CONTRA ACÓRDÃO DE TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL, AO JULGAR IMPROCEDENTE A REPRESENTAÇÃO. INTIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. FORMA. LEI ORGÂNICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO (LEI Nº 8625, DE 12.02.1993), ART. 41, IV. INTIMAÇÃO PESSOAL. INOCORRENCIA DA INTIMAÇÃO, PARA OS EFEITOS LEGAIS, COM A MERA ASSINATURA DO ÓRGÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO APOSTA NO ACÓRDÃO. MATÉRIA DECIDIDA PELO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, COM BASE NA INTERPRETAÇÃO DADA A LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL E A VISTA DOS FATOS. NÃO CABE REAPRECIAR ESSE PONTO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO, POR NÃO SE CONFIGURAR QUESTÃO CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO, ART. 102, INCISO III. SÚMULA 279. ALEGAÇÃO DE OFENSA A COISA JULGADA QUE NÃO E, DESSE MODO, SUSCETIVEL DE ACOLHIDA. A OFENSA A CONSTITUIÇÃO, PARA SERVIR DE BASE AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, HÁ 81 STF. RO nº 12.244, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 13/09/1994, RJTSE vol. 7, nº 1, p. 251. 78 DE SER DIRETA E FRONTAL, E NÃO VERIFICAVEL POR VIA OBLIQUA. PRECEDENTES DO STF. 3. CALENDARIOS DE 1994, COM FOTOGRAFIA DO CANDIDATO, IMPRESSOS NA GRAFICA DO SENADO FEDERAL, EM GRANDE VOLUME, E DISTRIBUIDOS AO ELEITORADO DO ESTADO ONDE O PARLAMENTAR E CANDIDATO A VAGA DE SENADOR. DECISÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL QUE AFIRMOU CONFIGURAR-SE, NO CASO CONCRETO, ABUSO DE PODER DE AUTORIDADE E USO INDEVIDO DE RECURSOS PUBLICOS, CRIANDO-SE, TAMBÉM, SITUAÇÃO DE DESIGUALDADE COM OS DEMAIS CANDIDATOS. PROPAGANDA ELEITORAL VEDADA. NÃO CABE, EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO, REEXAMINAR OS FATOS E AS PROVAS CONSIDERADOS NAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS ELEITO RAIS. DISCUSSÃO EM TORNO DA CARACTERIZAÇÃO DO ABUSO DE AUTORIDADE E DE PROPAGANDA ELEITORAL ILICITA, QUE SE REALIZOU NAS INSTANCIAS ORDINARIAS, A VISTA DOS FATOS, PROVAS E DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. INVIABILIDADE DE REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUIÇÃO, ART. 102, III, E SÚMULA 279. 4. ALEGAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA INSUSCETIVEL DE ACOLHIMENTO. 5. NÃO SE CARACTERIZA, NA HIPÓTESE, A ALEGADA INTERFERENCIA INDEVIDA DO PODER JUDICIARIO EM MATÉRIA 'INTERNA CORPORIS' DO PODER LEGISLATIVO. O ACÓRDÃO NÃO ANULA SEQUER ATO ALGUM DO SENADO FEDERAL REFERENTE A ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DA GRAFICA, NEM QUANTO AS DENOMINADAS QUOTAS ANUAIS UTILIZAVEIS PELOS PARLAMENTARES, DE ACORDO COM NORMAS INTERNAS DA CASA LEGISLATIVA. NO CASO, O TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL JULGOU A AÇÃO DO RECORRENTE, AO DISTRIBUIR AO ELEITORADO CALENDARIOS COM FOTOGRAFIAS, IMPRESSOS NA GRAFICA DO SENADO FEDERAL, CONCLUINDO QUE OCORREU ABUSO DO PODER DE AUTORIDADE E PROPAGANDA VEDADA, TENDO COMO APLICAVEL A HIPÓTESE O ART. 22, XIV, DA LEI COMPLEMENTAR N. 64/1990. A JUSTIÇA ELEITORAL, NO EXERCÍCIO DE SUA COMPETÊNCIA, RECONHECEU, DIANTE DOS FATOS, QUE O RECORRENTE DESCUMPRIU A LEI ESPECIFICA. DIREITOS POLITICOS, LEGISLAÇÃO ELEITORAL. NORMALIDADE E LEGITIMIDADE DAS ELEIÇÕES. CONSTITUIÇÃO, ART. 14, PAR. 9. NÃO CABE, NA ESPÉCIE, A ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 2., DA CONSTITUIÇÃO. 6. 82 RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO. Nesses termos, prevaleceu a condenação imposta pelo TSE, considerando que houve abuso de autoridade na conduta do então Senador. Consolidada a decisão judicial pela ausência de recursos possíveis, deveriam ser aplicadas suas tenazes, representando fato histórico de prevalência do espírito público. Porém, o Congresso Nacional agiu, editando a Lei nº 8.985, de 07 de fevereiro de 1995, da qual destacamos, de início a ementa: “Concede, na forma do inciso VIII do art. 48 da Constituição Federal, anistia aos candidatos 82 STF. RE 186088, Relator(a): Min. Néri da Silveira, Tribunal Pleno, julgado em 30/11/1994, DJ 24-021995 PP-03696 EMENT VOL-01776-06. pp. 01149. 79 às eleições de 1994, processados ou condenados com fundamento na legislação eleitoral em vigor, nos casos que especifica”. Até aqui, afora a matéria a que se destina a anistia, há um aparência de normalidade ao ato, parecendo uma anistia concedida sem maiores destaques, apesar da importância do instituto, aplicável em casos raros. Contudo, ao passar para as disposições da referida Lei, sobressai o caráter individual da anistia concedida, ficando claro que se destinava, até por se assemelhar a uma “engenharia reversa” do caso Humberto Lucena, descrevendo caracteres do caso a fim de que lhe caísse tal uma luva. Em seus quatro artigos, a referida Lei estabelece os critérios a serem cumpridos para a concessão da anistia, exclui outros casos de modo a evitar a interpretação extensiva: Art. 1° É concedida anistia especial aos candidatos às eleições gerais de 1994, processados ou condenados ou com registro cassado e conseqüente declaração de inelegibilidade ou cassação do diploma, pela prática de ilícitos eleitorais previstos na legislação em vigor, que tenham relação com a utilização dos serviços gráficos do Senado Federal, na conformidade de regulamentação interna, arquivando-se os respectivos processos e restabelecendo-se os direitos por eles alcançados. Parágrafo único. Nenhuma outra condenação pela Justiça Eleitoral ou quaisquer outros atos de candidatos considerados infratores da legislação em vigor serão abrangidos por esta lei. Art. 2° Somente poderão beneficiar-se do preceituado no caput do artigo precedente os membros do Congresso Nacional que efetuarem o ressarcimento dos serviços individualmente prestados, na conformidade de tabela de preços para reposição de custos aprovada pela Mesa do Senado Federal, excluídas quaisquer cotas de gratuidade ou descontos. Art. 3° Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, aplicandose a quaisquer processos decorrentes dos fatos e hipóteses previstos no art. 1° desta lei. Art. 4° Revogam-se as disposições em contrário. [...] Dentre todos os casos em que foram apurados e processados crimes eleitorais, apenas um deles envolveu o uso de serviços gráficos do Senado 80 Federal, aí já reside o direcionamento da anistia, ainda mais quando são aplicados os demais requisitos legais, envolver membro do Congresso Nacional e que tenham efetuado o ressarcimento dos custos do uso da gráfica, o que deve ter sido feito conforme a tabela de preços para reposição de custos aprovada pela Mesa do Senado, excluindo cotas de gratuidade ou descontos. Sequer pode ser considerada a anistia como algo impessoal, tamanha a restrição aos casos em que ela se aplicaria, não se está a proteger uma coletividade, mas sim se está estabelecendo critérios que,nem sendo necessária a reunião completa, individualiza o destinatário. Tendo em vista que a atividade legislativa, como todo mister público, deve ter o interesse coletivo como seu alvo, chama a atenção que o Congresso Nacional tenha agido abertamente em nome de interesses corporativistas, tentando livrar um de seus membros da condenação, deixando o perigoso precedente aberto para outras situações semelhantes. Nas palavras de Francisco Gérson Marques de Lima: A Lei 8.985/1995 ofendeu e rompeu o princípio da separação dos poderes, eis que implicou, diretamente , no desfazimento de uma decisão judiciária transitada em julgado, em benefício de „pessoas específicas‟ [que o autor comenta ser favorável, rigorosamente, a uma pessoa específica]. Na verdade, ao conteúdo da lei só faltou 83 nominar a quem ela amparava [...] Necessário abordar que não nos cumpre buscar iniciativas ou atribuir a quem quer que seja pela iniciativa da Lei 8.985/95, cabe ao presente estudo indicar o fato histórico que gerou uma contramedida por parte do Congresso Nacional, ainda que diante de decisão judicial transitada em julgado. O caso do Senador Humberto Lucena serviu tanto de alerta contra o corporativismo que ofendeu diversos princípios constitucionais, representando um exemplo de má atuação dos legisladores, que, utilizando da legislação como resposta direta a um caso específico, num antinatural “casuísmo legislativo”. Não se pode considerar que uma ilicitude, seja em que esfera for, seja objeto de processo e manifestação judicial, transitada em julgado, seja também 83 LIMA, Francisco Gérson Marques de. O Supremo Tribunal Federal na crise ... p. 513. 81 centro de uma iniciativa legislativa direcionada unicamente à sua desconstituição com a única finalidade de beneficiar um indivíduo em espécie. A anistia que se intentou foi um atentando à segurança jurídica no sentido em que se buscou desconstituir com a legislação um fato consumado, a decisão judicial transitada em julgado, tudo em conformidade com o sistema constitucional, enxertando no sistema uma lei cujo único objetivo era desconstituí-lo. Segurança jurídica, como anteriormente já comentado, tem a ver com estabilidade, com a noção de que os cidadãos desejam e têm o direito de conhecer que regras nortearão a atividade tanto do Estado como dos particulares. No momento em que o próprio Estado, cuja função é prover segurança, atenta contra essa segurança, deixa o mesmo de atender à sua função principal, afronta a Constituição, fragilizando a confiança dos cidadãos e deixando aberta a possibilidade, ainda que remota no caso em espécie, de que os cidadãos rompam o contrato social. A questão central apresentada é a de que, inequivocamente, existem fatos que acabam por ensejar situações em que a legislação deixa de ser um veículo de consecução da vontade social para ser uma ferramenta de resposta a situações concretas. Atividade legislativa é uma manifestação democrática, um dos instrumentos da representatividade popular, se prestando a regular relações de modo a materializar a vontade dos cidadãos, vontade essa que não é respeitada quando o viés plural é abandonado para atender a especificidades, ainda mais no sentido de modificar regras gerais em benefícios de um cidadão específico. Quanto à Lei nº 8.985/95, que representou uma mostra inversa da situação apresentada linhas acima, onde a atividade legislativa atuou contra o interesse popular em favor do corporativismo do Congresso Nacional, aqui a 82 legislação serviu para atender a um anseio manifesto num momento de comoção pública, em grande porte incentivada pela mídia, que demandou uma reação à violência que ainda campeia nas ruas. A Constituição já previa o tratamento diferenciado à determinados crimes, entendidos como de maior reprovabilidade ou mais agressivos aos valores defendidos pelo Estado brasileiro, carecendo de regulamentação legal: A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá84 los, se omitirem A Lei nº 8.072, de 25 de junho de 1990, regulamentou o tratamento aos chamados crimes hediondos, estabelecendo o elenco dos crimes abrangidos pelo diploma legal, assim como uma séria de tratamentos mais rígidos para o processamento dos casos e execução penal. Ainda que se considere ser a Lei nº 8.072/90 necessária, não se poderia imaginar que a mesma seria alvo de tamanha atenção em decorrência de situações pontuais, as quais ensejaram mudanças em nome deu deseja crescente da população por respostas mais duras diante de atos de violência que geraram comoção pública. Não se está a dizer que o desejo popular não tenha razão alguma, mas sim que nem tudo o que é popular é legítimo, caso fosse, viveríamos uma “ditadura da maioria”, onde a legitimidade seria mascarada pela vontade, nem sempre possível, das massas. O momento histórico que influenciou a Assembléia Constituinte a incluir no texto constitucional a previsão de tratamento diferenciado aos crimes hediondos é claramente explicado por Antonio Lopes Monteiro: O tema dos crimes hediondos foi daqueles que geraram acirradas discussões na Constituinte, e a permanência da expressão „crimes hediondos‟, no texto constitucional, deveu-se a acordo de lideranças 84 CF, Art. 5º, XLIII. 83 em barganha por aprovação de outros pontos problemáticos. [...] devemos entender o momento de pânico que atingia alguns setores da sociedade brasileira, sobretudo por causa de seqüestros no Rio de Janeiro, culminando com o do empresário Roberto Medina, irmão do Deputado Federal pelo Estado do Rio de Janeiro, Rubens Medina, considerado a gota d‟água para a edição da lei. O clima emocional para o surgimento de dispositivos duros que combatessem os chamados crimes hediondos estava assim criado. A sociedade exigia uma providência drástica para pôr fim ao ambiente de insegurança vivido pelo País. O governo precisava dar 85 ao povo a sensação de segurança. Fica evidente que a incluir o tratamento aos crimes hediondos na Constituição adveio de fatos sociais, aos quais o Estado necessitou reagir de maneira a satisfazer anseios dos administrados, contudo, a violência segue sua escalada, testando os limites do choque a que a população é capaz de suportar antes de aceitar as situações e passar da revolta ao torpor. Originalmente a Lei nº 8.072/90 considerava como hediondos os crimes de latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada, estupro, atentado violento ao pudor, epidemia com resultado morte, envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte, e de genocídio, tentados ou consumados. Considerados equiparados aos crimes acima indicados, o artigo 2ª da referida Lei indica os crimes equiparados aos hediondos: prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e o terrorismo. O rol de crimes hediondos já era elástico, mas ainda não bastou para satisfazer a população, seguidos casos de crimes violentos tornaram a chocar os cidadãos e novamente foi oferecida a resposta com o enrijecimento da lei penal. O homicídio qualificado que vitimou a atriz Daniela Perez, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro/RJ, em 1992, novamente chocou a população, ainda 85 MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: comentários e aspectos polêmicos. São Paulo: Saraiva, 1991. pp. 3-4. 84 mais com a massiva cobertura dos meios de imprensa, que novamente ensejou uma resposta dos legisladores. A resposta oferecida foi a Lei nº 8.930, cuja vigência iniciou 07 de outubro de 1994, modificando a redação do artigo 1º da Lei nº 8.072/90, de maneira a incluir o “homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente e homicídio qualificado e, por outro lado, excluiu o envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte”. Houve ainda outra alteração, trazida pela Lei nº 9.695/98, que deu a atual forma aos crimes hediondos.86 Delineada a disciplina legal, deve ficar claro que todo o tratamento dado aos crimes hediondos se deve ao anseio social por segurança, a qual não é oferecida aos cidadãos, mas sim lhes é entregue uma falsa impressão de que o Estado reage por meio da legislação. Que legislar é um meio de ação estatal não há dúvida, porém sem que hajam ações coordenadas, envolvendo leis, infra-estrutura, pessoal qualificado e planejamento adequado, de nada adianta a dura e fria letra legal. Muito do arcabouço legal que regula os crimes hediondos tem seriedade, contudo, outros pontos apenas servem para reafirmar a comentada 86 Atualmente são os seguintes os incisos do artigo 1º da Lei nº 8.072/90: “Art. 1º. [...] I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV e V); II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine); III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o); IV - extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo, 2o e 3o); V - estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); VI - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o). VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho de 1998). Parágrafo único. Considera-se também hediondo o crime de genocídio previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado.” 85 falsa impressão de existe uma reação do Estado contra a violência. Citamos Antonio Lopes Monteiro, que já em 1991 indicava que o tratamento quanto as penas para os crimes hediondos e equiparados era dado sem que houvesse medida adequada: [...] isso mostra a ferocidade do legislador em cominar penas e regulamentar o cumprimento delas, quando se trata dos crimes previstos nesta lei. [Lei nº 8.072/90]. Essa avidez explica as aparentes e as não tão aparentes contradições que contém o diploma legal. [...] Este dispositivo [artigo 2º da Lei nº 8.072/90], embora seja lógico e decorra da filosofia da deste diploma legal, merece severas críticas, pois não leva em conta toda um apolítica penitenciária. Esquece a psicologia forense e as peculiaridades de cada sentenciado, sobretudo a adaptação a uma nova realidade social através do trabalho e da convivência, proporcionadas na progressão dos regimes. Olvida-se o legislador de que condenado nesta situação nada tem a perder, e o passo seguinte é o fomento das rebeliões, a fuga com reféns e a criação de verdadeiras quadrilhas, planejando e comandando empreitadas criminosas de dentro dos muros das casas de detenção e penitenciárias. Enfim, o que deveria ser uma etapa de regeneração transforma-se numa escola de aprimoramento da delinqüência 87 organizada. A legislação acerca do tema em tela é mais um exemplo de casuísmo legislativo, não sendo parte de plano concreto para combate à violência, mas apenas uma amostra de que as massas podem encontrar legisladores sensíveis a seus anseios, ainda que de forma irrefletida e sem objetividade ou resultados adequados. O raciocínio descrito acima não é único, conforme se infere das palavras de Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini: De todas as possíveis formas de instrumentalização do Direito penal, duas, desde logo, merecem destaque: a política e a levada a cabo pelos meios de comunicação (instrumentalização „midiática‟). As leis penais existem para preservar a convivência social, recaindo sua eficácia de forma igualitária sobre todos. Esse é o discurso oficial do sistema. Esse discurso, entretanto, é irreal e falacioso porque as leis penais, na prática, acabam muitas vezes cumprindo a função de fortalecimento dos valores e das normas impostas pelos dominadores (políticos, econômicos, religiosos, etc.), com a pretensão de preservar vantagens e privilégios. [...] O uso perverso do direito penal, na era informacional e globalizada, vem se acentuando. A mídia retrata a violência como um „produto‟ de mercado. A criminalidade (e a persecução penal), assim, não somente possui valor para uso político (e, especialmente, para uso „do‟ político), senão que é também objeto de autênticos melodramas cotidianos que 87 MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: texto, comentários e aspectos polêmicos. São Paulo: Saraiva, 1991. pp. 113-115. 86 são comercializados com textos e ilustrações nos meios de comunicação. [...] Grande parcela da responsabilidade pela banalização da violência e do Direito penal se deve aos políticos e as meios de comunicação. A constatação irrefutável é esta: definitivamente o Direito penal, na era da globalização, transformou-se em produto (valioso) de mercado. Os políticos e os meios de comunicação „vendem-no‟ como se fosse uma mercadoria. E para isso adotam todas as técnicas de mercado: pesquisa do medo da população, pesquisa dos anseios populares, marketing, intensa oferta do produto, especulação com o pânico e o terror, aproveitamento dos momentos de histeria coletiva contra a insegurança pública, promessa d resolução imediata dos problemas, 88 etc. Entender a função estatal em qualquer de seus aspectos como um meio de responde a situações unitárias, a casos específicos, é reduzir o estado a um mero emissor de respostas a demandas de cada cidadão, o que não tem qualquer ligação com as finalidades estatais, gerando sérios fatores de insegurança jurídica. O Estado está a serviço dos cidadãos, não a serviço de cada cidadão, a atuação estatal se dá coletivamente, cumprindo os princípios e normas constitucionais e realizando as legítimas expectativas dos cidadãos. O dever estatal é para com a esfera coletiva, assim como o dever individual dos cidadãos, porém, os últimos gozam da prerrogativa de esperar que suas expectativas individuais, desde que legítimas, sejam satisfeitas. O que foi dito linhas acima pode ser sintetizado, em termos já utilizados no presente estudo, nas dimensões objetiva e subjetiva da segurança jurídica, sendo a primeira dimensão cabível a ambas as partes, Estado e cidadão, e a última apenas ao cidadão, por ter a ver com o sujeito, que somente pode ser uma pessoa. Quando a atividade legislativa sai de seus propósitos e da normalidade, passando a ser uma resposta casuística, não cumpre mais os objetivos, assim como pode trazer inconstitucionalidade ou ilegalidades em seu conteúdo ou forma. 88 GOMES, Luiz Flávio. BIANCHINI, Alice. O direito penal na era da globalização: hipertrofia irracional (caos normativo), instrumentalização distorcionante.... São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. pp. 74-76. 87 No exemplo pertinente aos crimes hediondos, podemos citar que trouxe inconstitucionalidades, excessos cometidos em nome de um alegado enrijecimento da lei contra a violência. Citamos aqui, à guisa e prova do raciocínio exposto, que, a questão da progressão de regime em caso de cometimento de crimes hediondos, especificamente a questão do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei nº 8.072/90, que afirmava ser integralmente fechado o regime de cumprimento da pena imposta aos crimes indicados no caput, ou seja os hediondos e equiparados. De início, destacamos o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, a qual era pela constitucionalidade do instituto, fundamentando sua opção por entender que o constituinte originário deixou tal faculdade ao legislador ordinário.89 Com a devida vênia ao STJ, apesar de parecer bem fundado o raciocínio, temos que nos filiar ao entendido posteriormente pelo Pretório Excelso, ao qual pertence a última palavra em sede de questão constitucional. Verdade que o texto constitucional previu tratamento diferenciado aos processados e condenados por crimes hediondos, mas daí a entender que tal liberdade é absoluta não encontra apoio no restante do sistema jurídico. 89 Exemplificamos o entendimento do STJ com o seguinte aresto: "RECURSO ESPECIAL. CRIMINAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CRIME HEDIONDO. REGIME PRISIONAL INICIALMENTE FECHADO. IMPOSSIBILIDADE. ARTIGO 2º, PARÁGRAFO 1º, DA LEI 8.072/90. 1. O Plenário do Excelso Supremo Tribunal Federal decidiu já pela constitucionalidade da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), eis que, para além de ser a edição do direito penal matéria própria da dimensão infraconstitucional (Constituição Federal, artigo 22, inciso I), a norma inserta no inciso XLVI do artigo 5º da Constituição da República defere, também à lei, a disciplina da individualização da pena, que pode assim estabelecer especialmente o regime fechado como integral das penas dos crimes hediondos (cf. HC nº 69.603-1-SP, de 18/12/1992 - un. - Rel. Min. Paulo Brossard - DJU de 23/4/1993, p. 6922, in Revista Trimestral de Jurisprudência 146/2, pg. 611). 2. Tratando-se de condenação por tráfico de entorpecentes, delito equiparado a hediondo na forma do artigo 2º, caput, da Lei 8.072/90, deve a pena ser cumprida integralmente em regime fechado (artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 8.072/90). 3. Recurso conhecido e provido." STJ - Recurso Especial: REsp 265321/GO 2000/0064721-7. Relator(a): Ministro Hamilton Carvalhido. Julgamento: 23/10/2000. Órgão Julgador: Sexta Turma. Publicação: DJ 12.02.2001, p. 149. No mesmo sentido: STJ- HC12768/RS, DJU 23.10.2000, p. 152; STJ - RE90171/SP, Sexta Turma, DJU 12.08.1997, p. 36287 e RT Vol. 00745, p. 00528. STJ- RE91852/MG, DJU 05.05.1997, p. 17139; RT Vol. 00742, p. 00591. STJ-RE92640/ES, DJU 03.03.1997, p. 4719 e LEXSTJ Vol. 00095 Julho/1997, P. 00342. STJ-RO em HC 5115/RN, DJU 20.05.1996, p. 16742. STJ - RE 59288/SP, DJ 23/10/1995, p. 35720 e RSTJ VOL. 00076, p. 00268. 88 Ademais, a disciplina constitucional, no artigo 5º, inciso XLIII, afirma que os crimes hediondos e equiparados, serão “inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou indulto”, nada disciplinando acerca do regime de cumprimento da pena. A própria Constituição, em seu artigo 5º, inciso II, determina que “ninguém será submetido a [...] ou tratamento desumano ou degradante”; no inciso XLVI, preceitua que “a lei regulará a individualização da pena...”; estatui, ainda no parágrafo 2º do mesmo artigo estabelece a possibilidade de incidência e aplicabilidade de outras garantias decorrentes de princípios ou tratados internacionais. Diante das exposições acima, é evidente que em momento algum a Constituição estabeleceu a impossibilidade da progressão de regime aos apenados por crimes hediondos, mas sim estabeleceu uma série de garantias, que, por menos ou mais adequadas, se aplicam a todos indistintamente. Apesar de desejado por considerável parcela da população, vedar a progressão de regime aos condenados por crimes hediondos ofende a Constituição, assim como nega a própria natureza do sistema carcerário, que busca reabilitar o condenado para devolvê-lo à vida em sociedade. O Supremo Tribunal Federal, que chegou a ter jurisprudência formada no sentido de que não havia inconstitucionalidade no dispositivo90, contudo, reviu sua posição quando do julgamento do o Habeas Corpus nº 82.959/SP, concluiu pela inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, 90 Nesse sentido os seguintes julgados: STF - HC69657/SP; STF - HC 76479, DJU 08.05.98, p. 4; STF HC 78124, DJU 18.12.98, p. 51; STF - HC 71031, DJU 10.06.94, p. 14789; STF - HC 71206, DJU 24.06.94, p. 16636; STF - HC 71182, DJU 26.08.94, p. 21891; STF - HC 71653, DJU 10.03.95, p. 04881; STF - HC 71994, DJU 09.06.95, p. 17231; STF - RE 187567, DJU 06.10.95, p. 33146; STF - HC 72567, DJU 23.02.96, p. 03624; STF - HC 72363, DJU 31.10.96, p. 42014; STF - HC 74566, DJU 07.03.97, p. 05403; STF - HC 70616, DJU 04.04.97, p. 10519; STF - HC 74697, DJU 27.06.97, p. 30229; STF - HC 76217, DJU 06.03.98, p. 04; STF - HC 76949, DJU 14.08.98, p. 06; STF - HC 76608, DJU 09.10.98, p. 02; STF - HC 77076, DJU 20.11.98, p. 03; STF - HC 77132, DJU 27.11.98, p. 08; STF - HC 77828, DJU 27.11.98, p. 10; STF - HC 78166, DJU 16.04.99, p. 06; STF - HC 78247, DJU 21.05.99, p. 04; STF - HC 78417, DJU 21.05.99, p. 11. 89 declarando que a adoção do regime integral fechado e a impossibilidade de progressão violavam a Carta Magna: PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA - CRIMES HEDIONDOS - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - ÓBICE - ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 INCONSTITUCIONALIDADE EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena - artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal - a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do 91 artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90. Como se vê, até pelo ano da decisão do Pretório Excelso, levou muito tempo até a decisão pela inconstitucionalidade sobreviesse, dependendo da mudança e composição da corte ao longo do tempo, contudo, o fato é que a inconstitucionalidade já se apresentava desde o surgimento do diploma legal impugnado. Contudo, a decisão do STF trouxe um desequilíbrio, fatalmente desproporcional e que, em seu turno, desnatura o tratamento diferenciado aos crimes hediondos. Se os autores de crimes de menor ou médio potencial ofensivo tinham direito à progressão após o cumprimento de um sexto da pena aplicada, na forma do artigo 112 da Lei de Execuções Penais, com a decisão do STF, os condenados por crimes hediondos passaram a ter o mesmo tratamento. Assim, um crime hediondo ou equiparado passou a ter o mesmo regramento, quando da execução da pena, dos demais crimes. O novo posicionamento do STF causou certa divergência nos responsáveis pela execução penal, porém, novamente o legislador respondeu ao caso concreto, agora a situação criada pela mais alta corte do país. Diante dos crimes hediondos tendo o mesmo tratamento dos crimes comuns, o 91 STF. HC 82959, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2006, DJ 01-092006, p. 00018. Ementário: Vol. 02245-03, p. 00510. RTJ Vol. 00200-02, p. 00795. 90 sistema de execução penal quedou visivelmente desequilibrado, diante de tal quadro, foi editada a Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, a qual regulamentou novamente a progressão de regime de cumprimento penal de crimes hediondos e equiparados. Desta feita, foi admitida no texto legal a progressão de regime, com regime inicialmente fechado, agora determinando o benefício, com regras específicas. Como se vê, não existe uma política de execução penal definida, mas sim movimentos a esmo, conforme as circunstâncias. Tendo sido inicialmente, no afã de um alegado atendimento aos anseios sociais, instituído tratamento inconstitucional aos apenados, constatada a inconstitucionalidade, a decisão quedou, pela impossibilidade do STF agir como legislador positivo, acabou por expurgar a irregularidade do tratamento. Agora, buscando corrigir o desequilíbrio originado pelo próprio legislador infraconstitucional, constatado e materializado pelo STF, o legislador novamente agiu casuisticamente, não moldando novamente a execução penal, mas pontualmente adequando o texto legal à decisão do Pretório Excelso. É patente que legislar sem que haja medida da adequação ao sistema constitucional, modificando a disciplina legal para atender à manifestações decorrentes de crimes violentos, atendendo à momentos de convulsão social, não é compatível com a segurança jurídica. Legislar como de fato foi feito, no intuito de manter o tratamento mais duro aos condenados, serviu para reagir à demanda popular, contudo, a inconstitucionalidade poderia ser brecada ainda em sede do controle preventivo de constitucionalidade, o que não aconteceu. Dessa forma, foi elaborada legislação, no mínimo, previsivelmente inconstitucional, o que gerou dano à segurança jurídica na medida em que foi preciso que houvesse pronunciamento judicial para restabelecer a integridade do sistema jurídico. 91 A ofensa à segurança jurídica ocorreu e gerou prejuízo a muitos condenados até que o STF trouxesse o sistema de volta à uma relativa normalidade, e se deu a ofensa no intuito de atender ao anseio popular no sentido de reação contra a escalada da violência. Porém, a decisão do STF extirpou do ordenamento jurídico uma flagrante inconstitucionalidade, contudo, o resultado violou os princípios atinentes à questão, dessa forma, a correção de um erro gerou uma inconsistência, que foi, novamente numa Lei elaborada casuisticamente, corrigida pelo Congresso Nacional. Em discussão relativa ao tratamento dispensado aos crimes hediondos, a segurança jurídica foi violada, na medida em que representou, desde seus nascedouro no texto constitucional, como resposta ao clamor popular, sem que houvesse planejamento ou uma política definida sobre o tema. Não estamos a afirmar que há algo de errado com o atendimento ao povo, ao contrário, a legitimidade é parte da democracia, mas o papel do Estado não é atender a todos os desejos dos administrados, mas sim buscar o equilíbrio entre o desejado e o possível, no intuito de preservar a organização social e a segurança, em todos os aspectos, desejada pelos cidadãos. A anistia concedida de forma direcionada a uma pessoa especificamente, ainda com sentido de afastar uma decisão judicial transitada em julgada em julgado, não apenas viola a segurança jurídica, também ofende a separação dos poderes, e ofende grosseiramente o desejo social. Como vemos, a segurança jurídica pode ser violada tanto para violar quanto para atender aos anseios dos cidadãos, bastando inaptidão, desejo, ou mesmo uma vontade dos legisladores em agir menos conforme a técnica e mais conforme o corporativismo, relações com a mídia ou outros desígnios. 92 2.2. A desarmonia dos poderes É fato que a separação, ou tripartição, dos poderes tem lugar de destaque na organização estatal brasileira, sendo uma das bases do Estado como o conhecemos, remontando a França revolucionária à época de Montesquieu. Separados os poderes, eles passaram a ser parte do “sistema de freios e contrapesos”, no qual os poderes têm suas funções precípuas separadas, mas também a função de fiscalizar uns aos outras e algumas intersecções, pontos em que as funções de um poder são exercidas por outros poderes. No caso do Poder Legislativo, não lhe cabe a exclusividade para legislar, mas essa é sua principal função, existindo matérias às quais as competências são pertinentes a outros poderes, isso sem que o Legislativo seja diminuído ou esvaziado, da mesma forma ocorre com os demais poderes. O que existe, em condições normais, é uma divisão de competências hábil a manter o equilíbrio e a harmonia entre os poderes. Contudo, o que se apresenta no Brasil é um desequilíbrio no qual ao Legislativo tem sido relegado um papel de apenas chancelar a iniciativa legislativa que advém do Poder Executivo. Nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari, é possível explicar a separação dos poderes da seguinte forma: “[...] o poder do Estado é uno e indivisível. É normal e necessário que haja muitos órgãos exercendo o poder soberano do Estado, mas a unidade do poder não se quebra por tal circunstância [...]”.92 92 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 23.ed. São Paulo; Saraiva. 2002. pp. 215-216. 93 Pelas palavras acima, temos claro que o Estado se manifesta de forma uniforme, agindo com a unicidade que lhe é própria, porém, funciona com competências divididas, já que não dividir as competências, especializando setores do Estado, seria a concentração do poder, redundando no antigo regime, de viés absolutista, incompatível com a democracia. A lição de Gilmar Ferreira Mendes traz a reflexão teórica e já indica que no Brasil o estudo deve considerar as particularidades pátrias: Na Constituição do Brasil, esse princípio, que está estampado no seu art. 2º, onde se declara que são Poderes da União – independentes e harmônicos – o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, é de tamanha importância que possui o status de cláusula pétrea, imune, portanto, a emendas, reformas ou revisões que tentem aboli-lo da Lei Fundamental. Inicialmente formulado no sentido forte – até porque assim o exigiam as circunstâncias históricas – o princípio da separação dos poderes, nos dias atuais, para ser compreendido de modo constitucionalmente adequado, exige temperamentos e ajustes à luz das diferentes realidades constitucionais, num círculo hermenêutico em que a teoria da constituição e a experiência constitucional mutuamente se completam, se esclarecem e se fecundam. Nesse contesto de „modernização‟, esse velho dogma da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias – que são editas com força de lei – bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável criatividade de juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é freqüente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em sede de 93 controle de constitucionalidade. Explicando a teoria dos freios e contrapesos, decorrente da separação dos poderes e que temos como essencial a uma boa função estatal e respeito aos valores democráticos, novamente citamos Dallari: O sistema de separação dos poderes, consagrado nas Constituições de quase todo o mundo, foi associado à idéia de Estado Democrático e deu origem a uma engenhosa construção doutrinária, conhecida como sistema de freios e contrapesos. Segundo essa teoria os atos que o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerai ou são atos especiais. Os atos gerais, que só podem ser praticados pelo poder legislativo, constituem-se na emissão de regras gerais e abstratas, não se sabendo, no momento de serem emitidas, a quem elas irão atingir. Dessa forma, o poder legislativo, que só pratica atos gerais, não atua concretamente na vida social, não tendo meios para 93 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 156. 94 cometer abusos de poder nem para beneficiar ou prejudicar a uma pessoa ou a um grupo em particular. Só de pois de emitida a norma geral é que se abre a possibilidade de atuação do poder executivo, por meio das normas especiais. O executivo dispõe de meios concretos para agir, mas está igualmente impossibilitado de atuar discricionariamente, porque todos os seus atos estão limitados pelos atos gerais praticados pelo legislativo. E se houver exorbitância de qualquer dos poderes surge a ação fiscalizadora do poder judiciário, obrigando a cada um de permanecer nos limites de sua respectiva 94 esfera de competências. Nas palavras de Paulo Bonavides, ao tratar da teoria dos freios e contrapesos, é destacada a interdependência dos poderes nos seguintes termos: Consideraremos a seguir na prática constitucional do Estado moderno as mais conhecidas formas de equilíbrio e interferência, resultantes da teoria de freios e contrapesos. Dessa técnica resulta a presença do executivo na órbita legislativa por via do veto e da mensagem, e excepcionalmente, segundo alguns, da delegação de poderes, que o princípio a rigor interdita, por decorrência da própria lógica da separação. Com o veto dispõe o executivo de uma possibilidade de impedir resoluções legislativas e com a mensagem recomenda, propõe eventualmente inicia a lei, mormente naqueles sistemas constitucionais que conferem a esse poder – o executivo – toda a iniciativa em questões orçamentárias e de ordem financeira em geral. Já a participação do executivo na esfera do judiciário se exprime mediante o indulto, faculdade com que ele modifica efeitos de ato proveniente de outro poder. Igual participação se dá através da atribuição reconhecida ao executivo de nomear membros do poder judiciário. Do legislativo, por sua vez, partem laços vinculando o executivo e o judiciário à dependência das câmaras. São pontos de controle parlamentar sobre a ação executiva: a rejeição do veto, o processo de impeachment contra a autoridade executiva, a aprovação de tratado e a apreciação de indicações oriundas do poder executivo para o desempenho de altos cargos da pública administração. Com respeito ao judiciário, a competência legislativa de controle possui, em distintos sistemas constitucionais, entre outros poderes eventuais os variáveis, ou de determinar o número de membros do judiciário, limitar-lhe a jurisdição, fixar a despesa dos tribunais, majorar vencimentos, organizar o poder judiciário e proceder o julgamento político ( de ordinário pela chamada „câmara alta‟), tomando assim o lugar dos tribunais no desempenho de funções de caráter estritamente 95 judiciário. 94 95 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria... pp. 219-220. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. 8ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 141. 95 A função essencial do Poder Legislativo é a elaboração de leis e demais atos normativos, contudo, tal tarefa, não lhe é exclusiva, em alguns casos cabendo a outros poderes a iniciativa legiferante. De outra forma não poderia ser, já que uma hipotética exclusividade da atividade legislativa tornaria sem efeito a teoria dos freios e contrapesos, deixando os demais poderes reféns do Legislativo, o que absolutamente não é o caso. No Brasil, as competências legislativas conferidas ao Legislativo são de caráter geral, com o artigo 48 da Constituição Federal96 estabelecendo as principais, e o artigo 4997 estabelecendo as competências exclusivas. 96 “Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: I - sistema tributário, arrecadação e distribuição de rendas; II - plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, operações de crédito, dívida pública e emissões de curso forçado; III - fixação e modificação do efetivo das Forças Armadas; IV - planos e programas nacionais, regionais e setoriais de desenvolvimento; V - limites do território nacional, espaço aéreo e marítimo e bens do domínio da União; VI - incorporação, subdivisão ou desmembramento de áreas de Territórios ou Estados, ouvidas as respectivas Assembléias Legislativas; VII - transferência temporária da sede do Governo Federal; VIII - concessão de anistia; IX - organização administrativa, judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública da União e dos Territórios e organização judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Distrito Federal; X – criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas, observado o que estabelece o art. 84, VI, b; XI – criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública; XII - telecomunicações e radiodifusão; XIII - matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações; XIV - moeda, seus limites de emissão, e montante da dívida mobiliária federal. XV - fixação do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, observado o que dispõem os arts. 39, § 4º; 150, II; 153, III; e 153, § 2º, I.” 97 “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional; II - autorizar o Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, a permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar; III - autorizar o Presidente e o Vice-Presidente da República a se ausentarem do País, quando a ausência exceder a quinze dias; IV - aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas; V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa; VI - mudar temporariamente sua sede; VII - fixar idêntico subsídio para os Deputados Federais e os Senadores, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I; VIII - fixar os subsídios do Presidente e do Vice-Presidente da República e dos Ministros de Estado, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I; 96 Excepcionalmente, o Executivo legisla, como nos casos previstos no artigo 61, §1º, I e II, da Constituição Federal, que elenca matérias de iniciativa privativa do Presidente da República. No exemplo acima, somente ao Presidente da República cabe a iniciativa de deflagrar o processo legislativo, logo, toda a atividade posterior depende de sua ação. Assim o Poder Executivo legisla, na medida em que toma a iniciativa concreta de legislar, carecendo da aprovação dos representantes do povo, ocupantes das cadeiras do Poder Legislativo, para implementação. Da mesma forma acontece no Judiciário, como nos casos do artigo 96, I, “d”, e II, da Constituição Federal, e mesmo com o Ministério Público, que não é sequer poder, caso do artigo 127, § 2º, também da Constituição. Como já ficou claro, não se trata de uma divisão absoluta dos poderes, mas sim de uma partição clara e competências, na qual um poder não aja dentro da esfera de outro, ao contrário: ainda que, por exemplo, o Poder Executivo deseje determinado direcionamento a uma matéria, permitirá o debate e buscará fazer prevalecer sua posição através de critérios legítimos. Não há, de fato, uma divisão ideal de competências, na verdade, o Legislativo atua, mas em muitas oportunidades, o Executivo formula, faz aprovar e executa seus desígnios. E aqui está a celeuma. O próprio Poder Legislativo é capaz de atestar que o papel do Executivo é exacerbado diante das duas casas daquele poder. IX - julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo; X - fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta;” XI - zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes; XII - apreciar os atos de concessão e renovação de concessão de emissoras de rádio e televisão; XIII - escolher dois terços dos membros do Tribunal de Contas da União; XIV - aprovar iniciativas do Poder Executivo referentes a atividades nucleares; XV - autorizar referendo e convocar plebiscito; XVI - autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais; XVII - aprovar, previamente, a alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares.” 97 O Anuário Estatístico do Processo Legislativo de 2005, editado e publicado pela Câmara dos Deputados, traz dados que, mesmo em primeira análise chamam atenção pela hipertrofia do Executivo nas iniciativas de apresentação de proposições. Considerando a proposição de todas as atividades legislativas, o Presidente da República em 2005 totalizou 93 (noventa e três) iniciativas; no mesmo período, o Senado Federal tomou 119 (cento e dezenove) iniciativas, e a Câmara dos Deputados, considerando suas comissões e os deputados, 3.565 (três mil quinhentas e sessenta e cinco) iniciativas.98 O que se apresenta é uma desproporção, mascarada pelo número de iniciativas da Câmara dos Deputados, mas analisando os números de modo um pouco mais detido, é visível que o Executivo, sozinho, foi responsável por 2% (dois por cento) das proposições, enquanto o Senado Federal, cuja função principal é legislar, teve 3% (três por cento), e a Câmara dos Deputados, considerando o mesmo critério dos números absolutos acima, 92% (noventa e dois por cento).99 O fenômeno não é isolado ou restrito, no ano de 2006, também conforme o Anuário de Estatístico do Processo Legislativo referente àquele ano, o Presidente da República totalizou 104 (cento e quatro) iniciativas legislativas, ao passo que o Senado Federal 131 (cento e trinta e uma) e Câmara dos Deputados, consideradas as comissões e os deputados, 1.790 (hum mil setecentas e noventa) iniciativas.100 Novamente pondo os números em percentuais, que facilitam a visualização da proximidade em comento, temos que o Presidente da República teve 5% (cinco por cento) das iniciativas legislativas no ano de 2006, 98 Anuário estatístico do processo legislativo. Ano 1 (2005). Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2006. v. (Série estatística legislativa). p. 56. 99 Anuário estatístico do processo legislativo. Ano 1 (2005)... p. 57. 100 Anuário estatístico do processo legislativo. -- Ano 1 (2005)... p. 54. 98 ao passo que o Senado Federal teve 6% (seis por cento), e a Câmara dos Deputados, somando comissões e deputados, 88% (oitenta e oito por cento). Constam ainda dados relativos ao ano de 2007, em que novamente se apresentam dados semelhantes, com o Executivo (Presidência da República) totalizando 115 (cento e quinze) iniciativas legislativas, o Senado Federal 158 (cento e cinqüenta e oito) e a Câmara dos Deputados, nos mesmos moldes acima, 3.569 (três mil quinhentos e sessenta e nove iniciativas. Novamente em percentuais, temos, nos mesmo moldes anteriores, a Presidência da república exercitando 3% (três por cento), o Senado Federal 4% (quatro por cento) e a Câmara dos Deputados 93% (noventa e três por cento) das iniciativas legislativas. Numa análise superficial, pode ser sugerida a conclusão de que há um movimento de decrescente participação do Executivo na atividade legislativa, o que não é correto, apesar dos números absolutos representarem uma premissa válida. Ainda que haja variação nos números, é a proximidade entre a Presidência da República, o poder Executivo, e o Senado Federal, o cerne da questão: Não é aceitável, sob um olhar republicano, que as iniciativas de uma casa legislativa e um poder cuja função legislativa deveria ser pontual sejam quase que equivalentes, não o sendo por uma diferença que chega a ser desprezível diante do total. Considerando que a função legislativa é da essência do Legislativo, a esse cabe, também pela amplitude de suas competências constitucionalmente definidas, a predominância do exercício de tal mister. Não é cabível que a principal função de um poder seja quase que igualada por outro que até exerce a atividade semelhante, mas o faz em caráter excepcional. A situação que 99 surge é de desvio de função, em que o Executivo legisla quase tanto quanto o Senado Federal, quando a diferença deveria ser enorme. Não é algo simples de se combater, visto que o regime presidencialista propicia que o Poder Executivo tenha uma abrangência maior que em outros sistemas, como o parlamentarismo, mas uma real separação dos poderes não permite que haja um poder suplantado por outro. Quem imagine ser apenas uma questão circunstancial deve atentar para as citações doutrinárias acima, que deixam claro a importância da interdependência entre os poderes, em que um serve de limitador aos demais, de modo a manter um desejado equilíbrio das instituições. O equilíbrio institucional é desejado não apenas e simplesmente por ser a forma como o sistema político democrático foi idealizado, mas também porque assim é evitável o corporativismo dentro de um poder, que, sendo o que se sobreponha aos outros, passa a ter controle sobre o Estado. No Brasil se experimenta uma situação dessa natureza: o partido político do mandatário do Poder Executivo usualmente tem uma grande representação no Legislativo, ou, no mínimo, uma extensa rede de alianças que assegura ampla maioria no parlamento. O cenário descrito mostra que, em geral, o ocupante do Poder Executivo tem, em termos simples, uma real ascendência fática sobre o Legislativo, logo, o debate político e a conseqüente busca do melhor interesse da coletividade ficam ofuscados pelas composições, acordos e objetivos de um grupo político. Materializa-se, dessa forma o entendimento de que nem sempre o interesse da administração corresponde ao interesse público. Tal cenário se agrava com a implantação de institutos para os quais nossa estrutura política não foi preparada, como a reeleição para os cargos do Poder Executivo: em que um ocupante desse poder tem o primeiro mandato para assegurar os meios de buscar a reeleição, sem que haja uma igualdade de condições entre candidatos, enquanto no segundo mandato apenas trabalha para manter seus apoios, de modo que há uma acomodação danosa ao 100 interesse público, há tempo para a construção de uma estrutura não em torno dos cidadãos, mas sim de interesses político-partidários. Como os partidos políticos formam coligações para disputa das eleições, ou decidem por acordos para apoiar candidatos eleitos, há uma inconveniente relação entre quem exerce os poderes Legislativo e Executivo, com predominância desse, que acaba por dificultar a viabilização do sistema de freios e contrapesos como idealizado. 2.3. Medidas provisórias É sabido que nos anos posteriores à Constituição de 1988 desenvolveuse no Brasil um hábito do Poder Executivo, especificamente no nível Federal, de utilizar em profusão o instituto da Medida Provisória. Na Constituição de 1988 as medidas provisórias são reguladas no artigo 62101, o qual foi 101 “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I – relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil; c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º; II – que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro; III – reservada a lei complementar; IV – já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República. § 2º Medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada. § 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. § 4º O prazo a que se refere o § 3º contar-se-á da publicação da medida provisória, suspendendo-se durante os períodos de recesso do Congresso Nacional. § 5º A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais. § 6º Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando. 101 modificado pela emenda Constitucional nº 32, já no intuito de restringir a edição e reedição de medidas provisórias, o que obteve algum resultado, ainda que menor que o desejado. Gilmar Ferreira Mendes102, comentando a natureza jurídica das medidas provisórias, as entende, na esteira da lição de Pontes de Miranda, como sendo “lei sob condição resolutiva”103, para, em seguida, apresentar seu conceito de Medida Provisória: [...] as medidas provisórias são atos normativos primários, sob condição resolutiva, de caráter excepcional no quadro dos Poderes, e, no âmbito federal, apenas o Presidente da República conta o poder de editá-las. Ostenta nítida feição cautelar. Embora produzam efeito de concitar o Congresso a deliberar sobre a necessidade de converter em norma certo trecho da realidade social, não se confundem com meros projetos de lei, uma vez que desde quando editadas já produzem 104 efeitos de norma vinculante. Dessa forma, fica patente que, ao editar uma Medida Provisória, o executivo atua positivamente na atividade legislativa, atividade excepcional em relação à função administrativa que lhe cabe, logo, por natureza deveria o instituto ser utilizado com parcimônia e cautela. Contudo, o que acontece é que os presidentes da república aproveitam a eficácia imediata e a facilidade de edição das medidas provisórias para aplicar seus projetos, muitos que duvidosamente atendam aos requisitos de relevância e urgência para edição de uma Medida Provisória. § 7º Prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de medida provisória que, no prazo de sessenta dias, contado de sua publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional. § 8º As medidas provisórias terão sua votação iniciada na Câmara dos Deputados. § 9º Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional. § 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. § 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas. § 12. Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manterse-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto.” 102 MENDES, Gilmar Ferreira [et.al.]. Curso de direito... p. 884. 103 MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, t. 3, p. 138. 104 MENDES, Gilmar Ferreira [et.al.]. Curso de direito... p. 884. 102 Cada medida provisória insta o Poder Legislativo a manifestar-se acerca de um tema que não foi objeto de regulamentação, de modo que a Medida Provisória convertida em lei faz com que essa não apresente formal ou materialmente nenhuma distinção das demais leis. Assim, o Executivo age provisoriamente, o que é aceito, com ou sem emendas, ou rejeitado, sendo o produto decorrência do processo legislativo, cujo resultado se desvincula da origem: a lei não precisa fazer remissão ao documento que a originou. Contudo, o presente estudo não cuida de analisar o final do processo, a lei decorrente das medidas provisórias, mas sim o inicio desse, a edição das medidas provisórias pelo executivo e alguns aspectos que denotam problemas institucionais, desequilíbrio entre os poderes e desvirtuamento do instituto da Medida Provisória. Fernando Basto Ferraz indica a pedra de toque da questão: o mau uso das medidas provisórias, cuja conseqüência direta é o desequilíbrio entre os poderes: Questiona-se se os poderes da União são, de fato, independentes e harmônicos entre si, em função da hipertrofia do Poder Executivo que abusa na edição de medidas provisórias, sob o frágil argumento 105 de relevância e urgência (CF/88, artigo 62). Como já abordado, o Executivo tem atuado como legislador em mais oportunidades do que o republicanamente aconselhável, ofuscando o legislativo, e as medidas provisórias foram o grande meio usado pelo executivo para legislar. Um instituto que tem eficácia imediata, com o mesmo valor de uma lei ordinária, sem necessitar da discussão imposta pelo processo legislativo, a qual ocorre posteriormente, dependendo apenas da vontade do Poder Executivo é uma facilidade muito aproveitada pelo executivo, que tem pressa para implementar seus desígnios. 105 FERRAZ, Fernando Basto. A agonia de um modelo de estado. In BARBOSA, Edmilson (Org.). Democracia e constituição: estudos em homenagem ao professor Dimas Macedo. Fortaleza: Edições UFC. 2008. p. 11. 103 Independentemente de qualquer juízo de valor sobre as políticas implantadas por meio de medidas provisórias, entre as quais por vários anos o valor do salário mínimo, o instituto foi desvirtuado, com um critério elástico de “relevância e urgência” e a falta de resistência dos legisladores diante da invasão de sua seara. Evidentemente que um instituto ser usado de maneira imprópria, de modo a deixar de ser uma excepcionalidade para passar a ser uma corriqueira ferramenta legislativa do Poder Executivo, alterando políticas e instituições a qualquer momento é um fator de insegurança. As medidas provisórias, ao inovar no ordenamento jurídico sem que haja discussão acerca do tema, o que fica para o momento seguinte, acabam por permear o sistema de forma a manter a possibilidade de, a qualquer tempo, sobrevir mudança na legislação sem que os cidadãos, por meio de seus representantes no Poder Legislativo, sejam ouvidos. O problema não é do instituto da Medida Provisória em si, que tem sua utilidade, observados os critérios para sua edição, mas sim com sua vulgarização, de maneira tamanha que não causam mais nenhuma estranheza as notícias de que a pauta de votação nas casas do Congresso Nacional estejam “trancadas” por necessidade de apreciação de uma ou mais medidas provisórias cujo prazo de trâmite já superou o normal. Tal fenômeno denota que a atividade legislativa do Poder Executivo sobrecarrega o Poder Legislativo, que não consegue sequer dar vazão ao que vem daquele poder, quiçá legislar por sua própria iniciativa. É compreensível que a separação dos poderes não seja rígida como originalmente pensada, já que a agilidade necessária ao mundo contemporâneo não permite a rigidez de outros tempos, mas não é compatível com o ordenamento jurídico que os poderes, que funcionam como um sistema, sejam submetidos por um deles. A situação é que as medidas provisórias que surgem em profusão, apesar de serem consideradas como cumpridoras dos requisitos para edição, em que pese a ampla maioria dos congressistas 104 oferecerem suporte ao governo, elas há muito abandonaram, na prática, a restrição aos casos de relevância e urgência. Não se pode falar em urgência de situações como o aumento de salário mínimo, disciplinado, por exemplo, na Medida Provisória nº 456, de 30 de janeiro de 2009. O caso é que o valor foi decidido pelo Poder Executivo, quando deveria ser objeto de discussão pelos legisladores, considerando a realidade sócio-econômicas do país, as condições reais de necessidade dos cidadãos e a possibilidade do empresariado e do próprio governo. O que surgiu foi uma Medida Provisória, que, caso rejeitada, redundaria num mal maior, a volta ao valor anterior do salário mínimo, e cuja modificação ou aferição de novo valor demandaria uma longa e complexa discussão, incompatível com o reduzido prazo para análise da medida. Logo, a Medida Provisória é formalmente adequada, atendeu facilmente aos requisitos para sua edição, haja vista a relevância evidente da matéria e a urgência em atender de qualquer incremento nas condições de vida da população. Os legisladores se acham impossibilitados de discutir seriamente a matéria, embora a vontade política para tanto possa ser questionável, não houve a possibilidade, já que o aumento trazido pelo ato do executivo era fato consumado, dada a publicação da Medida Provisória, e não haveria tempo hábil para debater a matéria. É fato que tal situação vem se repetindo ano após ano, inclusive na atualidade, com a Medida Provisória 474, de 23 de dezembro de 2009, e várias outras anteriores. Diante de tais premissas, pode-se ver que o Legislativo há muito foi alijado da condição de porta-voz do povo, sendo apenas um instrumento de uma espécie de referendo, onde suas decisões apenas confirmam o implementado pelo Poder Executivo. Nesse diapasão, a insegurança jurídica é patente, visto que muitas matérias, aqui tratadas mediante um exemplo, deixam de ser objeto de manifestação do Poder Legislativo para serem decididas pelo Poder Executivo, que não existe para realizar tal mister. Logo, está-se diante de uma república em que os poderes constituídos não funcionam dentro de suas competências, 105 mas quedam submetidos por um hipertrofiado Poder Executivo, que já assumiu boa parte da função legislativa, não tendo adentrado nas questões judiciárias. Dessa forma, o desequilíbrio institucional, aliado a uma subserviência dos legisladores, que permitem a usurpação de sua atividade, geram uma situação em que o ocupante do Poder Executivo é eleito para uma função, mas além dela, exerce outra, para a qual não necessariamente tem legitimidade. Importante destacar que a análise de que existe um desequilíbrio na separação dos poderes no Estado brasileiro não é inovadora, contudo se agrava ao longo dos anos, com mais hipertrofia do Poder Executivo. Aqui citamos a análise de Dalmo de Abreu Dallari, quando fala em “transferência constitucional de competências”, seja por meio de reforma ou mesmo de novas constituições: Outra ocorrência mais ou menos freqüente é a transferência constitucional de competências, por meio da reforma constitucional ou até da promulgação de novas Constituições. Por esse meio, obedecendo rigorosamente o processo de emenda à Constituição ou pelo uso de um processo autêntico de elaboração de novas Constituições. Por esse meio, obedecendo rigorosamente o processo de emenda à Constituição ou pelo uso de um processo autêntico de elaboração constitucional , tem surgido novas constituições que não se apegam rigidamente á teoria dos reios e contrapesos, embora mantenham a aparência de separação dos poderes. Isso tem ocorrido, nos últimos tempos, visando aumentar as competências do poder executivo, dando como resultado a manutenção de órgãos do poder executivo que conservam sua estrutura mas mantém um mínimo de participação na formação da vontade do Estado. Como fica evidente, e a experiência tem comprovado, tais soluções são artificiais, pois mantêm uma organização sem manterem o funcionamento que determinou sua criação. Na verdade as próprias exigências de efetiva garantia da liberdade para todos e atuação democrática do Estado requerem desde maior dinamismo e a presença constante na vida social, o que é incompatível com a tradicional separação dos poderes. É necessário que se reconheça que o dogma da separação formal está superado, reorganizando-se completamente o estado, de modo a conciliar a necessidade de 106 eficiência com os princípios democráticos. De pronto fica claro que o fenômeno de hipertrofia do Poder Executivo não é particularidade do Brasil, seja por meio de reforma constitucional ou por 106 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria... pp. 221-222. 106 novas cartas. O próprio do Brasil é que, além da ascendência do executivo, há o uso das medidas provisórias, que dão ao titular do Poder Executivo acesso direto à função legislativa sem necessidade de reforma ou nova Constituição. Isso posto, no Brasil há mais de um caminho para uma repartição de competências, um formal, conforme as regras constitucionais, e outro transverso, com o uso excessivo de medida provisórias ao nível de usurpar a função legislativa e desequilibrar os poderes. Independentemente da via é necessário à democracia e à república que haja uma efetiva e real separação dos poderes, com um sistema de freios e contrapesos que somente funciona com independência e contribui para a otimização do Estado e de suas instituições. Considerando a lição acima transcrita, fica claro que o mestre paulista considera a separação absoluta dos poderes como um dogma superado, o que não significa que assim seja para com a separação em si. A interpretação que fazemos é que não é mais adequada uma separação absoluta, mas uma integração dos poderes, de forma a preservar suas competências e independência, mas incentivando uma ação integrada, otimizando o Estado. Como não se sabe das reais atitudes após a eleição de quem que quer seja, com a profusão de medidas provisórias, os cidadãos perdem a pluralidade de sua representação, ficando a mercê das medidas provisórias, que, em última análise, tem contribuído mais para o desequilíbrio entre os poderes que para a governabilidade do país. 2.4 A interferência judicial na função legislativa e a segurança jurídica Modernamente vem sendo comentada nos meio jurídicos a chamada “judicialização do Estado”, ou “Estado Judicial”, ambas as expressões buscam destacar a crescente demanda por pronunciamentos judiciais quanto a fatos 107 específicos. O controle de constitucionalidade é parte do processo democrático, já que não se pode presumir que os legisladores, representantes do povo, escolhidos pelo critério da legitimidade ou da opção política, não necessariamente tenham conhecimentos profundos de legislação. Posto que os legisladores, por mais ou menos bem intencionados que sejam, são falíveis, podendo editar textos incompatíveis com o sistema legal, mormente contrários à constituição, e existindo o sistema de freios e contrapesos, em que um poder é limitado e fiscalizado por outros, cabe ao Poder Judiciário zelar pela preservação da legalidade. A função julgadora é até mais sensível que a própria elaboração da norma, considerando que quando da feitura da norma não existia regulamentação ou a então existente, em tese, já não atendia às necessidades, a nova norma tende a ser mais adequada à evolução social; a interpretação porém, não é realizada por aqueles que redigiram a norma, o que é positivo, mas traz a chance de erro na interpretação da vontade do legislador, de desvirtuamento da norma, entre outros. Mesmo em sua concepção positivista, dando o máximo valor à norma em si, Kelsen mantinha a interpretação como um fator-chave para o sistema jurídico, considerando as normas como uma “moldura dentro da qual há várias possibilidades de aplicação”107. Cabe ao magistrado, o intérprete da norma em última análise, analisá-la e, dentro do que ela permite, aplicá-la ao caso concreto, eis é o cerne da função judicante. Contudo, queda o magistrado não apenas solucionando conflitos pela simples e direta aplicação de normas aos casos concretos, já que não pode o mesmo se furtar de dar resposta concreta às situações que lhe são apresentadas, conforme o princípio da inafastabilidade do Judiciário, materializado no inciso XXXV da Constituição108. Muitos dos casos que são apresentados ao Poder Judiciário envolvem necessidade de um trabalho maior do julgador, tendo ele que ir além da busca 107 KELSEN, Hans. Teoria Pura... p. 466. “Art. 5º [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; [...]” 108 108 de uma lei plenamente aplicável ao caso, mas de ir às demais fontes do direito, inclusive a eqüidade, para solucionar a querela. Nesses casos, o julgador considera todo o sistema jurídico para tomar sua decisão, não criando normas, mas chegando a aplicar os conceitos mais abstratos do direito em casos concretos. Em situações como a de decidir com base na equidade, ou nos princípios gerais do direito, por exemplo, o magistrado é levado a aplicar uma regulamentação geral, abstrata, ao um alto nível de concretude, unindo diretamente as duas extremidades da legislação, sendo ela pensada como uma linha. Pode-se pensar que os princípios não se destinariam a aplicação direta a casos, mas sim a orientar a formação do ordenamento jurídico, orientando e inspirando outras normas. Porém, na falta das normas, no nível acima estão os princípios, esses podendo indicar o caminho daquelas, logo, com mais razão podem ser aplicados para pacificar as relações in concreto. E cada vez mais casos vem sendo submetidos à apreciação do Poder Judiciário, levando a atividade judicante a estender suas fronteiras. Um dos meios de maior destaque na atuação do judiciário é o controle de constitucionalidade, que põe o Supremo Tribunal Federal com freqüência sob o foco da mídia, além de conduzir as decisões menos no rumo das normas e mais no dos princípios. Originariamente a Constituição de 1988 trouxe a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental como formas de controle de constitucionalidade por parte do judiciário. O processo legislativo em si já é um meio de controle preventivo de constitucionalidade, destinado a impedir a edição de normas inconstitucionais. O momento em que o Poder Judiciário foi, além da função repressiva, de guardião do ordenamento jurídico contra a inconstitucionalidade, posto numa condição de garantidor das normas editadas ocorreu com a criação da Ação Declaratória de Constitucionalidade, introduzida pela Emenda Constitucional nº 109 3, que alterou o artigo 102109. Com esse instituto, criado durante o mandato de Fernando Collor de Mello, sabidamente um período convulso da história, logo posterior à redemocratização, de sérios problemas econômicos, culminando com impeachment do presidente, se buscou um meio de blindar normas contra questionamentos sobre sua constitucionalidade. Ao primeiro olhar, e isso é correto em vários casos, o instituto tem grande valor na medida em que traz certeza quanto à constitucionalidade, brecando a possibilidade de diversas iniciativas no sentido de expurgar determinada norma do ordenamento jurídico, ou ainda de estabelecer um ou outro entendimento, com eventual modulação dos efeitos numa decisão em sede de controle de constitucionalidade. Na outra mão está a declaração de constitucionalidade como um meio de proteger normas e institutos criados à partir de uma relação desequilibrada dos poderes Executivo e Legislativo, em que a hipertrofia do primeiro submete o segundo, logo, o produto de tal relação não guarda a necessária fidelidade ao princípio republicano, apesar da perfeição formal. Tanto é correto que a Ação Declaratória de constitucionalidade se destina a fazer cessar o debate acerca do controle de constitucionalidade, que Gilmar Ferreira Mendes, um dos mentores da ação, a defende nos seguintes termos: [...] se a jurisdição ordinária, através de diferentes órgãos, passar a afirmar a inconstitucionalidade de determinada lei, poderão os órgãos legitimados, se estiverem convencidos de sua inconstitucionalidade, provocar o STF para que ponha termo à controvérsia instalada. Da mesma forma, pronunciamentos contraditórios de órgãos jurisdicionais diversos sobre a legitimidade de norma poderão criar o 109 “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendolhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; [...] § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.” 110 estado de incerteza imprescindível para a instauração da ação 110 declaratória de constitucionalidade. Na transcrição acima, fica claro que a Ação Declaratória de Constitucionalidade se presta a sanar um “estado de incerteza”, evidente situação de insegurança jurídica, exemplificado pelas decisões judiciais contraditórias. Outra situação é contínuo pronunciamento de inconstitucionalidade de uma norma, meio que faria chegar ao Pretório Excelso argumentos no sentido de extirpar uma norma do ordenamento, que podem ser calados, com um ação diretamente intentado no Supremo Tribunal Federal, tirando a voz das instâncias inferiores, em nome de uma alegada declaração de constitucionalidade. Apesar do procedimento declaratório de constitucionalidade comportar argumentos favoráveis e contrários, não se iguala ao processo legislativo, nem ao controle difuso de constitucionalidade, sendo um freio ao debate. Dessa forma, fica evidente a interferência do Poder Judiciário sobre a atividade legislativa, seja quando, cada vez mais, sai da concretude para decidir com base em princípios e abstrações, seja quando são criados institutos que possibilitam uma manifestação do Supremo Tribunal Federal no sentido de que sejam brecadas manifestações contrárias à normas. Reafirmando o entendimento, podemos tratar de recente situação, na qual foi aprovada a exigência da chamada “ficha limpa”. Originário de iniciativa popular, o projeto de tronar inelegíveis candidatos condenados tramitou e chegou ao seu texto final (Lei Complementar nº 135, de 04 de junho de 2010), alterando o artigo 2º da Lei Complementar nº 64/1990, atingindo os políticos condenados por um colegiado nos casos indicados, impedindo suas candidaturas111. É inquestionável a legitimidade da idéia, 110 MEIRELLES, Hely Lopes. WALD, Arnoldo. MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações constitucionais. 32.ed. São Paulo: Malheiros. 2009. p. 415. 111 Excerto da Lei Complementar nº 135/2010: “Art. 1º Esta Lei Complementar altera a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9o do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências. 111 Art. 2o A Lei Complementar no 64, de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações: Art. 1º[...] I – .[...] c) o Governador e o Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal e o Prefeito e o Vice-Prefeito que perderem seus cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término do mandato para o qual tenham sido eleitos; d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes; e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: 1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; 2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; 3. contra o meio ambiente e a saúde pública; 4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade; 5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; 6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; 7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; 8. de redução à condição análoga à de escravo; 9. contra a vida e a dignidade sexual; e 10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando; f) os que forem declarados indignos do oficialato, ou com ele incompatíveis, pelo prazo de 8 (oito) anos; g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição; h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes; .......................................................................................................................... j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição; k) o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura; l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena; 112 contudo as emendas reduziram a abrangência do projeto original, ainda assim permanece representando os anseios dos cidadãos. O Tribunal Superior Eleitoral manifestou que a referida lei é imediatamente aplicável, posto que se trata de condição de elegibilidade, e não mitigou efeitos ou mencionou transições. Levadas as primeiras insurreições ao Supremo Tribunal Federal, há manifestação no sentido de que: Como obter dictum, aponto que a própria adequação da Lei Complementar nº 135/2010 com o texto constitucional é matéria que exige reflexão, porquanto essa norma apresenta elementos jurídicos passíveis de questionamentos absolutamente relevantes no plano hierárquico e axiológico. Ante o exposto, recebo a petição como medida cautelar, impondo-se as anotações de estilo, e defiro a liminar para que se dê eficácia suspensiva ao recurso extraordinário destrancado por força do AgRg 112 709.634. m) os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário; n) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, em razão de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão que reconhecer a fraude; o) os que forem demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 (oito) anos, contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário; p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previsto no art. 22; q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos; ........................................................................................................................................... § 4o A inelegibilidade prevista na alínea e do inciso I deste artigo não se aplica aos crimes culposos e àqueles definidos em lei como de menor potencial ofensivo, nem aos crimes de ação penal privada. § 5o A renúncia para atender à desincompatibilização com vistas a candidatura a cargo eletivo ou para assunção de mandato não gerará a inelegibilidade prevista na alínea k, a menos que a Justiça Eleitoral reconheça fraude ao disposto nesta Lei Complementar.” (NR) “Art. 15. Transitada em julgado ou publicada a decisão proferida por órgão colegiado que declarar a inelegibilidade do candidato, ser-lhe-á negado registro, ou cancelado, se já tiver sido feito, ou declarado nulo o diploma, se já expedido. Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput, independentemente da apresentação de recurso, deverá ser comunicada, de imediato, ao Ministério Público Eleitoral e ao órgão da Justiça Eleitoral competente para o registro de candidatura e expedição de diploma do réu.” (NR) [...]” 112 STF. Agravo de Instrumento 709.634 GOIÁS. Relator: Min. Menezes Direito. Decisão liminar do Ministro Dias Toffoli. Data: 30 de junho de 2010. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.js f?seqobjetoincidente=12361>. Acesso em 13 de julho de 2010. Também disponível em “Notícias STF: Ficha Limpa: ministro Dias Toffoli suspende efeitos de condenação para deputada estadual de Goiás”. 113 Fica patente que o Pretório Excelso tenciona adequar o texto legal em relação à constituição, o que está dentro das suas funções, mas daí a adentrar tão profundamente no mérito quando fala que “a própria adequação da Lei Complementar nº 135/2010 com o texto constitucional é matéria que exige reflexão”, e segue sinalizando a existência de fragilidades na constitucionalidade da norma quando afirma que a mesma “apresenta elementos jurídicos passíveis de questionamentos absolutamente relevantes no plano hierárquico e axiológico”, é sair da imobilidade do julgador e incentivar as investidas dos que sejam eventualmente prejudicados pela norma em comento. Da mesma forma, o STF anteriormente já havia suspendido os efeitos da Lei Complementar nº 135/2010, usando a alegação de que haveria demora em julgamento de Recurso Extraordinário interposto contra decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Piauí, o qual já contava com voto favorável, mas suspenso por pedido de vista: Estão presentes os pressupostos para a concessão do efeito suspensivo ao recurso extraordinário. A plausibilidade jurídica do pedido pode ser atestada em voto por mim proferido quando do início do julgamento na Segunda Turma desta Corte, ocasião em que me manifestei pelo provimento do recurso. A urgência da pretensão cautelar parece evidente, ante a proximidade do término do prazo para o registro das candidaturas, a ocorrer no próximo dia 5 de julho de 2010, data antes da qual não será possível a continuidade do julgamento deste recurso perante a Segunda Turma do Tribunal, devido ao fato de a última Sessão da Turma neste semestre ter ocorrido no último dia 29 de junho de 2010, e tendo em vista que o período de férias forenses se inicia no próximo dia 2 de julho de 2010. Ante o exposto, defiro o pedido e determino que o presente recurso seja imediatamente processado com efeito suspensivo, ficando sobrestados os efeitos do acórdão recorrido. Após o término do período de férias forenses, encaminhem-se os autos para referendo do órgão colegiado, nos termos do art. 21, V, do RISTF e do art. 26113 C da Lei Complementar n° 135/2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=155491>. Acesso em 13 de julho de 2010. 113 STF. Recurso Extraordinário 281.012 Piauí. Relator: Min. Gilmar Mendes. Data: 30 de junho de 2010. 114 Dessa maneira, um dos Ministro do Supremo Tribunal Federal, levantou dúvidas quanto à constitucionalidade de uma norma, quase ao mesmo tempo em que outro utilizava uma questão de ordem interna da corte para suspender os efeitos da mesma norma. A conclusão aqui se apresenta de forma clara: Existe, e opera, interferência judicial na função legislativa. E não há que se falar em livre convencimento ou motivação dos julgadores, que poderiam, cada um a seu turno, ter se restringido ao caso concreto e optado por dar celeridade ao julgamento diante da situação pontual, mas optaram por brecar uma das normas de maior legitimidade da história recente brasileira por questões menores se considerada a importância da matéria regulada pela Lei Complementar nº 135/2010. Quando qualquer dos poderes excede suas atribuições, ainda que de forma aparentemente conforme a legalidade, mas na essência desequilibrando o sistema de freios e contrapesos, interferindo nas atribuições uns dos outros, agindo fora e suas competências constitucionalmente determinadas, há insegurança jurídica, há ilegitimidade na produção legislativa, na atuação executiva e nas decisões judiciais. Defendendo a idéia da necessidade de um tribunal constitucional, a fim de que não haja atividade estatal desequilibrada, sem a uniformidade necessária e sem que qualquer dos poderes assuma sozinho o controle das atividades estatais, citamos Carl Scmitt: Se [...] os órgãos e instâncias constitucionalmente previstos ainda não forem capazes de uma vontade política uniforme, torna-se, assim, inevitável que a substância política emigre para alguns dos pontos do sistema social e político. Outros poderes, sejam eles legais ou apócrifos, assumem voluntaria ou forçosamente, consciente ou semiconscientemente, o papel do estado e governam, a bem dizer, sub-repticiamente. Isso porque a “astúcia da idéia”, por força da qual deve se dar justamente no parlamento a unidade volitiva e todo o povo, não depende de modo algum dos partidos coligados e dos bureaux dos grupos parlamentares, o parlamento não tem nenhum monopólio de ser o único cenário da astúcia da idéia e esta pode mudar facilmente seu campo. Por isso, também fazer necessariamente parte de uma visão total da realidade de nossa atual situação estatal, os diversos remedos e forças contrárias. Enquanto estiverem unidos por uma oposição comum à situação do presente e instável Estado de coalizão partidário, podem ser qualificados em sua totalidade como tentativa e um Estado politicamente neutro. Nesse aspecto, é naturalmente concebível que a palavra “neutro”, em si 115 ambígua e, como todo conceito político, determinada por seu antagonismo concreto, significa, nesse contexto, nada mais que a oposição às forças e métodos do instável estado de coalização partidário, cujo poder é suficientemente grande e central para reunir uma maioria de forças contrárias, diferentes 114 entre si, mediante uma oposição comum. A lição do mestre alemão deixa claro que, mesmo em tempos idos, já havia instabilidade política de maneira que o equilíbrio entre os poderes fosse comprometido, deixando que outros poderes surgissem no vácuo do Estado, sendo tal Estado neutralizado, com a acomodação das forças políticas dentro de um contexto de situação e oposição consentidos, sistema esse que pode-se facilmente identificar no bipartidarismo estabelecido durante os governos militares posteriores ao golpe de estado ocorrido em 1964 no Brasil. Mesmo hoje não se pode falar em grandes correntes oposicionistas, já que os acordos celebrados em nome da “governabilidade” enfeixam as mais diversas correntes políticas, ainda que propaguem em seus discursos as idéias mais antagônicas. Ao menos como registro da idéia, Loius Favoreu defende a existência de um tribunal constitucional, como um outro poder, de modo a ter, por si, a capacidade impor ao legislador a observância à constituição, o que somente poderia ser imposto por um igual, não por um órgão, uma fração, de outro poder: [...] después de La Segunda Guerra Mundial, la casi totalidad de las nuevas constituciones que crean tribunales coonstitucionales les dedicam un «título» destinto de aquél reservado al poder judicial. [...] El Tribunal Constitucional, pues, no forma parte de ninguno de los tres poderes clásicos, y, además, es tratado en igualdad respecto a estos tre poderes en el Texto Fundamental. [...] El Tribunal Constitucional hace respetar las normas constitucionales por los tres poderes –ejecutivo, legislativo e judicial- no solamente con respecto a individuos sino tambíem a cada uno de ellos. La separación de poderes adquiera todo su relieve y su significado cuando existe un Tribunal Constitucional que se encarga de que cada uno de ellos observe los límites e sus competencias. Incluso se puede decir que en Francia el poder judicial (o más exactamente jurisidiccional) sólo apareció y se afirmó como tal a partir del momento en que el Consejo Constitucional desarrolló una 114 SCHIMITT, Carl. O guardião da constituição. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey. 2007. p. 147. 116 jurisprudencia que establecía las garantías constitucionales reconocidas a las jurisdiciones administrativas e judiciales. [...] En el orden político, primero, estas instituciones desenpeñan un papel fundamental de regulación del juego político al asegurar un equilibrio no sólo entre los diversos poderes sino tambiém, en la mayor parte de los sistemas, entre la mayoría e la oposición. Especialmente en período de alternancia, contribuem muy eficazmente [...] a atenuar y autentificar las reformas com el fin de facilitar y permitir los cambios de mayoría. Sin que eso cambie su naturalea e jurisdicción , los tribunales constitucionales son de ahora en delante uno de los elementos del sistema político y dificilmente se concibe hoy en día que éste pueda funcionar sin ellos. [...] Tambíen a ellos les incumbe la tarea de que evolucione el Texto Fundamental, con el objecto de adaptarlo a los cambios ocurridos en la sociedad, o de provocar revisiones necessarias, cuando las lagunas de la Constitución no puedem ser colmadas por una interpretación constructiva. [...] Solo un Tribunal Constitucional está en condiciones de oponerse al legislador nacional y obligarle a respetar la Constitución. El «legislador negativo» al menos debe estar a la altura del «legislador 115 positivo». 115 “[...] depois da Segunda Guerra Mundial, a quase totalidade das novas constituições que criam tribunais constitucionais lhes dedicam um „título‟ distinto daquele reservado ao poder judiciário [...]. O Tribunal Constitucional, pois, não faz parte de nenhum dos três poderes clássicos, e, ademais, é tratado em igualdade com relação a esses três poderes no Texto Fundamental. [...] O Tribunal Constitucional faz os três poderes respeitarem as normas constitucionais –executivo, legislativo e judiciário– não somente para com os indivíduos, mas também a cada um deles. A separação dos poderes adquire todo seu relevo e significado quando existe um tribunal Constitucional que se encarrega de que cada um deles observe os limites e suas competências. Inclusive se pode dizer que na França o poder judicial (ou mais exatamente jurisdicional) só apareceu e se afirmou como tal a partir do momento em que o Conselho Constitucional desenvolveu uma jurisprudência que estabelecia as garantias constitucionais reconhecidas às jurisdições administrativas e judiciais. [...] Na ordem política , primeiro, estas instituições desempenham um papel fundamental na regulamentação do jogo político ao assegurar um equilíbrio não só entre os diversos poderes,mas também, na maioria dos sistemas, entre a maioria e a oposição. Especialmente em período de alternância, contribuem muito eficazmente [...] para atenuar e legitimar as reformas com o fim de facilitar e permitir as mudanças de maioria. Sem que isso mude sua natureza e jurisdição, os tribunais constitucionais são de agora em diante um dos elementos fundamentais do sistema político e dificilmente se concebe hoje em dia que esse possa funcionar sem eles. [...] Também a eles incumbe a tarefa de que seja evoluído o Texto Fundamental, com o objetivo de adaptá-lo ás mudanças ocorridas na sociedade, ou de provocar revisões necessárias, quando as lacunas da Constituição não podem ser preenchidas por uma interpretação construtiva. [...] Só um Tribunal Constitucional está em condições de se opor ao legislador nacional e obrigá-lo a respeitar a Constituição. O „legislador negativo‟ ao menos deve estar à altura do „legislador positivo‟.” (Tradução livre do autor). FAVOREU, Louis. Los tribunales constitucionales. Trad. José Julio Fernández Rodríguez. In: GARCIA BELAUNDE, D. e FERNANDEZ SEGADO, F. La jurisdicción constitucional em iberoamerica. Madrid: Editorial Dykinson. 1997. pp. 106-107. 117 A segurança jurídica permeia a lição transcrita, ainda que não mencionada textualmente, sobretudo quando s fala da importância de que haja proteção do ordenamento jurídico quando das reformas em mudanças de maioria, de cuidar da efetiva separação dos poderes e ainda protegendo a estabilidade institucional. Também é patente a interferência judicial na função legislativa quando se fala numa atualização constitucional e mesmo numa revisão da Lei Fundamental por iniciativa do Tribunal Constitucional, ainda que se reconheça neste um poder apartado do Poder Judiciário, o que não o priva de uma natureza judicial, logo, cabível o comentário. No contexto atual, o qual já decorre do histórico político brasileiro, a fragilização institucional somente se agrava com o desequilíbrio entre os poderes, nos exemplos acima indicados, é patente que houve um fomento das iniciativas no sentido de buscar o Judiciário para se ver livre de restrições impostas por determinada norma, assim como o uso da ineficiência do Poder Judiciário como motivação para suspender a eficácia de uma norma. Dessa forma, a insegurança jurídica materializa-se já que o estado, em suas diversas esferas de ação, se contradiz, frustrando a legítima expectativa dos cidadãos, assim como desatendendo a confiança depositada na estabilidade e uniformidade da atuação Estatal. Assim, a fragilidade da segurança jurídica, em suas dimensões objetiva e subjetiva, se faz presente na atuação do Judiciário dentro da esfera legislativa, por mais que essa se dê de maneira formalmente correta, a elasticidade de seus limites apenas torna mais frágil a separação dos poderes, contribuindo para a fragilidade institucional que corrói as bases da democracia e do sistema republicano. 118 2.5 A relativização da coisa julgada A proteção conferida à coisa julgada, já apresentada anteriormente, vem sendo rediscutida, tomando por base a idéia de que, em certos casos, o manto da coisa julgada agasalha inconstitucionalidades, ilegalidade ou mesmo não verdadeiros, logo sua proteção absoluta teria também o condão de proteger situações que, em última análise, são contrárias ao direito. A coisa julgada, ou seja, “a decisão judicial de que não caiba recurso”116, assim, sem adentrar maiores discussões ou comentários acerca do conceito, compreende-se como coisa julgada o fenômeno, via ficção jurídica, que se dá em relação ao conteúdo de decisão judicial contra a qual não é mais possível o manejo de recurso. Tanto que já foi dito ao longo do presente estudo sobre a necessidade de segurança dos cidadãos e do dever do Estado de provê-la, que não e possível ignorar que um dos institutos mencionados na parca menção no texto constitucional à segurança jurídica, tenha sua eficácia discutida sem que aqui seja abordado. É necessário que seja vista a relativização da coisa julgada sob o prisma da segurança jurídica, já que aquele é corolário dessa, necessariamente. Considerar a coisa julgada sem visualizar a segurança seria contrário ao princípio da máxima efetividade da Constituição, o que sequer é considerado entre os operadores do Direito. Em primeira análise, deixamos claro que, como já pontuado, a coisa julgada é uma ficção jurídica, é algo criado pelo direito, dessa premissa tem-se que a decisão abrangida pela coisa julgada é a expressão do melhor direito aplicável ao caso concreto, conforme o ordenamento jurídico vigente à época. 116 Conforme Art. 6º do Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro. 119 A rediscussão não é vedada, já que nosso sistema processual é pródigo em recursos, e a ação rescisória ainda permite uma última irresignação, mesmo após o julgamento final de uma lide. Da mesma forma, há ficção jurídica quando se fala na expressão da verdade, já que o julgador está vinculado aos autos, é a verdade dos argumentos, das provas produzidas a que fundamenta a decisão do magistrado, logo, é uma verdade formal. Apenas na seara do direito penal, até pela sua natureza de ultima ratio, há busca efetiva da verdade real, a verdade dos fatos, que pode, o que é desejado, seja correspondente à verdade formal, mas nem sempre ocorre. Assim, penalmente, fatos ou provas novos são hábeis a ensejar nova análise de casos, ou mesmo uma legislação posterior benéfica ao réu tem aplicabilidade. Assim é para proteger o cidadão, conferindo a ele, ainda que condenado, o melhor tratamento possível, atendendo à Justiça e mesmo à sua dignidade enquanto ser humano. Nas demais áreas do direito é diferente, a verdade é a formal, e a situação, salvo poucas exceções, se cristaliza com a coisa julgada. A idéia é que não podem as situações serem tuteladas pelo Poder Judiciário, responsável pela análise de “lesão ou ameaça à direito”117, serem decidias de modo que não represente a pacificação do conflito, a solução da controvérsia, que não pairem dúvidas acerca do que seja a manifestação judicial que ponha termo à discussão. Consoante as idéias acima mencionadas, a proteção da coisa julgada confere segurança às decisões emanadas do Poder Judiciário, contribuindo, ao final, para a pacificação social, o que é parte do objetivo estatal, enquanto provedor de segurança. Nesse diapasão, o princípio contemplado é o da segurança jurídica. 117 Art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal. 120 Entretanto, a coisa jurídica entendida em sentido absoluto pode, com efeito, gerar distorções, para tanto se fala em sua flexibilização, a fim de que não seja o instituto direcionado a fins indesejados, ou incompatíveis com o ordenamento jurídico. O que há não é uma fragilização deliberada da segurança jurídica, mas sim uma flexibilização em nome da melhor aplicação de todos os princípios e normas constitucionalmente tutelados. Como já repisado, não se está a fazer a apologia da imutabilidade, mas sim a reafirmação da necessidade de um instituto acatado pela doutrina, mas cujo uso em excesso feriria de morte a ordem constitucional, atingindo o cerne da função estatal: a segurança. Iniciando pelos estudiosos portugueses, Canotilho demonstra o liame existente em Portugal entre o chamado “caso julgado” e a efetividade da segurança jurídica no contexto constitucional: quando a Constituição (art. 282º /3) estabelece a ressalva dos casos julgados isso significa a imperturbabilidade das sentenças proferidas com fundamento na lei inconstitucional. Deste modo, pode dizer-se que elas não são nulas nem reversíveis em conseqüência da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Mais: a declaração de inconstitucionalidade não impede sequer, por via de princípio, que as sentenças adquiram força de caso julgado. Daqui se pode concluir também que a declaração de inconstitucionalidade não tem efeito constitutivo da intangibilidade do caso julgado [...] Em sede do Estado de direito, o princípio da intangibilidade do caso julgado é ele próprio um princípio densificador dos princípios da garantia da confiança e da segurança 118 inerentes ao Estado de Direito. Ainda no direito lusitano, Jorge Miranda afirma que, “no plano objectivo, o principio da tutela jurisdicional envolve [...] – O respeito pelo caso julgado (art. 282.º, n.º 3)”.119 Contudo, há casos em que é possível a impugnação, sobretudo nos casos em que a coisa julgada era baseada em norma inconstitucional. 118 119 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria ... p. 1004. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito... tomo IV... p. 259. 121 Voltando-nos aos fundamentos utilizados para defesa da relativização da coisa julgada, não há consenso, nem mesmo pela possibilidade de aplicação, como se demonstra pelo antagonismo de idéias entre José Augusto Delgado e Luis Guilherme Marinoni: nunca terão força de coisa julgada e poderão, a qualquer tempo, ser desconstituídas no seu âmago mais consistente que é a garantia da moralidade, da legalidade, do respeito à Constituição e da entrega 120 da justiça . a „tese da relativização‟ contrapõe a coisa julgada material ao valor justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por „justiça‟ e sequer busca amparo em uma das modernas contribuições da 121 filosofia do direito sobre o tema. Há de ser reconhecido que as decisões podem ser baseadas em eventuais inconstitucionalidades, reconhecidas posteriormente, trazer conteúdos de execução impossível, ou afrontar o ordenamento jurídico em qualquer momento. Contudo, também deve ser lembrado que não é possível antecipar resultados, sendo que nem tudo o que venha a ser relativizado seja corretamente utilizado, além de não haver um conceito objetivo de justiça, que, normalmente, será um para o vencedor e outro para o vencido. Também é importante pontuar que o direito, em todas as suas esferas, deve buscar, considerando o valor democrático, o que for melhor para coletividade, o que nem sempre é tido como justo. O tema é abrangente e controverso, não é o presente estudo destinado à ampla discussão acerca da coisa julgada e das idéias de sua relativização, mas sim de discussão do tema à luz da segurança jurídica. Assim, de pronto temos que a segurança jurídica deve ser contemplada em todas as funções estatais, o que se depreende de sua dimensão objetiva, 120 DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do. (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 103. 121 MARINONI, Luis Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais: a questão da relativização da coisa julgada material. In: DIDIER JR. Freddie (Coord.). relativização da coisa julgada: enfoque crítico. Salvador: JusPODIVM, 2004. p.182. 122 não podendo escapar de tal verdade a função jurisdicional. Igualmente não nos pode escapar que, como já pontuado, a idéia de justiça é fluida, inexistindo uma conceituação objetiva. Considerando, ainda, a máxima efetividade da constituição, não podemos nos conformar com qualquer decisão judicial, independentemente do seu teor, sobretudo caso tenha seus fundamentos tidos como inconstitucionais. Por fim, reafirmamos que os cidadãos pactuaram a criação do Estado no sentido de provedor de segurança, em troca de parte de sua liberdade, isso implica que o ente coletivo tem como sua principal função a garantia de segurança, inclusive jurídica, aqui representada pela pacificação de conflitos, decididos pelo Poder Judiciário e abrangidos, ao fim, pela coisa julgada. A necessária presença da segurança jurídica como norteador de todas as atividades estatais já foi diversas vezes comentada, sobretudo quando se falou na sua relação com o texto constitucional. Não se pode falar em Estado sem que seja necessariamente associada a ele a idéia de segurança, já que essa é o fim daquele, em troca do que os cidadãos perderam parte de sua liberdade. Destacamos que a exigência de segurança dos cidadãos perante o Estado é parte, sobretudo, da dimensão objetiva da segurança jurídica. O conceito de justiça não tem um enunciado claro, sendo que os defensores da relativização da coisa julgada utilizam diversos exemplos de alegadas injustiças amparadas pela coisa julgada, mas não trazendo objetividade à discussão. Para Cândido Rangel Dinamarco, é um “valor inerente à ordem constitucional-processual”122, sendo necessária uma ponderação, em busca de um resultado justo, levando em conta os princípios da moralidade administrativa, do justo valor das indenizações em desapropriação, zelo pela cidadania e direitos do homem, a fraude e o erro grosseiro que contaminam o resultado do processo, a garantia do meio ambiente ecologicamente 122 DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In: Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, Ano IV, nº 19. Porto Alegre: Síntese, set/out, 2002, p.6. 123 equilibrado, a garantia do acesso à ordem jurídica justa e, por fim, o caráter excepcional da disposição de flexibilizar a coisa julgada.123 Alexandre Freitas Câmara, igualmente fala em “ponderação de interesses”, considerando que a relativização da coisa julgada até se impõe, exemplificando com o disposto no artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, combinado com a Constituição Federal, também abordando questões de segurança jurídica: O texto da Lei de Introdução do Código Civil conduz, à toda evidência, uma norma destinada a assegurar o princípio da irretroatividade das leis. A Constituição da República, contudo, vai muito além disso, e estabelece que o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada estão protegidas contra leis que se destinem a prejudicá-los. Ora, nada há que permita considerar que a irretroatividade seja a única forma de se prejudicar tais institutos. É claro que a lei retroativa será inconstitucional sempre que prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Será, porém, inconstitucional, qualquer lei que prejudique aqueles institutos jurídicos, ainda que sem retroagir. Basta pensar, por exemplo, na Lei 9494/97, que estabeleceu limites territoriais para a coisa julgada formada em processo de „ação civil pública‟, enfraquecendo o alcance da autoridade da coisa julgada. Tal lei, por prejudicar a coisa julgada, é inconstitucional, ainda que não tenha 124 efeitos retroativos Apesar do posicionamento acima transcrito, o autor defende que a relativização da coisa julgada deve ser uma exceção, sob pena de destruição do conceito de coisa julgada125. Ambos os autores citados tratam da questão de justiça, mas não a abordam diretamente, apesar da indiscutível importância da justiça para os cidadãos, é tão importante quanto ele a necessidade de uma resposta às suas demandas, em caso de injustiça ou insatisfação, há, em regra, recursos cabíveis, logo a situação é reversível. Contudo, uma questão que não se finda é um eterno senão na vida do cidadão, o que não interesse nem a ele nem ao Estado, quedando ambos desatendidos, violando, também, o princípio da 123 DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada ... pp. 16-17. CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da coisa julgada material. Disponível em <http://www.cacofnd.org.br/artigos/art_juridicos.asp>. p. 16. Acesso em 19 de julho de 2010. 125 CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da coisa julgada ... pp. 16-17 124 124 razoável duração do processo, constitucionalmente materializado no artigo 5º, parágrafo 3º da Constituição. Nesse sentido, não podemos concordar com a relativização da coisa julgada alegando unicamente questão de justiça ou injustiça, salvo o que já se faz em matéria criminal. O caso que entendemos merecer posicionamento diverso é o da decisão não criminal calcada em inconstitucionalidade, essa reconhecida posteriormente à coisa julgada. No caso em comento, a declaração de inconstitucionalidade de norma posteriormente declarada inconstitucional torna a própria decisão nela baseada contrária incompatível com o ordenamento jurídico. Deve, portanto, ser verificado se a decisão de inconstitucionalidade tem efeitos ex tunc, que é a regra, sendo o caso, deve ser manejada, dentro dos seus requisitos, ação rescisória, com fundamento no artigo 485, inciso V, do Código de Processo Civil, para desconstituir o julgado; não sendo mais possível por qualquer motivo a ação rescisória, consideramos impossível atacar a coisa julgada. Sobre a proteção à coisa julgada, mesmo em caso de declaração de inconstitucionalidade, podemos citar a lição de Leonardo Greco, que traz levantamento de direito comparado: No Estados Unidos, a Corte Suprema, a partir do caso Likletter, julgado em 1965, passou a modular essa retroação, para não vulnerar situações definitivamente pacificadas por sentenças passadas em julgado. Na Itália,a jurisprudência ordinária, interpretando declarações de inconstitucionalidade da Corte Constitucional, começou a impor limites à retroação que passaram a ser adotados pela própria Corte Constitucional, preservando os efeitos das relações exauridas e as situações já atingidas pela prescrição. Na Alemanha, preservam-se os efeitos das decisões judiciais anteriores à declaração de inconstitucionalidade, salvo condenatórias criminais, e proíbe-se qualquer ação fundada em enriquecimento sem causa decorrente de situação gerada pela lei invalidada [...] Em Portugal, o art. 282 da Constituição também ressalva os casos julgados da eficácia retroativa da declaração de inconstitucionalidade 126 com força obrigatória geral. 126 GRECO, Leonardo. Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. In: DIDIER JR. Freddie (Coord.). Relativização da coisa julgada: enfoque... pp. 154-155. 125 O entendimento esposado acima se reafirma com a noção de que a lei não poderá retroagir para prejudicar a coisa julgada, logo, a decisão judicial, seja em que nível for, igualmente não poderá. Entre os magistrados não há hierarquia, há diferentes competências, então não se pode considerar que uma decisão judicial é mais forte que outra, apenas são diferentes, não tendo uma, por decisão de um mérito, o condão de desconstituir outra, que discute outro mérito diferente. A reforma de sentença ou acórdão se dá por recursos ou ação rescisória, não pelo manejo de outra ação qualquer. Dessa forma, reiteramos a necessidade de proteção da coisa julgada, sem a qual a segurança jurídica não seria realidade, já que a eterna possibilidade de declaração de inconstitucionalidade ou mudança de normas seria hábil a desconstituir as decisões definitivas. A ação rescisória se destina a modificar a coisa julgada, dentro de prazos razoáveis e requisitos objetivos, em respeito ao princípio do devido processo legal e em conformidade com o ordenamento jurídico, sendo o meio adequado a tal fim. Outras disposições, apesar de existentes, ou consideramos carentes de fundamentos concretos ou mesmo inconstitucionais, o que, por óbvio, não é adequado nem à Constituição nem ao princípio da segurança jurídica. 126 3 A importância da efetividade da segurança jurídica Na parte inicial do presente estudo, foram abordadas as noções iniciais de segurança jurídica, dando o panorama do instituto, suas dimensões e relacionamento com a Constituição. Na segunda parte foram expostos aspectos que fragilizam a segurança jurídica, hábeis a trazer a insegurança aos cidadãos, pontuado questões graves de desequilíbrio institucional, além de expedientes que não condizem com a noção republicana de administração estatal. Agora, cumpre reafirmar a necessidade e importância da segurança jurídica, estabelecendo aspectos importantes para contribuir com um crescimento necessário da noção de segurança jurídica dentro do ordenamento jurídico, deixando uma contribuição para uma maior aplicação do instituto nas suas dimensões objetiva e subjetiva. Como garantia, princípio constitucional e cláusula pétrea estabelecida no texto constitucional, a segurança jurídica, ainda que não estudada com a devida importância, é vital para a consecução dos objetivos dos cidadãos, dentre os quais a efetividade das ações estatais. 3.1 A proibição do retrocesso A idéia fundamental trazida pelo princípio da proibição do retrocesso é a de que os cidadãos, assim como o Estado, conquistaram determinado nível de evolução social, logo, as mudanças que venham a ocorrer posteriormente não podem desconstituir os progressos obtidos. Deve ficar claro que o princípio abrange toda a evolução social, especialmente aqueles abrangidos pelo princípio da segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. 127 É salutar lembrar que houve acalorado debate acerca da existência ou não de direito adquirido em face de emenda constitucional, que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela negativa127, considerando que o direito adquirido surge com o completo cumprimento das condições para seu exercício, não bastando a mera existência do regime jurídico. Independentemente da discussão do assunto pontuado, nem todos os direitos dependem de tempo ou atos complexos para sua concretização, bastando, em grade parte, atos instantâneos, que logo se cristalizam. Não se pode considerar que podemos voltar às jornadas de trabalho do período da revolução industrial, ou ao voto censitário do período imperial, nem aos atos institucionais do passado recente; a superação desses e de vários outros estágios nos conduziu ao ordenamento atual, logo, o caminho desejado pelos cidadãos ao longo do tempo nos distancia das práticas indesejáveis do passado, ao mesmo tempo em que pode preservar outras ou atualizá-las, nesse diapasão, não existe motivo para que as modificação sirvam para reavivar o passado. A fim de balizar o debate, conceituando o chamado retrocesso social, citamos Felipe Derbli: É que o princípio em questão [proibição do retrocesso] veda ao legislador subtrair da norma constitucional definidora de direitos sociais o grau de concretização já alcançado, prejudicando a sua exeqüibilidade. Vale dizer, haverá retrocesso social quando o legislador, comissiva e arbitrariamente, retornar a um estado correlato a uma primitiva omissão inconstitucional ou reduzir o grau e 128 concretização definidora de direito social [...] Jorge Miranda, quando trata das normas constitucionais programáticas estabelece seu alcance, para, logo depois, indicar a proibição do retrocesso como uma decorrência de tais normas: 127 Nesse sentido, os seguintes arestos do STF: ADI 3104/DF (DJ 09.11.2007); ADI 3105/DF e ADI 3128/DF (DJU de 18.2.2005); RE 269407 AgR/RS (DJU de 2.8.2002); RE 258570/RS (DJU de19.4.2002); RE 382631 AgR/RS (DJU de 11.11.2005). 128 DERBLI, Felipe. O princípio da proibição do retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro; Renovar, 2007. p. 240. 128 I –Há, pois, aspectos comuns a reter na força jurídica das normas programáticas e das normas não exeqüíveis por si mesmas (ou seja, na prática, das normas preceptivas não exeqüíveis por si mesmas): a) Umas e outras, desde logo, só por constarem da Constituição, devem – tal como as normas não exeqüíveis por si mesmas – ser tidas em conta na interpretação das resultantes normas, as quais, sem elas, poderiam ter alcance diverso; [...] c) Conquanto o seu sentido primário seja sempre prescritivo, e não proibitivo, elas adquirem, complementarmente, um duplo sentido proibitivo ou negativo – proíbem a emissão de normas legais contrárias e proíbem a prática de comportamentos que tendam a impedir a produção de actos por ela impostos; donde inconstitucionalidade material em caso de violação; d) Elas fixam critérios ou directivas para o legislador nos domínios que versam – donde inconstitucionalidade material – por desvio de poder – quando haja afastamento desses critérios; e) Uma vez concretizadas através de normas legais, não podem ser, pura e simplesmente, revogadas, retornando-se à situação anterior (embora aquelas normas legais possam e, claro está, devam ser declaradas inconstitucionais, quando desconformes com a Constituição); o legislador tem, certamente, a faculdade (por imperativo da democracia pluralista) de modificar qualquer regime jurídico, o que não tem é a faculdade de subtrair supervenientemente a uma norma constitucional e exeqüibilidade que esta tenha, 129 entretanto, adquirido. Na lição transcrita, podem ser identificados diversos pontos indicados no presente estudo como relacionados à segurança jurídica, como as normas programáticas e seu alcance na interpretação, logo, na máxima efetividade da Constituição; do desvio de poder, e a conseqüente inconstitucionalidade, em caso de afastamento delas; a noção de direito adquirido, ainda mais quando há norma sobre o assunto. Conforme se depreende das palavras do mestre português, a democracia exige que seja assegurado, no mínimo o que a constituição já consagra, não podendo a norma constitucional ser afetada negativamente por outra posterior. Nesse sentido, a proibição do retrocesso é parte da segurança jurídica, na medida em que assegura ao texto constitucional a garantia de sua exeqüibilidade. Combinando as transcrições já feitas, é possível compreender a necessidade de conferir exeqüibilidade e efetividade a todo o teor da constituição, independentemente do eventual tipo de norma. Devem ser 129 MIRANDA, Jorge. Manual de direito... Tomo II. 3. ed... pp. 250-251. 129 concretizados os direitos sociais, de modo a assegurar os direitos constitucionalmente previstos, enfeixando todos os pontos para ser parte do princípio maior da segurança jurídica, como é a proibição do retrocesso social. Deve ficar claro que a gênese do instituto se deu na Alemanha, onde a evolução social historicamente se mostra adiantada em relação à maioria dos países, mas ainda assim seus caracteres não mudam, as discussões, os bens jurídicos ora buscados em algumas sociedades diferem, naturalmente, das buscas em outras. Sendo considerada a evolução social do ponto de vista de cada sociedade, já que a diferença entre as mais e as menos evoluídas é abissal, mesmo em relação aos países periféricos um pouco mais desenvolvidos, como o Brasil, sendo que naquelas [as sociedades mais avançadas] os direitos fundamentais são uma realidade consolidada, enquanto nessas [as sociedades periféricas] ainda temos grandes dificuldades em tornar reais mesmo os direitos mais básicos. Sobre as diferenças sociais e as dificuldades de transpor institutos, citamos a lição de Andreas Krell: Não se pode transportar um instituto jurídico de uma sociedade para outra sem levar-se em conta os condicionamentos sócio-culturais e econômico-políticos a que estão sujeitos todos os modelos jurídicos. Ordens jurídicas concretas não representam apenas variantes distintas da realização dos mesmos direitos e princípios; nelas refletem-se diferentes paradigmas jurídicos. As possibilidades de um “transplante” de teorias de Direito Constitucional de um país para o outro vão necessariamente diminuir com as diferenças no sistema político e, sobretudo, nas condições econômico-sociais das respectivas sociedades. Devemo-nos lembrar sempre que os mesmos textos e procedimentos jurídicos são capazes de causar efeitos completamente diferentes, quando utilizados em sociedades desenvolvidas (centrais) como a alemã, ou 130 numa periférica como a brasileira.” Fazendo advertência semelhante, ressaltando que cada sociedade deve considerar suas especificidades, citamos Ingo Wolfgang Sarlet: 130 KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: Os (Des)Caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 42. 130 Convém relembrar o leitor de que, a discussão em torno da redução (e até mesmo do desmonte completo) do estado social de Direito e dos direito sociais que lhe são inerentes apresenta proporções mundiais, não há como desconsiderar que a dimensões da crise e as respostas reclamadas em cada estado individualmente considerado são inexoravelmente diversas, ainda que se posam constatar pontos comuns. Diferenciadas são, por outro lado, as soluções encontradas por cada ordem jurídica para enfrentar o problema, diferenças que não se limitam à esfera da natureza dos instrumentos, mas que abrangem, de modo especial, a intensidade da proteção outorgada por estes aos sistemas de seguridade social, o que, à evidência, não poderá deixar de ser considerado nas linhas que se seguem, de tal sorte que também a temática da proibição do retrocesso reclama um 131 tratamento constitucionalmente adequado. Ambos os professores, especialmente o segundo, deixam clara a importância da segurança e da proteção do ordenamento jurídico, conquanto a necessidade de proteção social seja presente em todos os ordenamentos jurídicos, as soluções devem ser adequadas a cada sociedade. No caso brasileiro, ainda lutamos para efetivar o direito à vida, saúde, educação básica, e mesmo a dignidade da pessoa humana e todos os seus corolários, logo, nossas soluções devem ser dirigidas inicialmente aos direitos mais básicos e ainda não assegurados. No contexto da segurança jurídica, fragilizada, como já indicado em tantos aspectos comentados ao longo do presente estudo, a proibição do retrocesso assume uma importância ainda maior, já que a ligação entre a segurança e a garantia dos avanços sociais é umbilical. Há uma relação importante entre a necessidade de estabilidade e a proteção à confiança no contexto dos direitos fundamentais, onde os cidadãos fundam as suas mais básicas e caras expectativas, isso posto, a fragilização de direitos,ou mesmo o retrocesso a patamares anteriores, menos garantistas, representa dano aos administrados, assim como ao próprio Estado, que deixa de atender à sua função mais básica. São os direitos fundamentais entendidos como o patrimônio jurídico mínimo necessário à vida sob o regime Estatal, representando, no contexto do contrato social, um consenso entre os cidadãos e o Estado, logo, 131 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos... pp.438-439. 131 incontroversos são os direitos fundamentais, assim como os princípios que os orientam. Dessa forma, é contraditório o Estado, em qualquer de suas esferas de atuação, agir no sentido de retirar ou reduzir qualquer dos direitos fundamentais ou princípios, retrocedendo na ordem jurídica a níveis inferiores aos alcançados atualmente, ignorando a evolução social, os anseios e necessidades dos cidadãos, e ainda o próprio ordenamento jurídico, todo construído em torno da segurança a ser prestada pelo Estado aos seus cidadãos. Sendo os princípios e normas orientadas ao bem estar dos cidadãos, e mais quando assumem uma proporção a serem considerados direitos fundamentais, cláusulas pétreas, ou mesmo normas que assumiram o condão de concretizar valores caros aos cidadãos, elas se tornam fatores de segurança jurídica, oponíveis ao Estado em favor dos cidadãos, no sentido de preservar o rumo tomado e assegurar a evolução da ordem jurídica de maneira a maximizar a segurança já obtida atualmente. Um exemplo simples de norma que indica a imposição de evolução, e, a contrario senso, proíbe o retrocesso, é o artigo 7º da Constituição Federal, que indica os direitos dos trabalhadores, mas ressalta que eles existem, sem prejuízo de outros que sejam positivados posteriormente, sendo os “outros que visem à melhoria de sua condição social”132. É indubitável que, assim como a segurança jurídica, a proibição do retrocesso social é princípio presente na Constituição de 1988, contudo o são sem serem textualmente mencionados. Quando o texto constitucional estabelece determinado comando, ainda que programático ou carente de regulamentação, não se pode negar que a ele o legislador, ordinário ou reformador, está inexoravelmente vinculado, devendo agir no sentido de que o comando constitucional seja efetivado ao máximo, omitir-se ou restringir a abrangência são opções inconstitucionais, ainda que não o sejam formalmente, 132 “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...]” 132 são materialmente, nesse sentido, reforçamos a argumentação com as idéias de Luís Roberto Barroso: por este princípio [proibição do retrocesso], que não é expresso, mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da 133 cidadania e não pode ser absolutamente suprimido. Ainda sobre o tema, Ingo Wolfgang Sarlet afirma textualmente a existência do princípio da proibição do retrocesso, o apresentando como um direito subjetivo negativo, portanto oponível contra o Estado, conforme já abordado: Com efeito, é como princípio implícito que a proibição do retrocesso foi consagrada no direito constitucional comparado e brasileiro. Em linhas gerais, o que se percebe é que a noção de proibição de retrocesso tem sido reconduzida à noção que José Afonso da Silva apresenta como sendo de um direito subjetivo negativo, no sentido de que é possível impugnar judicialmente toda e qualquer medida que se encontre em conflito com o teor da Constituição (inclusive com os objetivos estabelecidos nas normas de cunho programático) bem como rechaçar medidas legislativas que venham, pura e simplesmente, subtrair supervenientemente a uma norma constitucional o grau de concretização anterior que lhe for outorgado pelo legislador. [...] No âmbito do direito constitucional brasileiro, o princípio da proibição de retrocesso [...] decorre [...] designadamente dos seguintes princípios e argumentos de matriz jurídico-constitucional: [...] e) O princípio da proteção à confiança, na condição de elemento nuclear do Estado de Direito (além de sua intima conexão com a própria segurança jurídica) impõe ao poder público – inclusive (mas não exclusivamente) como exigência da boa-fé nas relações entre particulares – o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos em relação a uma certa estabilidade e continuidade da ordem jurídica como um todo e das relações jurídicas especificamente consideradas; 134 [...] Dessa forma, reafirmamos a existência no sistema constitucional brasileiro do princípio da proibição do retrocesso, compreendendo que os princípios e normas constitucionais, ainda que programáticas, têm uma 133 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 158. 134 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos... p.445-446. 133 natureza impositiva, na medida em que ao legislador e ao constituinte reformador, se impõem os ditames da Constituição e não lhes é dada a capacidade de subverter a ordem constitucional, sobretudo diante do princípio, ou sobreprincípio, da máxima efetividade da constituição. Ademais, deixar de observar o estágio presente da evolução social e retroceder à patamares anteriores seria perigoso precedente para que outros direitos sejam fragilizados, reduzidos ou mesmo suprimidos em nome do poder de reforma, o que seria contrário ao direito e mesmo às noções de democracia, república ou constitucionalidade. Inegável é que os direitos vêm evoluindo com o tempo, tendo as chamadas gerações dos direitos fundamentais, o sentido de ampliar as garantias, desde a primeira, garantindo “liberdade, igualdade e fraternidade”135, até o que Paulo Bonavides defende ser a quinta geração, o direito à paz136. O passo dos direitos ao longo das gerações sempre tem sido no sentido da ampliação, desde os direitos individuais, passando pelos direitos sociais, direito ao desenvolvimento, direito à democracia, de caráter mais coletivo. Dessa forma, os direitos e garantias são ampliados, não subsistindo qualquer razão ou argumento para retroceder, retirando qualquer os direitos já assegurados, o que reputamos até ser incompatível com o direito, impossível, pois. Nesse sentido, a proibição do retrocesso é princípio que, ao lado da segurança jurídica, assegura que os cidadãos tenham asseguradas as conquistas e avanços sociais, protegendo, especialmente em sua dimensão objetiva, contra o Estado, o patrimônio jurídico já garantido contra eventuais medidas que, mesmo não sendo retroativas no tempo, o que já é protegido pelo princípio da segurança jurídica, sejam hábeis a restringir ou eliminar direitos assegurados pela Constituição. 135 136 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito... p. 562. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito... pp. 579-593. 134 3.2 Efetivação do princípio da segurança jurídica A importância da efetivação do princípio da segurança jurídica, conforme já exposto, passa por todas as nuances da atividade estatal, independentemente da esfera,o que impõe a todos os poderes o cumprimento do princípio, assim como, conforme já visto, expõe todos os poderes ao risco de agir em descompasso com ele, gerando, na verdade, insegurança. O objetivo do princípio da segurança jurídica, em seu caráter geral, ao mencionar simplesmente “o direito”, Wilson Koressawa expõe que “se o Direito não pode garanir que todos os indivíduos se sintam seguros, deve, pelo menos, implementar as condições objetivas para que a segurança seja a maior possível”137. Com igual razão, Flávia Piovesan e Daniela Ikawa situam a segurança jurídica juntamente com princípios eminentemente coletivos, estabelecendo que a segurança decorre de um “discurso de direitos” e não de “restrição de direitos”, e que o princípio da segurança jurídica se ramifica em outros dois: o da dignidade da pessoa humana e o da proporcionalidade 138. Estando a segurança jurídica de tal maneira incrustada entre os princípios norteadores de toda a atividade estatal, sua observância deve ser irrestrita. Podemos, ainda, reafirmar que a segurança jurídica é diretamente relacionada ao Estado Democrático de Direito, de forma inerente e essencial a esse, sendo um de seus sutentáculos, como já pontuado ao longo do presente estudo. Desta feita, urge ressaltar que o Princípio da Segurança Jurídica possui conexão direta com os direitos fundamentais e ligação com determinados princípios que dão funcionalidade ao ordenamento jurídico brasileiro, tais como, 137 KORESSAWA, Wilson. O princípio da segurança jurídica: implicações na ocupação familiar de lotes públicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 2010. p. 118. 138 PIOVESAN, Flávia. IKAWA, Daniela. Constituição e segurança jurídica. In: ROCHA, Cármem Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança... p. 47 e ss. 135 a irretroatividade da lei, o devido processo legal, o direito adquirido, a dignidade da pessoa humana, entre outros, cabendo, pois, afirmar sua importância nos três poderes. 3.2.1 Importância da segurança jurídica no âmbito judicial Tendo em vista que ao Poder Judiciário cabe a pacificação dos conflitos sociais, a interpretação da legislação, inclusive da Constituição, a segurança jurídica é um dos bens a serem protegidos pela sua ação. O cuidado na interpretação da legislação deve considerar todos os princípios e normas, sobretudo a máxima efetividade da Constituição, qualquer manifestação que ignore tais premissas fere o ordenamento jurídico como um todo, quedando na seara da inconstitucionalidade, o que, por óbvio, é especialmente indesejável de quem tem a função de zelar pela observância da ordem jurídica. A decisão judicial é, sem dúvida, a manifestação da vontade estatal, a qual é vinculada aos objetivos e princípios do estado democrático de direito, a vontade estatal, pois, é a de que haja pacificação social com a aplicação do direito aos casos concretos de modo a alcançar o resultado mais justo possível, ou, nas palavras de Sergio Bermudes, “a coisa julgada material decorre da vontade estatal, traduzida nas normas imperativas que a regulam”139. A questão das decisões judiciais tem também identificação com o princípio da moralidade, já que os magistrados se utilizam de diversos princípios e meios para integração do ordenamento jurídico. Dessa forma, quando os magistrados interpretam a legislação de modo a buscar a justiça, o fazem à luz dos mandamentos constitucionais, à qual todo o ordenamento jurídico deve observância e na qual busca validade, sendo, então, a Constituição Federal a maior fonte de justiça para os cidadãos, norteando a legalidade a fim de que sejam realizados os princípios que organizam o Estado, 139 BERMUDES, Sergio. Coisa julgada ilegal e segurança jurídica. In: ROCHA, Cármem Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança... p. 131. 136 dentre os quais a segurança jurídica. Sobre a relação da Constituição com a justiça, interessante trazer a lição de Oscar Vilhena Vieira: A idéia de que o intérprete constitucional deve sempre buscar a resposta moralmente mais correta para preencher o conteúdo aberto das normas constitucionais ou para solucionar um conflito entre princípios decorre da percepção de que as Constituições não podem ter sua legitimidade limitada à sua positividade legal, a uma questão de fato. As constituições, se pretendem ser válidas, devem ser intrinsecamente boas, funcionando como “reserva de justiça” para os 140 sistemas políticos e jurídicos que organizam . Da lição transcrita, podemos inferir que a Constituição objetiva uma resposta moralmente correta, atendendo à justiça e à todos os princípios que suportam o ordenamento jurídico, isso em maior grau que ao texto positivado, deixando claro que a máxima efetividade da Constituição passa pelas decisões dos magistrados. Como um dos grandes princípios que decorrem diretamente do Estado Democrático de Direito, logo está entre os mais importantes do Direito Constitucional, ele deve, mandatoriamente, ser considerado pelos julgadores. A “reserva de justiça” da Constituição tem como componentes todos os princípios constitucionais, considerando os pressupostos já comentados, a segurança jurídica é uma das matérias-primas da justiça, e sem os princípios, que baseiam as normas, nas quais se fundamentam as decisões, não há a consecução dos objetivos estatais, não há justiça. Relembramos que quando o Estado não consegue seus objetivos, não subsistem os motivos para que os cidadãos sustentem o ente coletivo, o que enseja a ruptura do contrato social, com a dissolução do Estado. Evidentemente que o fim descrito é uma situaçãolimite, mas está formal e materialmente correta, que já se repetiu no passado, sucedida por movimentos revolucionários. Sendo o Poder Judiciário responsável pela garantia de que o direito será corretamente aplicado a todos os cidadãos, a justiça é seu produto. No 140 VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 201. 137 momento em que o Estado, através de um de seus poderes, no caso o Judiciário, não entrega aos cidadãos o que se propôs, cabe aos cidadãos exigir uma melhor prestação estatal. Especialmente nos países onde há Corte Constitucional, é evidente que as decisões judiciais carregam um sentido de conformação de seu teor dentro do Estado, logo, contendo um importante aspecto de concretização dos princípios, como expõe Eduardo García de Enterría: Se destaca de uma manera convencional la «independencia» de los órganos constitucionales superiores sua ausencia e submissión respecto de otros órganos, la libertad de su organización y aun de su procedimiento [...] pero no parece que la conclusión pueda llegar más allá e insertarse en la temática propria de la división de los poderes, que obedece a razones completamente diferentes. Nuestra Constitución [a Constituição Espanhola] –y estimamos que justificadamente- ha creído oportuno singularizar orgánicamente al Tribunal Constitucional del Poder Judicial en sentido estricto y ordinario, separándose con ello de los precedentes americano e alemán (aunque ha de notarse que en estos sistemas la singularidad de funcionamiento y de organización de Tribunal Constitucional es completa) para seguir aquí el modelo austríaco y hoy italiano. No puede haber duda, sin embargo, de que su designación como «Tribunal», así como su regulación específica expresan la voluntad constituyente de reducir su papel a una función vinculada a la interpretación y aplicación de una norma previa, la Constitución 141 misma O mestre espanhol, ao final de sua lição, deixa caro que à Corte Constitucional cabe a “interpretação e aplicação” da Constituição. Não pode ser a atividade interpretativa e de aplicação dissociada da segurança jurídica, sem a qual a Constituição não teria sua efetividade garantida, com o que, por óbvio, nem o ordenamento jurídico nem os cidadãos concordam. 141 “Destaca-se de uma maneira Se destaca de uma maneira pacífica a «independência» dos órgãos constitucionais superiores sua ausência e submissão com referência a outros órgãos, a liberdade de sua organização e ainda de seu procedimento [...] mas não parece que a conclusão possa chegar mais além e se inserir na temática própria da divisão dos poderes, que obedece a razões completamente diferentes. Nossa Constituição [a Constituição espanhola] –e estimamos que justificadamente- creu ser oportuno separar organicamente o Tribunal Constitucional do Poder Judiciário em sentido estrito e ordinário, separando-se dele dos precedentes americano e alemão (ainda que haja que se notar que nestes sistemas a independência de funcionamento e de organização de Tribunal Constitucional é completa) para seguir aqui o modelo austríaco y hoje italiano. Não pode haver dúvida, sem embargo, de que sua designação como «Tribunal», assim como sua regulamentação específica expressam a vontade constituinte de reduzir seu papel a uma função vinculada à interpretação e aplicação de uma norma prévia, a Constituição mesma”. (Tradução livre do autor). ENTERRÍA, Eduardo García. La constitución como norma... p. 200. 138 Cármem Lúcia Antunes Rocha reafirma a relação da atividade estatal com a soberania, logo, com a segurança dos atos jurídicos e com a certeza de que as relações seguirão pelos caminhos corretos: a autoridade dos atos do Estado baseia-se na autoridade constitucional que os fundamenta. Faltante a autoritas constitucionalis carente de fundamento é o provimento estatal, que pode aparentar formas regulares de exercício do poder, mas que não se dota do conteúdo que segura no mundo dos atos jurídicos válidos. Sentença (ou acórdão) é ato estatal. Logo, o ato judicial terminativo, ou não, da ação há que se ater aos fundamentos e aos limites constitucionalmente definidos. A obrigação judicial e ater-se aos comandos constitucionais não pode ser excepcionada sob qualquer argumento, incluído o tão comumente apresentado como é o da soberania dos atos do juiz, menos, ainda, por um pensar judicante que depois se demonstra não ser coerente, compatível adequado constitucionalmente. Soberania não está na caneta do juiz, mas na tinta constitucional com que ela se aperfeiçoa e que a dota de força de poder estatal aderente e obrigante. [...] O homem, ser de si incerto e que vive na incerteza de tudo o que é inerente à sua vida e à sua morte, busca o certo nas coisas e nos atos que o cercam. Incerto quanto aos seus sentimentos, busca-se fazer certo dos atos que lhe são externos. Para confortar-se no sentido de que pelo menos o que lhe vai no entorno é estável, o homem constitui em direito a segurança do seu patrimônio de bens jurídicos, o que fundamenta os sistemas 142 normativos desde a Antigüidade. Como exposto ao longo do presente estudo, a segurança jurídica está presente em tudo que o Estado realiza, inclusive na interpretação constitucional, a qual está vinculada aos princípios que suportam o sistema constitucional, inclusive o da segurança jurídica, que confere ao cidadão a necessária estabilidade para que desenvolva suas atividades adequadamente. Isso posto, é indelével a marca da segurança jurídica na atividade judicial, que tem o dever de aplicar o direito a todos, e deve fazê-lo com as garantias de que serão alcançadas a justiça e a segurança que os cidadãos desejam do Estado. Assim, quando o Estado consegue seus objetivos, o resultado é a evolução, 142 ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. O princípio da coisa julgada e o vício de inconstitucionalidade. In: ROCHA, Cármem Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança... p. 165-168. 139 mas a falha redunda na ruptura, o que reafirma o quanto é vital para a coletividade que os princípios constitucionais, inclusive a segurança jurídica, informem os posicionamentos judiciais. 3.2.2 Importância da segurança jurídica no âmbito legislativo A garantia de proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico e à coisa julgada representa o maior grau de concretização do princípio da segurança jurídica no texto constitucional, mas não a única faceta de efetivação do dito princípio. No primeiro momento, devemos pontuar que a produção legislativa, sob o prisma da segurança jurídica, deve ser clara, objetiva e representar aplicação direta dos princípios e normas constitucionais, sempre em nome do interesse público. Assim é para que não restem dúvidas sobre o fundamento de validade da norma infraconstitucional, sendo possível a previsibilidade do que seja tutelado pelas normas, protegendo, por esse lado, a legítima confiança dos cidadãos no Estado. Independentemente da noção que se tenha de Estado, enquanto exercendo a função legislativa existe o compromisso com os direitos fundamentais, conforme a lição de J. J. Gomes Canotilho: Como já foi sugerido, o problema da eficácia dos direitos, liberdades e garantias na ordem jurídica privada significa, em primeiro lugar, que o legislador deve «mediar» essa eficácia (eficácia imediata) garantindo a sua observância e respeito através da «legislação civil». [...] No sistema constitucional de tendencial separação de órgãos de soberania, cabe, em primeira linha ao legislador assegurar a observância dos direitos, liberdades e garantias da ordem jurídica privada. Noutra formulação, mais recente, ancorada na idéia funcional de exigência de protecção pelo Estado ínsita nos direitos fundamentais: é dever do legislador ter em conta a necessidade de protecção dos direitos, liberdades e garantias nas relações jurídicoprivadas. Qualquer que seja o fundamento dogmático deste dever de protecção do Estado-legislador – eficácia dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, ou como princípios jurídicos estruturantes, ou como valores impregnadores de toda a ordem jurídica – não existem quaisquer dúvidas quanto à função dos direitos, liberdades e garantias como regras jurídicas vinculantes da ordem jurídica 143 privada. 143 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora. 2008. pp. 91-92. 140 Tendo em mente que o poder pertence ao povo, e em seu nome é exercido por seus representantes diretamente eleitos, a produção legislativa deve espelhar a vontade popular, a qual é, primariamente, o desejo de segurança e efetividade de seus direitos, não sendo materialmente compatíveis com o ordenamento jurídico que disponham em contrário, especialmente pelo vício da falta e legitimidade. Nesse sentido ensina Amanda Becke Machado Freitas: A lei não é, portanto, um instrumento de uma política, mas sim regra de direito. Por esse motivo a lei é feita para prescrever, proibir e sancionar. [...] Ou seja, a produção normativa passa, pelo prisma da segurança jurídica, a tornar-se um assunto que diz respeito diretamente ao exercício dos direitos e garantias fundamentais, deixando de ser, portanto, uma questão relacionada exclusivamente com a de divisão de poderes. [...] Portanto, não há como admitir que o povo, titular do poder, tenha restritos seus direitos e liberdades por meio de leis dúbias e imprecisas, ou que normas sem conteúdo normativo sejam editadas para atender meras finalidades políticas, sem emanar qualquer efeito jurídico, e que contribuem para a morosidade do processo 144 legislativo. O Poder Legislativo possui a atividade legislativa como sua atribuição principal, exercendo-a mediante procedimento constitucionalmente previsto, o processo legislativo, cuja observância estrita propicia a produção de normas formal e materialmente constitucionais, como adequado ao sistema republicano. A segurança desejada pelos cidadãos tem sua parcela advinda dos legisladores, cuja responsabilidade é maior do que vem atualmente sendo praticada, visto que a apatia do Poder Legislativo e sua sobreposição pelo Poder Executivo já é matéria exposta ao longo do presente estudo. O compromisso do legislador deve ser com a Constituição, efetivando-a, e com o cidadão, cuja vontade ele representa, e as expectativas deve atender; dentro dessas balizas, agirá o legislador conforme sua missão institucional. 144 FREITAS, Amanda Becke Machado. Breve ensaio sobre a qualidade da lei e o princípio da segurança jurídica no Direito Francês. Disponível em <http://www.iuspedia.com.br>. Acesso em 21 de julho de 2010. pp. 3-6. 141 Ademais, a segurança jurídica mais cara ao cidadão é a estabelecida entre o Estado e ele, com o condão de garantir ao cidadão o amparo que ele necessita para poder estabelecer a relação de confiança que, teoricamente, deveria ter na administração, que conduz seus interesses. É a dimensão objetiva da segurança jurídica. Todo o funcionamento do Poder Legislativo viabiliza a análise e o debate das matérias, na intenção de que as eventuais inconstitucionalidades sejam expurgadas na feitura da norma (controle preventivo), contudo, ainda há, dentro do sistema e freios e contrapesos, a possibilidade de controle judicial (ou repressivo) após a edição da norma, já que da norma sobrevive o ordenamento jurídico, com aquelas materializando esse. Do compromisso com a Constituição advém a obrigação de constitucionalidade, e do compromisso com o cidadão vem a previsibilidade, que contempla sua relação de confiança de que não acontecerão mudanças bruscas, afetando a legítima expectativa e o rumo indicado pela Constituição para a condução dos assuntos do ente coletivo para com os cidadãos. Nas palavras de Adhemar Ferreira Maciel: [...] se depenemos da lei, a norma jurídica deve, no mínimo, ser previsível. Deve oferecer aquele múnus de “calculabilidade”. Toda pessoa que se inter-relaciona deve poder saber, de antemão, como o alter se comportará em relação a ela. Sem isso não há sociedade ou mesmo comunidade. Pode haver ajuntamento de gente. O direito dispositivo pede certeza. Muitas vezes essa certeza jurídica se coloca em posição antagônica à própria justiça, que então assume contorno adiáforo. [...] A própria positivação da norma já oferece a primeira base da 145 seguridade jurídica. Mesmo o instituto da medida provisória não deveria ser obstáculo à ação dos legisladores, posto que, num cenário ideal, seu uso seria pontual, mas a realidade é oposta, como já abordado. Apesar do desequilíbrio institucional 145 MACIEL, Adhemar Ferreira. Medida provisória e segurança jurídica. In: ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Constituição e segurança... p. 261. 142 existente no Brasil, é inafastável o princípio da segurança jurídica, logo, ele deve informar todas as ações estatais, como expõe Cármem Lúcia Antunes Rocha: As expressões “segurança jurídica‟ e “direito fundamental a segurança” são reiteradas nos textos constitucionais com sentido diferenciado conforme a topografia constitucional, na qual se incluem e projetam-se em institutos, como direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, igualmente elencados, no direito constitucional brasileiro, como direitos inexpugnáveis pela ação do 146 Poder Público. Ainda sobre o mesmo assunto, Jorge Miranda reafirma que a Constituição vincula todo o Estado: A Constituição rege os comportamentos dos órgãos do poder que se movam no âmbito do Direito interno e, por conseguinte, todos os seus actos, quanto a todos os seus pressupostos, elementos e 147 requisitos, têm de ser conformes com ela . Quanto à positivação do princípio da segurança jurídica, papel que cabe, por excelência, aos legisladores, a conseqüência é a vinculação do Estado e dos cidadãos pelo dever de cumprir a legislação vigente, mas também pelo desejo de progresso e maior efetivação da Constituição. Nesse diapasão, o princípio da segurança jurídica tem contornos amplos, deixando o papel do legislador evidenciado pela necessidade de sua ação no correto sentido de assegurar as garantias constitucionais. Ao constituinte coube estabelecer o princípio, mas ao legislador ordinário cabe o compromisso de efetivá-lo através de seu trabalho. Nesse sentido, reproduzimos a lição de Ingo Wolfgang Sarlet: No caso da ordem jurídica brasileira, a Constituição Federal de 1988, após mencionar a segurança como valor fundamental no seu Preâmbulo, incluiu a segurança no seleto elenco dos direitos „invioláveis” arrolados no caput do art. 5º, ao lado dos direitos à vida, liberdade e propriedade [...] assim, bastariam estas breves considerações, para demonstrar o quanto a segurança jurídica(aqui tomada num sentido propositalmente amplo) assumiu um lugar de destaque na atual ordem jurídico-constitucional brasileira, ao lado da segurança social [...] Importa relembrar, neste contexto, que a 146 147 ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Constituição e segurança... p. 9. MIRANDA, Jorge. Manual de direito... t. II... p. 314. 143 segurança jurídica (para além das manifestações específicas expressamente constantes do texto constitucional) integra, na condição de subprincípio, também os elementos nucleares da noção de Estado de Direito plasmada na Constituição de 1988, desta sendo indissociável. Ademais, nem o princípio fundamental da segurança jurídica e nem mesmo o complexo de direitos fundamentais específicos já referidos e agasalhados pelo nosso Constituinte esgotam o elenco de possibilidades quando se cuida de delimitar o âmbito de proteção de um direito à segurança jurídica, à luz dos sistema constitucional brasileiro. Dentre essas outras manifestações, destacam-se duas que, pela sua relevância para a presente abordagem, já que aqui não poderiam deixar de ser mencionadas, quais sejam a idéia de proteção da confiança e da proibição do 148 retrocesso. Ainda citando o mesmo autor, reproduzimos sua lição quando trata da proteção à confiança, sua relação com a necessidade de estabilidade e a produção legislativa: Como concretização do princípio da segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança serve como fundamento para limitação de leis retroativas que agridem situações já consolidadas (retroatividade própria), ou que atingem situações fáticas atuais, acabando, contudo, por restringir posições jurídicas geradas no passado (retroatividade imprópria), já que a idéia de segurança jurídica pressupõe a confiança na estabilidade de uma situação legal atual. Com base no princípio da proteção da confiança, eventual intervenção restritiva no âmbito das posições jurídicas sociais exige, portanto, uma ponderação (hierarquização) entre a agressão (dano) provocada pela ei restritiva à confiança individual e a importância do 149 objetivo almejado pelo legislador para o bem da coletividade. Não se pode deixar de compreender que existem lacunas legislativas, o que representa mais responsabilidade ao legislador, de cuja atividade dependem os cidadãos. Explicitando a possibilidade de lacunas, o que faz parte da atividade legislativa, citamos William Couto Gonçalves: A rigor, sabe-se que transcende os limites da capacidade do homemlegislador prever e elaborar todas as normas genéricas possíveis de regulação das condutas dos integrantes de dado grupo social, por isso compreende-se a limitação legislativa, que sobressai como omissão, que transparece como conseqüência natural da limitação humana. A par da omissão, agora tendo-se em conta a falibilidade humana no sentido mais genérico,não se ignora a existência de leis 148 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: Dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais... pp. 91-92. 149 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: Dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais... p. 125. 144 minguadas de clareza e fartas de termos considerados vagos, além de que, por impossível que possa parecer, distantes da ordem 150 política e social do grupo a que se destinam. Infere-se da transcrição acima que há uma evidente e importante interface entre os poderes Legislativo e Judiciário, de forma não oficial, mas sim de funções complementares, onde as normas editadas pelo legislador, ainda que falhas, são utilizadas pelos julgadores, que utilizam de diversos meios de integração para aplicá-las devidamente. Mais uma vez fica evidente que o princípio da segurança jurídica permeia todo o Estado de Direito, em todos os seus poderes. Consideramos, assim, que ficou clara a necessidade de vinculação da atividade legislativa à Constituição, sendo essa de grande importância e rumo a ser tomado pelos que ocupem postos no Poder Legislativo, sendo corolários dessa atividade a legitimidade das normas editadas, representando a soberania popular. Deve ser lembrado que a segurança jurídica, em sua dimensão objetiva, é uma limitação imposta ao Estado, que deve oferecer a segurança aos cidadãos, assegurando a estabilidade necessária às instituições e pessoas, contribuindo para a manutenção do Estado Democrático de Direito. 3.2.3 Importância da segurança jurídica no âmbito executivo A segurança jurídica deve ser, além de princípio basilar, um objetivo para a atuação do Poder Executivo, cuja função é executar as leis, o que sempre deve ser feito à luz dos princípios, dentre os quais a segurança jurídica. É fato que existe uma hipertrofia do Poder Executivo, em que pese ser o mais visível no regime presidencialista, há uma identificação dos ocupantes desse poder como sendo a personificação do Estado, tomando nas mãos, dessa forma, a responsabilidade de ser o provedor da segurança jurídica aos cidadãos. A constituição serve de fundamento de validade para todas as 150 GONÇALVES, William Couto. Garantismo, finalismo e segurança jurídica no processo judicial de solução de conflitos. Rio de Janeiro; Lúmen Juris, 2004. p. 72. 145 normas, cuja aplicação é a maior faceta da responsabilidade de quem exerce a função executiva. Sobre a orientação do Estado à sociedade, papel que começa com a Constituição e é implementado pelo Poder Executivo, citamos Jane Reis Gonçalves Pereira: A concepção da Constituição como estatuto axiológico da sociedade é produto do constitucionalismo germânico, tendo sido desenvolvida e estruturada na jurisprudência da Corte Constitucional a partir a da vigência da Lei fundamental de Bonn. A idéia central inerente a essa visão é a de que, por meio da Constituição, a comunidade estabelece um arsenal de valores que hão de orientar e conformar não apenas a ordem jurídica estatal, mas a vida social genericamente considerada. Nessa perspectiva, as escolhas valorativas postas na Constituição – e que são exprimidas no rol de direitos fundamentais – devem orientar a ação do Estado e de todos 151 os setores da sociedade. A segurança jurídica, especialmente em sua dimensão objetiva, se constitui um limitador à atividade do Poder Executivo, que tem o dever de agir em observância à legalidade, também tendo o cuidado de não agir em nome apenas do interesse da administração, que nem sempre corresponde ao interesse dos cidadãos. É vedado ao Executivo, como aos outros poderes, agir em prejuízo da segurança jurídica, contudo, dentro da divisão de competências da tripartição dos poderes, sua responsabilidade parece não ser tão direta, por não criar ou interpretar a legislação, mas a verdade é que o aplicador é tão importante quanto os outros atores, já que ele materializa a vontade coletiva. As instituições estatais dotadas de poder são igualmente responsáveis pelo respeito aos direitos e garantias dos administrados, sujeitas ao princípio da legalidade, da segurança e da proteção à confiança nos atos do Poder Público, que todos os cidadãos podem apor ao ente público. O Estado deve reger-se pela boa-fé, razoabilidade, e estabilidade das relações jurídicas, que se configura na durabilidade das normas, na proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e á coisa julgada, para citar o enunciado mais conhecido, além da previsibilidade dos comportamentos. 151 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos... p. 457. 146 Os cidadãos, conhecedores da Constituição e da legislação que os regem, devem ser capazes de prever minimamente as providências estatais, que devem observar a isonomia, usufruindo da segurança como valor, como garantia, como direito fundamental,posto que tudo isso é principiologicamente assegurado, com o objetivo de que o Estado seja o provedor do bem estar social, expomos a vinculação do Poder Executivo com as palavras de José Joaquim Gomes Canotilho: o principio da legalidade da administração, sobre o qual insistiu sempre a teoria do Estado de direito e a doutrina da separação dos poderes e que acabou por ser considerado mesmo como o seu cerne essencial, postulava, por sua vez, dois princípios fundamentais: o principio da supremacia ou prevalência da lei e o principio da reserva da lei. Estes princípios permanecem validos, pois num Estado democrático-constitucional a lei parlamentar é, ainda, a expressão privilegiada do principio democrático e o instrumento mais apropriado e seguro para definir os regimes de certas matérias, e daí a reserva de lei. De uma forma genérica, o principio da supremacia da lei e o principio da reserva de lei apontam 152 para a vinculação jurídico-constitucional do poder executivo Um dos fatores que obriga o Poder Executivo a observar a segurança jurídica é a reserva legal, decorrente, assim como a segurança jurídica, do princípio do Estado de Direito, segundo o qual o Estado somente pode fazer o que é legalmente autorizado, sendo-lhe vedado agir fora dos limites legalmente impostos, são as dimensões positiva e negativa, obrigações de fazer e de não fazer, expostas por José Joaquim Gomes Canotilho: a reserva e lei comporta duas dimensões: uma negativa e outra positiva. Nas matérias reservadas à lei está proibida a intervenção de outra fonte de direito diferente da lei (a não ser que se trata de normas meramente executivas da administração). Além disso, nessas mesmas matérias a lei deve estabelecer ela mesmo o regime 153 jurídico [...] Como é visível, qualquer agente estatal deve ater-se à legalidade, o que para o cidadão representa que a conduta do ente coletivo será previsível e 152 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria... 3. ed. Coimbra: Almedina. 1999. p. 375. 153 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. ver. Coimbra: Almedina. 1993. p. 791. 147 constitucionalmente adequada, remetendo, por óbvio, aos bens jurídicos tutelados objetivamente pelo princípio da segurança jurídica, assim como à necessidade de proteção do próprio patrimônio jurídico dos cidadãos, amplamente considerado, seus direitos já assegurados e a legítima expectativa da ação do Estado. Sendo o Poder Executivo o responsável pelas ações que mais direta e freqüentemente impactam o cidadão, não se pode compreender sua responsabilidade para com a concretização da segurança jurídica de forma reducionista, nos atendo à mera literalidade. Ao contrário, toda a atuação para com os cidadãos vinda do Estado deve ser amplamente comprometida com a sua [do cidadão] segurança, e calcada numa aplicação do princípio no sentido de que não predomine o arbítrio do Estado, mas o respeito à dignidade do administrado, que, em última análise, é quem suporta o Estado. O Executivo, apesar da legitimidade que tem pela via da eleição direta, tem seus poderes ditados pelo povo, que estabelece a atuação executiva por meio das leis advindas do Poder Legislativo, contudo, o já exposto desequilíbrio institucional que ocorre no Brasil, associado ao uso excessivo das medidas provisórias, enseja uma falha na organização estatal, criando uma concentração de poderes que somente contribui para a insegurança, fragilizando o Estado. Deve haver uma busca constante de justiça social, consoante a lição de Lenio Luiz Streck: a nova maneira de compreender o Direito corresponde a uma ferramenta metateórica e transmetodológica a ser aplicada no processo de desconstrução do universo conceitual e procedimental do edifício jurídico, nascido no paradigma metafísico, que o impediu de submetê-lo às mudanças que há muito tempo novas posições 154 teóricas – não mais metafísicas – nos põem à disposição. 154 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2003. 148 A relação de confiança entre os cidadãos e a administração é bem exposta por Jesús González Pérez e também por Egon Bockmann Moreira, quando afirmam: [...] em efecto, la presencia de los valores de lealtad, honestidad y moralitad que su aplicación conlleva es especialmente necesaria en el mundo de las relaciones entre las Administraciones públicas y 155 entre las Administraciones públicas y los administrados os particulares não podem ver frustradas as suas expectativas e investimentos pela “mudança de humores” da administração, pela eleição do próximo governo ou devido a uma compreensão instável 156 dos vínculos contratuais. A presença da segurança jurídica na ação do Estado é evidente, assim também sendo na ação do Poder Executivo, a quem toca compreender e atender, dentro dos limites que o ordenamento jurídico impõe, as ações de concretização dos direitos e expectativas dos cidadãos, atraindo para esse poder a obrigação de observar a segurança jurídica em cada ação estatal. Tudo isso reafirma a importância de que o Estado funcione adequadamente, preservando os interesses republicanos, o contrato social, e os interesses dos cidadãos, de modo a atender às dimensões objetiva e subjetiva do princípio da segurança jurídica. 155 “[...] com efeito, a presença dos valores de lealdade, honestidade e moralidade que sua aplicação leva é especialmente necessária no mundo das relações entre as Administrações públicas e entre as Administrações públicas e os administrados” (Tradução livre do autor). PÉREZ, Jesús González. El princípio general da la buena fé en el derecho administrativo. Madrid: Civitas. 2004. p. 53. 156 MOREIRA, Egon Bockmann. A lei de licitações, o princípio da boa-fé objetiva e o abuso de direito. In: MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. (Coord.). O abuso do poder do Estado. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005. p. 73. 149 CONCLUSÃO O Estado Democrático de Direito, modelo em que o Brasil se enquadra, tem entre suas características a observância da legalidade nas suas relações, tal legalidade encontra fundamento no maior dos diplomas legais, a Constituição Federal. A seu turno, a Constituição, produto da vontade popular por meio do regime democrático representativo, trouxe para seu seio diversos princípios, que são conceitos gerais que, explícitos ou implícitos, informam todo o ordenamento jurídico. Dentre os princípios albergados na Constituição Federal está o da segurança jurídica. Por segurança jurídica compreendemos a obrigação do Estado de prover segurança e estabilidade nas relações jurídicas, tanto as que envolvam os cidadãos e o Estado, quanto as que envolvam os cidadãos entre si, considerando que os fatos e negócios jurídicos se dão dentro do que permite ou não proíbe o ordenamento jurídico vigente. A segurança tem sua importância na proteção conferida aos cidadãos de que as ações estatais ocorrerão conforme as regras vigentes e, em caso de mudança, não representarão uma ruptura, não serão mudanças drásticas que afetem o patrimônio jurídico consolidado, ou a legítima confiança depositada pelo cidadão no sentido de que o Estado não mudará bruscamente a legislação sobre a qual age o administrado. A partir da premissa de que o Estado foi criado por opção dos cidadãos, que trocaram parte de sua liberdade pela segurança a ser oferecida pelo ente coletivo, viabilizando a vida em comunidade organizada, a segurança constituise como o mais básico dos deveres estatais, representando o mínimo que os cidadãos esperam e sem o que não subsiste razão para manter a ordem vigente. Considerando ainda, que o texto constitucional positivou a segurança 150 jurídica entre os direitos e garantias fundamentais, no inciso XXXVI do artigo 5º, sendo, então, garantida a segurança jurídica aos cidadãos por força da dita norma. Dessa forma, podemos seguramente compreender a segurança jurídica como princípio decorrente do Estado de Direito, sendo parte indissociável desse, representando um bem jurídico considerado garantia constitucionalmente posta como direito fundamental de todos os cidadãos, indistintamente considerados. Analisando detidamente o princípio da segurança jurídica, constatamos que o mesmo se apresenta em duas dimensões: objetiva e subjetiva. Podemos diferenciar as duas pela aplicabilidade de cada uma. Na dimensão objetiva o princípio é prioritariamente dirigido à proteção do cidadão oponível ao Estado, segundo a qual as ações desse não podem ser hábeis a comprometer o patrimônio jurídico daquele, da mesma forma são vedadas sob o ponto de vista da segurança jurídica normas que representem mudança abrupta dos rumos das políticas públicas, ou que afetem a legítima expectativa dos cidadãos na continuidade de determinado rumo ou atividade pública, cujo fundamento de validade seja norma anterior. Quanto à dimensão subjetiva, a tutela se dá diretamente com foco no cidadão, protegendo a confiança desses de que os fatos e atos jurídicos realizados à luz de determinada regulamentação não serão afetados por outra superveniente, assim como não será surpreendido por alterações regulamentares que afetem atos que demandem tempo, o que comprometeria as relações entre particulares, podendo também atingir as relações com o próprio Estado. Registramos que vários autores tratam a dimensão subjetiva como sinônimo do princípio da “proteção da confiança”, outros põem essa como corolário daquela, o que entendemos ser mais pertinente, compreendendo a confiança como um corolário da estabilidade e da segurança desejadas do Estado. 151 Num cenário ideal, a segurança jurídica seria implementada com amplitude e sem celeumas, contudo assim não é. O princípio em comento é subaproveitado, mas ainda pior que isso é ver que ocorrem diversos movimentos contrários, até no seio do próprio Estado, para fragilizá-lo, conduzindo tanto os cidadãos quanto o ente coletivo nos rumos da ausência de segurança, o que é incompatível tanto com a Constituição quanto com os objetivos do próprio Estado. As emendas constitucionais são fatos normais dentro do processo legislativo. Porém, o que acontece no Brasil é que, além das emendas necessárias, outras são editadas no sentido de ajustar a Constituição aos desígnios dos que ocupem o governo. O que percebemos e podemos afirmar é que as políticas públicas não têm continuidade, sendo modificadas a cada mudança no Poder Executivo, o que a seu turno, cria um desequilíbrio com sua hipertrofia sobre o Poder Legislativo e ensejando insegurança na medida em que o texto constitucional sofre mutação constante, causando instabilidade. Igualmente a legislação toma caminhos de insegurança, sendo, em diversos casos, destinada a atender a casos pontuais, deixando de lado seu caráter geral, dessa forma ensejando insegurança aos administrados, que estão sujeitos à fragilidade de um ordenamento jurídico sujeito a mudanças destinadas a atender a interesses não republicanos. Como já pontuado linhas acima, existe no Brasil uma desequilíbrio institucional, com a hipertrofia do Poder Executivo, e que não se confunde com a importância natural desse poder no regime presidencialista. Em verdade, age o Executivo no sentido de tornar o Legislativo um mero aprovador de seus desígnios, tomando, por meio também do instituto da Medida Provisória, com requisitos fluidos e de cumprimento discutível. A quantidade de iniciativas legislativas do Poder Executivo se aproxima da quantidade do Senado Federal, o que evidencia a situação do Executivo, cuja função legislativa é excepcional, age quase nos mesmo níveis de uma das casas do parlamento, o que, por óbvio, não é compatível com o sistema de freios e contrapesos sobre o qual funciona o sistema republicano. 152 As decisões judiciais, cuja função principal é pacificar a sociedade, dessa forma assegurando a segurança provida pelo Estado aos cidadãos, podem concorrer, na verdade, para a insegurança. Já que cada vez mais se busca a tutela judicial, o Poder Judiciário é levado a pronunciar-se sobre mais situações, decidindo, por vezes, sem que disponha de embasamento em normas, tendo uma atuação mais politizada, destoando da tecnicidade necessária aos aplicadores da Lei. Ademais, institutos como a Ação Declaratória de Constitucionalidade, tornam o Judiciário uma espécie de “fiador” da norma instituída, evitando a ampla discussão sobre determinadas normas, o que tira dos cidadãos a chance de combater o que entendam violar seus direitos, ou mesmo o princípio segurança jurídica, em nome do que pode nem sempre ser o interesse público, mas sim o interesse da Administração. A relativização da coisa julgada é objeto de viva discussão, a qual trata abstratamente de justiça das decisões, contudo, sem estabelecer um conceito claro de justiça, argumentando que as decisões abrangidas pelo manto da coisa julgada nem sempre refletem os fatos, o que seria incompatível com o ordenamento jurídico. Respeitando os argumentos em contrário, entendemos eu mais danoso ao ordenamento jurídico é manter as decisões judiciais sempre sob a ameaça de desconstituição, sendo que já existem institutos como a ação rescisória para rediscutir os pronunciamentos dos magistrados. Relativizar a coisa julgada, deixando de vincular os julgamentos cíveis à verdade formal, seria institucionalizar a insegurança, fazendo pairar sobre os julgamentos a eterna possibilidade de revisão, visto que usualmente haverá nos litígios uma parte satisfeita, alegando ter sido feita justiça e outra entendendo em contrário, tentando expor alegadas injustiças. Não pode o operador do direito afastar-se da noção de que a segurança é essencial ao Estado de Direito, sem ela o contrato social não traz o primeiro benefício a que se destina, logo, todo o ordenamento sócio-jurídico embasado nesses pressupostos cai por terra, o que, dados os avanços da sociedade dentro de uma estrutura estatal, não é desejado, logo, a segurança jurídica tem 153 ligação direta com o princípio da proibição do retrocesso social, segundo o qual a ordem jurídica não pode abandonar os avanços obtidos até agora em nome de um retorno à situação anterior. Isso posto, a segurança é princípio que deve informar todos os aos e políticas do ente coletivo, logo, deve permear os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A proibição do retrocesso social, vedando a abolição de conquistas sociais, tem óbvio liame com a segurança jurídica, já que o ordenamento jurídico como se encontra não pode, segundo aquele princípio, voltar a estágio anterior de evolução, com o que são protegidos aos atos jurídicos, aos direitos adquiridos e a confiança depositada nas instituições. Mesmo em caso de normas programáticas é o caso de se falar em proibição do retrocesso e segurança jurídica, já que não é necessário que haja um comando concreto, bastando a indicação do rumo que deve ser dado ao ordenamento jurídico para que tal seja exigível, em maior ou menor grau, pelos cidadãos. No Poder Judiciário, a segurança jurídica é considerada e protegida nas decisões, que devem buscar a posição mais próxima da justiça, considerando a máxima efetividade da Constituição, sendo tais manifestações parte da segurança provida pelo Estado aos cidadãos, sem o que não se justifica a manutenção do status quo. É também papel do Judiciário a atividade interpretativa e de aplicação da Constituição, a qual é intimamente ligada a à segurança jurídica, que conjuga a soberania do Estado com as garantias atinentes aos cidadãos, de maneira que essas devem sempre ser contempladas. No tocante ao Poder Legislativo, a segurança jurídica, especialmente em sua dimensão objetiva, é essencial para a atuação legislativa, na medida em que a produção de normas jurídicas é sua principal tarefa e ela somente é correta quando acontece no sentido da máxima efetividade da Constituição e da observância de todos os princípios que a permeiam, inclusive o da segurança jurídica. De forma alguma é tolerável o vício da inconstitucionalidade de qualquer norma, logo, qualquer falha na produção legislativa, mesmo que 154 em nível infralegal, atenta contra a segurança jurídica, sem a qual o Poder Legislativo não tem sentido. O Poder Executivo, enquanto aplicador da legislação, inclusive da Constituição, estando, assim, vinculado á segurança jurídica pela sua missão de bem realizar os comandos impostos pelo ordenamento jurídico. Deve quem exerça a função executiva deve zelar pelo patrimônio jurídico dos cidadãos, assim como considerando o interesse da coletividade, não da administração. Mesmo no manejo, que deveria ser mais parcimonioso, das medidas provisórias, que, por si, tem certo caráter impositivo, quem ocupe o Poder Executivo deve ter especial cuidado para que sua aplicabilidade imediata não venha a prejudicar os cidadãos, causando danos e prejudicando a segurança desejada pelos cidadãos. Diante da presente dissertação, não se pode deixar de concluir pela imprescindibilidade da segurança jurídica para os cidadãos, reafirmando seu caráter de parte indissociável do Estado de Direito, sem a qual não se justificaria a existência do Estado, já que deixaria de oferecer segurança em troca de liberdade. Considerando que a vida em sociedade é repleta e conflitos, a pacificação provida pelo Estado é a amálgama que une os grupos sociais em torno dele, a segurança jurídica confere aos administrados a certeza de que serão protegidos contra quaisquer atos a eles lesivos, de seus pares ou, principalmente, do Estado. A confiança depositada na Constituição se justifica pela sua força normativa, tal força não existiria se as emendas, a legislação infraconstitucional ou as decisões judiciais fossem totalmente livres. Grande parte das limitações no ordenamento jurídico vêm da segurança jurídica, a qual representa o último argumento dos cidadãos em defesa e seus direitos e garantias, sem o que o Estado estaria completamente entregue ao arbítrio dos detentores do poder. 155 REFERÊNCIAS ALEXY. Robert. El concepto y la validez del derecho. Trad. Jorge M. Seña. Barcelona: Editorial Gedisa, 1994. _____________ Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Carlos Bernal Pulido. 2. ed. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 2008. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais. Coimbra: Almedina. BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Silva. Reimp. Lisboa: Almedina. 1994. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2001. _____________________ O direito constitucional e efetividade das suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2009. BERMEJO VERA, José. El declive de la seguridad jurídica em el ordenamento plural. Madrid: Dijusa, 2005. BERMUDES, Sérgio. Coisa julgada ilegal e segurança jurídica. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. (Org.). Constituição e Segurança Jurídica: Direito 156 adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada - Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum. 2004. BIGOLIN, Giovani. Segurança jurídica: a estabilização do ato administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. 8ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2000. __________________ Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. __________________ Do país constitucional ao país neocolonial: a derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. BRASIL. Anuário estatístico do processo legislativo. Ano 1 (2005). Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2006. v. (Série estatística legislativa). BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997. CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da coisa julgada material. Disponível em <http://www.cacofnd.org.br/artigos/art_juridicos.asp>. p. 16. Acesso em 19 de julho de 2010. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1995. _______________________________ Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 256. 157 _______________________________ Estudos sobre direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. CASTILLO BLANCO, Frederico. apud MAFFINI, Rafael. Princípio da proteção substancial da confiança no direito administrativo brasileiro. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. CHIGNOLA, Sandro. In DUSO, Giuseppe (org.). O poder: história da filosofia política moderna. Tradução de Andrea Ciacchi, Líssia da Cruz e Silva e Giuseppe Tosi. Petrópolis: Vozes, 2005. COUTO E SILVA. Almiro do. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus Próprios Atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº. 2, abril/maior/junho, 2005. Disponível na Internet:<www.direitodoestado.com.br>. Acesso em 07 de julho de 2009. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do. (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. 158 DERBLI, Felipe. O princípio da proibição do retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In: Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, Ano IV, nº 19. Porto Alegre: Síntese. set/out. 2002. p.6. ENTERRÍA, Eduardo García de. La constitución como norma y el tribunal constitucional. 3. ed. Madrid: Civitas, 1983. FAVOREU, Louis. Los tribunales constitucionales. Trad. José Julio Fernández Rodríguez. In: GARCIA BELAUNDE, D. e FERNANDEZ SEGADO, F. La jurisdicción constitucional em iberoamerica. Madrid: Editorial Dykinson, 1997. FERRAZ, Fernando Basto. A agonia de um modelo de estado. In BARBOSA, Edmilson (Org.). Democracia e constituição: estudos em homenagem ao professor Dimas Macedo. Fortaleza: Edições UFC, 2008. FREITAS, Amanda Becke Machado. Breve ensaio sobre a qualidade da lei e o princípio da segurança jurídica no Direito Francês. Disponível em <http://www.iuspedia.com.br>. Acesso em 21 de julho de 2010. FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 4. ed. rev. e ampl., São Paulo: Malheiros, 2004. _______________ O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3. ed., são Paulo: Malheiros, 2004. _______________ A interpretação sistemática do direito. 4. ed. rev. e ampl., São Paulo: Malheiros, 2004. 159 _______________ O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. Refundida e ampliada. São Paulo: Malheiros, 2009. GOMES, Luiz Flávio. BIANCHINI, Alice. Hipertrofia irracional (caos normativo); Instrumentalização distorcionante; Inoperatividade, seletividade e simbolismo; Excessiva antecipação da tutela penal (prevencionismo); Descodificação; Desformalização e funcionalização do Direito Criminal (flexibilização das garantias penais, processuais e execucionais); Prisionização (explosão carcerária); Enfoque crítico do Direito Penal e da legislação criminal brasileira pós-1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. pp. 74-76. GONÇALVES, William Couto. Garantismo, finalismo e segurança jurídica no processo judicial de solução de conflitos. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004. GRECO, Leonardo. Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. In: DIDIER JR. Freddie (Coord.). Relativização da coisa julgada: enfoque crítico. Salvador: JusPODIVM, 2004. KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried; HESPANHA, António Manuel. Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneo. Tradução de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 160 KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: Os (Des)Caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. KORESSAWA, Wilson. O princípio da segurança jurídica: implicações na ocupação familiar de lotes públicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. LEITE, George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2004. LIMA, Francisco Gérson Marques de. O Supremo Tribunal Federal na crise institucional brasileira - Estudos de casos: abordagem interdisciplinar de sociologia constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. MAGNA CARTA. The British Library. Desenvolvido pela Biblioteca Britânica. Internet. Disponível em: http://www.bl.uk/treasures/magnacarta/translation/mc_trans.html. Acesso em 23 de julho de 2009. Seções 39 e 60. MARINONI, Luis Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais: a questão da relativização da coisa julgada material. In: DIDIER JR. Freddie (Coord.). Relativização da coisa julgada: enfoque crítico. Salvador: JusPODIVM, 2004. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998. 161 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo I. 6. ed. Coimbra: Coimbra, 1997. _______________ Manual de direito... Tomo II. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1996. _______________ Manual de direito... Tomo IV. 3.ed. Coimbra: Coimbra, 2000. MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. T. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967. MOREIRA, Egon Bockmann. A lei de licitações, o princípio da boa-fé objetiva e o abuso de direito. In: MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. (Coord.). O abuso do poder do Estado. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005. MOREIRA, Vital. Constituição e revisão constitucional. Lisboa: Editorial Caminho, 1990. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. PAULSEN, Leandro. Segurança jurídica, certeza do direito e tributação: a concretização da certeza quanto à instituição de tributos através das garantias da legalidade, da irretroatividade e da anterioridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 162 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. vol. I. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. PÉREZ, Jesús González. El princípio general da La buena fé en el derecho administrativo. Madrid: Civitas, 2004. PIOVESAN, Flávia. IKAWA, Daniela. Constituição e segurança jurídica. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Org.). Constituição e Segurança Jurídica: Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada - Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004. MACIEL, Adhemar Ferreira. Medida provisória e segurança jurídica. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. (Org.). Constituição e Segurança Jurídica: Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada - Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004. MEIRELLES, Hely Lopes. WALD, Arnoldo. MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações constitucionais. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: comentários e aspectos polêmicos. São Paulo: Saraiva, 1991. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Tradução de L. Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1979. 163 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O Princípio da Coisa Julgada e o Vício da Inconstitucionalidade. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. (Org.). Constituição e Segurança Jurídica: Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada - Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004. ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Constituição e Segurança Jurídica: Direito Adquirido, Ato Jurídico Perfeito e Coisa Julgada - Estudos em Homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004. ROUSSEAU, Jean Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. São Paulo: Martin Claret, 2003. SAGÜÉS, Nestor Pedro. Elementos de derecho constitucional. t. 2. Buenos Aires: Editorial Ástrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1993. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto alegre: Livraria do Advogado, 2009. ____________________ A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: Dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição do retrocesso social no direitos constitucional brasileiro. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. (Org.). Constituição e Segurança Jurídica: Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada - Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004. SCHIMITT, Carl. O guardião da constituição. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 164 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. ____________________ Constituição e segurança jurídica. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. (Org.). Constituição e Segurança Jurídica: Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada - Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004. ____________________ Direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. TEITEL, Ruti G. Transitional justice. New York: Oxford University Press, 2000. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Vol. 1. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999.