RELATÓRIO FINAL VER-SUS Edição de Verão/2016 Leucinéia Schmidt O VER-SUS foi para mim uma experiência transformadora de vida. Teve início no dia 07/01 com o acolhimento, apresentação e história do VER-SUS. Este projeto surgiu a partir das diversas reformas e leis que reconheciam a importância do SUS, e assim em 2005 teve a sua primeira edição nacional. Nos dias 08/01 e 09/01 tivemos o curso “Como funciona a sociedade I”, pois entender a sociedade e como ela funciona é importantíssimo para sermos bons profissionais de saúde. No nosso país a desigualdade social é muito visível, poucas pessoas que possuem muitas riquezas vivendo com muitas pessoas que possuem poucas riquezas. Dessa forma o palestrante nos propôs a seguinte pergunta: Como o rico ficou rico? E foram sugeridas várias repostas, herdando, estudando, trabalhando, poupando, entre outros. Contudo ele achou que estas não eram respostas firmes e consistentes, por isso sugeriu outra pergunta: É possível obter lucro comprando pelo valor e vendendo pelo valor? A partir de então ele trouxe vários conceitos e explicações para demostrar a realidade da nossa sociedade. O valor é determinado pela quantidade de trabalho humano médio gasto para produzir uma mercadoria, sendo medido em tempo e expresso em dinheiro, ou seja, representa o momento da produção. O preço representa a quantidade de dinheiro dado em troca do produto no momento da comercialização, por isso o preço tem um valor oscilante e é determinado pelas necessidades das pessoas. Logo, quando a oferta é maior que a demanda o preço baixa e vice versa. Também, a medida que as máquinas da produção são utilizadas o seu valor diminui, contudo este valor é sempre transferido para os produtos, por isso o produto aumenta o seu valor quanto mais tempo for gasto para a sua produção. A força de trabalho gera novas riquezas, diferente de outras mercadorias, o uso do trabalho não implica em destruição de valores e riquezas, por isso quanto mais se utiliza a força de trabalho, mais riquezas são geradas. A única mercadoria que tem a capacidade de gerar mais valor do que ela mesma vale é a força de trabalho. Assim, o trabalho paga o próprio salário e gera excesso de mais valia que vai parar nas mãos dos patrões, logo o salário mínimo pago não satisfaz nem as necessidades básicas. O palestrante demostrou através de cálculos que um trabalhador que limpa o chão de uma empresa e que tem um salário mensal de R$ 6.000,00 por mês e todos os seus direitos garantidos é muito explorado. Somente os primeiros 50 minutos do seu trabalho são necessários para pagar o seu salário, os outros 300 minutos que segue trabalhando é a fonte da mais valia que vai parar nas mãos dos patrões. Assim, segundo dados da ONU, 358 pessoas no Brasil possuem mais renda do que 2,6 bilhões de pessoas, 0,001% das famílias são responsáveis por 40% do PIB brasileiro e ¼ das crianças da América Latina sofrem desnutrição crônica. O estado é organizado pela classe dominante, com estrutura política e jurídica. As forças armadas são contratadas pelo estado para manter a lei e as normas dominantes. A angústia gerada gradualmente a cada turno que se passava mostrou o descontentamento que tenho com a sociedade em que vivo, com seu capitalismo e sua enorme produção de desigualdade social. Onde vemos que muitas vezes a saúde do trabalhador, tanto mental quanto física, é deixada em último plano. No dia 10/01 começamos a manhã com uma atividade conhecida como “corredor do afeto”, nesse momento conseguiu-se ver de forma bastante clara a emoção de todos os participantes durante toda a atividade, dando ali os primeiros sinais de coletividade e entrega na vivência. Em seguida assistimos dois vídeos sobre o que era o SUS, montou-se grupos para elencar pontos positivos e negativos do SUS. Estes documentários mostraram de forma clara como a elite marginaliza o SUS, e ao mesmo tempo é a elite que tem o controle dos meios de comunicação. O problema do SUS esta nos gestores, que não sabem gerir o SUS, desta forma os problemas tendem a surgir com mais frequência. No dia 11/01 fomos até o Município de São Vicente do Sul/ RS, onde há cobertura de 100% da Estratégia Saúde da Família (ESF). É impressionante o funcionamento da saúde pública neste município, pois além dessa cobertura 100% ESF, há um sistema de informatização, o SIMUS. Através desse programa é possível se ter acesso a todo o prontuário do usuário, ter acesso à farmácia municipal, bem como é possível que a farmácia tenha um controle de tudo o que é receitado. O sistema SIMUS consegue mandar as informações para o SUS e também através deste se consegue ter acesso às ações de todos os profissionais para com o paciente. Tivemos a oportunidade de conhecer as ESFs de São Vicente do Sul e o Hospital de lá, que é classificado com um hospital de pequeno porte, além de conversar com os profissionais de saúde e com os usuários dos serviços. Através dessa vivência foi possível perceber que há como ‘dar certo’ o funcionamento dos serviços do SUS e que para isso é preciso que haja uma gestão que acredite, invista e que faça isso acontecer de fato. No nosso país temos um grande problema, 70% dos recursos são investidos em nível secundário (urgência e emergência) e 90% dos problemas de saúde se resolvem na atenção básica. Por isso se tem tantas dificuldades estruturais e financeiras no SUS. No dia 12/01 tive a oportunidade de conhecer as ESFs São José da cidade de Santa Maria. Esta conta com duas equipes, dois médicos e com 19 mil pessoas, o que torna difícil o atendimento devido ao excesso de pessoas, pois o correto seria 3 mil habitantes por ESF. Fomos recebidos pela enfermeira, pela educadora física e pela agente comunitária de saúde, que nos contaram sobre os serviços e atendimento de saúde do local e nos levaram para conhecer a região de abrangência da ESF. Depois de conhecer toda a extensão do local de atuação dos serviços, que é bem grande por sinal, pudemos conhecer o espaço físico da ESF e conversarmos um pouco com alguns profissionais de lá. Nesta ESF muitos casos são resolvidos no acolhimento e se realiza muito a educação e saúde através de grupos, sempre buscando escutar o paciente. A agente comunitária de saúde realiza seu trabalho com o foco na prevenção, sempre que necessário faz visitas às casas das famílias e compromete os pacientes para com a sua saúde. Além disso, a agente de saúde é responsável por realizar as pesagens para o programa bolsa família uma vez por semestre juntamente à unidade da ESF, nesta oportunidade são verificadas as vacinas das crianças e se necessário realizados encaminhamentos para a equipe de saúde. À noite, tivemos um espaço sobre a Reforma Psiquiátrica e sobre a Redução de Danos, que foi ministrada pelo psicólogo Thiago Alves e por um monitor de redução de danos, este nos contou diversas histórias emocionantes e chocantes da sua vivência na redução de danos. No dia 13/01 tive a oportunidade de conhecer um CAPS de referencia em Saúde Mental que atende transtornos mentais graves. Para a realização do trabalho se tem uma equipe multidisciplinar que realiza o atendimento individual, mas sempre se priorizam atividades em grupo como: construção de artesanatos, pilates, caminhadas, etc. Neste local são atendidas em média 800 pessoas, quando segundo estabelece portaria deveriam ser atendidos em média somente 300 pacientes. A alimentação é fornecida por uma empresa onde se tem a presença do profissional nutricionista, mas no CAPS não se tem a presença deste profissional. Atualmente se têm 12 profissionais que realizam os atendimentos e os pacientes que são atendidos são oriundos das Unidades Básicas de Saúde (UBS), do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM), de outros CAPS e de demandas espontâneas. A doença mais prevalente é a esquizofrenia. É necessário que a família também se responsabilize para com o tratamento, em casos complicados e que a família não adere ao tratamento, o paciente é encaminhado para outra cidade, pois Santa Maria não possui Residencial Terapêutico. Em municípios pequenos se tem os NAAB ao invés dos CAPS. Se o tratamento na atenção básica para com estes pacientes fosse de mais qualidade, não se teria tantos casos no CAPS. E o que mais me emocionou e chamou a atenção foi quando um dos pacientes nos chamou a atenção e nos disse a seguinte frase: Tudo o que vocês forem fazer na vida, façam com uma única finalidade, com amor. Também me emocionou muito quando um dos pacientes começou mostrar o seu caderno para nós e ler poesias que ele mesmo havia escrito. Bem como uma mulher que nos contou sua história de luta, persistência e coragem. Pela parte da tarde, fomos ao Centro de Referência à saúde do Trabalhador (CEREST), e tivemos uma palestra com a médica de trabalho do local sobre o que é e como surgiu o CEREST e um pouco da história sobre o SUS. Já à noite, tivemos uma discussão sobre gêneros, ministrado por uma Mestranda da Marcha Mundial das Mulheres. No dia 14/01 pela parte da manhã tivemos uma palestra sobre Controle Social, pois este é importantíssimo dentro dos municípios. Os espaços de controle social são divididos em conselho de saúde e conferências de saúde. Têm-se quatro segmentos: usuário, trabalhadores de saúde, prestadores de serviço e governo. As entidades possuem autonomia e são elas que indicam os seus representantes. Todos os projetos na área da saúde devem passar pelo conselho, sendo que o conselho funciona com reuniões e comissões. Assim, o conselho sempre manda para a comissão e depois vai para a plenária. Os participantes das comissões são de escolha livre. Sempre que o conselho pedir algo para o secretário e este não atender ao pedido, se encaminha ao prefeito e depois para o Ministério Público. Por isso faz se necessário que o usuário sempre faça a sua reclamação juntamente ao conselho ou na ouvidoria, logo a secretaria de saúde teria que ter uma ouvidoria. Os conselhos possuem poder deliberativo e sempre discutem em conjunto para tomar uma posição que fica registrada em ata. As conferências da saúde são importantíssimas e são realizadas em cada município, nelas se escolhem os delegados para as conferências estaduais e nacionais. A iniciativa privada passou a ser predominante, as prefeituras não estão investindo mais no público, mas sim na terceirização. No Brasil se tem 134 atendimentos no SUS a cada segundo, por isso faz-se necessária uma articulação inter setorial e a utilização correta dos recursos que estão disponíveis para a realização dos serviços. É necessário que se adquira espaços para o controle social, onde se possa discutir e que se entre em consenso para a realização de determinado projeto que beneficie a todos. Enfim o SUS tem muitos problemas, mas também muitas qualidades. Ainda pela parte da manhã, outro grupo fez uma visita ao presídio de Santa Maria, onde relataram que a equipe é composta dos seguintes profissionais: 1 enfermeiro, 2 psicólogas, 1 nutricionista, 2 assistentes sociais e 1 advogado. Não se tem a presença do profissional médico, o enfermeiro é responsável até pela medicação, não há esterilização dos materiais, os materiais são muito precários, não se tem maca, o espaço é pequeno. Nos finais de semana são os agentes penitenciários que mesmo se medicam. O sistema é muito falho e gira em torno da negligência política, além disso, há desinteresse por parte dos dirigentes do presídio. Tem-se certa de 300 presos, as visitas ocorrem em dois dias da semana. A patologia mais presente é o estresse psicológico. Quando o presidiário apresenta transtorno mental e é usuário de drogas, mas não apresenta vínculo com o CAPS, ele não é atendido pelo CAPS, pois se alega que ele é perigoso. O presídio é o primeiro lugar da segurança, mas o último lugar da saúde. Logo, se tem um completo descaso para com a saúde, o SUS não funciona. Apesar de tudo isso, pudemos ver o empenho de um profissional que não possui incentivo e nem uma estrutura mínima para um bom atendimento, mas que mesmo assim, com todas as dificuldades, há 16 anos vem fazendo ou dando o máximo para fazer a diferença na saúde prisional de Santa Maria. Pela parte da tarde fomos fazer uma visita ao Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM). Nesta oportunidade, conhecemos a sua estrutura física e funcionamento, o que me deixou impressionada foi como os profissionais desempenham o seu trabalho buscando atingir sempre os melhores resultados, apesar de os recursos serem escassos se consegue realizar todos os atendimentos desde o mais simples aos de alta complexidade. O custeio do SUS é baixo, devido ao PIB do nosso país ser baixo, logo a estratégia é realizar um planejamento eficiente para utilizar esses recursos, tendo como foco a educação e a saúde. Dentro do HUSM tem-se o funcionamento de vários núcleos como o Núcleo de Educação Permanente em Saúde (NEPS) e o Núcleo de Educação Permanente em Enfermagem. O NEPS possui a finalidade de desenvolver ações educativas multidisciplinares de acordo com o planejamento estratégico. Este núcleo segue três eixos: educação e saúde, educação em serviço, integração ensino serviço e produção científica. O HUSM se preocupa muito com a segurança dos pacientes, para tanto criou seis estratégias com o objetivo de melhorar o atendimento, são elas: identificar corretamente o paciente, melhorar a comunicação entre os profissionais de saúde, melhorar a segurança na prescrição, no uso e na administração de medicamentos, assegurar cirurgias seguras, higienizar as mãos para evitar infecções e reduzir o risco de quedas. Enfim o HUSM esta sempre buscando se adequar para melhorar a qualidade dos atendimentos. No dia 15/01 tivemos a oportunidade de conhecer o “Assentamento Ramada” no município de Júlio de Castilhos/RS. Este assentamento é resultante da luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que luta pela reforma agrária em resposta a desigualdade do acesso a terra no Brasil. Os militantes desse movimento são, na maioria das vezes, vistos como vândalos pela mídia, porém após vivenciar com eles vimos o quanto é grande e justa a luta deles por um pedaço de terra e o quanto a imagem a respeito deles é distorcida pela mídia, pois são pessoas que lutam por direitos, pessoas guerreiras, extremamente acolhedoras e humildes. Neste assentamento vivem 101 famílias, cada uma possui 26 hectares de terra, sendo que é muito visível a grande quantidade de produtos orgânicos que são produzidos, bem como cultivo de pomares. Somente neste assentamento se produz 70% do leite do município de Júlio de Castilhos. Contudo, muitos produtores já estão envolvidos na produção de transgênicos, pois o mercado impõe muitas normas para o cultivo dos produtos orgânicos, e isso faz com que a produção fique cada vez mais dificultada. O que nos chamou muito a atenção foram as enormes dificuldades enfrentadas para se ter o acesso à saúde. A equipe de saúde visita a região somente uma vez por mês, se tem a falta de estudos epidemiológicos naquela região e a falta de praticas de educação em saúde, a fim de prevenir patologias e promover saúde para esta população. Enfim apesar de todos os problemas enfrentados pelos trabalhadores deste assentamento, estes são um exemplo de luta para a nossa sociedade, pois priorizam a produção com qualidade e não a quantidade. No dia 16/01 tivemos a oportunidade de conhecer a Comunidade Estação dos Ventos que faz parte do Movimento Nacional de Luta pela Terra. Para mim foi um dos momentos mais fortes da vivência, pois esta comunidade é muito marginalizada, o acesso à saúde é muito dificultoso, não se tem agente comunitário de saúde, o acesso à água e à energia elétrica são precários, as obras do PAC estão sendo muito mal feitas, a educação não recebe nenhum incentivo, para se conseguir alguma coisa se enfrenta uma enorme burocracia onde são necessários projetos muito bem elaborados, sendo que muitas vezes ainda o dinheiro é desviado. Esta comunidade sofre muito com o preconceito, as pessoas que ali vivem lutam para um dia terem uma vida melhor. Para a educação das crianças a comunidade conseguiu construir uma creche, onde tudo o que se conseguiu foi a partir de doações dos pais das crianças. É muito triste ver como essa comunidade é marginalizada e não tem acesso a nada, muito menos acesso à saúde. Contudo, é muito bonita a maneira como o líder comunitário de lá atua, pensando sempre no coletivo, pensando em melhorias para a comunidade em geral. Esta comunidade representa como o sistema capitalista é cruel diante da nossa sociedade, e apesar de tudo estas pessoas necessitam ser fortes para lutar pela sobrevivência todos os dias. Pela parte da tarde tivemos a oportunidade de conhecer uma Comunidade Indígena Kaingang, onde o líder indígena nos falou de como era na época dos seus antepassados, onde as curas eram feitas pelos pajés, através da queima das ervas, as doenças eram curadas a partir de plantas medicinais retiradas da natureza. A Constituição de 88 prevê que a saúde para os povos indígenas seja tratada de forma diferenciada, mas isso não acontece nos dias atuais, o que esta na lei não esta sendo cumprido. Os indivíduos dessa aldeia são atendidos de forma muito precária na saúde, a comunidade esta excluída do sistema, se tem muito preconceito nos atendimentos na saúde, os brancos são passados na frente, não há nenhum interesse por parte das autoridades e por parte dos profissionais de saúde para com os povos indígenas. Não se tem banheiro público, há um completo descaso para com a saúde destes indivíduos. O que me deixou impressionada foi quando um dos líderes nos conclamou que se possível que nós fizéssemos alguma coisa por eles, porque eles são um povo esquecido, que não recebe nenhuma ajuda e incentivo por parte da sociedade e dos governantes. Isso demonstra o quanto a nossa sociedade é injusta, excludente e racista. No dia 17/01 tivemos uma palestra sobre gênero e diversidade sexual. Este foi um espaço muito rico e importantíssimo. Muitos termos e conceitos esclarecedores foram abordados, além de um pouco da história de questões de gênero. Na nossa sociedade o homem é colocado sempre numa posição superior à mulher. A população LGBT na nossa sociedade é muito julgada, seus direitos à saúde muitas vezes não são respeitados. Faz-se necessário a criação de projetos e políticas públicas para que esses indivíduos possam ser tratados de forma igualitária dentro do SUS. No dia 18/01 ocorreu o enceramento do evento, este dia foi de organização dos espaços e confraternização. Para mim este momento de despedida foi muito difícil, pois queria ficar ali para sempre ao lado de pessoas legais, amigas, companheiras e que compartilham as mesmas experiências de luta, coragem, desafios e obstáculos a serem enfrentados todos os dias. Ao mesmo tempo tive que ter coragem para enfrentar este momento, e continuar caminhando agora para colocar em prática tudo o que vivenciei nestes dias de VER-SUS. Quero sempre poder estar ao lado e compartilhar experiências com estes amigos legais e incríveis que encontrei no VER-SUS, bem como estar juntos na luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Obrigada a todos de coração.